prÁticas de leitura e validaÇÃo de objetos...
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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
PRÁTICAS DE LEITURA E VALIDAÇÃO DE OBJETOS CULTURAIS: REPENSANDO AS
FOTONOVELAS
Mariely Grigoletto Tessaroli (Mestranda – U EL)
RESUMO: A construção da representação social na literatura está sujeita aos parâmetros das instiuições julgadoras que têm sido comumente pensadas como avaliadoras das características instrínsecas da obra de arte. São, portanto, os mecanismos de validação de um objeto cultural ou da obra literária plausíveis quando nos deparamos com as práticas de leitura populares que continuam, apesar de toda estigmatização, voltadas ao consumo da ‘anti-literatura’? Os enredos publicados em revistas de grande circulação nacional que, apesar de basearem-se em romances canônicos na história literária, obscurecem a construção de personagens complexas e apresentam enredo, estrutura e foco narrativo constantes, são produtos inegáveis da cultura de massa alienante e reprodutora de discursos de dominação social propostos pela teoria de Indústria Cultural. Dentro dessa perspectiva, as fotonovelas foram por mais de meio século limitadas e mantidas em um bloco derrisório, (des) classificadas como produtos que servem a um sistema cultural propagandístico destinados a um público de gosto e cultura duvidosos. Às fotonovelas cabe o papel ideológico sobre o senso comum e a contradição de serem consumidas largamento em estatísticas quando não deveriam ser admitidas como representação social. Estão aí para não-ser, para apontar aqueles que não possuem discernimento do que é uma boa produção devido a um nível intelectual ordinário.
PALAVRAS-CHAVE: Fotonovelas; práticas de leitura; objetos culturais.
INTRODUÇÃO
Através da história da Literatura a capacidade humana de produção de enunciados com
efeitos de ficção ou realidade é estudada de uma maneira classificatória a partir da oposição de
pares. A ficção é essencial, traçando para os estudiosos o caráter imaginativo intrínseco da obra
de arte. Assim a literatura é o campo do saber que privilegia a ficcionalidade e esta um dado
norteador da aceitação das narrativas pelo público, retomando o mítico, a tradição das narrativas
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orais que revela o anônimo, o coletivo que gera a forma poética ao mesmo tempo que a recebe
através de hipóteses e inferências que vão além do sistema da língua assegurando a
previsibilidade do conteúdo, as hipóteses e inferências de cada realização.
Esta discussão aplica-se a este trabalho no sentido de localizar a ficcionalidade das
fotonovelas: uma prática de leitura que, pela pouca investigação de que foi alvo, situa-se
atualmente em um estado de invisibilidade, assim como seus leitores, os interlocutores, que
consomem uma literatura apontada como de ‘banca de revista’ e por isso são pressupostos
leitores de baixa capacidade intelectual, com pouco senso crítico, incapazes de reconhecer as
características que seriam intrínsecas a um objeto cultural literário. Veja-se a definição, baseada
nos estudos de Angeluccia Bernardes Habert, presente no E-dicionário de termos literários de
Carlos Ceia:1
Considerada um subgénero da literatura, a fotonovela é uma narrativa mais ou menos longa que conjuga texto verbal e fotografia. A história é narrada numa sequência de quadradinhos (como a banda desenhada) e a cada quadradinho corresponde uma fotografia acompanhada por uma mensagem textual.
A fotonovela teve início na década de 40 em Itália e a sua origem foi motivada pela crescente popularização do cinema e a fama dos actores. A estabilização e o aperfeiçoamento técnico da fotografia, o acesso mais ou menos difícil de um público geral ao cinema e a inexistência ou limitada difusão da televisão são também factores importantes para o surgimento e sucesso da fotonovela . O neo-realismo em voga na Itália determinou as descrições quotidianas e a temática urbana e realista presente nas fotonovelas.
Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas intrigas sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que sonha com um amor cheio de obstáculos e dificuldades mas no final consegue o seu objectivo), as personagens não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e são sempre estereotipadas (os bons são sempre bons e os maus arrependem-se no final ou sofrem as consequências), predomina o imaginário exótico, e, mais tarde o “suspense” e o sexo, os temas variam entre problemas afectivos, sociais, a procura de sucesso numa carreira, a justiça na sociedade, a ascenção social, a marginalidade, etc.
O público da fotonovela é um público majoritariamente feminino e culturalmente pouco exigente, com pouca formação e com um baixo poder económico. As revistas de fotonovela têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos, morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ideologia dominante através da integração da mulher na sociedade urbana.
