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NARRATIVA HISTÓRICA E SUBJETIVIDADE: A TRAJETÓRIA HISTÓRICO-
POLÍTICA DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA ATRAVÉS DO SEU DISCURSO.
FLÁVIO JOSÉ DALAZONA*
HEITOR ALEXANDRE TREVISANI LIPINSKI**
Introdução
Este ensaio pretende, por meio de entrevistas produzidas pelos veículos do jornalismo,
trabalhar alguns aspectos referente à materialidade do discurso do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva neste momento em que se encontra prisioneiro em Curitiba. A partir da chave
analítica proposta pela História Oral, objetiva-se destacar alguns aspectos de como o
personagem atribui sentido às suas experiências temporais inclusive àquelas em que foi
integrante e partícipe.
Lula, no cenário nacional e internacional tem importância singular, visto como um dos
grandes representantes da esquerda mundial, por isso, não existe pretensão de atribuir juízo de
valor quanto ao processo que o condenou, ainda que em suas falas possam inquirir margens a
interpretações. Para contribuir com as análises, além dos aspectos da matriz metodológica da
história oral, trabalha-se também com aspectos da construção do discurso de Michel Focault
(1996), e a partir do constructo narrativo, onde Jörn Rüsen (2010, 2016) fornece importantes
premissas para pensar a relação: sujeito – narrativa – tempo.
Dessa forma, procura-se destacar dentro desse espaço político-discursivo, inferências
da geopolítica mundial e a formação da consciência brasileira, a ordem burguesa capitalista de
origem das revoluções liberais e os avanços e fracassos da história do Brasil, além do
sentimento de avaliação da contemporaneidade.
Lula, uma breve biografia
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro Oeste
(UNICENTRO) – [email protected] ** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro Oeste
(UNICENTRO) – [email protected]
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Ao atrever-se a realizar uma análise da oralidade de uma personagem histórica, é
necessário recorrermos às suas inferências, experiências e relevância na participação efetiva na
linha do tempo. Lula é uma figura de biografia ímpar. Nascido em 1945, é o penúltimo de uma
prole de oito filhos de um casal de agricultores nordestinos, pouco recordando da infância pobre
em Caetés, interior do estado de Pernambuco, tempos em que para comer arroz era somente
quando adoecia. (MARKUN, 2004). Em busca de uma vida melhor, a família se muda para São
Paulo, mas os entraves financeiros foram ainda somados à violência familiar e às tragédias
ocorridas pelas más condições da periferia em que residia.
Quando jovem, trabalhou como metalúrgico em São Bernardo do Campo, assinando a
inscrição com o sindicado em 1968 e em 1969 já era suplente. Demorou a se acostumar com o
sindicato, tanto que quando alguém fazia uma pergunta, ele anotava, consultava o advogado
para aí então, responder. “Era tão inibido que, quando citavam meu nome numa assembleia, eu
já ficava vermelho. Eu jamais me imaginei sendo presidente de sindicato” (fala de Lula em
MARKUN, 2004, P.80).
Casou-se nesse mesmo ano, e em 1971, grávida de sete meses, a esposa Maria de
Lourdes foi diagnosticada com hepatite. Presenciou então, o sofrimento da esposa, a falta de
atendimento médico, o diagnostico tardio, o que infelizmente levou ao óbito a esposa e a
criança. Abalado, voltou a morar com a mãe por três anos.
Aos 25 anos de idade largou o trabalho de metalúrgico para se dedicar ao sindicato, teve
uma filha com Miriam Cordeiro e na mesma época casou-se com Marisa. Tiveram seu primeiro
filho nove meses após o casamento. No sindicado, assumiu a presidência mesmo sem
experiência, mas a cada dia ia se despontando um talento próprio para a política.
