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1 X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE, DE EÇA DE QUEIRÓS E O ENIGMA DAS CARTAS INÉDITAS DE EÇA DE QUEIRÓS, DE JOSÉ ANTONIO MARCOS: UMA LEITURA INTERTEXTUAL Inês Cardin Bressan (Doutoranda – UNESP/Assis/SP) RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise intertextual entre as obras A correspondência de Fradique, de Eça de Queirós (1952) e O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós (1996), de José Antonio Marcos. Um levantamento preliminar demonstra que há pouca fortuna crítica referente à terceira fase de Eça, mais especificamente à obra supracitada. Há que se considerar também, que a obra de José Antonio Marcos tem a intertextualidade como foco principal, e a busca destes intertextos justificam e motivam uma pesquisa neste sentido. De caráter bibliográfico, e fundamentado em Bakhtin e Genette, este estudo abrirá espaço para alguns debates, enriquecerá o percurso dos atuais pesquisadores, servindo-lhes de motivação para novos caminhos, e também colaborará para o conhecimento do universo da personagem Fradique Mendes. PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; Fradique Mendes; intertextualidade; José Antonio Marcos. 1. Introdução A busca incessante pelo conhecimento faz o homem atingir objetivos jamais imaginados. Porém, todo conhecimento novo parte de um anterior. Com a literatura não é diferente. Uma escola literária ou um texto literário não desaparece se outro o suplanta. O que ocorre é um processo, pelo qual, os textos e as obras se transformam. A reescritura da palavra dos outros é um dos modos de se caminhar neste universo que é a produção de textos literários. Neste segmento, alguns estudiosos debruçaram-se sobre a intertextualidade, ora convergindo para as mesmas ideias, ora opondo-se a elas. Julia Kristeva (1974, p. 64) reportando-se a Bakhtin, cita a teoria literária de que “todo o texto se constrói como um mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro texto”. Tal pressuposto sugere um olhar reflexivo sobre as referências textuais presentes nas produções literárias. Em razão disto, neste artigo pretende-se estabelecer uma análise

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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2179-4871

www.assis.unesp.br/sel

[email protected]

A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE, DE EÇA DE QUEIRÓS E O ENIGMA DAS CARTAS

INÉDITAS DE EÇA DE QUEIRÓS, DE JOSÉ ANTONIO MARCOS: UMA LEITURA

INTERTEXTUAL

Inês Cardin Bressan (Doutoranda – UNESP/Assis/SP)

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise intertextual entre as obras A correspondência de Fradique, de Eça de Queirós (1952) e O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós (1996), de José Antonio Marcos. Um levantamento preliminar demonstra que há pouca fortuna crítica referente à terceira fase de Eça, mais especificamente à obra supracitada. Há que se considerar também, que a obra de José Antonio Marcos tem a intertextualidade como foco principal, e a busca destes intertextos justificam e motivam uma pesquisa neste sentido. De caráter bibliográfico, e fundamentado em Bakhtin e Genette, este estudo abrirá espaço para alguns debates, enriquecerá o percurso dos atuais pesquisadores, servindo-lhes de motivação para novos caminhos, e também colaborará para o conhecimento do universo da personagem Fradique Mendes. PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; Fradique Mendes; intertextualidade; José Antonio Marcos.

1. Introdução

A busca incessante pelo conhecimento faz o homem atingir objetivos jamais

imaginados. Porém, todo conhecimento novo parte de um anterior. Com a literatura não é

diferente. Uma escola literária ou um texto literário não desaparece se outro o suplanta. O que

ocorre é um processo, pelo qual, os textos e as obras se transformam. A reescritura da palavra

dos outros é um dos modos de se caminhar neste universo que é a produção de textos literários.

Neste segmento, alguns estudiosos debruçaram-se sobre a intertextualidade, ora convergindo

para as mesmas ideias, ora opondo-se a elas.

