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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Pblicos” Desafios para Moçambique 2013 331 “NÃO BASTA INTRODUZIR REFORMAS PARA SE TER MELHORES SERVIÇOS PÚBLICOS”: SUBSÍDIO PARA UMA ANÁLISE DOS RESULTADOS DAS REFORMAS NO SUBSECTOR DE ÁGUA RURAL EM MOÇAMBIQUE Salvador Forquilha INTRODUÇÃO 1 Em Setembro de 2012, o Governo de Moçambique anunciou a mudança de crité- rios para o cálculo das taxas de cobertura de abastecimento de água nas zonas rurais. Com efeito, de 500 pessoas para um poço ou furo equipado com uma bomba manual, num raio de 500 metros, passou-se para 300 pessoas para um poço ou furo equipado com uma bomba manual. Esta mudança de critérios acontece mais de 15 anos depois da aprovação da Política Nacional de Águas (PNA) 2 e resulta da constatação de que, em muitos casos, os números oficiais estão longe de reflectir o que realmente se passa no terreno em termos de taxas de cobertura. Uma das consequências imediatas desta medida é, provavelmente, a revisão em baixa das taxas de cobertura de abastecimento de água rural, 3 o que vai reforçar a ideia de que, à semelhança do que acontece com outros serviços públicos, o abastecimento de água rural ainda está longe de satisfazer as reais necessidades das populações. 1 Este artigo foi elaborado com base numa pesquisa exploratória que abrangeu os distritos de Nacaroa, Gorongosa, Mecuburi e Boane de 2011 a 2013, no âmbito da preparação do projecto de pesquisa intitulado “Governação, Serviços Públicos e Construção do Estado”, que está sendo desenvolvido pelo Grupo de Investigação Cidadania e Governação do IESE. 2 A Política Nacional de Águas foi aprovada em 1995 e revista em 2007, no contexto dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). 3 Dados do Programa Nacional de Abastecimento de Água e Saneamento Rural (PRONASAR) estimam a taxa de cobertura de abastecimento de água rural em 48,5%.

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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos” Desafios para Moçambique 2013 331

“NÃO BASTA INTRODUZIR REFORMAS PARA SE TER MELHORES SERVIÇOS PÚBLICOS”:SUBSÍDIO PARA UMA ANÁLISE DOS RESULTADOS DAS REFORMAS NO SUBSECTOR DE ÁGUA RURAL EM MOÇAMBIQUE

Salvador Forquilha

INTRODUÇÃO1

Em Setembro de 2012, o Governo de Moçambique anunciou a mudança de crité-rios para o cálculo das taxas de cobertura de abastecimento de água nas zonas rurais. Com efeito, de 500 pessoas para um poço ou furo equipado com uma bomba manual, num raio de 500 metros, passou -se para 300 pessoas para um poço ou furo equipado com uma bomba manual. Esta mudança de critérios acontece mais de 15 anos depois da aprovação da Política Nacional de Águas (PNA)2 e resulta da constatação de que, em muitos casos, os números oficiais estão longe de reflectir o que realmente se passa no terreno em termos de taxas de cobertura. Uma das consequências imediatas desta medida é, provavelmente, a revisão em baixa das taxas de cobertura de abastecimento de água rural,3 o que vai reforçar a ideia de que, à semelhança do que acontece com outros serviços públicos, o abastecimento de água rural ainda está longe de satisfazer as reais necessidades das populações.

1 Este artigo foi elaborado com base numa pesquisa exploratória que abrangeu os distritos de Nacaroa, Gorongosa, Mecuburi e Boane de 2011 a 2013, no âmbito da preparação do projecto de pesquisa intitulado “Governação, Serviços Públicos e Construção do Estado”, que está sendo desenvolvido pelo Grupo de Investigação Cidadania e Governação do IESE.

2 A Política Nacional de Águas foi aprovada em 1995 e revista em 2007, no contexto dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM).

3 Dados do Programa Nacional de Abastecimento de Água e Saneamento Rural (PRONASAR) estimam a taxa de cobertura de abastecimento de água rural em 48,5%.

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Mas, independentemente da discussão que, eventualmente, possa haver sobre as taxas de cobertura do serviço de abastecimento de água rural, a mudança de critérios acima referida remete -nos para a questão da baixa provisão de serviços públicos. Nos últimos trinta anos, muitos países da África subsaariana (incluindo Moçambique) embarcaram em programas de reformas do sector público, visando, entre outros objectivos, a melhoria da qualidade na oferta de serviços públicos. Concebidos como resposta à crise do Estado, estas reformas têm produzido resul-tados modestos. Com efeito, se em alguns casos as reformas têm contribuído para aumentar o volume na provisão de serviços (aumentando a taxa de cobertura, por exemplo), em outros casos não só não há aumento no volume como também a qualidade oferecida não melhorou. Seja como for, os programas de reformas do sector público têm vindo a mobilizar substanciais recursos financeiros, que não se têm traduzido necessariamente em resultados esperados, a ponto de alguns autores falarem de falhanço dos programas (Booth, 2010; Crook, 2010). Mas, se é verdade que os resultados dos programas das reformas do sector público estão longe do que seria de esperar em termos de melhoria dos serviços públicos prestados, também não é menos verdade que ainda são poucas as análises baseadas em casos empíricos que discutem os factores explicativos desses mesmos resultados.4

Partindo da observação do sector de águas em Moçambique, este artigo procura analisar as condições em que é feita a provisão do serviço de água rural, interrogando a maneira como as dinâmicas institucionais afectam o processo da provisão. Mais do que medir a qualidade do serviço, o artigo olha para os factores que estruturam os resultados do processo da provisão do serviço de abastecimento de água rural, argumentando que as dinâmicas institucionais, quer do lado da oferta quer do lado da demanda, estruturam os resultados da provisão do serviço de água rural. Neste sentido, o artigo parte da análise das dinâmicas institucionais para compreender os resultados obtidos na provisão de serviços de abastecimento de água no contexto rural. O argumento principal do artigo é desenvolvido em dois momentos. No primeiro momento, discute -se a questão dos serviços públicos no contexto dos programas das reformas do sector público, com um enfoque particular na África subsaariana. No segundo momento, o artigo debruça -se sobre dinâmicas institucio-nais na provisão de serviços de abastecimento de água rural em Moçambique.

4 Relativamente à África subsaariana, um dos poucos casos que produzem análises empiricamente fundadas é o programa de pesquisa Africa Power & Politics Programme (APPP). Para mais detalhes, ver www.institutions -africa.org

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SERVIÇOS PÚBLICOS NO CONTEXTO DOS PROGRAMAS DAS REFORMAS DO SECTOR PÚBLICO

A literatura sobre o Estado em África mostra que o papel central que o Estado teve no processo de desenvolvimento, no período imediatamente a seguir às independên-cias, mudou significativamente nos anos 1970 e 1980 (Boone, 2003; Bratton & Van de Walle, 1997; Chabal & Daloz, 1999; Hyden, 2000, 1980; Médard, 1991, 1990; Migdal, 1988; Mkandawire, 2001; Olowu & Wunsch, 1990; Rothchild & Chazan, 1988). Do Estado impulsionador do desenvolvimento passou -se para um Estado qualificado de predador, parasita, dependente, neo -colonial, patrimonial, enfim um Estado disfuncional em matéria de desenho e implementação de políticas públicas e de gestão dos processos ligados ao desenvolvimento (Mkandawire, 2001).5

Foi neste contexto que muitos países da África subsaariana, particularmente a partir dos anos 1980, com o financiamento de doadores internacionais, iniciaram programas de reforma do sector público. Estes programas, na sua maioria, podem ser vistos como uma resposta à crise do Estado, que se manifestou essencialmente a dois níveis: regulação política e provisão de serviços públicos. Com efeito, a euforia das independências africanas e o processo da construção do Estado desenvolvimen-tista cedo se viram confrontados com a queda da capacidade de regulação política efectiva e de provisão de serviços básicos. Por conseguinte, partia -se do pressuposto segundo o qual as reformas do sector público não só iriam melhorar a provisão dos serviços públicos como também tornar o Estado mais efectivo e legítimo.

