nacionalismo. os (outros)transformou em um laboratório onde se inventam novos formatos de ação...

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8 l O GLOBO l Esportes l Segunda-feira 29.4.2013 A PÁGINA MÓVEL OS (OUTROS) ONZE DE BARÇA 1 LIVROS, ROSAS. 23 de abril de 2013. Antes de engolir quatro gols do Bayern de Munique, Barcelona viveu, como a cada ano, sua festa mais bonita, a jornada de Sant Jordi, dia mundial do livro. Mesmo sem ser feriado, os barceloneses foram às ruas deixando a crise de lado para presentear entre si rosas e livros. Entre 200 autores que davam autógrafos nas barracas de livro e floristas em toda a cidade, os catalães compraram cinco milhões de rosas, que simbolizam o sangue do dragão morto pela lança de São Jorge e representam 10% da produção anual de livros... 2 LÍNGUA PRÓPRIA. A força das editoras catalãs na festa é um sinal da principal peça de resistência do renovado nacionalismo: a língua. É em catalão que se fala em casa e na escola. Passa-se para o espanhol com naturalidade, a coexistência é pacífica, mas o idioma pátrio é ensinado como uma segunda língua. 3 IN-DE-PEN-DÊN-CIA. O nacionalismo, que no ano 2000 era uma excentricidade de grupos radicais e de adolescentes, se transformou em um sentimento coletivo nos últimos três anos. Um nacionalismo que tem como data-símbolo o onze de setembro de 1714, quando Felipe V toma a cidade e bane as instituições catalãs. Cada vez que a tensão aumenta, repare o que acontece quando o Barça joga no Camp Nou: aos dezessete minutos e quatorze segundos de cada tempo um grito varre a arquibancada: “in-inde-independên-cia!” 4 A NOVA VELHA UTOPIA. Despertada pela crise econômica e social, Barcelona se transformou em um laboratório onde se inventam novos formatos de ação política. A tática é a mobilização coletiva direta. Assembleias em praças desembocam em redes sociais e viram “plataformas” . Militantes aposentados, os Yayos Flauta (yayo, de avô, e flauta, de vadiagem), invadem agências bancárias e instituições públicas. Nem a bolsa de valores de Barcelona escapa. À polícia não lhe resta nada mais que ficar olhando, pois em vovôs não se bate. Recolhendo um milhão e meio de assinaturas, a PAH, Plataforma de Afetados pelas Hipotecas, emplacou no Parlamento uma iniciativa popular que muda as regras do jogo hipotecário. Pancada nos bancos, sim. As assembleias refletem a formação cidadã: as palmas ao orador são substituídas por um balançar de mãos para não fazer barulho; expressões machistas ou que priorizem o sexo masculino são repudiadas com choques entre punhos cerrados. 5 A TAL DA COLETIVIDADE. O respeito ao outro chega a ser política de governo. Se educa nas escolas, nas ruas e nos agrupamentos laicos de jovens, as “escoltes catalanas” . É de mau gosto exibir riqueza e ser educado é indispensável. Simpático não precisa ser, mas não se entra em elevador sem bon dia. No trânsito, se o carro dá a seta, não ceder o passo é inconcebível. Faixa de pedestre é sagrada. Fila também: é de lei perguntar “quem é o último?” Se respira um sentimento de coletividade em todos os lugares e é difícil não se encaixar nas regras. 6 RUA VIVA. As mudanças de estações definem os humores. Cervejinha no verão, vinho no inverno. O que não muda é a presença das pessoas nas ruas. As festas tiram as pessoas de casa. As de primavera começam com a jornada de Sant Jordi. Desfiles de diabos, guerras de fogos, bonecos gigantes e castelos de gente vão até a chegada do verão, com a noite de São João, dia 23 de junho. Fogueiras, fogos, cava e coca, pão típico da região. O outono é das carrocinhas de castanha assada e o inverno das feiras de natal e concertos de igreja. Aniversário de menino é no parque, no cinema ou no boliche, com bolinho e suco de caixa, sem pretensão maior que os bons momentos com amigos. 7 CIDADE MÓVEL. Desde as olimpíadas de 1992, que democratizou acessos e tirou do isolamento vários bairros, a prioridade é mesmo o transporte público. Movido a bilhete único de verdade, toma-se ônibus, metrô, trem e bonde com uma passagem só por duas horas de viagem. Pontos de ônibus são abrigos e os horários estão nos celulares. O metrô tem 11 linhas com 123 kms. O aluguel de bicicletas atende a 120.000 usuários, por 44 euros ao ano e 180 km de ciclovias. Mas o pedestre é o rei: há bairros como Gracia, onde quase a totalidade das ruas é só para ele. 8 BARATO DE SER FELIZ. Um simples pão torrado com tomate e alho esfregado em bom azeite é um ícone. Butifarra, tipo de linguiça com feijão branco de frigideira é clássico. No outono, depois das primeiras chuvas, o programa é calçar botas e fuçar bosques atrás de cogumelos variados que apenas passam pela chapa, antes de virar manjar. A partir de novembro chegam ao mercado os calçots, cebola fininha preparada na brasa e comida com as mãos. É barato ser feliz. O vermute da manhã, a garrafa de cava e o vinho da bodega da esquina se encaixam no orçamento de todos os mortais. 9 COISAS ESQUISITAS. A cidade tem suas esquisitices: café com gelo, por exemplo. Mar e montanha, prato que combina bichos do mar com os da terra e onde convivem frango com frutos do mar, coelhos com camarões. No carnaval não tem música, mas gente fantasiada até em agências bancárias. Estranho mesmo é ter dois aeroportos gigantescos. Um praticamente vazio... 1O VIDA DURA. Trabalhador doméstico não entra no orçamento. Os avós são a maior mão na roda, cuidando dos netinhos e salvando os filhos. Autossustentabilidade é coisa que se aprende de pequeno. Da limpeza à comida, é cada um por si. Elevador e calefação são para poucos. Há 20.000 edifícios sem elevador, apesar de a prefeitura subsidiar o equipamento. Moedas fazem falta mas isso não chega a ser um problema para o desfrute: eventos ou são gratuitos, ou baratos. E o lanchinho vai na bolsa, bem enrolado em papel de pão, que é mais ecológico. 11 UMA ARMADILHA. Em Barcelona não precisa ter medo de ladrão, nem de polícia, mas a cidade prende: por seus encantos. Com quatro universidades públicas, é o destino de muitos estudantes do mundo inteiro. Tudo está enquadrado em alguma lei, até o direito de andar pelado na cidade. Encarar a vida no inverno é chato, triste, e é quando as agruras pesam. Mas quando chega a primavera, o humor muda e o que pesava fica leve. l Sant Jordi. Festa com sangue de Dragão e literatura por toda a cidade Nacionalismo. Excentricidade que virou um sentimento coletivo FOTOS DE CLÁUDIO VERSIANI Corrida de fogo. Com pólvora e petardos, diabos animam o verão CHICO AMARAL [email protected] Castelos de gente. Coletivos competem entre si formando torres humanas de diferentes formas Nos últimos anos o nome Barcelona virou sinônimo de vanguarda do futebol. A queda de quatro para os alemães, contudo, abalou o status. Haverá volta? Por via das dúvidas, Chico Amaral , editor-executivo multimídia do GLOBO,que viveu lá, escala uma seleção (sem Messi) de 11 forças da cidade de Gaudi User: aoliveira Time: 04-28-2013 20:15 Product: OGloboEsportes PubDate: 29-04-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_H Color: C M Y K