Julia Kristeva (1974, p. 64) reportando-se a Bakhtin, cita a teoria literária de que “todo o

texto se constrói como um mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um

outro texto”. Tal pressuposto sugere um olhar reflexivo sobre as referências textuais presentes

nas produções literárias. Em razão disto, neste artigo pretende-se estabelecer uma análise

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intertextual entre as obras A correspondência de Fradique Mendes (1952), de Eça de Queirós,

escritor do Realismo-Naturalismo português, e O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós

(1996), de José Antonio Marcos, livro cujo foco principal é a intertextualidade.

Embora A correspondência de Fradique Mendes tenha sido retomada em publicações

literárias nos títulos contemporâneos, um levantamento preliminar demonstra que há poucos

estudos críticos referentes à terceira fase de Eça, justificando assim a escolha e a motivação

pelo tema.

2. BAKHTIN: dialogismo

No final dos anos de 1920, Bakhtin (1988) identifica, sobretudo no romance, a

modalidade expressiva da dialogia. Segundo ele, no texto dialógico estão presentes vozes de

outros e a riqueza do texto está justamente no número delas contidas nele. Este diálogo entre os

diferentes pontos de vista tem como efeito a polifonia. Para ele:

Qualquer conversa é repleta de transmissões e interpretações das palavras dos outros. A todo instante se encontra nas conversas ‘uma citação’ ou ‘uma referência’ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que ‘se diz’ ou àquilo que ‘todos dizem’, às palavras de um interlocutor, às nossas próprias palavras anteriormente ditas, a um jornal, a um decreto, a um documento, a um livro, etc. (BAKHTIN, 1988, p.140).

O autor afirma ainda que tudo o que se é pronunciado no cotidiano provém de outros

discursos. A discussão de uma obra literária pelos críticos, ou por quaisquer outros grupos

acadêmicos se efetiva sobre a relação, a interpretação, a apreciação do que está escrito nela, a

maneira como foi criada, a sua estrutura formal, a intenção do autor, enfim, toda a discussão terá

como foco um texto já produzido. Se publicada, esta reflexão gerará outras mais, e neste

processo, leva-se a efeito a teoria bakhtiniana de que todo texto se faz de outros já elaborados.

A correspondência de Fradique Mendes (1900) de Eça de Queirós é um exemplo de obra, que

por muitas vezes foi retomada por outros autores na contemporaneidade. Neste trabalho, no

entanto, será utilizada a teoria de Gérard Genette sobre as relações transtextuais entre as

publicações literárias.

Na visão de Genette (2006, p. 8), há cinco tipos de relações transtextuais. A primeira é

a intertextualidade, “que é a relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é,

essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em outro” através

da citação, com aspas, ou sem referência precisa; o plágio, um empréstimo não declarado,

literal; a alusão, (GENETTE, 2006, p. 8) “um enunciado cuja compreensão supõe a percepção de

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uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete” e que

seriam impossíveis de outro modo. O segundo tipo é a paratextualidade, que possui uma relação

menos explícita com a obra literária. São exemplos de paratextualidade “títulos, subtítulos,

intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim

de texto, epígrafes, ilustrações, errata, orelha, capa e tantos outros tipos de sinais acessórios

[...]” (GENETTE, 2006, p. 9).

Ainda segundo o mesmo autor, o terceiro tipo é a metatextualidade, que é “a relação,

chamada mais correntemente de ‘comentário’, que une um texto a outro texto do qual ele fala,

sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo. É uma

relação crítica por excelência (GENETTE, 2006, p. 11). O quarto tipo é a arquitextualidade, que

para Genette (1996), é o mais abstrato e o mais implícito. “Trata-se aqui de uma relação

completamente silenciosa, que, no máximo, articula apenas uma menção paratextual”

(GENETTE, 2006, p. 11). E, finalmente, o quinto tipo, que é a hipertextualidade, que é “toda

relação que une um texto B (que chamarei de hipertexto) a um texto anterior A (que,

naturalmente, chamarei de hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do

comentário” (GENETTE, 2006, p. 12). É o texto derivado de um outro preexistente. Genette

(2006, p.16) chama de “hipertexto qualquer texto derivado de um texto anterior, por

transformação simples ou por transformação indireta”.

