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1 X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] NA CONTRAMÃO DA LUSOFOBIA: AS SEXTILHAS DE FREI ANTÃO COMO ÍNDICE DE RECONHECIMENTO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA E AMERICANA PLURAL Maurílio Mendes da Silva (Mestrando – UNESP/Assis – CAPES) RESUMO: As Sextilhas de Frei Antão sempre representaram para a fortuna crítica de Gonçalves Dias (1823-1864) um desafio aparte, na medida em que dentro de um contexto de lusofobia reinante do período romântico, ela mais engrandece e aproxima a literatura portuguesa do que propriamente a repudia, fato comum a diversos poetas e escritores do romantismo brasileiro, e verificável até mesmo em outros momentos da obra de Gonçalves Dias. Publicadas juntamente com o volume dos Segundos Cantos (1848), as Sextilhas de Frei Antão, narrativa em versos constituída de cinco poemas, recupera elementos do medievo português, adotando formas e um estilo arcaico de escrita. Gonçalves Dias atribuiu, por ocasião da primeira edição dos Segundos Cantos, a autoria das sextilhas a um frade de São Domingo, que supostamente teria vivido e escrito os versos na primeira metade do século XVII. Esta comunicação pretende apresentar a narrativa em versos das Sextilhas, tentando, ao considerar outros aspectos da obra de Gonçalves Dias, reconhecê-la como índice da consciência do poeta, que segundo procuraremos demonstrar, concebia o povo, a nação, e por conseqüência a literatura brasileira como produto da síntese de raças e de culturas, reconhecendo assim no homem brasileiro e americano uma identidade miscigenada e plural. PALAVRAS- CHAVE: Gonçalves Dias; Identidade Nacional; Americanidade. Introdução Como fugir do clichê, quando a matéria sobre a qual se falará já está tão impregnada de pré-juízos na alma e na mentalidade de um povo. Como sequer introduzir questões sobre a obra de Gonçalves Dias (1823-1864), sem ser pego pelas armadilhas de valores e juízos carcomidos que devido ao uso excessivo e reiterado através dos tempos nada mais dizem. Fato é que a figura de Gonçalves Dias dispensa apresentações. Se, contudo, me for permitido construir uma aparente contradição, sem medo de me equivocar, ouso afirmar que Gonçalves Dias é, ao mesmo tempo, o mais célebre e o menos conhecido dos poetas brasileiros. Alguns o

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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2179-4871

www.assis.unesp.br/sel

[email protected]

NA CONTRAMÃO DA LUSOFOBIA: AS SEXTILHAS DE FREI ANTÃO COMO ÍNDICE DE

RECONHECIMENTO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA E AMERICANA PLURAL

Maurílio Mendes da Silva (Mestrando – UNESP/Assis – CAPES)

RESUMO: As Sextilhas de Frei Antão sempre representaram para a fortuna crítica de Gonçalves Dias (1823-1864) um desafio aparte, na medida em que dentro de um contexto de lusofobia reinante do período romântico, ela mais engrandece e aproxima a literatura portuguesa do que propriamente a repudia, fato comum a diversos poetas e escritores do romantismo brasileiro, e verificável até mesmo em outros momentos da obra de Gonçalves Dias. Publicadas juntamente com o volume dos Segundos Cantos (1848), as Sextilhas de Frei Antão, narrativa em versos constituída de cinco poemas, recupera elementos do medievo português, adotando formas e um estilo arcaico de escrita. Gonçalves Dias atribuiu, por ocasião da primeira edição dos Segundos Cantos, a autoria das sextilhas a um frade de São Domingo, que supostamente teria vivido e escrito os versos na primeira metade do século XVII. Esta comunicação pretende apresentar a narrativa em versos das Sextilhas, tentando, ao considerar outros aspectos da obra de Gonçalves Dias, reconhecê-la como índice da consciência do poeta, que segundo procuraremos demonstrar, concebia o povo, a nação, e por conseqüência a literatura brasileira como produto da síntese de raças e de culturas, reconhecendo assim no homem brasileiro e americano uma identidade miscigenada e plural.

PALAVRAS- CHAVE: Gonçalves Dias; Identidade Nacional; Americanidade.