Mas, para compreender a questão dos serviços públicos no contexto das reformas do sector público na África subsaariana, é importante olhar para as diferentes gera-ções das reformas, nos últimos trinta anos. Refira -se, no entanto, que estas gerações não podem ser vistas como estando nitidamente separadas, uma vez que, em alguns casos, elas existem simultaneamente (Kiragu, 2002).

AS TRêS GERAÇÕES DAS REFORMAS DO SECTOR PÚBLICO NA ÁFRICA SUBSAARIANA

Kiragu (2002) e Crook (2010) identificam essencialmente três gerações de reformas do sector público na África subsaariana. A primeira fase vai de meados

5 No entanto, é importante referir que a literatura também menciona excepções, nomeadamente Botswana, Maurícias e Cabo Verde. Além disso, o papel do Estado na África subsaariana, nos últimos trinta anos, foi afectado pelo processo de implementação de planos de ajustamento estrutural, que, em muitos casos, diminuiu consideravelmente o espaço de actuação do Estado, particularmente em matéria de serviços públicos.

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dos anos 1980 a meados dos anos 1990. Trata -se do período em que as reformas se resumiam essencialmente aos programas de ajustamento estrutural, financiados pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, com um enfoque particular na reestruturação dos serviços públicos. Sob fundo de políticas económicas neo -libe-rais, as reformas desta primeira vaga caracterizavam -se pela clara redução do papel do Estado não só na economia como também na provisão de serviços básicos, através da redução de custos e contenção da despesa pública, aprofundamento da privatização e racionalização da máquina governamental. Consequentemente, estas medidas tiveram um impacto significativo na redução da capacidade do Estado em fazer face à provisão de serviços públicos. Aliás, “em geral os programas de ajus-tamento estrutural tiveram pouco impacto positivo directo nos serviços públicos. Pelo contrário, eles, em muitos casos, foram um constrangimento para a criação de capacidades e provisão de serviços. A redução do número dos funcionários e o congelamento do emprego provocaram a escassez de profissionais qualificados […] e trabalhadores necessários para sustentar e melhorar a qualidade e expandir serviços públicos em áreas tais como educação, saúde e extensão agrícola.” (Kiragu, 2002, p. 3)

No que se refere a Moçambique, as medidas preconizadas pelo programa de ajustamento estrutural tiveram consequências imediatas no plano social, fazendo -se sentir particularmente nos serviços de saúde e educação e na subida do desemprego. Além disso, as reformas tiveram igualmente um impacto significativo no plano polí-tico, na medida em que o aumento da penúria e da precariedade, especialmente nas zonas urbanas, contribuiu para o aumento do descontentamento de uma boa parte da base social da Frelimo, maioritariamente urbana, até então poupada pelas acções da guerra civil em curso na altura.

Abandonando a abordagem da primeira geração, a segunda geração de reformas destacou -se sobretudo na segunda metade dos anos 1990 e estruturou -se à volta da ideia segundo a qual a redução da função pública necessita de um acompanhamento em termos de criação de capacidades em matéria de sistemas de gestão financeira e desempenho dos orçamentos no contexto da provisão de serviços públicos (Crook, 2010). Foi um período caracterizado por forte investimento em termos de assistência técnica nos programas das reformas do sector público. Neste contexto, as reformas passaram a integrar uma série de aspectos técnicos preconizados pela Nova Gestão Pública (New Public Management), como, por exemplo, o reforço das capacidades dos funcionários, a ênfase colocada nos resultados, o uso de parcerias público-

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-privadas na provisão de serviços públicos, descentralização, entre outros aspectos (Kiragu, 2002; Crook, 2010). Mas estas medidas também tiveram um impacto redu-zido na provisão dos serviços públicos, em grande parte devido ao carácter fragmen-tário e pouco coordenado do processo da sua implementação.

A partir dos finais dos anos 1990 e começos dos anos 2000, surgiu a terceira geração das reformas do sector público. Muito influenciadas ainda pela Nova Gestão Pública, as reformas da terceira geração têm uma ligação com as estratégias de redução da pobreza (no caso de Moçambique os PARPA e PARP) e colocam um acento particular na questão da descentralização e na melhoria dos serviços públicos. A pressão pela busca de resultados fez emergir, nesta geração de reformas, um conjunto de medidas visando resultados rápidos. Conhecidas por quick wins (programas de impacto imediato), estas medidas em determinados assuntos, como por exemplo a flexibilização dos processos administrativos, trouxeram resultados interessantes. Mas, como Kiragu (2002) sublinha a partir do caso da Tanzânia, os quick wins não são uma base sistemática e sustentável para o melhoramento dos serviços públicos, parti cularmente em sectores como saúde, educação ou ainda água e saneamento.

QUE RESULTADOS DEPOIS DE TRINTA ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO DE REFORMAS?Quando se olha para o balanço das reformas dos últimos trinta anos, tomando em conta as três gerações de reformas acima mencionadas, constata -se que os resultados são mistos. Aliás, hoje, a literatura sobre reformas do sector público nos Estados da África subsaariana vai mais longe ao realçar que os dois principais objectivos das reformas, nomeadamente a melhoria na gestão dos orçamentos e programas dos governos e a melhoria na oferta dos serviços, não foram alcançados (Crook, 2010, p. 485). As pesquisas que têm vindo a ser desenvolvidas neste âmbito, sublinham, cada vez mais, a ideia da influência, por um lado, da governação e política (politics) no processo da provisão dos serviços e, por outro lado, a influência do efeito da provisão dos serviços na legitimação e construção do Estado (Olivier de Sardan, 2009; Bierschenk, 2010; Crook, 2010; Booth, 2010; Manor, 2011; Batley, McCourt & Mcloughlin, 2012).

Relativamente a Moçambique, embora o país tenha iniciado uma série de reformas económicas e políticas a partir dos finais dos anos 1980,6 foi sobretudo

6 A este propósito, é importante distinguir os dois tipos de reformas: económicas, que começaram em 1984 e aceleraram a partir de 1987, e políticas, que se iniciaram com a aprovação da Constituição de 1990 e

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com o lançamento da estratégia global da reforma do sector público, em 2001, no contexto da terceira geração das reformas do sector público, que a questão da melhoria da qualidade na provisão de serviços públicos ganhou maior visibilidade (CIRESP, 2001).7 Com efeito, o documento da estratégia global da reforma do sector público não só menciona a provisão de serviços públicos como um dos elementos fundamentais dos objectivos da reforma como também apresenta a racionalização e descentralização das estruturas e processos de prestação de serviços como uma das principais componentes da reforma. Entre os resultados esperados nesta compo-nente, por exemplo, destacam -se os seguintes: “serviços públicos prestados não mais por unidades de administração directa do Governo Central, mas por unidades das administrações locais do Estado, autarquias locais, parcerias entre o sector público e privado ou organizações da sociedade civil, sector privado ou institutos públicos; em curso e monitoradas as relações entre órgãos locais do Estado e as comunidades; em funcionamento mecanismos institucionalizados de responsabilização perante os cidadãos na prestação de serviços” (CIRESP, 2001, p. 23). É neste contexto que se enquadram, por exemplo, a reforma dos órgãos locais do Estado (Lei 8/2003, n.d.) e a descentralização de fundos sectoriais.