3. A presença de Fradique Mendes em diferentes épocas

Tanto ontem como hoje, cem anos após a morte de Eça de Queirós, ele é lido, relido e

estudado por muitos brasileiros e portugueses. Tamanha permanência na memória cultural é

sinal irrefutável de seu valor artístico literário. Para Isabel Pires de Lima (2000):

A actualidade e a perenidade de um escritor decorrem, sobretudo da capacidade de os seus textos gerarem sempre novos leitores, produzirem ao longo do tempo novas interpretações, convidarem à constante revisitação. Quando essa revisitação se manifesta através de incorporação do texto ou do universo imaginário do autor por parte de um par, quando uma obra do autor invade um século depois a de um outro criador, quando um jogo intertextual deste tipo se estabelece não apenas como um outro criador, mas com uma série de outros criadores de diversas épocas e até de diversas nacionalidades, como é o caso de Eça de Queirós, então estamos perante um escritor que, decididamente ultrapassou o tempo e é ele mesmo disseminador de arte (LIMA, 2000, p. 69).

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Eça tem sido constantemente retomado por autores contemporâneos, é o que se

confirma em Lima (2000):

Restringindo-me ao campo restrito da Literatura Portuguesa e centrando-me apenas na literatura das três últimas décadas, são muito diferentes os escritores que de maneira diversa, e com eficácia revisitaram a obra de Eça de Queirós em processo de reficcionalização intertextual. Pode-se referir desde o brasileiro Gilberto Freire, em O outro amor do Dr. Paulo (1977), ao angolano José Eduardo Agualusa em Nação Crioula (1997) passando pelos portugueses Mário Cláudio, em As Batalhas do Caia (1995), José António Marcos em O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós (1996), Norberto Ávila, em No mais profundo das águas (1998), Fernando Venâncio em Os esquemas de Fradique (1999), Maria Velho da Costa, em Madame (1999), Nuno Júdice , em “Agonia” (A árvore dos milagres, 2000), para além dos autores de inúmeras adaptações teatrais e cinematográficas a que as obras de Eça de Queirós tem dado origem (LIMA, 2000, p. 70).

Porém, o que se faz objeto deste artigo é a presença de intertextos queirosianos na

obra O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, de José António Marcos.

3. 1. A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós

A correspondência de Fradique Mendes trata de uma obra escrita por Eça de Queirós,

na sua terceira fase: 1889-1890. Nela, o autor cria um personagem com nuanças de perfeição

para oferecer ao leitor todas as possibilidades de idealização.

O livro é dividido em duas partes: na primeira, “Memórias e Notas”, há a apresentação

da personagem pelo narrador homodiegético que não menciona, em momento algum, dados

sobre sua identidade. Tal apresentação funciona como uma introdução às “Cartas”, que foram o

que restou de uma personagem viajada e sofisticada, apresentada ao leitor como se realmente

tivesse existido. Eça de Queirós, entre o real e o ficcional, utiliza-se na diegese, de personagens

autênticas, de pessoas que realmente existiram e que são apresentadas com os seus reais

nomes. J. Teixeira de Azevedo (Batalha Reis), Antero de Quental, Oliveira Martins e Ramalho

Ortigão são usados no texto como se tivessem convivido com a personagem Fradique Mendes,

o que dá um tom de veracidade à obra, levando o leitor a crer que Fradique é real.

No capítulo primeiro e nos seguintes, há a apresentação do personagem, Fradique

Mendes que é uma pessoa bem sucedida, sofisticada e bem relacionada, também são

mostradas as suas características e seus relacionamentos, crendices e muitos outros dados.

No capítulo quatro, há a menção de Notícias e Comentários que o narrador recebe de

Fradique. Eles trocam cartas, e a idealização da personagem encontra o seu ápice. Há ainda a

menção de uma mulher, possivelmente Clara? Objeto de amor das correspondências.

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O capítulo cinco, ao ser comparado com os outros, é extremamente longo, e nele

ocorrem vários momentos, viagens, opiniões e política. No capítulo seis, há menção às mulheres.