[...] Lula não tinha qualquer interesse no jogo político partidário. Ele tampouco se
sensibilizava pela anistia, uma das bandeiras da esquerda na época. Sempre que lhe
perguntavam sobre o assunto, dizia ser contra a prisão de qualquer cidadão por sua
ideologia, mas deixava claro que aquea não era uma preocupação dos trabalhadores: _ um homem levanta às quatro e meia da manhã e dorme às dez da noite para ganhar
três mil cruzeiros é um eterno presidiário. (...) Resolvendo apenas o problema dos
cassados, os trabalhadores ficarão do mesmo tamanho: F...e mal pagos. Como
sempre estiveram. Os cassados um dia já tiveram liberdade. (MARKUN, 2004, p.119)
Nesse trecho, podemos perceber que Lula já envolvido com política, ainda não somava
todos os anseios da esquerda brasileira, mas percebendo sua origem, deixa claro o que
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primeiramente deveria defender, seu foco, ainda que já estivesse com um nome relevante no
cenário brasileiro, era o trabalhador.
Em 1980, Lula com companheiros de esquerda, unem-se a comunidades de base,
inspirados pela Filosofia da Libertação1, e esboçam um princípio de partido político. Agora
suas funções passavam por uma dupla tarefa: reivindicar melhorias para os trabalhadores na
representatividade sindical e na composição política de um partido, visto que o ideal era levar
os ganhos dos trabalhadores do ABC paulista para todo o Brasil. Ganhos esses que passaram a
ser refinados, impensados até mesmo na Europa. Sua força se tornou grande e não demoraria
para que as elites tentassem derrubá-lo.
Ainda assim, no mesmo ano, é lançado as bases para o Partido dos Trabalhadores,
defendendo o pluripartidarismo, e a luta contra a tirania da burguesia nacional. Durante a
redemocratização, Lula foi uma das lideranças de maior prestígio na campanha pelas Diretas
Já2, e em 1986 se elegeu deputado federal.
Não se adaptou a função como parlamentar, votava de acordo com o que era acertado
no partido, junto com a bancada do PT, mas julgava haver dentro da câmara uma guerra de
egos, no qual a individualidade e a vaidade imperavam em detrimento do que ocorria no Brasil
real. Pensou na renúncia, mas foi impedido para não estragar sua imagem para a corrida
presidencial.
Em 1989, durante as eleições presidenciais, se torna candidato, concorrendo com nomes
consolidados na memória popular como Leonel Brizola e Mário Covas, mas ainda assim, os
dois candidatos que apareciam como novos, foram para o segundo turno: Lula e Collor. Foi
vencido nas eleições, mesmo com o apoio que para hoje seria inusitado de Fernando Henrique
Cardoso, Miguel Arraes e Mário Covas.
Collor eleito, muitas medidas equivocadas afundaram ainda mais a frágil economia
brasileira daqueles tempos, o plano cruzado, confisco das poupanças, denúncias de corrupção,
culminaram na queda do presidente eleito apenas com pouco mais de dois anos exercendo o
mandato. Seu vice, Itamar Franco, assume, e nomeia Fernando Henrique como ministro da
1 Da filosofia da Libertaçao deriva a teleologia da libertação, uma corrente dentro do catolicismo onde advoga o
compromisso do evangelho para com os mais pobres. Tal corrente de pensamento, resgata teorias dentro das
ciências sociais e dialoga com algumas vertentes do marxismo. 2 Movimento civil organizado que reivindicava eleições presidenciais diretas no Brasil, entre 1983 e 1984.
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fazenda. Juntos criam o Plano Real, que dá força à moeda nacional, fato que será usado como
campanha para derrotar Lula nas eleições futuras em 1994 e 1998.
Esse período foi marcado pela política neoliberal, buscando enxugar o estado,
privatizando estatais e eximindo o Estado de responsabilidades. Como era de se esperar, o PT
fez larga oposição no período e se destacou expondo irregularidades no governo. Dessa forma,
em 2002, nas eleições, conquistou, em segundo turno, a presidência da república.
A maior nação latino-americana embarcou numa ambiciosa experiência política e
social ontem, quando Luiz Inácio Lula da Silva, líder do esquerdista Partido dos
Trabalhadores e ex-operador de torno mecânico e líder sindical, tomo posse como
presidente do Brasil, prometendo “um novo estilo de governo” e uma cruzada contra a fome, a injustiça e a corrupção. (...)
