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IVONE GEBARA T eologia E cofeminista Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião N o - tombo: 79820 9$8 setembro/1997

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IV O N E G E BA R A

T eo lo g ia E co fem in ista

Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião

N o - tombo:79820

9$8s e te m b ro /1997

menta nossa esperança. Acreditamos que essa luta pode ser um caminho de solidariedade, misericórdia e reconciliação de todas as forças vitais. Amamos a vida e não queremos vê-la perecer por causa de nossos caprichos e de nossa capacidade destruido­ra. Estamos nesta luta porque não agüentamos mais o sistema de discriminações e exclusões e porque esta luta por dignidade e beleza é o sentido de nossa existência.

Ecologia e feminismo convidam a arrumar os sentidos e os conhecimento de um outro jeito. Por isso, um passo importante a ser dado é repensar nosso conhecimento, nossa epistemologia para, a partir daí, captar de uma outra maneira os sentidos de nossa existência.

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A Q u estã o E pistem o ló g ic a

perspectiva ecofeminista nos abre paia um referencial deexperiência mais amplo e inclusivo do que o veiculado por nossa cultura ocidental. Esse referencial deve ser pensado em todos os níveis do nosso conhecimento e no jeito como o pensamos. Este capítulo refletirá na abertura de percepção que o feminismo e a ecologia provocam e nos elementos novos que acrescentam à nossa tradição cognitiva.

Conhecer nosso conhecimento

“O papel cultural da filosofia não é entregar a verdade, mas construir o espírito da verdade: isso significa nunca deixar ador­mecer a energia inquiridora da mente; nunca deixar de questionar o que parece óbvio e definitivo; sempre desafiar fontes do senso comum, aparentemente intaclas; sempre suspeitar que há um ‘outro lado’ naquilo que consideramos inquestionável; nunca se permitir esquecer que há questões anteriores ao legítimo horizonte da ciência, as quais são cruciais à sobrevivência da humanidade, tal como a conhecemos”15

Kolakowski nos convida a não permitir que nossa capacida­de cognitiva seja entorpecida pelos dogmatismos construídos ao longo da História mas que estejamos atentas(os) ao movimento da vida. Convida-nos também a prestar atenção para “o outro

15 Kolakowski, Lezek, “The Death of Utopia Reconsidered”, in “Modernity on Endless Trial”, The Chicago University Press, Chicago and London, 1990, p. 134.

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lado” das coisas, que não aparece na ciência oficial, e captar sua influência em nossas formas de conhecer.

Os itens que constituirão esta reflexão querem guardar essa inspiração. Para nós, mulheres, mais do que nunca o convite a movermos as águas patriarcais em todos os níveis do saber se impõe como uma exigência de justiça em relação a nós mesmas e à humanidade.

Entre os níveis do saber situo-me a partir do saber religioso, a partir do qual tentarei fazer epistemologia ecofeminista. O saber religioso contém muito do que chamaríamos “irracional”, embora dotado de certa racionalidade. Nele falamos de seres, situações, relações que nem sempre podem ser partilhadas ou explicadas. Aí está a “irracionalidade”. Não se trata de oposição à razão humana, mas abertura a horizontes, experiências e discursos que escapariam a uma racionalidade totalmente verificável. O dever de pensar este “irracional-racional” se impõe com mais força às mulhe­res que no Brasil e na América Latina parecem ser as maiores “consumidoras” destas experiências mas não necessariamente produ­toras delas. A relação entre consumo e produção não é direta e proporcional, embora haja produtoras que consomem seu produ­to. Entretanto, há nesta relação produtores que impõem seu pro­duto e consumidoras que o acolhem, reproduzem e o tomam necessidade vital, sem perceber a dependência e a falta de auto­nomia da qual são “vítimas” no ato de consumir o “produto”.

Há uma questão de “poder” que se instaura entre produtores e consumidores em qualquer tipo de mercado. Poderíamos pen­sar numa relação semelhante quanto se trata de religião? Pode­ríamos falar dela como se fala de qualquer produto da cultura?

A questão religiosa traz uma complexidade ímpar e não po­demos defini-la com facilidade. Trata-se de uma experiência que escapa à simples descrição, pois inclui uma série imensa de re­lações em que há algo que não se explica. Entretanto, pode­mos falar com um pouco mais de segurança das “objetivações” ou “instituições” religiosas. Nesse nível quero me mover para

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não cair na tentação de exercer julgamentos onde não são pos­síveis.