Mas como é que estas reformas afectam o processo da provisão de serviços públicos (em cobertura e qualidade)? À semelhança do que aconteceu, nos últimos trinta anos, em muitos países da África subsaariana (Crook, 2010), os resultados que Moçambique conseguiu no âmbito da reforma do sector público são modestos, sobretudo no que se refere aos serviços públicos. Com efeito, os serviços básicos em sectores vitais tais como os da água e saneamento, educação, saúde, estradas, justiça, segurança, etc. continuam longe de satisfazer as necessidades das populações, não só em termos de cobertura como também da qualidade oferecida, apesar dos recursos investidos na estratégia global da reforma do sector público8 e em diferentes programas sectoriais. A segunda pesquisa sobre governação e corrupção, levada a cabo no âmbito da implementação da estratégia global da reforma do sector público, apesar de falar de melhorias assinaláveis na prestação de alguns serviços públicos, como por exemplo educação e saúde, sublinha também desafios importantes que

aceleraram a partir da assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992. 7 Apesar de o Estado moçambicano, logo depois da independência, ter investido significativamente na

expansão de alguns serviços, nomeadamente de educação e saúde, a questão da qualidade de serviços ganhou um novo impulso no âmbito da implementação da estratégia global da reforma do sector público.

8 Uma avaliação da reforma do sector público levada a cabo pela Oxford Policy Management, em 2011, considera que o Programa da Reforma do Sector Público em Moçambique custou aproximadamente 230 milhões de dólares americanos (Scott, Macuane, Salimo et al., 2011).

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ainda persistem relativamente à qualidade dos serviços prestados (CEEI/ISRI, 2010). Com efeito, falando da qualidade na prestação de serviços, o relatório da pesquisa sublinha que os desafios dizem respeito “ao mau atendimento; longas filas de espera; fraco domínio por parte de alguns funcionários; burocracia; incumprimento de prazos; falta de informação sobre requisitos, padrões e formas de acesso aos serviços; falta de pessoal qualificado e absentismo” (CEEI/ISRI, 2010, p. 10). Aliás, já em 2009, alguns destes aspectos tinham sido mencionados pela pesquisa da avaliação da satisfação dos serviços públicos como estando na origem da insatisfação dos utentes. Especificamente, este documento da UTRESP refere que “‘o tempo de resposta ao expediente’ e ‘o tempo de espera para ser atendido’, o ‘não cumprimento do tempo prometido para obtenção do serviço’ são tidos como principais factores causadores da insatisfação do utente no acesso ao serviço” (UTRESP, 2009, p. 5). Prosseguindo, o relatório sublinha que “os resultados revelaram significativamente, um nível crítico no processo geral de atendimento, no que se refere ao ‘tempo’. Vezes sem conta este factor foi apontado pelos utentes como sendo a principal causa da sua insatisfação no processo geral de obtenção do serviço, seja pela ausência de flexibilidade e/ou dina-mismo do funcionário, seja pela desorganização institucional” (UTRESP, 2009, p. 5).

É importante referir que as duas pesquisas acima mencionadas foram encomen-dadas pelo Governo de Moçambique. Embora cada uma delas aponte os desafios persistentes no processo da provisão de serviços públicos em Moçambique, é interes-sante verificar que nenhuma destas pesquisas aprofunda os eventuais factores expli-cativos de pouco progresso na qualidade dos serviços oferecidos aos utentes. Que factores explicam os actuais resultados das reformas, particularmente em matéria de serviços públicos?

Crook (2010), partindo da análise dos programas de reformas do sector público na África subsaariana, considera que existem essencialmente duas categorias de explicações do que ele chama falhanço das reformas do sector público. A primeira categoria é composta por explicações contidas nos relatórios oficiais dos Governos e consultores. Para esta categoria de explicações, o fracasso das reformas tem a ver com a falha de implementação, falta de pessoal qualificado, falta de linhas claras de comando do lado dos Governos, falta de vontade política, entre outros factores. A segunda categoria de explicações refere -se às análises académicas particularmente focalizadas nas lógicas neo -patrimoniais do funcionamento dos Estados africanos.

Na perspectiva de Crook (2010), embora as análises acima mencionadas sejam relevantes, elas não trazem explicações convincentes sobre as razões do falhanço das

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reformas do sector público e, por isso mesmo, ele propõe uma nova abordagem expli-cativa do fracasso das reformas do sector público, sublinhando, entre outros factores, a escassez de pessoal e recursos, a cultura organizacional e a fraca pressão dos utentes.

Para o caso de Moçambique, se por um lado alguns dos factores explicativos acima mencionados são relevantes, por outro lado, os actuais resultados das reformas na oferta de serviços exigem outro tipo de factores explicativos mais centrados nas dinâmicas institucionais, na medida em que o processo das reformas tem a ver com uma mudança institucional. O conceito de instituição é tomado aqui na perspectiva do neo -institucionalismo, englobando não apenas procedimentos formais/oficiais e informais/oficiosos mas também sistemas simbólicos e esquemas cognitivos nos quais e a partir dos quais se orienta o comportamento político dos actores (Hall & Taylor, 1997; Steinmo, Thelen & Longstreth, 1992). Neste sentido, as dinâmicas institucionais remetem -nos para a análise dos procedimentos e lógicas de funcionamento institu-cional que estruturam a acção dos actores e, por via disso, os resultados das reformas.

Assim, buscar factores explicativos centrados nas dinâmicas institucionais é questionar, por exemplo, em que medida as grandes intervenções governamen-tais relativas à melhoria na provisão de serviços (programas nacionais) reflectem complementaridade e coerência institucional no processo da sua concepção e implementação.9 Tratando -se do sector de água, como é que diferentes aspectos das reformas sectoriais se relacionam no processo de provisão de serviços de água? Em que medida os comités de água e saneamento estão integrados nos conselhos locais e, por via disso, participam no processo de planificação distrital e garantem que as necessidades em matéria de água e saneamento estão reflectidas nos planos distritais? Em que medida os artesãos locais treinados no contexto de programas ou projectos específicos de água e saneamento são efectivamente absorvidos pelo sector, a nível local, para pequenas obras de reparação de bombas de água ou infra -estruturas de saneamento? Em que medida os comités de água funcionam como instâncias de concertação e defesa dos interesses das populações locais em matéria de água e saneamento? Que implicações tem, na provisão de serviços, a forte dependência que os comités de água têm em relação a programas e projectos implementados com financiamento externo? Em que medida o sector privado local tem capacidade efectiva para responder aos concursos para a construção de infra -estruturas de água e saneamento com exigências de qualidade requerida? Que condições efectivas os

9 Por exemplo, o Programa Nacional de Planificação e Finanças Descentralizadas (PNPFD) e o Programa Nacional de Água e Saneamento Rural (PRONASAR).

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governos distritais possuem para planificar, implementar e monitorar projectos de água e saneamento e gerir contratos de construção de infra -estruturas de água e saneamento? Em que medida os governos distritais coordenam efectivamente as diferentes intervenções, em matéria de água e saneamento, provenientes de actores tais como ONG, agências de cooperação e sector privado?