1 Disponível em www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm.
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A articulação narrativa da fotonovela é semelhante à da banda desenhada: um fotograma que apresenta um plano da acção acompanhado do texto verbal que reproduz o discurso das personagens, funcionando também como legenda ou resumo. O encadeamento da acção é lógico e cronológico, utilizando-se muitas vezes o recurso à elipse. A acção é, muitas das vezes, arrastada ao longo de vários números de uma revista o que aproxima a fotonovela do romance-folhetim do séc. XIX e do folhetim radiofónico. O narrador desempenha um papel importante na fotonovela uma vez que, para além de elucidar o leitor sobre a acção, enuncia também juízos de valor, ilações de teor moral, justificações sobre o comportamento das personagens e controla a acção, retardando-a e alongando-a. A linguagem utilizada nas fotonovelas é, normalmente redundante e expositiva para evitar a possibilidade de dúvidas ou conflito.
O viés frankfurtiano da Indústria Cultural de Adorno e Horckheimer explicita-se na
definição restritiva e não verdadeira do público-leitor “majoritariamente feminino” que é
conduzido pelo narrador através de linguagem redundante a conformar-se com uma estutura
imposta pelo mercado produtor. Essa limitação amplia-se nos estudos produzidos sobre as
fotonovelas definindo-a como um pastiche da subliteratura que somente conduziria o leitor à uma
ação de escape diante da realidade opressora para os que têm baixos rendimentos e/ou baixa
capacidade de reconhecer uma verdadeira obra de arte.
Percurso das Fotonovelas no Brasil
As fotonovelas circulam no Brasil desde 1947 quando foi lançada a revista Grande Hotel
da Editora Vecchi. Literatura que reproduz os folhetins do século XIX mas primordialmente um
subproduto com claro objetivo de familiarizar o público do cinema italiano após a Segunda
Guerra Mundial com a nova linguagem: “Os estúdios usavam fotogramas cortados na edição dos
filmes para montar seus cartazes e anúncios publicitários, que traziam como que um pequeno
resumo do filme.” (SAMPAIO, 2008, p.1). Ainda segundo essa autora, o processo de
subprodução do cinema também é devido ao uso dos mesmos estúdios, e muitas vezes equipes
fotográficas, de iluminadores, outros técnicos e os próprios atores do cinema, principalmente o
italiano, passando as fotonovelas a figurar como novo mercado de trabalho desses profissionais.
As seis pesquisas de autoras brasileiras ( Habert, 1974; Buitoni, 1977; Biondo, 1978;
Toledo, 1981; Bosi, 1986-2000; Rego, 1991) e trabalhos internacionais ( Cornelia Flora, 1980;
Jane Hill e Carole Browner, 1982) de investigação acadêmica que se relacionam às fotonovelas
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são estudadas e discutidas na tese de doutoramento de Sampaio (2008) e além do notável
diminuto número de pesquisas que envolvem o gênero, o trabalho de Bosi, por exemplo, conduz
seu estudo sobre as práticas de leitura das mulheres operárias e depara-se com a citação das
revistas de fotonovelas, a autora atenta para a corrente de pensamento intelectual vigente em
cada época e que, por conseguinte, norteia os trabalhos da crítica.
O mais recente trabalho brasileiro produzido sobre o gênero analisado por Sampaio é a
revisão dos trabalhos anteriores feita por Cacilda Rego, publicado de 1991, em que já surgiria a
possibilidade de olhar para o gênero sob a perspectiva da História Cultural que nessa época
começava a ser discutida. É também a partir da perspectiva da história cultural que Sampaio
analisa as práticas de leitura e apropriação desse gênero literário em relação com o contexto de
produção detalhado no texto produzido por Angeluccia Habert em 1974.
Sampaio justifica sua pesquisa no fato de todos os estudos terem sido feitos “de dentro
pra fora, isto é, a partir do texto e sua (presumível) ideologia” (Cf. SAMPAIO, p.3 grifo da autora).
Assim, toma a perspectiva da História Cultural, direcionando sua investigação às práticas sociais
de leitura de uma geração que por décadas buscou nas fotonovelas o lazer e a informação.
A análise baseada na história Cultural permite, portanto, situar o gênero como influência
considerável da população brasileira da segunda metade do século XX.
O lugar da produção literária é o quadro onde se inscrevem as normas, os valores e a linguagem, com os quais um grupo social, legitimado pelo estatuto intelectual, faz uma representação de si e da sociedade. (CHARTIER, ROGER, 1990)
História Cultural e a validação de objetos culturais
Rioux e Sirinelli, 1998, entendem que a interpretação de um artefato cultural, no caso as
fotonovelas, implica a compreensão do pensamento coletivo em uma determinada época.