A rotina do personagem principal remete à Cidade e as Serras, pois é parecida com a rotina de

Jacinto, protagonista da narrativa. Fradique morre. Por conta da troca de um casaco, e por pura

teimosia, não admite ter que usar uma peça de outra pessoa, sai no frio desagasalhado e contrai

uma gripe. Morre sutilmente, a ponto de Smith (o mordomo) pensá-lo dormindo. No funeral, há

presença de altas personalidades e seu jazigo ficou próximo ao de Balzac. Nos capítulos sete e

oito, há indicações de que Fradique Mendes tenha deixado alguns manuscritos em uma arca.

Propaga-se um boato de que ele tenha tido um affair, na Rússia, com Madame Lobrinska,

confirmando a tese de que ele esteve em muitos lugares. Em seguida, o narrador mostra seu

propósito de compilar as cartas, o que levou um ano para a realização. Embora seja português,

Fradique Mendes, ainda que ideologicamente perfeito, desejava estar pouco em Portugal.

Na segunda parte do livro, “As Cartas”, são apresentadas as cartas escritas por

Fradique Mendes. Ao todo são nove cartas a senhoras e sete dirigidas aos homens.

Esquematizando, fica desta forma: cartas cujos destinatários são femininos: Madame de Jouarre,

Clara, Madame S.; Cartas cujos destinatários são masculinos: Visconde de A. T, Oliveira Martins,

Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Sr. E. Mollinet, Mr. Bertrand B., Bento de S., Eduardo Prado.

No livro há ainda uma parte chamada “Mais duas cartas de Fradique Mendes”, e os

editores, em “uma observação”, apontam que tiveram conhecimento pelo jornal A Gazeta de

Notícias, de 27 de novembro de 1882, de mais duas cartas de Fradique Mendes a Clara e a

Eduardo Prado. Na de número XVII, ele escreve a Clara que viajará e acredita ser até um

desaparecimento. Então, finaliza seu relacionamento com ela, permeando o texto de linguagem

poética. Na última escrita a Eduardo Prado, ele tece críticas ao Brasil.

3.2 O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, de José Antonio Marcos

O livro em questão trata de uma narrativa com características de romance policial, pois

há um suicídio e um assassinato. O narrador é heterodiegético, ou seja, em terceira pessoa, e

oferece informações sobre o panorama do crime, porém, em um clima morno de mistério,

diferente dos romances policiais. A narrativa inicia-se com o suicídio de um personagem, que era

portador de umas cartas, cuja autoria era atribuída a Eça de Queirós. A viúva recolhe-as e as

entrega ao melhor amigo do marido, acreditando ser esta a melhor opção, visto que para ela não

havia valor nas cartas.

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Dr. Ladeiro, de posse das correspondências, mostra-as a um outro personagem, que

possui autoridade para dizer se elas são autênticas ou não. Ao que ele alega não serem de

autoria de Eça de Queirós. No entanto, o avaliador das cartas não consegue crédito pelo Dr.

Ladeiro. Nesse ínterim, o mesmo doutor pede a mão de Cecília (a viúva do suicida) e marca uma

festa de aniversário para que se reúnam, em uma chácara, da qual ele era dono, a fim de

comemorar os anos idos, anunciar seu noivado e fazerem a leitura das cartas. Na primeira noite,

Dr. Ladeiro é assassinado, e os escritos de Eça também desaparecem e surgem queimados,

destruídos. A polícia encontra o assassino, que era um pretendente de Cecília e amigo próximo

do Dr. Ladeiro. Em suma, as cartas desapareceram e não é esclarecida a autoria autêntica delas.

Cecília ainda encontra mais duas cartas, que estavam com os papéis do falecido marido e as

entrega ao Dr. Pintado. Em número de duas, uma assinada por Eça e a outra por Fradique. Ele

as guarda e resolve não falar delas, pelo menos por enquanto.

O narrador deixa também um Post scriptum, no qual afirma serem as cartas de autoria

de Eça de Queirós, porém a opinião dele, pouco vale, então ficam as coisas como já estavam

anteriormente.