No que se refere ao subsector de água rural, as respostas ao conjunto de perguntas acima colocadas trazem consigo alguns factores explicativos do actual estágio dos resultados das reformas, que podem ser resumidos essencialmente a dois factores: um diz respeito ao lado da oferta dos serviços e o outro refere -se ao lado da demanda dos serviços. Assim, o primeiro factor (do lado da oferta) é a incoerência institucional do ponto de vista não só das dinâmicas e lógicas do funcionamento das instituições como também da articulação dos próprios instrumentos da reforma (políticas, estratégias, directrizes, etc.) com o que se passa a nível mais amplo das reformas do sector público como um todo, acabando por afectar os resultados. O conceito de incoerência institucional é empregue aqui no sentido sugerido e desen-volvido pelos pesquisadores do Africa Power & Politics Programme (APPP), para designar a fraca coordenação institucional, a sobreposição de mandatos e jurisdições no funcionamento das instituições e políticas populistas de incentivos na implemen-tação das reformas (Booth, 2010). O segundo factor (do lado da procura) é a fraca articulação entre a abordagem da participação comunitária na provisão de serviços de água rural e as lógicas e dinâmicas de funcionamento das comunidades locais, na medida em que, muitas vezes, se toma as comunidades como entidades homo-géneas, minimizando a diversidade e divergência de interesses no seu seio. Mas em que medida os dois factores acima mencionados afectam os resultados das reformas no subsector de água rural? Isso é o que vamos discutir na secção seguinte, com base em três aspectos importantes do processo das reformas em curso no sector de água em geral, nomeadamente a descentralização, o envolvimento do sector privado na provisão de serviços de abastecimento de água e o princípio da procura.

DINÂMICAS INSTITUCIONAIS NA PROVISÃO DE SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA RURAL

Nos últimos vinte anos, o sector de águas tem sido palco de importantes reformas consubstanciadas em políticas, estratégias e programas, tais como a lei de águas, o Manual de Implementação de Projectos de Abastecimento de Água Rural (MIPAR),

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a Política de Água (PA), o Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Sanea-mento Rural (PESA -ASR), o Programa Nacional de Água e Saneamento Rural (PRONASAR), além de projectos implementados ao nível dos distritos com o finan-ciamento de Parceiros de Cooperação e ONG internacionais que actuam no sector (Uandela, 2012). As reformas trouxeram aspectos importantes, nomeadamente a descentralização, o envolvimento do sector privado na provisão de serviços de abas-tecimento de água e o princípio da procura, que marcam as diferentes interven-ções que têm lugar ao nível do subsector. Todavia, o processo de implementação destes aspectos tem estado a revelar incoerência institucional e fraca articulação entre a abordagem da participação comunitária e as lógicas e dinâmicas do funcio-namento das comunidades locais, o que acaba afectando os resultados das reformas no subsector. Em que sentido? Isso é o que vamos discutir nas linhas a seguir.

DESCENTRALIZAÇÃO: MESMO DISCURSO DE SEMPRE, PRÁTICAS DIFERENTESNos anos 1990, Moçambique iniciou o processo de descentralização sem nenhuma política e estratégia claramente definida. Com efeito, as leis 2/97 e 8/2003, refe-rentes às autarquias locais e aos órgãos locais do Estado, respectivamente, foram aprovadas na ausência completa de uma política ou estratégia de descentralização. É importante referir que, nos últimos 15 anos, o processo da elaboração de uma política e estratégia de descentralização foi várias vezes objecto de discussão, no contexto do diálogo entre o Governo de Moçambique e os seus Parceiros de Coope-ração (Weimer, 2012). A ausência de uma política e estratégia de descentralização,10 em parte, explica o modelo de descentralização prevalecente em Moçambique, que funciona essencialmente a “duas velocidades”, nomeadamente uma descentralização política, que implica a devolução do poder para as autarquias locais, e uma descen-tralização administrativa, implicando apenas uma desconcentração de funções e competências para entidades do Estado a nível local.

Contudo, a ausência de uma política e estratégia de descentralização não signi-ficou ausência de reformas sectoriais com enfoque na descentralização. Aliás, tal como Weimer (2012) sublinha na sua análise sobre estratégia de descentralização em Moçambique, “existem muitas estratégias adicionais (sectoriais), tanto elaboradas como aprovadas, incidindo sobre governos locais, que não estão necessariamente harmonizadas ou enquadradas no pensamento estratégico […]” (Weimer, 2012, p. 19). O problema é que, muitas vezes, as iniciativas de reformas sectoriais com

10 A aprovação da política e estratégia nacional de descentralização só veio a acontecer em 2012.

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enfoque na descentralização são concebidas e implementadas de uma maneira frag-mentada, sem uma referência concreta ao que se passa ao nível de outros sectores ou programas nacionais.

Quando se olha para os diferentes sectores, particularmente educação, saúde, água e saneamento, estradas e agricultura, constata -se que as reformas carecem de um pensamento estratégico e de uma certa harmonização. Além disso, a ausência de uma política e estratégia com uma visão clara de médio e longo prazo sobre o porquê da descentralização, o que descentralizar, como descentralizar, quando descentralizar dificulta o processo de implementação das reformas e, muitas vezes, aumenta a pressão sobre os níveis mais baixos do Estado, que estão na linha da frente do processo da provisão de serviços. A este propósito, as palavras de um dos membros do governo do distrito de Gorongosa são elucidativas:

[...] não se pode descentralizar competências, sem descentralizar os meios, os recursos humanos, materiais e financeiros necessários para o exercício dessas competências. Quando isso acontece assim, estamos a descentralizar problemas... Por exemplo, o administrador tem competências para gerir recursos humanos do quadro de pessoal privativo do distrito. Mas, para que isso aconteça é preciso que o distrito tenha gestor de recursos humanos e gestor financeiro...e não é o que está a acontecer. Um outro problema que há é na planificação... Há lacunas no processo da planificação. Quando se fez a descentralização pensava -se que o plano ficaria completo no distrito...mas, isso não funciona assim. Por exemplo, para o PESOD de 2012, na altura da sua elaboração, o distrito não tinha informação sobre o que vinha dos sectores em termos de actividades e orçamento... o que quer dizer que o PESOD para 2012 foi elaborado sem informação sobre actividades e orçamento provenientes dos sectores [educação, saúde, agricultura, obras públicas, etc.]. Nestas circunstâncias, muitas vezes, o que acontece é que o distrito só recebe informação sobre actividades e fundos ao longo do processo da execução do PESOD... A nível do distrito foram criados vários serviços distritais, mas alguns fundos e pessoal técnico ainda continuam centralizados a nível dos respectivos sectores na província [...].11

O extracto da entrevista acima citado cristaliza as dificuldades prevalecentes no contexto da planificação descentralizada. Com efeito, enquanto o discurso no âmbito da lei dos órgãos locais do Estado fala da planificação territorial, na prática, a planificação distrital ainda continua a ser amplamente afectada pelas lógicas de planificação sectorial, acabando por esvaziar o sentido e alcance do PESOD como instrumento da governação local, particularmente no que se refere à provisão de serviços públicos. A ausência de uma visão clara sobre descentralização tem também implicações relativamente à gestão dos recursos humanos ao nível distrital, consubs-tanciada numa grande mobilidade de quadros, com um impacto na provisão de

11 Entrevista com o Sr. P. M., membro do governo do distrito de Gorongosa, Gorongosa, 1 de Novembro de 2011.

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342 Desafios para Moçambique 2013 “Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos”

serviços públicos. A este respeito, o relatório nacional de desempenho dos processos distritais, referente ao ano de 2010, por exemplo, sublinha que “a grande mobilidade dos quadros […] é muito preocupante quando se considera que apenas 10% dos quadros que exercem funções nos processos de planificação e finanças descentrali-zadas têm trabalhado no distrito num período superior a 2 anos […]. É preocupante que a estadia da maioria dos quadros no distrito é tão curta que se deve ques-tionar até que ponto eles possam (i) contribuir para o desenvolvimento do seu posto de trabalho e (ii) ganhar experiência útil que poderão transmitir no novo lugar de trabalho para onde estão sendo transferidos” (MAE & MPD, 2012).