Não há precedentes na história brasileira para a chegada ao poder de Lula, que
concluiu apenas o ensino fundamental, perdeu parte de um dedo num acidente na
fábrica e, como ele relembrou em seu discurso, vendeu amendoins nas ruas quando
criança para ajudar a mãe divorciada a pagar as contas. Ele é o primeiro membro
da classe trabalhadora a se tornar presidenta aqui e o primeiro candidato de um
partido de esquerda a vencer uma eleição presidencial. O novo presidente atribuiu
seu triunfo retumbante à rejeição da política de mercado livre do antecessor,
Fernando Henrique Cardoso. (ROTHER, Larry. The New York Times. 02 de janeiro
de 2003)
As promessas de campanha e anseios da população, criaram expectativas diversas do
novo governo. Houveram ganhos e perdas, como uma balança econômica superavitária, no
entanto a dívida interna aumentou, compensando com a dívida externa que diminuiu. A
implementação de programas sociais, a acessibilidade ao ensino superior, a política de cotas
raciais e sociais, favoreceram a ascensão social das classes mais empobrecidas. No entanto,
para aprovação de muitos desses projetos, o governo passou a fazer o mesmo jogo político de
seus antecessores, criando esquemas de corrupção para a compra de votos na câmara e no
senado federal, que ficaram conhecidos como Mensalão.
Ainda na sombra desses escândalos, Lula venceu a reeleição em 2006, com uma imagem
desgastada, mas com energia para se reerguer e ansiando por um legado na história do país.
Assim, fez alianças comerciais com diversos países, elevou a representatividade do Brasil na
ONU (Organização das Nações Unidas) e nos encontros internacionais. Estimulou a economia
com interferência na taxa de juros, o que fez o país passar ao largo pela crise mundial ocorrida
em 2008 e encerrar o mandato com a maior aprovação popular da história do país, elegendo
como sucessora, Dilma Roussef, também do Partido dos Trabalhadores.
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Nos anos fora da presidência, Lula fundou um instituto e realizou inúmeras palestras em
universidades e empresas pelo mundo. Tornando-se uma sumidade em referência de
distribuição de renda e politicas publicas aplicadas para as pessoas em situação de risco.
No entanto, na esteia da primavera árabe ocorrida em 2011 quando um jovem tunisiano
ateou fogo ao próprio corpo em protesto pelas más condições de vida no país, que fomentou
protestos em diversos países do Oriente Médio, derrubando governos, o Brasil, em 2013,
recebeu as Jornadas de Junho, que reivindicavam diversas mudanças nas políticas
governamentais do país. Aliado à investigação de esquemas de corrupção conhecida como Lava
Jato, passou a desmoralizar a imagem do Partido e dos seus principais representantes, Lula e a
atual presidente Dilma.
A instabilidade se intensificou com a condução coercitiva de Lula para prestar
esclarecimentos em esquemas de corrupção que envolviam a suspeita de reforma em imóveis
atribuídos aos ex-presidentes e sua nomeação para ministro chefe da Casa Civil do governo.
Em seguida houveram o vazamento áudios obtidos irregularmente pelo juiz Sérgio Moro, a
impugnação da nomeação de Lula para ministro e a abertura do processo de impeachment de
Dilma, sob a justificativa de irregularidades em pedaladas fiscais3. A saída da presidente foi
efetivada e em seguida a prisão de Lula em um julgamento contestado internacionalmente. (O
GLOBO, 2017)
Nos últimos anos a configuração mundial se modificou, com regimes de governos de
direita ou extrema direita. Lula participou de um período de transição de governos neoliberais
para os mais à esquerda, optando pela distribuição de renda e políticas inclusivas, no entanto,
no mundo, os países agora voltam para governos que buscam o outro extremo, uma
administração protecionista, enraizada em valores tidos como conservadores nos costumes e
liberais na economia. Essas experiências vividas, as leituras de mundo, as informações atuais
entrelaçadas com o passado, serão escopo para as análises das falas de Lula nas entrevistas que
veremos adiante.
Narrativa Histórica e oralidades
3 Operações orçamentárias não previstas na legislação e faz com que o Tesouro Nacional atrase o repasse de verbas
aos bancos no intuito de equilibrar, em determinado período, a situação fiscal do governo.