Os intertextos presentes no romance intrigam desde a primeira leitura. Como Eça de

Queirós, José António Marcos também mistura pessoas que existiram realmente aos

personagens ficcionais dando um tom de veracidade à obra.

4. De mãos dadas com Eça de Queirós

O paratexto “Cristo deu-nos o amor, Robespierre a liberdade; Malheiros deu-nos três

pintos; Qual deles deu a verdade?” (MARCOS, 1996, p. 3) que abre o romance de José António

Marcos estabelece uma intertextualidade explícita com Prosas Bárbaras, de Eça de Queirós, no

sentido de que foi justamente para demonstrar o clima lúgubre e macabro que serão

encontrados diante do suicídio do personagem João Abel, o assassinato do Dr. Ladeira e o

desaparecimento das Cartas de Eça de Queirós. Embora em Prosas Bárbaras a temática seja a

presença do macabro, do sinistro, da morte e do satanismo, no livro de O enigma das cartas

Inéditas de Eça de Queirós, essa lugubridade é apontada de forma mais sutil. São poucos os

trechos em que há sua presença:

Procurava e adormecer já sentia o sono aproximar-se quando, ritmados e imperiosos, sentiu na escada passos quase imperceptíveis, inexplicáveis àquela hora. O seu quarto ficava mesmo em frente do último patamar. Olhou o relógio: três e meia da madrugada. Toda a gente dormia – excepto o dr. Ladeiro e a pessoa que subia inexoravelmente as

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escadas. A menos que se tratasse daquele estado intermédio de sonolência em que o sonho se confunde com a realidade, freqüente quando se tomam comprimidos soníferos. Curiosamente veio-lhe à ideia o tremendo Hitchcok e os seus habituais truques cinematográficos de suspense. Mas ali não havia cinema, nem truques, nem sonhos. Era a realidade pura e simples – e isto, pelo que tinha de inexplicável e fantasmagórico, fez-lhe saltar no peito o coração já demasiado acelerado (MARCOS, 1996, p. 134).

Em Prosas Bárbaras (1912), há também a presença constante do destino, é ele quem

rege os personagens, assim como na obra de José António Marcos, porém nela o percurso

desta temática não é tão frequentemente retomado, como é visto em Prosas Bárbaras:

Outro instou para que se forrasse o quarto com as folhas dos compêndios; eu opus-me asperamente a isso, dando as mesmas dolorosas razões que daria um preso, se lhe quisessem forrar as paredes da enxovia com um tecido feito dos seus próprios remorsos! Tirou-se à sorte. Destinou a sorte que se forrassem as paredes com pele humana. Dispersámo-nos, lentos e tristes, para ir assassinar gente!

Reunia-se ali um concílio formidável (QUEIRÓS, 1912, p. 186).

N’O enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós, a responsabilidade ao Destino

pelos acontecimentos é mostrada ao ser atribuído a ela os fatos da vida da personagem viúva,

deixando entrever que ela está fadada a ficar sempre sozinha; o tom místico e supersticioso

evidencia-se:

__ Eu não sou supersticiosa, mas neste caso acredito mesmo no mau-olhado! – disse, por fim, Dona Mercedes. – então a rapariga casa com um rapaz que primeiro endoidece e depois se mata; e quando se prepara para casar outra vez, mata-lhe o futuro marido! E, ainda por cima, quem mata o futuro marido é o melhor amigo da rapariga, o general. Nem uma fita americana, senhor professor! Eu acredito piamente no mau-olhado e a Cecília, coitadita, acredita tanto ou mais que eu. Quando, pouco depois da tragédia, fomos visitá-la e à mãe, eu disse-lhe, para animar, que melhores tempos viriam, que ela era ainda muito nova para refazer sua vida e coisas assim. Ela respondeu, com um sorriso triste, que o Destino não queria vê-la casada e que ela iria fazer a vontade ao Destino. O Destino ou o Demônio, digo eu (MARCOS, 1996, p.188).