Introdução

Como fugir do clichê, quando a matéria sobre a qual se falará já está tão impregnada

de pré-juízos na alma e na mentalidade de um povo. Como sequer introduzir questões sobre a

obra de Gonçalves Dias (1823-1864), sem ser pego pelas armadilhas de valores e juízos

carcomidos que devido ao uso excessivo e reiterado através dos tempos nada mais dizem. Fato

é que a figura de Gonçalves Dias dispensa apresentações. Se, contudo, me for permitido

construir uma aparente contradição, sem medo de me equivocar, ouso afirmar que Gonçalves

Dias é, ao mesmo tempo, o mais célebre e o menos conhecido dos poetas brasileiros. Alguns o

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consideram o pai da literatura nacional. Para muitos é o maior poeta do Brasil. Sua obra desde

seu surgimento foi recebida com grande entusiasmo pela crítica e logo ganhou o aval do povo. A

despeito, contudo, da popularidade de sua obra, e longe, do que possa parecer, muitos são os

aspectos ignorados de seu pensamento e que só recentemente começaram a ser estudados,

como é o caso do poema em prosa, Meditação que mereceu a atenção do professor Wilton José

Marques em seu livro Gonçalves Dias: o poeta na contramão (Literatura e Escravidão no

Romantismo Brasileiro).

Vítima de sua própria popularidade, Gonçalves Dias, dono de uma extensa produção

poética e de considerável produção intelectual e científica, é conhecido por muitos apenas pelo

aspecto indigenista de sua obra. Sofrendo pelo conhecimento limitado de sua obra, sérias

mutilações e limitações.

A identidade nacional estaria representada na obra de Gonçalves Dias, apenas pela

utilização do indígena como matéria poética? Seria a nacionalidade o único aspecto a ser

depreendido da poética de Gonçalves Dias, ou pode-se encontrar nela elementos de expressão

de um sentimento de americanidade latente? O processo programático romântico de

nacionalização da literatura brasileira, do qual Gonçalves Dias participou e contribuiu com sua

obra, está circunscrito as fronteiras nacionais ou é possível falar já neste momento de diluição de

fronteiras, onde América e Brasil figuram como símiles que se confundem? Talvez, seja

equivocado falar em diluição de fronteiras, quando a própria idéia de nação ainda estava em vias

de construção. Se, todavia, por um lado, o horizonte histórico nega a idéia de diluição de

fronteiras; por outro, ele corrobora a idéia de fronteiras flexíveis que não inviabilizam, do ponto

de vista lingüístico e ideológico a permutação de significados dos signos “América” e “Brasil”.

Ao lado do tão ignorado Meditação poder-se-ia ajuntar ao conjunto das facetas

desconhecidas da obra gonçalvina, sua obra dramática ou ainda o longo poema narrativo,

intitulado Sextilhas de Frei Antão, que bem pouca atenção recebeu da crítica, no sentido de

acomodá-lo dentro da esfera de construção da identidade nacional que muito norteou o trabalho

dos românticos brasileiros. As Sextilhas de Frei Antão, publicadas juntamente com o volume dos

Segundos Cantos (1848) é uma longa narrativa em versos constituída de cinco poemas, que

recupera elementos do medievo português, adotando formas e um estilo arcaico de escrita.

Gonçalves Dias atribuiu, por ocasião da primeira edição dos Segundos Cantos, a autoria das

sextilhas a um frade de São Domingo, que supostamente teria vivido e escrito os versos na

primeira metade do século XVII.

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Ignorar algumas obras de Gonçalves Dias é negar ao poeta romântico a unidade de

pensamento acerca da identidade nacional, que sempre norteou sua produção poética e

intelectual. Ao nos debruçarmos sobre as Sextilhas de Frei Antão, inserindo-as no contexto

romântico de construção de identidade literária brasileira estaremos acima de tudo, refletindo

sobre a concepção pessoal e a maneira particular com que Gonçalves Dias tratou a questão da

construção identitária do homem brasileiro.