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Page 1: Nacionalismo. OS (OUTROS)transformou em um laboratório onde se inventam novos formatos de ação política. A tática é a mobilização coletiva direta. Assembleias em praças desembocam

8 l O GLOBO l Esportes l Segunda-feira 29 .4 .2013

A PÁGINA MÓVEL

OS (OUTROS) ONZE DE BARÇA 1

LIVROS, ROSAS. 23 de abril de 2013. Antesde engolir quatro gols do Bayern deMunique, Barcelona viveu, como a cadaano, sua festa mais bonita, a jornada deSant Jordi, dia mundial do livro. Mesmo

sem ser feriado, os barceloneses foram às ruasdeixando a crise de lado para presentear entre sirosas e livros. Entre 200 autores que davamautógrafos nas barracas de livro e floristas emtoda a cidade, os catalães compraram cincomilhões de rosas, que simbolizam o sangue dodragão morto pela lança de São Jorge erepresentam 10% da produção anual de livros...

2LÍNGUA PRÓPRIA. A força das editorascatalãs na festa é um sinal da principalpeça de resistência do renovadonacionalismo: a língua. É em catalãoque se fala em casa e na escola. Passa-se

para o espanhol com naturalidade, a coexistênciaé pacífica, mas o idioma pátrio é ensinado comouma segunda língua.

3IN-DE-PEN-DÊN-CIA. O nacionalismo, queno ano 2000 era uma excentricidade degrupos radicais e de adolescentes, setransformou em um sentimentocoletivo nos últimos três anos. Um

nacionalismo que tem como data-símbolo o onzede setembro de 1714, quando Felipe V toma acidade e bane as instituições catalãs. Cada vezque a tensão aumenta, repare o que acontecequando o Barça joga no Camp Nou: aos dezesseteminutos e quatorze segundos de cada tempo umgrito varre a arquibancada:“in-inde-independên-cia!”

4A NOVA VELHA UTOPIA. Despertada pelacrise econômica e social, Barcelona setransformou em um laboratório onde seinventam novos formatos de açãopolítica. A tática é a mobilização

coletiva direta. Assembleias em praçasdesembocam em redes sociais e viram“plataformas”. Militantes aposentados, os YayosFlauta (yayo, de avô, e flauta, de vadiagem),invadem agências bancárias e instituiçõespúblicas. Nem a bolsa de valores de Barcelonaescapa. À polícia não lhe resta nada mais queficar olhando, pois em vovôs não se bate.Recolhendo um milhão e meio de assinaturas, aPAH, Plataforma de Afetados pelas Hipotecas,emplacou no Parlamento uma iniciativa popularque muda as regras do jogo hipotecário. Pancadanos bancos, sim. As assembleias refletem aformação cidadã: as palmas ao orador sãosubstituídas por um balançar de mãos para nãofazer barulho; expressões machistas ou quepriorizem o sexo masculino são repudiadas comchoques entre punhos cerrados.