Há que se marcar a alusão ao estilo vista em Prosas Bárbaras, quando o comandante

Cerqueira, n’O enigma das Cartas, discute sobre o enterro do João Abel, com um arquiteto,

mostra certo cinismo ao tratar dos protocolos do funeral:

__ E a sua capacidade em se iludirem, em se distraírem, em fugirem à insuportável realidade da morte. Utilizar um caixão bonito, todo coberto de flores e organizar um cortejo com rituais solenes, equivale a deitar fora a dita embalagem vazia, cuidadosamente embrulhada num papel colorido de fantasia, apertado por um laçarote encarnado. Reconheçam que é uma forma grotesca de alguém se desembaraçar do lixo [...] (MARCOS, 1996, p. 186).

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Trata-se aqui de uma relação silenciosa, como apregoa Genette, pois não há nada

expresso claramente, no entanto a temática se aproxima. Assim como em Prosas Bárbaras,

ocorre uma reflexão sobre a morte, na enfermeira e no paciente há um certo respeito quanto ao

passamento dele. Entretanto, além do pouco caso dos quatro homens que riam e bebiam e

cantavam más cantigas, percebe-se na voz do narrador certa carga irônica, pois o corpo tem o

destino dos pobres.

Quando sentiu a enfermeira, voltou-se e disse-lhe, quase a chorar: “Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a mãe-natureza”. Depois curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira, e ficou-se enroscado no chão, frio e inerte. A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da virgem, e estendeu-a sobre a face pálida e triste, transfigurada pela beleza sagrada e espiritual da morte. Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam de farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres (QUEIRÓS, 1912, p. 97).

Logo de início, na obra O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, é marcado o

tom intertextual do livro, pois, ocorre uma intertextualidade explícita, que ao longo da leitura será

frequentemente retomada.

O personagem João Abel, ao optar pelo suicídio, busca antes fazer uma leitura

prazerosa e tem às mãos, um volume d’A correspondência de Fradique Mendes, pois acreditava

ser ela uma leitura ideal para um ritual de despedida, há que se observar também, uma grande

aproximação ao estilo de Eça, na presença de muitos adjetivos:

Levantou-se e foi buscar a Correspondência de Fradique Mendes. Como ritual de despedida não estava mal a leitura de algumas linhas saídas da pena insuperável do Eça de Queirós, o criador daquela espécie de heterônimo tão fascinante. Fradique era, com efeito, o homem mais culto, mais inteligente, mais educado, mais viajado, mais forte, mais elegante, mas bem vestido, mais saudável, mais requintado e mais irreal da criação (MARCOS, 1996, p.10)

N’A correspondência, o estilo de Eça de Queirós perfaz-se no decorrer da narrativa,

que embora sendo cartas, apresentam descrições minuciosas e a presença de adjetivos, tão

peculiar do autor, que pode ser observado:

Depois escurece, já há pirilampos nas sebes. Vénus, pequenina, cintila no alto. A sala, em cima, está cheia de livros, dos livros fechados no tempo dos Crúzios – porque só desde que não pertence a uma ordem espiritual, é que esta casa se espiritualizou. E o dia na quinta finda com uma lenta e quieta palestra sobre idéias e letras, enquanto a guitarra al lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais, e a Lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surge como a escutar, por detrás dos negros montes (QUEIRÓS, 1952, p. 194).

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O narrador imprime sua admiração e seu respeito pelo escritor Eça de Queirós em

quase todos os momentos do livro. Tanto ao apresentar o personagem como um Eçólatra, como

também ao fazer referência ao estilo do autor e pontuar sua fortuna crítica:

Condições estas mais do que propícias para, entre outras coisas, dar largas à antiga obsessão de coleccionar tudo aquilo, que directa ou indirectamente, dissesse respeito ao idolatrado autor de Os Maias, desde as primeiras edições das suas obras, desde as traduções publicadas no estrangeiro até às biografias, ensaios, artigos de jornais desde que tivessem por objecto a vida e a obra de Eça de Queirós (MARCOS, 1996, p. 29).