Uma das consequências desta alta mobilidade de quadros a nível distrital é o seu efeito negativo sobre as acções de capacitação dos recursos humanos, um aspecto presente em muitos programas e projectos de capacitação institucional, no âmbito das reformas do sector público. Com efeito, às vezes, acontece que os quadros formados no âmbito de programas de capacitação institucional não servem o propósito para o qual foram treinados, uma vez que são transferidos e recebem tarefas completamente diferentes daquelas que têm a ver com a capa-citação que tiveram. Além disso, há casos em que o distrito simplesmente não tem quadros para responder à demanda em matéria de provisão de serviços. Por exemplo, falando do seu distrito, um dos membros do governo do distrito de Boane dizia:

“[...] Ainda não foi feito um trabalho de fundo de adequar a estrutura do Governo distrital para satisfazer a demanda do distrito. Por exemplo, o quadro de pessoal não está completo. O quadro de pessoal aprovado no âmbito das reformas de descentralização não responde à realidade concreta... Resultado, há muitos funcionários fora do quadro. E isso tem implicações na provisão de serviços. Por exemplo, Boane... estamos a falar de desenvolvimento, mas não temos um economista, um jurista... os Serviços Distritais de Planeamento e Infra -estruturas não têm técnicos qualificados. Nestes casos, em determinados serviços, como educação, saúde, água, o distrito ainda consegue contratar fora do quadro. E nos casos em que o Governo não está em altura de providenciar os serviços recorre aos privados [...].” 12

Mas a incoerência institucional não é só a este nível. Ela manifesta -se também a nível do próprio processo de planificação, com a entrada em cena da Presidência Aberta e Inclusiva (PAI). A influência da PAI sobre o processo político local é relati-vamente bem conhecida. Aliás, um estudo sobre a matéria, levado a cabo em alguns distritos de Moçambique, sublinha que “com a criação das matrizes [no contexto da PAI], são estabelecidos instrumentos de planificação paralelos, que potencial-mente reduzem, ou pelo menos interferem, nos processos políticos formais ao nível

12 Entrevista com o Sr. J. L., membro do governo do distrito de Boane, Boane, 14 de Fevereiro de 2013.

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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos” Desafios para Moçambique 2013 343

sub -nacional. Além disso, a PAI, adicionalmente, consolida a dependência das insti-tuições locais do governo central, na medida em que não proporciona recursos finan-ceiros ou humanos adicionais para implementar estas matrizes. Desta forma, a PAI não conduz à melhoria da capacidade e a decisões políticas mais descentralizadas; pelo contrário, tende a agravar, se não a impedir, a implementação de políticas por parte de instituições locais” (Leininger, Heyl, Maihack, et al., 2012, p. 236). A este propósito, o exemplo do que se passou no distrito de Mecuburi, na sequência da PAI em 2012, é bem elucidativo.

“[...] este ano tivemos uma Presidência Aberta [PAI] e o Presidente deixou orientações para a colocação de energia no posto administrativo de Ratane. Mas esta actividade não estava prevista no nosso PESOD. Mas, porque se tratava de orientação superior, tivemos que procurar dinheiro para colocar energia lá em Ratane. Onde fomos buscar dinheiro? [risos...]. Bom, é orientação superior, aí tinha que se fazer tudo por tudo para se encontrar dinheiro para se poder cumprir com a orientação superior.” 13

Como nos referimos acima, a ausência de uma política e estratégia de descen-tralização não impediu que os sectores levassem a cabo reformas com enfoque na descentralização. Mas a consequência disso foi a acentuação da incoerência insti-tucional e uma clara falta de ligação sistemática entre os diferentes programas e projectos de reformas sectoriais. Vejamos o caso do sector de águas.

O sector de águas é um dos sectores pioneiros em matéria de descentralização sectorial. Com efeito, em 1995, a Política Nacional de Águas (PNA), ao falar da capacitação institucional, na sua secção referente a políticas principais, já estabe-lecia que “a descentralização e a tomada de decisões por gestores locais junto dos próprios utentes e clientes, deverá melhorar e ampliar os serviços que actualmente disponibiliza […]. A descentralização e a tomada de decisões por gestores locais junto dos próprios utentes e clientes, deverá melhorar a qualidade dos serviços pres-tados. A duração de todo este processo será ditada pelo calendário a adoptar pelo Governo para a criação das condições reguladoras deste processo de descentrali-zação” (Resolução 7/95).

A descentralização é, assim, vista como um elemento importante para o aumento das taxas de cobertura e melhoria da qualidade dos serviços prestados. Nos documentos posteriores à Política Nacional de Águas (PNA), a questão da descentralização foi reforçada com a indicação de responsabilidades para os dife-rentes níveis do Estado em matéria de provisão de serviços de água. No que se

13 Entrevista com o Sr. H. D.A., membro do governo do distrito de Mecuburi, Mecuburi, 4 de Dezembro de 2012.

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344 Desafios para Moçambique 2013 “Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos”

refere ao subsector de água rural, por exemplo, o Plano Estratégico de Abasteci-mento de Água e Saneamento Rural (PESA -ASR) estabelece as responsabilidades da seguinte forma: a) Os Governos distritais são responsáveis pela sustentabili-dade das fontes e pela manutenção da cobertura de abastecimento de água, o que implica a reabilitação das fontes; b) Os Governos provinciais responsabilizam -se pelo aumento da cobertura, o que significa novas construções de fontes de água; c) O Governo central é responsável pelas acções estratégicas, inovação, padronização e normação. A materialização destas responsabilidades, particularmente ao nível dos distritos, depende, em grande medida, da existência de recursos humanos quali-ficados no subsector de água rural. Os Serviços Distritais de Planeamento e Infra--estruturas (SDPI), instituição responsável pela provisão de serviços de água a nível distrital, na sua maioria, não têm técnicos qualificados em matéria de água. Aliás, o problema da mobilidade de quadros distritais mencionado acima também afecta o sector de águas, o que significa que os Governos distritais dispõem de pouca gente qualificada para fazer a implementação de programas e projectos de água. Neste sentido, as reformas sectoriais focalizadas na descentralização dificilmente poderão produzir resultados em termos de expansão e melhoramento da provisão dos serviços de água rural.

Um estudo feito pela SNV em 43 distritos das províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa em 2011 traz uma ideia interessante da realidade dos recursos humanos no subsector de água rural. Nos 43 distritos abrangidos pelo estudo, existem 156 técnicos, dos quais apenas 8 têm o nível superior, 97 possuem o nível médio, 32 e 19 têm o nível básico e o nível elementar, respectivamente (SNV, 2011). Das três províncias, Cabo Delgado apresenta a situação mais crítica, na medida em que, nos 13 distritos abrangidos pelo estudo, existem apenas 23 técnicos, dos quais nenhum tem formação superior.

Ao nível do sector de águas parece haver plena consciência do problema dos recursos humanos qualificados, tal como sublinha um dos quadros da Direcção Nacional de Águas.