1. Identidade nacional e lusofobia

É durante o período Romântico que se processa uma guinada de pensamento na

crítica literária nacional, onde identificamos como elementos norteadores da crítica a idéia de

construção de nacionalidade e o desenvolvimento do conceito de “cor local”. Ao investigar a

crítica do período, em sua Obra A Crítica Literária no Brasil, Wilson Martins além de explicitar o

processo de seleção e composição das coletâneas tendo como requisito para a inserção do

poeta o caráter nacional brasileiro de sua poesia, ainda reconstrói o contexto de mudanças e

efervescências no pensamento nacional.

Assim, o Romantismo de escola já não achava suficientemente românticas as heroínas idealizada do Arcadismo, assim como a violenta colisão entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar a propósito do mito indianista marcaria entre nós a avançada definitiva da nova literatura ( e, por conseqüência, das novas concepções crítica). (MARTINS, 2002, p. 117)

O Ensaio de Machado de Assis, intitulado – Instinto de Nacionalidade há muito se

tornou um texto canônico no estudo de literatura brasileira. Nele Machado discute diversos dos

principais tópicos que dominariam muitas das investigações acerca da nacionalidade da

literatura brasileira, tais como “cor local”, “localismo”, “cosmopolitismo”. Machado questiona o

valor da “cor local” como critério avaliativo. Uma obra seria nacional apenas se se constituísse

pela palheta das cores locais? Ao questionar-se a esse respeito utiliza justamente a figura de

Gonçalves Dias. Afina de conta, a nacionalidade de Gonçalves Dias reside apenas no elemento

indiano de seus poemas. Se fosse de Gonçalves Dias extirpada esta faceta de sua obra,

negaríamos a ele o valor nacional que possui? Machado vai mais além, e questiona-se se ao

classificar a Gonçalves Dias como grande poeta nacional, não estaríamos negando-lhe a

universalidade de sua obra? Pois, para Machado até o mais indianista, nacional e americano dos

poemas de Gonçalves Dias está carregado de valores universalista. Em se tratando, contudo do

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poema As sextilhas de Frei Antão, Machado é bastante categórico em descartá-la da literatura

brasileira. Atribuindo-a, pelo tema e estrutura que apresenta a literatura portuguesa.

Gonçalves Dias por exemplo, com poesias próprias, seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. (ASSIS, 1994, p. XX)

Se por um lado, Machado é bastante sagaz nos questionamentos acerca da

circunscrição da identidade nacional atrelada único e exclusivamente a idéia de “cor local”; por

outro lado, sentencia sem maiores ponderações as Sextilhas, ao degredo, ao exílio, ou a

expatriação. Haveria, no entanto, a possibilidade, de chegar a outro veredicto, diferentemente do

sentenciado por Machado? Ainda que incipiente, a crítica parece apontar para uma resposta

afirmativa. E ao longo das páginas seguintes, procuraremos demonstrar a validade destes

julgamentos.

Junto às discussões acerca da identidade nacional é necessário ter em mente o

sentimento de lusofobia que reinava no período. Recém libertado do julgo colonial a

Independência imprimira no espírito do povo o sentimento de dano sofrido, que deu origem a

atitude de repúdio para com o europeu de modo geral; e em particular, para com o português.

Lusofobia e Identidade Nacional compõem o quadro espiritual do brasileiro do período

romântico. Quadro espiritual esse que nos ajuda a compor o contexto de rejeição que pode ter

dado origem ao esquecimento de uma obra tão bem construída como as Sextilhas de Frei Antão.

2. As sextilhas de Frei Antão

A narrativa das Sextilhas de Frei Antão é formada por cinco longos poemas,

organizados na seguinte ordem: “Loa da Princesa Santa”, “Gulnaré e Mustaphá”, “Lenda de São

Gonçalo”, “Soláo do Senhor Rey Dom João Segundo” e “Soláo de Gonçalo Hermiguez”. O

número de sextilhas varia em cada um dos poemas. As 500 estrofes são constituídas, cada uma

delas, como o titulo aponta, por seis versos perfazendo um total de 3000 versos.