A reflexão epistemológica será o primeiro passo para encon­trar pistas de compreensão da estrutura do conhecimento religio­so institucionalizado. A partir dessa estrutura, podemos limitar a experiência religiosa e até controlá-la em suas manifestações. Ela passa a ser submissa a um controle social, inclusive no nível cognitivo, embora saibamos que sua dimensão relacional ética e estética escapa a este controle. Isso pelo fato de não sermos capazes de explicar todas as relações humanas e reduzi-las a fenômenos mecânicos. A religião fala de relações e seres invisí­veis, de sonhos utópicos, de salvação e perdição, de Deus, do diabo, do céu e do inferno.

A tarefa epistemológica não é desmacarar nossas utopias, desvendar nossos sonhos ou destruir a poesia de nossa existên­cia. Sua tarefa é mostrar que o “conhecimento” no sentido reli­gioso pode ser um caminho de Justiça e de Amor, ou de Submis­são e Injustiça, se não estivermos atentas(os) para o fato de que contém uma força incrível. E a força de nossos sonhos e crenças * profundas, do fio que interliga todos os elementos de nossa vida e ajuda a construir o sentido dado a nossa existência. Nossos sonhos podem ser aprisionados e manipulados, nosso desejo de justiça e amor reduzido à obediência de normas e nossa capaci­dade criativa submetida ao temor de uma certa concepção de pecado ou de Deus.

Pensar é tarefa árdua, mas não podemos deixar de fazê-lo pois as gerações futuras esperam de nós o legado crítico em relação a nossas produções culturais.

A epistemologia em busca de sentido

A questão feminista e a ecológica parecem estranhas às tra- dicionais|temáticas epistemológicasTjNão se trata aqui de traba­

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lhar assuntos abstratos, difíceis de comprender na nossa vida cotidiana mas de perceber a importância capital de questões epistemológicas consideradas a partir de nossa experiência. Tomo a palavra “epistemologia” num sentido amplo, não restrito à filo­sofia que se preocupava em refletir a adequação de nossas idéias à realidade. Não discuto essa separação clássica entre coisas e idéias. Minha intenção é entregar às pessoas comuns certa “pos­se” de seu saber e refletir sobre sua capacidade cognitiva.

Em cursos que dei para lideranças, especialmente de meio popular, a primeira atitude foi de espanto ao escutar a palavra “epistemologia”. As pessoas pensavam em coisas super-teóricas e na experiência de coisas abstratas distantes dos problemas cotidianos que nos angustiam. Mais ainda, parecia que nada tinha a ver com as questões teológicas ligadas ao feminismo.

Num primeiro momento, tentava mostrar como era complexo e bonito conhecer alguém ou uma situação. Permitia que as pes­soas relatassem como fizeram a experiência de pensar sobre as coisas tristes, os sofrimentos e as alegrias de sua vida. Em segui­da, refletia que tudo isso fazia parte do conhecimento humano. Elas percebiam as diferenças que havia entre si, a partir de seu discurso e o quanto conhecer o próprio conhecimento era parte da vida. Umas falavam de detalhes, outras de percepções globais ou de sentimentos antes mesmo de contar um fato. Percebiam que se podia falar de uma maneira simples de coisas que pare­ciam tão complicadas.

Devagar os preconceitos desapareciam e as pessoas começa­vam a perceber que uma palavra à primeira vista hermética nada mais é do que um convite a pensarmos como conhecemos as coisas e a nós mesmas(os). Então, as pessoas começavam a perceber que certas expressões como “o milho se toma nossa carne” ou “amo as flores” são uma forma de reconhecer a interdependência entre o milho e as flores com a nossa vida. Isto é conhecimento, isto é epistemologia! Começavam a perceber a diferença e a semelhan­ça entre afirmar “amo meu filho” e “amo a Deus”. E novamente

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descobrem que isto é epistemologia! Descobriam como conta­vam as histórias de suas vidas e os acontecimentos que privilegia­vam e percebiam que isto é também epistemologia!P Trata-se de uma metodologia do conhecimento cuja finalida­

de é descomplicar as palavras. Devolver ao comum das pessoas aquilo que faz parte de sua vida, mas que lhes foi tirado pelo elitismo científico. Democratizar o conhecimento entregando às pessoas o poder de conhecer os mecanismos de seu conheci­mento a partir de sua experiência^