“[...] um dos desafios da descentralização no sector de águas é a escassez de recursos humanos qualificados para os distritos. O sector de águas não é competitivo em termos sala-riais. Muitos jovens que acabam a formação nos institutos médios, mesmo nas universidades, quando ouvem que têm que ir trabalhar para os distritos, às vezes vão, espreitam, vêem o que existe e pouco tempo depois desistem, porque as condições de trabalho e os salários não são atractivos. Como consequência, temos uma alta rotação de quadros nos distritos (vão e vêm). Portanto, se falamos de descentralização, tem que haver mecanismos de retenção de quadros a nível dos distritos... porque se isso não acontecer, não vamos ter pessoas qualifi-

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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos” Desafios para Moçambique 2013 345

cadas suficientes para fazer a implementação correcta e em tempo útil das intervenções no sector de águas [...].” 14

Facto curioso é que os programas nacionais com componentes de capacitação institucional, que poderiam jogar um papel importante na questão dos recursos humanos, não parecem ter uma abordagem articulada uns com os outros. Os programas ainda funcionam e são implementados como se se tratasse de ilhas. Exemplos disso são o Programa Nacional de Planificação e Finanças Descentrali-zadas (PNPFD) e o Programa Nacional de Água e Saneamento Rural (PRONASAR). Embora os dois programas tenham iniciado a sua implementação mais ou menos no mesmo período,15 eles têm uma fraca articulação. Com efeito, se por um lado o PRONASAR, no seu documento de programa, se refere ao PNPFD como um programa importante, por outro lado, essa referência não se traduz em acções concretas de colaboração e sinergias entre os dois programas ao longo do processo de implementação.16

Além disso, os níveis mais descentralizados do sector não são os que necessa-riamente recebem mais recursos financeiros para a execução das actividades. Aliás, o relatório de avaliação do desempenho do sector de águas, referente a 2011, ao analisar um dos indicadores dourados do subsector de água e saneamento rural sublinha o seguinte: “em 2011, entre os indicadores de investimento, apenas um foi avaliado: o rácio da redução das actividades do AASR fora do plano/fora do orçamento no PESOD. A evolução deste indicador tem sido lenta mas satisfatória. Actualmente, o rácio de actividades realizadas fora do plano é de 0,6 […]. O rácio apresentado mostra que existe ainda uma grande desconexão nos processos de plani-ficação, sendo os níveis descentralizados os mais prejudicados. A alocação dos inves-timentos por nível tem mostrado que as províncias e as ARA têm recebido 13% -16% dos investimentos, mas o mandato de execução das actividades recai sobre estes dois níveis. O esforço do sector deverá ser o de distribuir o orçamento para concretizar a descentralização […] a descentralização do sector de águas requer um acompanha-mento por parte de outras entidades de apoio, tais como o Tribunal Administrativo” (DNA, 2011, p. 20). A ausência de uma visão integrada de descentralização tem

14 Entrevista com o Sr. M. M., Técnico de planificação, Direcção Nacional de Águas, Maputo, 3 de Abril de 2013.

15 O processo de implementação dos dois programas começou em 2010.16 Por exemplo, o financiamento dos postos distritais para técnicos de água e saneamento, previsto em cada

um dos programas, poderia ser melhor coordenado, o que poderia racionalizar os recusros e evitar dupli-cação.

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implicações na maneira como o processo tem vindo a ser implementado ao nível do subsector, o que acaba afectando a provisão de serviços.

Desde 2008, o sector de águas tem vindo a descentralizar fundos para o nível local, no contexto de fundos sectoriais descentralizados.17 De acordo com a DNA (Direcção Nacional de Águas), existem essencialmente cinco critérios para o acesso aos fundos descentralizados para as províncias/distritos, nomeadamente a taxa de cobertura, o número de fontes inoperacionais, o número da população, os Parceiros de Cooperação e a incidência de doenças de origem hídrica e morbilidade.

Uma das implicações da ausência de uma visão integrada de descentralização é o fraco fluxo de informação relativamente aos fundos descentralizados, na medida em que, em muitos casos, os distritos não têm a informação sobre as razões da não recepção dos fundos num determinado ano. Aliás, o relatório elaborado pela SNV, com base num estudo envolvendo os distritos de Nampula, Cabo Delgado e Niassa é elucidativo a este respeito, ao mencionar o seguinte: “constatou -se haver também enormes défices de informação entre os níveis central, provincial e distrital. Por um lado, os distritos reclamam falta de informação precisa sobre a existência de fundos para água e saneamento. Por outro, os DAS (Departamentos de Água e Sanea-mento) reclamam não ter informações precisas sobre o número de beneficiários e a situação operacional das fontes. Esta deficiente produção e gestão de informação está a constituir um real problema de desenvolvimento porque afecta a planificação e a alocação de recursos” (SNV, 2010, p. 14).

As reformas no sector de águas não trazem apenas a questão da descentralização. Elas sublinham também a ideia da co -produção do serviço público de abastecimento de água rural, com o envolvimento do sector privado. Mas, à semelhança do que acontece com a descentralização, o envolvimento do sector privado no subsector de água rural também tem cristalizado incoerência institucional, particularmente quando se olha para a maneira como funcionam as instituições e os actores locais. Nas linhas a seguir vamos, ainda que resumidamente, olhar para algumas destas questões.

ENVOLVIMENTO DO SECTOR PRIVADO: COMO E ATRAVÉS DE QUE MECANISMOS?Como mencionámos na primeira parte deste artigo, o envolvimento do sector privado nos programas da reforma do sector público na África subsaariana aparece sobretudo a partir da segunda vaga de reformas, em meados dos anos 1990, nas

17 A decisão de descentralizar fundos sectoriais foi tomada em 2007 pelo Conselho de Ministros, reunido na sua 17.ª sessão, com o objectivo de garantir a implementação da Lei dos órgãos locais do Estado (Lei 8/2003), o PARPA II e o Plano Quinquenal do Governo (2005-2009).

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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos” Desafios para Moçambique 2013 347

chamadas parcerias público -privadas. No que se refere ao subsector de água rural, em Moçambique a questão do envolvimento do sector privado está presente nos principais instrumentos de políticas e directrizes do sector de águas em geral, tais como a Política de Águas (PA), o Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento Rural (PESA -ASR), o Manual de Implementação de Projectos de Abastecimento de Água Rural (MIPAR). Por exemplo, na secção consagrada ao abastecimento de água em áreas rurais, a Política de Águas (PA) estabelece que “é encorajado o envolvimento do sector privado na preparação e suporte às comuni-dades, projectos, construção, fiscalização, apoio à manutenção, provisão de peças sobressalentes, investigação e produção de equipamento. Onde o sector privado não esteja capaz ou interessado em envolver -se, serão encontradas de forma flexível outras soluções adaptadas a cada região” (Resolução 46/2007, p. 52). De acordo com a Política de Águas (PA), o envolvimento do sector privado visa dois objectivos principais, nomeadamente “beneficiar do dinamismo do sector privado e conseguir um mais rápido crescimento socioeconómico atraindo o investimento privado” (Resolução 46/2007, p. 61).

Mas, à semelhança do que acontece em outros sectores, o envolvimento do sector privado na co -produção de serviços de abastecimento de água rural não é assim tão linear. Isso deve -se a vários factores. Alguns destes factores dizem respeito, por um lado, à própria capacidade do Estado em criar condições para o envol-vimento efectivo do sector privado e, por outro lado, ao estágio embrionário do sector privado, particularmente a nível local. Por exemplo, relativamente ao Estado, nem todos os distritos têm uma capacidade efectiva instalada para planificar, imple-mentar, monitorar e gerir contratos de projectos de construção de infra -estruturas de água. Alguns contratos de construção continuam sendo geridos a nível provin-cial e, muitas vezes, com uma fraca comunicação com os distritos, acabando por resultar em atrasos significativos nos pagamentos aos empreiteiros e má qualidade das obras (SNV, 2010). Além disso, a escassez de técnicos qualificados de água ao nível dos Serviços Distritais de Planeamento e Infra -estruturas (SDPIs) não permite que os distritos fiscalizem adequadamente as obras construídas de modo a garantir um serviço de qualidade. Um outro aspecto, que mostra a incoerência institucional relativamente ao envolvimento do sector privado, é a questão dos artesãos.