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POEMA

ESTROFES (SEXTILHAS)

VERSOS

Loa da Princesa Santa

83

498

Gulnaré e Mustaphá

160

960

Lenda de São Gonçalo

95

570

Solau do Senhor Rey Dom João Segundo

66

396

Solau de Gonçalo Hermiguez

96

576

Total

500

3000

As sextilhas são heptassilábicas de rimas simples e ritmo variado que obedecem ao

esquema a / b / c / b / d / b.

Quando faz publicar pela primeira vez em 1848 as Sextilhas de Frei Antão, Gonçalves

Dias afirmava, no prefácio dos Segundos Cantos, ter tido o impulso de publicá-las com o

pseudônimo do próprio Frei Antão de Santa Maria de Neiva, um frade que teria vivido em São

Domingo. Intuito que não chegou a concluir, mas que conservou o título, já que é a própria figura

do autor narrador (Frei Antão) que dá unidade narrativa ao conjunto das Sextilhas. Ainda que

não seja possível afirmar que haja nas Sextilhas uma narrativa suficientemente acabada, a figura

de Frei Antão, narrador, e suposto autor das Sextilhas, além de outras figuras como é o caso de

Dona Joana, a Princesa Santa do título do primeiro poema, a ainda a recorrência a temas e

situações que são retomadas em mais de um poema são elementos suficientes, para conferir

uma unidade.

A “Loa da Princesa Santa” instaura já de início o tom e a atmosfera comum a todos os

poemas. Diversas são as acepções para o conceito de “loa”, que pode significar tanto um

prólogo de uma composição dramática, como um discurso elogioso em que se enaltece a figura

de alguém, ou ainda um cântico de louvor as virtudes de um santo ou uma virgem, uma toada de

tom melancólico, ou mesmo mentira e fanfarronice. Gonçalves Dias, pode de fato ter pensado

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em apenas uma dessas acepções, mas o fato é que a própria estrutura, a matéria narrada nesta

primeira parte, em que enaltece a figura de Dona Joana, ou mesmo o contexto de criação do

poema abre interpretações para todas essas acepções.

Bom tempo foi o d’outrora Quando o reino era cristão, Quando nas guerras de mouros Era o rei nosso pendão, Quando as donas consumiam Seus teres em devação

Dava o rei uma batalha, Deus lhe acudia do céu; Quantas terras que ganhava, Dava o Senhor que lhas deu, E só em fazer mosteiros Gastava muito do seu.1

O conteúdo da narrativa está inteiramente marcado pelo tom saudosista, não somente

pela escolha de Gonçalves Dias que retoma o século XVII como matéria poética, mas também,

no próprio discurso do Frei Antão que remonta um passado ainda mais remoto que o momento

da aparente escritura; jogo de passados que se sobrepõem e acabam por ressaltar na

configuração temporal da narrativa o elemento saudosista.

Outro elemento de destaque na composição é a influência do discurso bíblico. Fato

que não surpreende, Visto que a poesia de Gonçalves Dias sofre está intimamente marcada pelo

discurso religioso. A poética de Gonçalves Dias seja ela de manifestação épica, dramática ou

lírica; seja ela, de configuração americana, amorosa ou elegíaca, exala toda ela, uma aura

religiosa de viés católico cristão. Todavia, além do tom religioso próprio do discurso gonçalvino,

nota-se nas Sextilhas um uso excessivo de citações e reminiscências a personagens e

passagens da Bíblia. Elemento que vem ressaltar o caráter verossímil da narrativa, visto que ela

tem como narrador a figura de um frade.

Vieram aqueles feios Netos d’Agar, inda mal! Traçando vastas roupagens À maneira Oriental;

1 Todas as citações das Sextilhas de Frei Antão, com exceção àquelas que fazem parte do poema “A lenda de São Gonçalo”, foram retiradas da edição das Obras Completas, da Editora Nova Aguilar. Assim procedemos por preferir fazer uso de uma edição que passou pelo processo de atualização ortográfica. Em relação à “A lenda de São Gonçalo”, infelizmente não foi possível, pelo fato de que, por razões que desconhecemos, esse poema não figura na edição da Nova Aguilar. Para as citações desse poema nos utilizamos da primeira edição de 1848, e, portanto, sem atualizações ortográficas.