[...] as motivações dos atos dos homens num momento de sua história, por referência ao sistema de valores, de normas, de crenças que partilham, em função de sua leitura do passado, das suas aspirações para o futuro, das suas representações da sociedade, do lugar que nele têm e da imagem que têm da felicidade (RIOUX; SIRINELLI, 1998, p. 362-363).
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Dialogar na perspectiva da História Cultural significa então afirmar que os diferentes
objetos e práticas culturais são devidos às divisões socio-econômicas, tomar a linguagem como
expressão política dos códigos estabelecidos no interior da sociedade, popular e erudita,
representação das normas vigentes na sociedade como um todo.
Não é porque a escrita é o instrumento do poder ou a via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a alegorizar essa constituição. (RANCIÈRE, 1995, p.7)
Em a Invenção do Cotidiano, Michel de Certeau direciona sua pesquisa para a
sedimentada ideia de ‘cultura popular’. O autor atenta que ‘a massa’ é um conceito surgido na
‘modernidade do século XVI’ indicador do homem ordinário, coletivo e anônimo, o Outro, “as
primeiras a serem submetidas ao enquadramento das racionalidades niveladoras.” (DE
CERTEAU, 1998, p.59). A interrogação central dá-se sobre as operações dos usuários, as
práticas cotidianas que ficam obscurecidas em pesquisas que enfocam o eixo produtor na
relação de produção-consumo como influência sobre um sujeito coletivo que simplesmente
obedeceria inadvertidamente às imposições do eixo produtor ao invés de enxergar o consumo
como prática criadora e independente de autoria ou produção.
Tomando os estudos sobre o consumo de objetos culturais do filósofo e antropólogo
Michel de Certeau, Roger Chartier historiador que propôs dentro do movimento classificado
como “École des Annales” reflexões que explicitam que a maneira como era pensada a cultura
era limitada pela pressuposição da ideologia de uma classe em detrimento da outra, reflete
sobre os elementos exteriores ao texto: a leitura e as práticas que envolvem leitura.
Os protocolos de leitura são um categorizador importante quando se pensa a leitura sob
a perspectiva da História Cultural. Scholes (1991), a partir de uma visão fundada na Semiótica,
os define como os múltiplos sinais que buscam orientar uma determinada leitura, seja ela a de
um texto, um quadro, um filme ou dos sinais orgânicos que nos alertam para uma possível
enfermidade; na busca de decifrar e entender, é preciso contar com “orientadores”, e estes
seriam os protocolos, sempre necessários, segundo o autor, ainda que para serem contestados
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Há sempre uma disputa de interesses ao definir-se o cânone, e com ele os objetos
culturais distintivos de uma classe, obtém-se o produto de uma representação parcial da
sociedade nas artes e na literatura. Para ser inserida como objeto cultural a produção artística é
sujeita aos parâmetros das instituições julgadoras que comumente são tidas como avaliadoras
das características intrínsecas da obra de arte.
Ao questionarmos os mecanismos de validação de uma obra literária encontramos
muitas representações sociais, o que privilegia a elucidação do porquê as práticas de leitura
populares continuam, apesar de toda estigmatização, voltadas ao consumo da tida anti-literatura.
De subliteratura que apresenta enredos advindos da literatura canônica como objetos culturais
pré-consumidos, e através de veículos como as revistas de grande circulação nacional, atingem
leitores com efeitos alienantes e reforçadores de discursos de dominação social. Os objetos da
cultura popular ou de massa que são validados como objeto de estudo pelo largo consumo de
seus leitores, devem ser tomados como expressão do contexto socio-histórico em que se dão
esses consumos.
A afirmação de que as fotonovelas são ignoradas por críticos e estudiosos de artes só
seria desmentida pela observação mais cuidadosa de que os críticos e estudiosos da História,
da Literatura e das Artes limitaram-se a mantê-las em um bloco derrisório classificando-as como
não-literatura e, mesmo, não-objetos, produtos semi-consumidos destinados à um público de
gosto e cultura duvidosos. Às fotonovelas cabe, além da lógica da deficiência do gosto e do
discernimento de seus leitores, a contradição: são largamente consumidas mas não deveriam
nem mesmo ser lidas. Estão aí para não-ser, para apontar aqueles que não possuem
discernimento do que é uma boa produção devido a um nível intelectual medíocre.