No contexto das políticas e linhas estratégicas do sector de águas, os artesãos são um elemento importante no processo da co -produção de serviços de água. No caso do abastecimento de água rural, os artesãos podem representar uma mais -valia

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na medida em que se trata de provedores, inseridos nas comunidades para as quais prestam serviço e, por isso mesmo, elas podem mais facilmente pedir -lhes contas, caso o trabalho tenha sido mal feito (Estamos, 2003). De facto, o Governo e os Parceiros que operam no subsector de água rural têm investido recursos na formação dos artesãos locais como forma de apoiar a emergência de um sector privado mais inserido nas comunidades. Constata -se, todavia, que os artesãos locais, uma vez trei-nados, nem sempre são absorvidos nas obras de reabilitação de infra -estruturas dos governos distritais. Uma das razões para a não absorção é o facto de muitos arte-sãos não reunirem condições para se apresentarem em concursos públicos lançados pelos governos distritais, uma vez que não possuem alvarás. Aqui a pergunta é: porquê investir recursos na formação de artesãos locais quando, depois, o próprio Estado não cria mecanismos para a sua absorção e, desta forma, contribuir para a emergência dum sector privado local capaz de jogar um papel importante na co -produção de serviço de abastecimento de água rural? A este propósito, um dos membros do governo do distrito de Nacaroa dizia:

“[...] a questão dos artesãos locais precisa dum tratamento a outro nível, porque aqui no distrito não podemos fazer nada. Nós aqui já temos muitos artesãos que participaram em cursos promovidos pelos projectos. Mas, quando lançamos concursos, por exemplo, de reabi-litação de fontes de água, estes nossos artesãos não podem participar porque não têm alvarás E isso traz muita frustração nas pessoas, sobretudo nos próprios artesãos porque não podem fazer render o que aprenderam na formação [...].” 18

Mas os problemas não estão só do lado do Estado. Eles existem também do lado do próprio sector privado. Falando do envolvimento do sector privado no subsector de água rural, um técnico da Direcção Nacional de Águas dizia:

“[...] o sector privado é um parceiro essencial para nós. Nós precisamos do sector privado para construção, fiscalização, participação e educação comunitária, consultoria Mas muitas vezes o nó de estrangulamento é a capacidade que eles têm para responder aos concursos em tempo útil. O sector privado ainda é embrionário, não se assume como profissional Acon-teceu, por exemplo, algumas vezes que uma empresa ganhou o concurso para construção de infra -estruturas de água, nós próprios tivemos que insistir várias vezes para que passasse pelos nossos serviços para assinar contrato. Outras vezes, eles têm dificuldades em apresentar a documentação como deve ser [...].” 19

Além dos aspectos acima mencionados, o envolvimento do sector privado na provisão do serviço de água rural requer também que as condições do mercado a nível local existam efectivamente. Mas, tal como mostra um estudo levado a cabo

18 Entrevista com o Sr. G. E., membro do governo do distrito de Nacaroa, Nacaroa, 26 de Outubro de 2011.19 Entrevista com o Sr. M. M., técnico de planificação, Direcção Nacional de Águas, Maputo, 3 de Abril de

2013.

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“Não Basta Introduzir Reformas para Se Ter Melhores Serviços Publicos” Desafios para Moçambique 2013 349

sobre a matéria na província do Niassa pela Estamos, essas condições muito prova-velmente ainda precisam de ser construídas (Estamos, 2003).

A questão da capacidade do sector privado e das condições do mercado estão devidamente identificadas como assuntos relevantes do subsector de água rural, tal como sublinha o documento do programa do PRONASAR, num dos seus anexos. Com efeito, o anexo 3 do PRONASAR menciona que “diversas organizações reportam fraco desempenho e/ou atrasos significativos dos prestadores de serviços do sector privado, principalmente os empreiteiros de perfurações. Os constrangi-mentos de capacidade também são reportados em serviços relacionados, como pesquisas geofísicas, testagem da qualidade da água e, mais importante, serviços de reparação de furos e bombas manuais. Estes factores contribuem para o baixo resul-tado, elevadas taxas de furos negativos e aumento de custos dos inputs e serviços. O desempenho geral do sector é negativamente afectado pelas insuficiências do mercado de inputs, devidas em parte ao número limitado de fornecedores desses inputs em relação à procura crescente, aos impostos e taxas de importação, e à falta de partilha atempada de informação sobre preços e de actividades orientadas de promoção de investimentos, para mencionar algumas causas” (DNA, 2009, p. 14).

Os dois aspectos tratados até aqui, nomeadamente a descentralização e o envol-vimento do sector privado, situam -se do lado da oferta e cristalizam o que acima chamámos incoerência institucional. A seguir, vamos, ainda que resumidamente, olhar para um terceiro aspecto – o princípio da procura – que se situa do lado da demanda e cristaliza a fraca articulação entre a abordagem da participação comuni-tária e as lógicas e dinâmicas do funcionamento das comunidades locais.

PRINCÍPIO DA PROCURA: QUANDO COMUNIDADE NÃO SIGNIFICA NECESSARIAMENTE CONSENSOA ideia segundo a qual os beneficiários finais têm de participar no processo da provisão dos serviços de água está bem presente nos principais instrumentos de polí-tica e directrizes do sector de águas. Esta ideia está na origem do chamado princípio da procura, o qual “prevê que na planificação das actividades do projecto as comu-nidades solicitem a fonte e comparticipem nos custos de investimento” (DAR, 2001, p. 20). De acordo com o Manual de Implementação de Projectos de Abastecimento de Água Rural (MIPAR), o princípio da procura visa “garantir a sustentabilidade das infra -estruturas; satisfazer as necessidades básicas dos utentes; investir a comunidade de poderes de decisão; atribuir à comunidade a propriedade das infra -estruturas;

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reforçar a capacidade organizacional e de gestão da comunidade; mobilizar recursos locais através dos diferentes intervenientes” (DAR, 2001, p. 20)

O princípio da procura está muito focalizado na participação comunitária. Neste âmbito, o MIPAR sublinha que, num projecto de abastecimento de água, a comu-nidade deve “ser prévia e adequadamente informada sobre a existência do projecto, as oportunidades que este oferece, suas implicações e formas de acesso aos serviços; tomar decisões claras sobre o tipo e nível de serviços que pretende; escolher a zona preferida para instalação da fonte, em respeito aos requisitos técnicos; responsa-bilizar -se pela operação, manutenção, reposição e gestão dos sistemas; eleger os elementos dos comités de água e do grupo de manutenção.” (DAR, 2001, p. 20)