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Larga faixa na cintura, Na faixa largo punhal

-----------

Lançado no covil de feras Foi o santo Daniel, Fui eu no covil lançado Daquela gente infiel; Era ele esperto em tais lutas, Eu em tais lutas novel.

------------

Naquele ensejo apertado De Santo ardil me vali; Lembrou-me o exemplo sagrado Da forte hebréia Judit! Ser isso influxo divino Sabendo fiquei dali.

No primeiro poema, “Loa da Princesa Santa”, Frei Antão após rápida apresentação de

si, passa a narrar à festa de chagada da comitiva de Afonso Quinto, que em regresso de suas

campanhas na África, trazia como escravos um turba de mouros. Chama a atenção do frade as

belezas de uma jovem e específica mourisca, por quem devotará uma paixão, que confessa

como pecado no segundo poema “Gulnaré e Mustaphá”. Apesar do longo preâmbulo, a maior

parte desta loa dedica-se ao enaltecimento da figura de Dona Joana, suas belezas e suas obras

de devoção e grandiosidade de espírito.

Em “Gulnaré e Mustaphá” dois são os núcleos narrativos, que se sobrepõem. O

primeiro centra-se na figura do próprio frei Antão que retomando a figura daquela moça escrava

que a princípio vira chegar à Portugal junto com a comitiva de Afonso Quinto, confessa-se

apaixonado por ela. Neste momento, o frade carcomido por um sentimento que pelo hábito e

pelo voto não deveria sentir, descreve o sofrimento de uma mente conturbada, pelo crime,

momento que instaura na narrativa ares de confessionário, em que o pecador, após a confissão

e a penitência, se vê expurgado de seus pecados e crimes. O segundo, ainda que tenha uma

importância significativa, funciona na trama como matéria e de intensificação dramática, visto

que ao centrar-se na relação amorosa de Mustaphá e Gulnaré, esta última, a moça por quem o

frei se confessa apaixonado, acaba por configurar uma trama imbricada e de difícil resolução.

Como já fiz penitência, Ora farei confissão; Tal será, qual foi o escand’lo

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De que fui ocasião: Não me tomem por modelo, Mas tomem de mi lição.

Não é pêra honra minha, Mas pela honra dos céus, Que eu direi publicamente Os feios pecados meus; Toda a vergonha foi minha, Toda a honra cabe a Deus.

A perspectiva saudosista a todo tempo é recuperada pelo uso constante de um verso

que por diversas vezes se repete “Bons tempos foi o d’outrora”. E é nessa perspectiva de

retomada que ele inicia a terceira parte das Sextilhas. Em “A Lenda de São Gonçalo” Frei Antão

passa a narrar o encontro místico de São Gonçalo com a Voz de Deus, a posterior peregrinação

por catorze anos, e os acontecimentos que se processaram no momento do seu regresso ao lar.

Em perspectiva comparativa, contrapõe a abnegação com que São Gonçalo levou a vida e a

degeneração dos homens de seu tempo. Encerrando o poema como um momento de exortação

a virtude e ao caminho em retidão.

Bom tempo foy o d’outrora! Não lhe quero outra resão: Criava a terra gigante, Havia Sanctos então, Havia paz e liança Nous reys do reyno christão

------------

O homem que for prudente Só pelos frades se reja; Creia no Papa e nas Bulhas, E na sancta Madre Igreja: O mais he coiza de fumo, Não sei de quem valor seja. Que reze o sancto rozairo, Dou de conselho tambem; Que assi viverá na glória, E vive-se lá mui bem, Cantando hozanans eternos Por tempos sem fim: amen.

Os dois últimos poemas, “Solau do Senhor Rei Dom João” e “Solau de Gonçalo

Hermigues, se presta cada um deles ao enaltecimentos dos feitos dos dois homenageados dos

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títulos. No primeiro deles destaca as virtudes e benevolência, e no segundo, a honra e

hombridez de fidalgo de cavaleiro.