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Compreende-se que oralidade e constructo narrativo, são aspectos intrinsecamente
ligados, e que compõem diversas possibilidades de se compreender a produção do
conhecimento histórico, e a assimilação dos processos temporais em que o sujeito histórico está
inserido. Nesse sentido;
A passagem da experiência – daquilo que foi vivenciado – em linguagem recebe
muitas vezes o nome de narrativa, entendendo-se narrativa como a organização dos
acontecimentos de acordo com determinado sentido que lhes é conferido.
Evidentemente a experiência sozinha, pura e simples, não é capaz de ser comunicada;
comunicar experiências pressupões sua organização de acordo com um sentido.
(ALBERTI, 2004, p. 92).
Se tomarmos a narrativa em sua forma mais elementar, como um ato de linguagem ou
ato da palavra, ela nada mais é do que atribuir sentido às experiências do mundo interiorizadas
pelo sujeito. O universo da linguagem e comunicação, configura-se, ao lado das capacidades de
produção da vida material do ser humano, um salto ontológico na espécie. Contudo, as relações
histórico-sociais pelas quais o ser passa no decorrer do tempo precisam ser encaradas,
interpretadas, a fim de que o indivíduo possa se situar no decorrer do curso histórico no qual
está inserido.
O campo teórico-metodológico da História oral, se dá a partir de uma proposta
investigativa, pela qual as narrativas produzidas por sujeitos possam ser tomadas como fonte
histórica a fim de complementar o escopo documental na construção do conhecimento histórico.
Para Verena Alberti (2011, p. 155)
A História oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o
estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção
do gravador de fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com
indivíduos que participam de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do
passado e do presente (2011, p. 155)
Nesse sentido, no percurso metodológico que perpassa a história oral, um dos seus
principais alicerces é a elaboração de uma narrativa.
Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode ser transmitido
a outrem sem que seja narrado. [...] Ao contar suas experiências, o entrevistado
transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os
acontecimentos de acordo com determinado sentido (ALBERTI, 2004, p. 77).
Jörn Rüsen é um dos principais teóricos a pensar a construção narrativa, e a atribuição
de sentido que o sujeito produz narrativamente a partir da assimilação do tempo histórico. Para
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ele, a narrativa (histórica), configura-se enquanto uma capacidade de atribuir sento às
experiências do tempo, mediada pela consciência histórica.
Recuperar o passado, (seja ele qual for) por meio de uma narrativa, direciona tal
processo cognitivo para uma ação: deve possuir sentido e significado para a vida prática do ser
em sociedade. O narrar submete a singularidade de interpretação do tempo através da
linguagem, necessária à comunicação e transmissão de saberes através das gerações. A
construção narrativa pressupõe uma racionalidade que lhe é particular e própria, uma narrativa
que pressupõe uma estrutura cognitiva de transmissão de saberes:
O pensamento histórico, em todas as suas formas e versões, está condicionado por
um determinado procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e a seu
mundo: a narrativa de uma história. Narrar é uma prática cultural de interpretação
no tempo, antropologicamente universal (RÜSEN, 2010, p. 149).
Deste modo, narração e constituição de sentido estão intrinsecamente ligados. A
“história” enquanto experiência humana no tempo, deve ser interpretada, e materializada
mediante a narrativa. O conhecimento histórico, confere dessa forma, orientação às ações do
sujeito no tempo, produzindo sentido às experiências do passado.
A narração, portanto, é o processo de atribuir sentido à experiência do tempo. [...] A
narração é um processo de poiesis, de fazer ou produzir uma estrutura de experiência
temporal tecida de acordo com a necessidade de orientar-se no curso do tempo. O
produto desse processo de narração, a estrutura capaz de tal orientação, é “uma
história”. (RÜSEN, 2016, p. 47)
Contar histórias “é operar por exclusão, é selecionar e ordenar os acontecimentos de
acordo com o sentido que se lhes conferir e que se quer conferir à própria história” (ALBERTI,
2004, p. 69). A narrativa surge, como um elo de ligação entre o conhecimento histórico
propriamente dito, e a ‘vida prática’.
É preciso dessa forma, categorizar no que consiste a particularidade do narrar
historicamente:
A especificidade da narrativa histórica está em que os acontecimentos articulados
narrativamente são considerados como tendo ocorrido realmente no passado. Além
disso, sua coesão interna é concebida como uma representação da evolução temporal
vinculada à experiência e como significativa para o auto entendimento e para a
orientação dos sujeitos narradores (RÜSEN, 2010, p. 155).