Além de fazer referências ao estilo de Eça de Queirós, justifica alguns dos defeitos

gráficos, que algumas vezes apresentam nas suas obras, remindo o escritor, alvo de seu

discurso laudatório, de qualquer transgressão ou mácula:

Você sabe como foi implacável a sua luta contra a imperfeição, em que cada período saído da sua pena era trabalhado, torturado, filtrado mil vezes, chegando a transformar num inferno a vida dos pobres tipógrafos, que viam as suas provas sucessivamente inutilizadas [...] Por isso é que, de um modo geral, toda a sua obra póstuma apresenta defeitos notórios, desequilíbrios formais evidentes, ideias e situações meramente esboçadas e até falsificações, pois há especialistas que afirmam terem sido introduzidas, nas obras póstumas do Eça, palavras ou até frases que não foram escritas por ele (MARCOS, 1996, p. 31)

Em seguida, ao descrever um trecho de uma carta que Fradique enviou à Madame

Jouarre, evidencia-se a iminência da tragédia. Há que se considerar, que o personagem quando

da última briga com a esposa Cecília, ela lhe havia declarado tê-lo traído. Ao retomar a carta,

justamente, ele o faz do fragmento em que são citados Petrarca e Laura; Romeu e Julieta. Num

ritual macabro, a morte lhe aguarda após a ingestão dos barbitúricos.

A intertextualidade dá o tom desta obra. É difícil um capítulo em que não haja várias

referências ao escritor Eça de Queirós, porém esta é feita de maneira a edificar o texto primeiro.

Ou como requer Genette (2006), o hipertexto A, A correspondência de Fradique Mendes é

revisitado frequentemente por José António Marcos, o que gerou/brotou o hipotexto B O enigma

das Cartas de Eça de Queirós.

O ponto forte do livro de Marcos, levando em consideração da intertextualidade com as

obras de Eça, é que o romance se pauta em um enigma, que mal chega ao final, com a

incineração das cartas pelo assassino, desperta outra possibilidade de nova escritura de outro

livro, pois restaram duas cartas, que a viúva encontrou nos papéis do falecido: “Iria, pois, guardar

aquelas cartas dactilografadas, pensaria nos problemas que elas suscitavam – mas não falaria a

ninguém pelos tempos mais próximos” (MARCOS, 1996, p.184).

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No decorrer da leitura é possível perceber um tom elogioso ao escritor Eça, retomado a

cada capítulo, e por várias vezes. Em alguns momentos, há também referência ao legado

deixado por Eça de Queirós:

Costumava dizer que era jornalista ‘por desfastio’, pois tinha de sobra com que viver. Grande admirador de Eça de Queirós, sem ser fanático como seu companheiro de mesa, costumava também afirmar, sobretudo nos meios em que tal afirmação provocava escândalo ou irritação, que fora o Eça quem ensinara a escrever, com simplicidade, elegância e propriedade, os milhares de jornalistas, políticos, directores-gerais, diplomatas, advogados, juízes e, enfim, a generalidade dos intelectuais portugueses de todo o século XX (MARCOS, 1996, p. 32).

Desta forma podemos perceber que o narrador não descreve os fatos sem querer

imputar certo juízo de valor aos escritos de Eça de Queirós. Portanto, a principal característica

do romance, centra-se no seu caráter dialógico (comunicação com outros discursos) e

intertextual (referências/alusão a outras obras), pois o tempo todo ele dialoga com outros textos

literários.

O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós não surgiu somente a partir d’A

correspondência de Fradique Mendes, embora abundem referências a ela, no interior do texto. O

que ocorreu foi que, o estilo de Eça de Queirós assim como algumas de suas obras, foram

utilizados como hipotexto e revisitadas para a produção de José António Marcos. Porém, que lhe

seja atribuído o devido valor, pois sua obra além de ser cunhada pela intertextualidade, foi

construída com extremo cuidado de revisitação por tantos intertextos presentes nela.

Referências bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin (Org). Ecos do Brasil: Eça de Queirós Leituras Brasileiras e Portuguesas. Editora SENAC. São Paulo: 2000.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Editora Hucitec. São Paulo: 1988.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4 ed. rev. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006

KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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