A crítica literária brasileira tem se esquivado, intencionalmente ou não, a analises mais

aprofundadas das Sextilhas de Frei Antão. Fato compreensivo, quando se pensa na aparente

contradição que leituras enviesadas desta narrativa podem imprimir no pensamento de

Gonçalves Dias e no ideário romântico de construção da identidade literária brasileira. Exceção a

esse esquema é a obra de Lucia Miguel Pereira, A vida de Gonçalves Dias, que não somente

não fugiu à leitura das Sextilhas, como presta importante trabalho de esclarecimento ao fazer,

como também é nosso objetivo, uma leitura integrativa, em que antes que apontar incoerências

busque acomodar as Sextilhas no contexto geral da obra gonçalvina.

No Prólogo ao volume dos Segundos Cantos, Gonçalves Dias qualifica as Sextilhas de

“ensaio philológico”, dedicando especial espaço nele, a explicação das gêneses de tão aparente

incoerente composição: “são sextilhas, em que adoptei por meos a frase e o pensamento antigo,

procurando tornar o estylo liso e facil que não desagradasse aos ouvidos de hoje”. (DIAS, 1848,

p. V-VI) Gonçalves Dias explicita que o objetivo de sua composição era estreitar, se possível

fosse os laços da literatura Brasileira e a Portuguesa.

Gonçalves Dias, ainda alude a possíveis desgostos, por parte do público, e

incompreensões, por parte da crítica:

Sei que ao maior numero dos meus leitores não agradará esta segunda parte [Sextilhas de Frei Antão]: era essa a minha convicção, então quando escrevia, e agora que a vou publicar. Escrevi-a comtudo, porque acceito a inspiração quando e dode quer que Ella me venha; - da imaginação ou da reflexão, - da natureza ou do estudo, - de um argueiro ou de uma chronica é-me indifferente: publico-as, se me agradão, rasgo-as, se me desprazem. (DIAS, 1848, p. VI)

À aqueles críticos porem que se comprazem com o nascimento de um auctor, que o seguem passo à passo durante a sua vida litteraria – animando-o pelo que nelle vêem de bom, reprovando o que lhes parece máo, [...] – para estes, digo, todo o volume é significativo – toda a obra caracteristica – todo o trabalho proveitoso. (DIAS, 1848, p. VI)

Da continuação da defesa das Sextilhas, é possível inferir das palavras de Gonçalves

Dias a idéia de que, ao voltar-se para a literatura lusitana, contrariando preceitos programáticos

da estética romântica brasileira, que pregava o distanciamento e a negação dos valores e dos

modos de pensar da metrópole, antes que negar o ideário programático de constituição da

identidade literária nacional, as Sextilhas representam aprofundamento de pensamento, na

medida em que dá um passo além da lusofobia ingênua romântica, e reconhece na identidade

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nacional uma formação miscigenada, na qual o português representante um importante elemento

constitutivo.

A obra supracitada de Lucia Miguel Pereira representa uma importante página da

Fortuna Crítica de Gonaçlves Dias. Nela, a autora introduz as discussões em torno das Sextilhas,

recuperando um outro importante estudioso do poeta, Antônio Henriques Leal, biógrafo, amigo

pessoal do poeta, e o organizador de sua obra póstuma.

Segundo Leal, ao ser recusada pelo Conservatório Dramático a Beatriz Cenci, descobriram-lhe os censores galicismos e erros de estilo; espicaçado, querendo provar que o conhecia a língua, ter-se-ia o poeta afundado nessa reconstituição do português arcaico, e em quinze dias, levado a cabo a empresa. (PEREIRA, 1943, p.116)

Ainda que certa verdade possa ser reconhecida, no comentário de Antonio Henriques

Leal sobre os impulsos criativos que levaram Gonçalves Dias a criação das Sextilhas, já que no

prólogo dos Segundos Cantos, o próprio Gonçalves Dias, como vimos acima, nomeia-as de

“ensaio philológico”. Certo é que não poderemos encará-las meramente como um produto de

considerações filológicas. É a própria Lucia Miguel Pereira quem desarticula a anedota de Leal,

ao rastrear na correspondência do Poeta o processo de elaboração dos versos das Sextilhas,

que teria lhe ocupado pelo menos sete meses de trabalho. Lucia Miguel aponta ainda, elementos

estruturais e temáticos das Sextilhas que as aproximam do restante da produção poética de

Gonçalves Dias. Como por exemplo, o medievalismo coimbrão e as influências da obra de

Garret.