Compreende-se em síntese que, é através da condição de narrativa histórica que são
instituídas as “representações da continuidade da evolução temporal dos homens e de seu
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mundo, instituidoras de identidade, por meio da memória, e inseridas, como determinação de
sentido, no quadro de orientação da vida prática humana” (RÜSEN, 2010, p. 67).
Dessa maneira, a reconstituição do tempo mediante a narrativa é um constructo das três
dimensões temporais (passado, presente e futuro) expressas no ato da fala, ou da escrita;
Narrar a partir do tempo faz sentido na medida em que a sequência temporal dos
acontecimentos (na maior parte ocorrências ou conteúdos empíricos de tipo
estrutural) é situada no contexto próprio a esses mesmos acontecimentos. [...] A
reconstituição mental da mudança temporal atribui a esta significado para a
compreensão e para a interpretação dos processos de evolução no tempo, no qual
vivem os sujeitos da narrativa ou, dito de outra forma, no qual o próprio processo
comunicativo da narrativa se dá (RÜSEN, 2010, p. 155).
Por conseguinte, o conhecimento histórico materializado pela narrativa, precisa estar
ligado às necessidades práticas e temporais do presente. Pode-se pensar então, que o saber
histórico, em seu processo de constituição narrativa, opera nos processos comunicativos da vida
humana prática.
A arte de contar e transmitir as histórias diretamente do passado, atravessaram gerações
e como sempre cada uma com sua particularidade na transmissão de conhecimentos. Seja ela
escrita, oral, através de figuras, sendo relembrada pelas práticas memorialistas, a substância do
passado precisa fazer algum sentido prático àqueles que dela se assenhoram.
Discussões
O conjunto das fontes utilizadas na discussão, tangenciam a metodologia recorrente na
história oral. As entrevistas selecionadas para a discussão foram as primeiras concedidas após
a prisão decretada pelo então Juiz Sérgio Moro. Não se trata, portanto, de uma entrevista
pessoal, sendo que a oralidade das respostas foram produzidas a partir de um trabalho
jornalístico-midiático para canais de comunicação, após uma liminar da justiça permitir as
entrevistas.
Procurou-se, portanto, destacar aspectos de cunho mais significativo-temporal, no qual
o ex-presidente Lula, enquanto sujeito da história, atribui sentido aos processos históricos em
que esteve inserido desde sua infância, posteriormente enquanto sindicalista, e também como
presidente da república. Dessa forma, como aponta Verena Alberti (2012, p. 163) “o
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conhecimento histórico é condicionado pelas fontes que temos – ou melhor, pelas perguntas
que fazemos às fontes que temos”.
As entrevistas, de modo geral, foram estruturadas a partir de três eixos de discussão:
acerca de seu processo de condenação, o momento político atual, e a sua percepção histórica
enquanto um indivíduo político de grande magnitude dentro da esquerda latino-americana.
Talvez o ponto de partida que se deve atentar para análise das narrativas produzidas pelo
ex-presidente Lula, é compreender o lugar de fala, não agora como um estadista, mas um ex-
chefe da nação que está submetido à prisão, o que afeta diretamente seu discurso. Para Michel
Focault todo discurso está atrelado a própria interioridade do sujeito e na construção do seu
processo subjetivo de interpretação de mundo. Para o autor, um discurso nada mais é do que
A reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando
tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque as coisas, tendo manifestado e
intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de
si. (FOCAULT, 1996, p. 49)
A produção do discurso está em constante busca por legitimação dentro da estrutura
social. Tal seria o aspecto originário de sua produção: a condição de uma vontade de verdade.
Isso se traduz nas lutas em torno da monopolização e no maniqueísmo presente, principalmente
em práticas discursivas em torno da dimensão política. Um discurso “não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder
do qual nos queremos apoderar” (FOCAULT, 1996, p. 10).