No Brasil de 1950 estabelece-se uma sociedade que, pela negação do arcaísmo ligado
ao ambiente rural procura afirmar-se na idealização de personagens que vivem nas cidades.A
produção artística é então subentendida como detentora de qualidades inerentes: bom domínio
da língua escrita, desenvolvimento de uma trama intimamente ligada ao que seriam os conflitos
da sociedade da época quando o que ocorre é uma disputa interna para definir modos de
comportamento e habitus de uma classe em detrimento de outras.
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Fundamentalmente heterônoma, a cultura média é objetivamente definida pelo fato de estar condenada a definir-se em relação à cultura legítima, tanto no âmbito da produção como no da recepção. As investigações originais que podem suceder no sistema da indústria cultural estão sempre limitadas pelos bloqueios de comunicação que correm o risco de provocar mediante o uso de códigos inacessíveis ao ‘grande público’. (Bourdieu, 1987, apud Joanilho, 2008, p. 534).
As influências da indústria cultural do cinema hollywoodiano na construção de uma
‘sociedade cosmopolita de fachada’(PINTO, 1999) nas capitais nacionais datam do começo do
século e especificamente nas metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, consumia-se em larga
escala não só as projeções das salas de cinema, mas os seus subprodutos: as revistas
especializadas, elas também, símbolos de acesso à vida moderna das cidades. A negação dos
modelos arcaicos e provincianos dava-se justamente pela adesão aos valores que a indústria
cinematográfica e a mídia responsável por sua auto-referencialidade, no caso as revistas
especializadas, propunham.
Na análise histórica desse fenômeno temos a apreensão de uma construção do cotidiano
através do consumo da nova cultura que é tido como uma produção não de objetos, mas de
representações que não correspondem ao que o produtor, autor ou artista associaram à sua
obra.
[...] o consumo cultural de massas caracteriza as sociedades ocidentais a uma produção racionalizada, expansionista, tanto quanto centralizada, estrondosa e espetacular, corresponde uma outra produção qualificada de ‘consumo( PINTO, 1991).
A advertência ao consumo da ‘má literatura’ é objeto de ensaios críticos, colunas
jornalísticas, discursos de intelectuais e está presente em romances como D.Quichote de Miguel
de Cervantes, Madame Bovary de Gustave Flaubert, nas digressões do ‘narrador-onisciente-
intruso’2 em obras como Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de
Assis. Nessas fontes estipulam-se comportamentos intelectualmente aceitos de prática de leitura
e de consumo literário.
O discurso de intelectuais acerca da literatura elege um comportamento por parte dos
autores de defensores decididos de uma população que estaria alheia à tomada da palavra, à
2 FRIEDMAN, Norman. Point of View in Fiction, the development of a critical concept. In: STEVICK, Philip, ed. The Theory of the Novel. New York, The Free Press, 1967.
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produção de um discurso em favor de seus interesses. O fator principal para a atribuição de um
alheamento é assumir a mediocridade de ‘população não-leitora’ que as classes menos
abastadas da população brasileira representam dentro dessa perspectiva no imaginário nacional.
Esta imagem é um paradigma diretamente ligado à negação por parte de uma corrente
dominante de pensamento dos princípios narrativos, estilísticos e estéticos das expressões
literárias que passam por um processo de triagem e que se apóiam em dualidades (popular x
erudito) para expressar-se a partir da negação de uma gama de características atribuídas a uma
ou outra das classificações que são construídas a partir de valores atemporais e que obedecem
antes à uma.
As elites intelectuais apropriam-se dos bens culurais legitimando-os antes pelas suas características exclusivas que por suas características intrínsecas. Temos, portanto uma luta interna das camadas superiores em determinar o que lhes seria adequado como bem simbólico. (Joanilho, 2008).
O sujeito, a linguagem e as táticas de consumo
A partir de teóricos como Bakhtin e Greimas estuda-se a linguagem que permeia o texto
escrito e/ou a fala. Pensa-se no discurso e na sua produção desde sua elaboração mental. E
calcado nessa filosofia ganha espaço e notabilidade o enunciatário do discurso, aquele para
quem a produção se destina e que apropria-se da mesma a partir de suas vivências e
experiências de maneira particular e alheia à vontade do enunciador.
A Análise do Discurso é uma ciência surgida por volta dos anos 60 que engloba
Línguística, Marxismo e Psicologia na reflexão material do enunciado à procura das marcas
indicativas do processo de produção do discurso concebendo a linguagem como mediadora
entre o homem e a realidade social e natural. Essa ciência entende e procura explicar a língua
como um acontecimento social, já que o uso e apropriação da língua é condidionado pelas
normas, códigos e convenções que regem os usuários da lingua.