O teor aparentemente paradoxal da inserção das Sextilhas de Frei Antão é abordado

por Lúcia Miguel Pereira, que não deixa de considerá-las, como faceta particular do nacionalismo

gonçalvino. “Afinal de contas, quer os amasse quer não, os portugueses eram parte importante

na formação brasileira. Exaltá-los era exaltar o Brasil”. (PEREIRA, 1943, p. 118). Para Lúcia

Miguel Pereira as Sextilhas de Frei Antão, ultrapassam as esferas do mero ensaio filológico, se

“entrosando” completamente a obra de Gonçalves Dias, que sem estas, estaria incompleta.

Conclusão: singularidades e pluralidades no trato da identidade nacional

As particularidades que singularizam a Gonçalves Dias no trato com a Nacionalidade a

muito vêm sendo apontadas pela crítica. Para Hélio Lopes, a Gonçalves Dias, cabe o papel de

primeira grande voz da nacionalidade brasileira. Segundo Hélio Lopes, as belezas da nação

sempre foram cantadas desde os poetas coloniais, a novidade trazida pela poesia de Gonçalves

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Dias, é o caráter de lar que este imprime na terra que canta. É a partir de Gonçalves Dias que a

relação de pertença entre homem e terra é invertida. Antes deles, era a terra que pertencia ao

homem, depois é o homem que pertence a terra. Já em 1860, Macedo Soares, crítico

contemporâneo do poeta, apontava as singularidades do elemento indianista da poética de

Gonçalves Dias, que para o crítico figurava como uma espécie de recordação e memória de uma

época, na qual o brasileiro não viveu nem dela participou, e dela sabe, apenas por ter ouvido

falar.

No capítulo “Gonçalves Dias e o Indianismo”, de A Literatura no Brasil, organizado por

Afrânio Coutinho, Cassiano Ricardo aborda a obra de Gonçalves Dias, levantando nela aspectos

de inovações e encarando-a, em síntese, como uma obra moderna. Cassiano Ricardo

apresentando a pluralidade de expressão na obra poética de Gonçalves Dias destaca nela

elementos líricos, épicos e dramáticos. O poema em prosa Meditação é considerado por ele

como o primeiro passo dado pela poética nacional em vias de desenvolvimento do verso livre. Já

sobre as Sextilhas de Frei Antão, em síntese, as qualifica como produto do mais alto labor

poético e de linguagem altamente sugestiva.

Ao retomar a sentença de Machado, que categoricamente excluiu as Sextilhas de Frei

Antão da Literatura Brasileira, Cassiano Ricardo em conclusão oposta a do escritor, afirma que

talvez seja justamente nelas que Gonçalves Dias revela sua face mais brasileira.Cassiano

Ricardo propõe ainda uma leitura das Sextilhas, tendo como horizontes culturais, o trovadorismo

sertanejo nordestino e a deglutição dos arcaísmos medievais portugueses pelo linguajar inculto

do Brasil. Retirando das Sextilhas o teor de obra reacionária do movimento romântico.

Necessário seria um trabalho mais criterioso para tirar quaisquer conclusões mais

elaboradas sobre a gênese e a constituição de uma obra tão extensa quanto as Sextilhas de Frei

Antão. Todavia, ainda que não possuamos argumentos bem articulados e bem construídos, seja

necessário agora, um momento de ousadia, na afirmação final. Desarticulando as fronteiras

rígidas que durante tanto tempo têm mantido a nacionalidade romântica, e em particular aquela

desenvolvida por Gonçalves Dias presa a esfera indianista, damos por encerrado nosso trabalho,

na medida em que com ele, abrimos um espaço de desarticulação da idéia de nacionalidade da

literatura, para discuti-la, para além das fronteiras do localismo que ainda se sustenta.

Encerrando sem dar por finalizadas as discussões aqui propostas, que fique dessa conversa, a

proposta e o esboço do problema para uma resolução futura. E que fique aqui, o registro da

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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

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tentativa de releitura, re-significação, e re-territorialização da idéia cristalizada de identidade

nacional ligada ao tema do índio, e circunscrito dentro do universo da idéia de “cor local”.

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