Sentenciado a cumprir pena na sede da Polícia Federal em Curitiba, nota-se que no
discurso impera um tom combativo. Fato salientado no início de uma de suas falas em que diz,
“quem nasceu em Pernambuco, e não morreu de fome até os cinco anos de idade sabe, não se
curva mais a nada” (LULA, 2019, TV FOLHA). Nesse aspecto, “é preciso saber ‘ouvir’ o que
a entrevista tem a dizer tanto no que diz respeito às condições de sua produção quanto no que
diz respeito à narrativa do entrevistado” (ALBERTI, 2011, p. 185).
Observa-se que dentro de seu discurso está transposto os processos histórico-sociais de
sua trajetória de luta em movimentos sindicalistas desde os anos finais da ditadura militar:
Então o povo tem que saber o seguinte: o otimismo está dentro de nós. A gente tem
que saber [...] que esse cara ganhou as eleições, a gente goste ou não goste sabe. A
gente tem que saber que ele pode imprimir o jeito dele governar, cabe a gente aceitar ou não. Se a gente não aceita tem que lutar (LULA, 2019, TV FOLHA)
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Ao mesmo tempo em que ele recorre à memória das suas lutas sociais, reitera seu
compromisso com um projeto de nação como objetivo de sua trajetória de vida, dialogando com
três dimensões temporais da produção de sentido (o passado rememorado no presente e
direcionando ações futuras): “O que me mantém vivo? E é isso que ele tem que saber. Eu tenho
um compromisso com esse país. Eu tenho compromisso com esse povo” (LULA, 2019, TV
FOLHA).
Podemos também traçar um paralelo dos processos históricos em que esteve inserido,
bem como dos signos atribuídos a tais acontecimentos. Ao referenciar, por exemplo, sobre a
importância de Getúlio Vargas no cenário nacional, menciona que:
[...] eu nasci no movimento sindical contra o Getúlio. Eu radicalizava muito contra o
Getúlio por causa da estrutura sindical, que era a cópia fiel da Carta de Lavoro de Mussolini. Então. Depois, o tempo vai passando, a gente vai ficando velho e vai
compreendendo determinadas coisas. Depois eu li a biografia do Lira Neto sobre o
Getúlio e efetivamente eu passei a defender o Getúlio. Getúlio foi um entre 1930-1945
e foi outro entre 1950 -1954. Eu passei a perceber as coisas boas que o Getúlio fez
nesse país. Na verdade, com todo o defeito que a gente possa achar, ele tirou o povo
trabalhador de quase uma vida de escravidão, para dar a ele o sentido de
trabalhador. Então eu passei a admirar o Getúlio Vargas nesse período. (LULA,
2019, TUTAMÉIA TV)
Nota-se que ele atribui significados próprios à sua dimensão temporal. Estabelece um
movimento entre os acontecimentos vividos pelo sujeito, e a sua interpretação da história,
podendo assim, alinhar relações significativas entre um sujeito historicamente situado e a
estrutura a qual está inserido.
Lula esboça um quadro histórico do que significou sua trajetória na política brasileira,
desde sua inserção no movimento sindical até a consolidação como presidente da república.
Relembra que no início não desejava participar da vida política, e ao mencionar a fundação do
Partidos dos Trabalhadores, diz:
Eu cheguei à conclusão que se nós quiséssemos mudar a história do Brasil, nós temos
que criar um partido político. Criar um partido político em que a classe trabalhadora dirigisse esse partido político. Que a classe trabalhadora junto com outras pessoas
fizesse o programa desse partido. E aí foi importante porque a gente juntou, não
apenas o que tinha de melhor no movimento sindical, a gente juntou o que tinha de
melhor na esquerda brasileira, o que tinha de melhor na intelectualidade, o que tinha
de melhor na igreja, sabe, progressista, sobretudo o pessoal da teologia da libertação
e a gente juntou muitos estudantes e o PT virou, sabe, o maior partido de esquerda
da América Latina. (LULA, 2019, OPERA MUNDI)
Para ele, sua trajetória é atribuída como um marco nas políticas sociais na história do
Brasil. Seguindo a mesma linha, também revela sua visão do que foi o impacto da ascensão da
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esquerda na América-Latina, um continente marcado por lutas, mas dependente do capital
estrangeiro e subserviente aos interesses estadunidenses. Segundo ele,
Nós tivemos um período muito extraordinário na América Latina. O período de mais
crescimento, de mais distribuição de renda, de mais inclusão social na América
Latina aconteceu de 2000 a 2014 com a eleição de Kirchner, Lagos, a Cristina, Lula,
Evo Morales, Chaves, Rafael Corrêa… foi um momento de ouro da América Latina.