Assim, no âmbito do princípio da procura, a construção de fontes de água acon-tece com a comparticipação das comunidades, não só do ponto de vista do seu envolvimento no processo da planificação, implementação, gestão e manutenção, como também no que se refere à contribuição monetária, como forma de garantir a sustentabilidade das fontes. Mas, se por um lado o princípio da procura promove o envolvimento das comunidades na provisão dos serviços de água nas zonas rurais, por outro lado, a sua implementação requer uma harmonização com o processo de planificação participativa, no contexto da Lei dos Órgãos Locais do Estado (Lei 8/2003), em que os planos devem reflectir as prioridades comunitárias, que são encaminhadas através das instituições de participação e consulta comunitárias, nomeadamente os conselhos locais. Com efeito, em algumas povoações, acontece que, uma vez reunida a comparticipação monetária da comunidade, o encaminha-mento da necessidade da construção do furo de água não é feito através do processo da planificação distrital, mas, sim, via contacto directo com as autoridades distritais, nomeadamente os Serviços Distritais de Planeamento e Infra -estruturas (SDPI), tal como ilustra o caso do Comité de Desenvolvimento Comunitário da povoação de Inlavania, no distrito de Mecuburi:

“[...] Quando nós queremos ter mais um furo de água aqui na zona, já sabemos como funciona... pedimos às pessoas da zona para contribuir. Cada família contribui com algum dinheiro e há pessoas que passam a colectar o dinheiro. Depois de colectar o dinheiro, nós vamos levar esse dinheiro para alguém que pode fazer um furo para nós [...].” 20

Um dos aspectos marcantes da participação comunitária no subsector da água rural é a criação e o funcionamento dos comités de água. Concebidos como instân-cias de gestão do abastecimento de água a nível comunitário, os comités de água

20 Entrevista colectiva com membros do Comité de Desenvolvimento Comunitário da povoação de Inlavania, Localidade de Monane, Distrito de Mecuburi, Mecuburi, 27 de Novemmbro de 2012.

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respondem pelo “acompanhamento do funcionamento e manutenção das fontes, pela existência de peças sobressalentes, pelo controlo das contribuições dos utentes, pela promoção e divulgação dos projectos e desenvolvimento das actividades comu-nitárias no abastecimento de água rural.” (DAR, 2001, p. 14) Neste contexto, a cons-trução de infra -estruturas de água exige a criação e funcionamento de comités de água, que passa por um trabalho de preparação social levado a cabo por ONG ou empresas da área social.

Criados com base em metodologias participativas, os comités de água têm forte dependência em relação a programas/projectos com financiamento externo, para custear as actividades de formação dos membros, em assuntos ligados à manutenção das fontes, liderança, higiene, etc. Nestes casos, o que acontece é que, com o término dos referidos programas/projectos, os comités de água não têm tido o devido acom-panhamento e, às vezes, alguns comités acabam ficando inoperacionais, trazendo implicações para a sustentabilidade das fontes de água. Quando os comités de água não têm acompanhamento regular em termos de formação, a sua governação interna fica enfraquecida e muito dependente de pessoas que ficam na liderança, sem mandatos determinados. Quando essas pessoas, por várias razões, acabam deixando a liderança, muitas vezes, os próprios comités ficam inoperacionais, tal como ilustra o caso de uma das comunidades de Rádio Marconi, no distrito de Boane.

“[...] este furo da nossa zona foi construído em 2003. Quando construíram o furo, foi criado o comité de água com 10 membros. Fazíamos cobrança mensal de 10 meticais por família. Quando uma família não tivesse dinheiro, podia pagar no mês seguinte. Havia um caderno para controlo das contribuições... Por mês, conseguíamos fazer 500, 600, 700 meticais. Depois decidimos abrir uma conta bancária. Cada dois ou três meses informávamos as pessoas quanto dinheiro tínhamos na conta. Esse dinheiro era usado para reparar as avarias... as avarias eram constantes. Nessa altura, nós tínhamos um privado que vinha fazer a reparação da bomba... Por motivos de saúde, saí do comité de água há quatro anos. Quando saí, a conta bancária do comité de água tínha cerca de 16 mil meticais. Mas, já naquela altura, nós vimos que este furo que temos aqui não era suficiente para toda a população da zona. Na altura fui reclamar ao distrito, numa reunião. Eles [as autoridades distritais] disseram -me fala com a comunidade e organiza 2 mil 500 meticais e a comunidade, depois, iria decidir onde colocar o furo de água. Mas aconteceu que, quando saí do comité de água, o assunto não teve seguimento... o assunto foi abaixo. Hoje a cobrança já não existe e o comité de água deixou de funcionar [...].” 21

O problema da sustentabilidade não é só em relação às fontes de água cons-truídas. Ele se põe igualmente em relação aos próprios comités de água. Mas a questão da fraca sustentabilidade dos comités de água não pode ser vista apenas como resultado do fraco acompanhamento em termos de formação dos membros

21 Entrevista com o Sr. C. L., ex -presidente do comité de água de uma comunidade de Rádio Marconi, distrito de Boane, Boane, 19 de Fevereiro de 2013.

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dos comités. Ela resulta também da fraca articulação entre as abordagens de parti-cipação comunitária e as dinâmicas e lógicas do funcionamento das comunidades locais. Com efeito, as abordagens da participação comunitária são baseadas na ideia da existência de comunidades rurais organizadas, que seriam caracterizadas pela partilha de valores comuns e representadas pela figura de pessoas tais como os chefes tradicionais, os chefes de aldeias ou os secretários de bairros, que teriam uma capacidade de mobilização para desencadear a participação comunitária. As abordagens da participação comunitária remetem -nos, assim, para uma visão de comunidade bastante homogénea, idealizada, que não permite captar a dinâmica das relações sociais nesses conjuntos populacionais. Ora, a realidade mostra que essas comunidades estão longe de ser entidades homogéneas, na medida em que elas são marcadas por clivagens internas que resultam das dinâmicas históricas e sociopolíticas locais, que cristalizam diferentes interesses da parte dos seus membros. Neste sentido, um comité de água não pode ser visto como uma instância que repre-senta interesses duma comunidade homogénea. Aliás, em alguns casos, a própria ligação dos comités de água, por um lado, com as respectivas populações e, por outro lado, com todo o processo da planificação participativa envolvendo os conse-lhos locais, não é assim tão evidente. Nestes casos, os comités de água, no lugar de reforçar a capacidade da acção colectiva das populações locais, com vista a uma demanda mais estruturada dos serviços de água, eles acabam enfraquecendo essa capacidade, facto que, por sua vez, acaba afectando o próprio princípio da procura, no contexto do envolvimento comunitário na produção dos serviços de água rural.

CONCLUSÃO

À semelhança do que acontece com os programas de reformas do sector público em geral, os resultados das reformas no subsector de água rural estão longe do que se poderia esperar, tendo em conta o volume de recursos financeiros investidos nos últimos vinte anos. Entender os factores explicativos desses resultados exige uma análise do contexto sociopolítico em que as reformas são implementadas, olhando para as dinâmicas institucionais, não só do lado da oferta como também do lado da demanda dos serviços de abastecimento de água rural.

Assim, com base em três aspectos das reformas no subsector de água rural, nomeadamente a descentralização, o envolvimento do sector privado e a partici-pação comunitária, a discussão desenvolvida ao longo deste artigo sugere que os

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resultados das reformas no subsector de água rural são estruturados por dois factores essenciais: o primeiro factor refere -se à incoerência institucional, consubstanciada, por um lado, na falta de visão e de linhas claras de comando na implementação do processo da descentralização e, por outro lado, na fraca harmonização dos dife-rentes instrumentos e programas que afectam o subsector em matéria da provisão dos serviços de abastecimento de água rural; o segundo factor diz respeito à fraca articulação entre as abordagens de participação comunitária e as dinâmicas e lógicas do funcionamento das comunidades locais. Por conseguinte, não basta introduzir reformas para se ter melhores serviços públicos. É preciso tomar em consideração as dinâmicas institucionais, que afectam significativamente os resultados das reformas.

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