Formular é dar corpo aos sentidos. E, por ser um ser simbólico, o homem constituindo-se pela e na linguagem, que se inscreve na história para significar, tem seu corpo atado ao corpo dos sentidos. Sujeito e sentido constituindo-se ao mesmo tempo têm sua materialidade articulada na materialidade da língua com a materialidade da história. (Orlandi, 2001, p.9)
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O enunciador para filósofos como Mikhail Bakhtin (1979) considera a existência de um
Outro na constituição do discurso desde o processo de elaboração mental, na materialização
através da linguagem até a constituição do enunciado. O enunciado é produto direto da
enunciação e determinante na significação do discurso como momento dialógico de
recuperação dos já-ditos provenientes de outros discursos para na cena enunciativa tomar
posição de concordância, discordância ou, ainda tornar-se alheio ao material ideológico neles
compreendido. É interessante ressaltar que mesmo para uma atitude de alheamento ainda é
necessário ao enunciador recorrer a outros enunciados de modo que possa o enunciatário,
receptor do discurso apreender o que então é dito.
Contudo dentro das perspectivas de teóricos pós-modernos a literatura não se resume à
produção. A leitura é que lança o texto no diálogo com outras produções escritas, realizações
literárias e com o contexto socio-cultural. O objeto de análise, o texto, é tomado como ponto de
intersecção entre a experiência do produtor e a do leitor e iremos posicionar a literatura para
além da definição distintiva de origem e classe social, consequentemente excludente, mas,
antes, como um fenômeno social, coletivo.
As análises de textos como unidades de significação passam pela condição de quem é
seu sujeito autor e a quem ele se destina. Assim:
Do ponto de vista do conteúdo, a narrativa é um lugar-discurso, onde alguma coisa acontece, onde alguma coisa se transforma [...] nada mais é que a história de busca de valores [...] é sempre uma busca de sentido (busca de sentido pelo homem para o seu estar-no-mundo) (SILVA, 1982, p.89)
Os meios de comunicação são o reflexo e ao mesmo tempo criadores de imagens para a
sociedade e o atual fenômeno da setorização desses veículos fortaleceria comportamentos e
discursos pré-determinados pelos produtores a todos os demais representantes da sociedade.
No entanto, pela perspectiva da história cultural situamos esses produtores como uma
parcela da sociedade que restringe suas análises por não lhe ser possível alcançar de sua
posição os demais.
[...] a mídia não é capaz de ‘captar todas as tendências sociais; ela fala de um lugar social determinado, que tem relação com o contexto social e cultural de seus produtores- estes
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certamente estão imersos em seus habitus e disposições.(BOURDIEU, apud ALMEIDA, 2007, p. 177)
Também a corrente intelectual marxista ao classificar a ideologia como o mascaramento
da realidade imprescindível a uma cultura dominante, através da perspectiva da Indústria
Cultural, limita suas análises por olhar de ‘cima’ para as parcelas ordinárias da sociedade.
As tramas das fotonovelas não visam à denúncia e ao conflito com uma realidade social,
mas uma trama universalizante que mostra de maneira laica o que as narrativas hagiográficas
erigem como a lógica para alcançar o divino. Analisando essas narrativas como veículos
mercantis, assumiríamos a venda dos padrões de comportamento e dos produtos culturais a
serem assimilados irrefletidamente pelos seus leitores. Limitamos o papel do leitor como simples
decodificador na recepção de uma narrativa que impõe como todos a maioria de contos da
tradição oral uma ordem do mundo em que recompensa-se o bem e pune-se o mal.
Essa ordem é ainda reforçada pelo não-lugar que é o espaço como elemento narrativo
da fotonovela. A ausência de uma definição espacial está inserida no movimento, ao mesmo
tempo fixa o leitor no espaço citadino e o transporta a lugares idílicos, como nos contos de
literatura oral o lugar não é necessariamente definido, possibilitando a universalização da
narração ao invés de uma (im)posição de alheamento, ou atitude de escapismo do leitor que
ratifica a posição de poder de uma classe sobre outra e toma os indivíduos ali inseridos por um
pensamento expansionista como incapazes.
Mas onde o aparelho científico (o nosso) é levado a partilhar a ilusão dos poderes de que é necessariamente solidário, isto é, a supor as multidões transformadas pelas conquistas e as vitórias de uma produção expansionista, é sempre bom recordar que não se deve tomar os outros por idiotas. (DE CERTEAU, 1998, p. 273)
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