Agora você está vivendo um momento da extrema direita que está fracassando de forma absurda. O Macri é um desastre na Argentina e ele era a solução (LULA, 2019,
THE INTERCEPT BRASIL).
Em seguida na mesma entrevista recorre à estrutura temporal do continente, para
produzir um sentido paralelo à trajetória de contestação das políticas públicas, e de indignação
de setores da sociedade que se rebelaram contra a ascensão de camadas populares. Frisa o ex-
presidente que:
[...] na América Latina, toda vez que apareceu um presidente que tentou fazer política
social, ele foi derrubado, todas as vezes. [...]. Então, o PT conseguiu fazer – isso não
é dito por mim, é dito pela ONU – o PT conseguiu fazer a maior política de inclusão
social da história deste país. É importante lembrar que o nosso governo foi o único
momento na história em que os mais pobres tiveram um crescimento percentual acima
dos mais ricos. Não que os ricos não ganharam, mas que os pobres cresceram
percentualmente mais. Foi a única vez e começou a incomodar (LULA, 2019, THE
INTERCEPT BRASIL)
Tomando então a história do Brasil, analisa que todas as grandes “revoluções” na
verdade foram “contrarrevoluções” e realizadas hierarquicamente pelas classes dirigentes do
país. Para tanto, ele atribui sua eleição como um marco na ascensão das camadas populares, o
que gerou a necessidade de ser combatida por uma elite que não aceita a alteração no status quo
brasileiro.
O ex-presidente salienta que se tomarmos como objeto de análise a história do Brasil
“toda vez que o povo esteve em ascensão ‘pa’ chegar perto, houve um acordão. Assim foi a
independência do Brasil, assim foi a proclamação da república, assim foi na eleição de Tancredo
Neves, assim foi na constituinte [...] e assim foi na anistia” (LULA, 2019, OPERA MUNDI).
Nesse fragmento podemos perceber mais uma inferência clara de que a oralidade produzida
pelo ex-presidente Lula, está relacionada diretamente a acontecimentos históricos e a sua
atribuição de sentido mediante sua narrativa e um discurso matizado por uma percepção de um
líder da esquerda que dirigiu o país por 8 anos.
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Segundo ele “no governo do PT, nós fizemos a maior política de inclusão social da
história de 500 anos do Brasil” (LULA, 2019, THE INTERCEPT BRASIL). Talvez aí situe sua
tecla mais batida ao longo de todas as suas entrevistas, ao lado é claro dos méritos de sua
condenação que, todavia, não é o objeto da presente discussão. Para ele, tal mobilidade das
classes inferiores na escala social, é um marco e uma verdade histórica inegável na trajetória
política do Estado brasileiro:
Mas a verdade [...] é que as pessoas mais pobres subiram um degrau na escala social.
E, na medida que os mais pobres começaram a entrar em universidade, na medida
que começaram a frequentar teatro, na medida que começaram a frequentar
restaurante, na medida que começaram a frequentar aeroporto, isso começou a
incomodar uma parte da elite brasileira (LULA, 2019, THE INTERCEPT BRASIL)
Dessa forma ele estabelece claramente que o objetivo que norteava a construção das
suas políticas públicas, e as intervenções do Estado eram as camadas mais pobres. Frisando que
o “pobre não é problema, pobre é solução, quando você inclui ele e transforma ele em sujeito
da história” (LULA, 2019, OPERA MUNDI). Traçando um paralelo acerca desse período de
aumento da seguridade social, principalmente das classes trabalhadoras, ele estabelece um
quadro temporal em que expõe:
Antigamente você tinha os europeus perdendo ‘direito’, perderam muito direitos os
europeus. E o Brasil ganhando direitos. Nós nem chegamos aos direitos que eles
chegaram, e já perdemos. Porque eles estão desmontando tudo o que nós
conquistamos. Desmontando. Simplesmente destruindo. Quando eles falam de reforma política, eles são demolidores, destruidores do futuro de nossos velhinhos
(LULA, 2019, TV FOLHA)
Por fim, questionado na última entrevista selecionada sobre os desafios da esquerda
no Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva direciona seu discurso para a história, fundamentando sua
percepção de mundo, combativo e de lutas:
Eu primeiro queria dizer ao povo brasileiro de que não há na história da
humanidade sociedade que consiga vencer os obstáculos se ela se encolher, se ela
se acovardar, se ela deixar de brigar diante das adversidades. Eu sei que tem
muita gente assustada com o tipo de governo que o Bolsonaro “tá” fazendo. E
acho que a única coisa que pode consertar isso é o povo brasileiro não permitir
que eles destruam aquilo que o povo brasileiro construiu ao longo de 500 anos” (LULA, 2019, REDE TVT).