5A TAL DA COLETIVIDADE. O respeito aooutro chega a ser política de governo. Seeduca nas escolas, nas ruas e nosagrupamentos laicos de jovens, as“escoltes catalanas”. É de mau gosto

exibir riqueza e ser educado é indispensável.Simpático não precisa ser, mas não se entra emelevador sem bon dia. No trânsito, se o carro dá aseta, não ceder o passo é inconcebível. Faixa depedestre é sagrada. Fila também: é de leiperguntar “quem é o último?” Se respira umsentimento de coletividade em todos os lugares eé difícil não se encaixar nas regras.

6RUA VIVA. As mudanças de estaçõesdefinem os humores. Cervejinha noverão, vinho no inverno. O que nãomuda é a presença das pessoas nasruas. As festas tiram as pessoas de casa.

As de primavera começam com a jornada de Sant

Jordi. Desfiles de diabos, guerras de fogos,bonecos gigantes e castelos de gente vão até achegada do verão, com a noite de São João, dia23 de junho. Fogueiras, fogos, cava e coca, pãotípico da região. O outono é das carrocinhas decastanha assada e o inverno das feiras de natale concertos de igreja. Aniversário de menino éno parque, no cinema ou no boliche, combolinho e suco de caixa, sem pretensão maiorque os bons momentos com amigos.

7CIDADE MÓVEL. Desde as olimpíadas de1992, que democratizou acessos etirou do isolamento vários bairros, aprioridade é mesmo o transportepúblico. Movido a bilhete único de

verdade, toma-se ônibus, metrô, trem e bondecom uma passagem só por duas horas deviagem. Pontos de ônibus são abrigos e oshorários estão nos celulares. O metrô tem 11linhas com 123 kms. O aluguel de bicicletasatende a 120.000 usuários, por 44 euros ao anoe 180 km de ciclovias. Mas o pedestre é o rei: hábairros como Gracia, onde quase a totalidadedas ruas é só para ele.

8BARATO DE SER FELIZ. Um simples pãotorrado com tomate e alho esfregadoem bom azeite é um ícone. Butifarra,tipo de linguiça com feijão branco defrigideira é clássico. No outono,

depois das primeiras chuvas, o programa écalçar botas e fuçar bosques atrás de cogumelosvariados que apenas passam pela chapa, antesde virar manjar. A partir de novembro chegamao mercado os calçots, cebola fininha preparadana brasa e comida com as mãos. É barato serfeliz. O vermute da manhã, a garrafa de cava e ovinho da bodega da esquina se encaixam noorçamento de todos os mortais.

9COISAS ESQUISITAS. A cidade tem suasesquisitices: café com gelo, porexemplo. Mar e montanha, prato quecombina bichos do mar com os daterra e onde convivem frango com

frutos do mar, coelhos com camarões. Nocarnaval não tem música, mas gente fantasiadaaté em agências bancárias. Estranho mesmo éter dois aeroportos gigantescos. Um praticamente vazio...

1OVIDA DURA. Trabalhadordoméstico não entra noorçamento. Os avós sãoa maior mão na roda,cuidando dos netinhos e

salvando os filhos. Autossustentabilidade écoisa que se aprende de pequeno. Da limpeza àcomida, é cada um por si. Elevador e calefaçãosão para poucos. Há 20.000 edifícios semelevador, apesar de a prefeitura subsidiar oequipamento. Moedas fazem falta mas isso nãochega a ser um problema para o desfrute:eventos ou são gratuitos, ou baratos. E olanchinho vai na bolsa, bem enrolado em papelde pão, que é mais ecológico.

11UMA ARMADILHA. EmBarcelona não precisa termedo de ladrão, nem depolícia, mas a cidadeprende: por seus encantos.

Com quatro universidades públicas, é o destinode muitos estudantes do mundo inteiro. Tudoestá enquadrado em alguma lei, até o direito deandar pelado na cidade. Encarar a vida noinverno é chato, triste, e é quando as agruraspesam. Mas quando chega a primavera, ohumor muda e o que pesava fica leve. l

Sant Jordi. Festa com sangue de Dragão e literatura por toda a cidade Nacionalismo. Excentricidade que virou um sentimento coletivo

FOTOS DE CLÁUDIO VERSIANI

Corrida de fogo. Com pólvora e petardos, diabos animam o verão

CHICO AMARAL

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Castelosde gente.Coletivoscompetementre siformandotorres humanasde diferentesformas

Nos últimos anos o nome Barcelona virou sinônimo de vanguarda do futebol. A queda de quatro para osalemães, contudo, abalou o status. Haverá volta? Por via das dúvidas, Chico Amaral , editor-executivomultimídia do GLOBO,que viveu lá, escala uma seleção (sem Messi) de 11 forças da cidade de Gaudi

User: aoliveira Time: 04-28-2013 20:15 Product: OGloboEsportes PubDate: 29-04-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_H Color: CMYK