Percebe-se por algumas falas destacadas nas discussões que o discurso produzido está
pautado fundamentalmente em uma estrutura histórica que o precede. Também, de que o sujeito
atribui sentido às suas experiências temporais singulares.
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Desse modo, as discussões apontadas, objetivam colaborar para compreensão da
produção de discursos e a relação que se estabelece entre a narrativa e o tempo, produzida e
intrinsecamente ligada à produção de sentido, a qual o sujeito atribui ao se deparar com
processos históricos. Em toda essa relação está intercalada a metodologia de análise da história
oral, que se constitui como um importante campo de abordagem e resgate das oralidades que
perpassam o cotidiano e podem ser importantes fontes de análises para se produzir uma outra
história.
Considerações Finais
A breve pesquisa procurou trabalhar com a narrativa autobiográfica do ex-presidente
Luiz Início Lula da Silva, produzida por sua oralidade em um conjunto de entrevistas
disponíveis na plataforma virtual do YouTube. O cenário é a sede da Polícia Federal em que o
ex-presidente está condenado a cumprir pena de detenção provisoriamente, pois aguarda
revisão de seu processo. Percebe-se, portanto, que a condição discursiva do ex-presidente está
circunscrita nos padrões judiciais, um fator de suma importância para a elaboração do seu
discurso combativo.
Fundamentado teoricamente a partir de três eixos analíticos: a) a metodologia da história
oral, na qual se pode tomar a oralidade do ex-presidente destacando aspectos de sua própria
trajetória de vida; b) a construção narrativa de sentido expressada a partir da interpretação e
assimilação de processos temporais que o sujeito se encontra inserido c) a construção de uma
ordem do discurso pautada a partir de sua trajetória e lugar social em que possui um destaque
no poder político atual.
Nesse sentido, pode-se estabelecer que “uma das principais riquezas da História oral
está em permitir o estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram
experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas” é assim que “entender
como pessoas e grupos experimentaram o passado torna possível questionar interpretações
generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas” (ALBERTI, 2011, p. 165) o que
é expressado através das falas de Lula.
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Em síntese, o objetivo geral da discussão era apresentar um panorama histórico e alguns
aspectos da fala de um personagem direcionou esforços por uma sociedade brasileira diferente
daquilo que se propunha a 500 anos.
Talvez uma das perguntas mais significativas, feita por um dos entrevistadores do canal
Tutaméia TV, expressava a relevância emblemática do ex-presidente para o processo histórico
brasileiro. Em dado momento da entrevista direcionam questão: “Eu queria perguntar para o
senhor. O senhor sabe a dimensão da sua importância histórica. O senhor trabalha com a
história. O tempo do senhor é a história, não é hoje, não é amanhã.”
Como qualquer ser humano, suas ações repetem equívocos e acertos, que pesaram nas
relações de causa e efeito nas circunstâncias históricas. Resgatar a fala do ex-presidente Lula,
é pensar a trajetória do Brasil cuja curvatura foi significativa para as classes populares.
Atualmente o cenário político condiciona uma série de indagações em relação aos caminhos
para trilhar, no entanto um aspecto se mantém atual: a luta diária do seu povo, que se transporta
e reacende a eterna luta de classes, quiçá um dia encontremos a superação dessa sociedade, da
ordem estabelecida de concentração do poder político e econômico da classe burguesa em
detrimento de toda uma massa de trabalhadores pobres, que infelizmente a ineficiência das
políticas públicas, historicamente tendem a reproduzir
Referências
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