A questão epistemológica é prática em primeiro lugar e se relaciona com a atuação cotidiana nos meios populares. Começar a pensar de maneira diferente exige posturas diferentes frente ao

I conhecimento, abrir espaços de pensamento alternativo, pensar I nosso próprio pensamento em função daquilo que queremos. Este

trabalho é importante nas organizações de mulheres, nas escolas primárias de bairro, nos sindicatos e grupos de reflexão bíblica, nas universidades e escolas técnicas. Trabalhar a epistemologia é

I querer influir nos processos de transmissão do conhecimento e tentar mudar a estrutura hierárquica de poder que se reproduz nas bases de nossa sociedade e de nosso conhecimento.

Muitos educadores populares inspirados em Paulo Freire perceberam o quanto, através de processos educativos e de al­fabetização, era possível ajudar as pessoas a buscar maior dig­nidade em seu cotidiano. O que proponho obedece à mesma inspiração embora se abra a referenciais diferentes.

A perspectiva ecofemista, junção de certa ecologia com certo feminismo, quer mostrar a conexão entre a dominação das mu­lheres e da natureza do ponto de vista da ideologia cultural e das estruturas sociais e também introduzir novas formas de pensar, em vista da “ecojustiça”. A luta pela justiça nas relações humanas implica uma prática de justiça em relação ao ecossistema. Não haverá vida humana sem a vida do planeta com suas inúmeras expressões. Tal necessidade toma a epistemologia um capítulo central deste livro.

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“Em que a questão feminista e a ecológica modificam nossa compreensão da realidade e de nós mesmas(os)? Trata-se ape­nas de novos conteúdos a serem incluídos nas formas tradicionais de conhecimento ou pensá-las significa tentar modificar a forma de pensar o mundo e conseqüentemente atuar de forma diferen­te?” Tais perguntas anunciam a importância da nova maneira de compreender o mundo e o ser humano.

Ao falar de compreensão da realidade, referimo-nos a ex­periências de vida, ao conhecimento que temos delas. “Realida­de” é um termo amplo, mas que se refere as coisas que nos tocam, à nossa apreensão delas. É um termo vasto mas limitado a uma experiência pessoal e grupai determinadas. Quando queremos conhecer o que nos toca, entramos no campo da epistemologia. Quando pergunto em que a ecologia e o feminismo modificam meu conhecimento, quero introduzir em meu campo de conhecimento dois aspectos que não estavam incluídos nas epistemologias tra­dicionais. Tentávamos entender as coisas da vida sem perceber a presença das mulheres e dos elementos do ecossistema como referenciais importantes e realidades sem as quais o conhecimen­to não é possível. Mulheres e ecossistema estavam lá, basicamen­te presentes/ausentes, mas não eram considerados constitutivos do conhecimento. O que chamávamos de conhecimento era de fato conhecimento, mas limitado a certa perspectiva sobre o real e a partir de um grupo preciso de pessoas (em geral homens) que o formulava. Nesse sentido, tais condições eram profundamente androcêntricas e antropocêntricas. Hoje alargamos essa perspec­tiva para novas aquisições. Queremos introduzir as questões de gênero e ecológicas nos modos humanos de conhecer.

“Trata-se apenas de introduzir novos conteúdos epistemoló- gicos ou seria o caso de construir uma nova epistemologia?” A meu ver, ocorrem as duas coisas. Introduzir novos conteúdos não é difícil nem problemático pois o ser humano introduz continua­mente novos conhecimentos em seu campo de saber. Entretanto, construir uma nova epistemologia parece uma pretensão quase

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sem tamanho: mas é disto que se trata também. Precisamos cons­truir pouco a pouco novos jeitos de conhecer que se relacionem intimamente com as novas cosmologias, as novas cosmovisões e

j antropologias mais unitárias. Precisamos superar as divisões ^ • dualistas e hierárquicas de nossas formas de conhecimento e

acentuar a conexão e interdependência entre elas. Precisamos \\\ sair do eurocentrismo do conhecimento e das dominações impe- ' rialistas da verdade sustentadas pelo mundo ocidental.

Trata-se da reconstrução, urgente e necessária, de nossas referências culturais, cósmicas, vitais. Nossa tarefa será apontar para pistas que lentamente modificariam nosso olhar sobre nós mesmas(os) e o mundo. A epistemologia ecofemista não é uma novidade que se impõe à primeira abordagem, nem algo pronto para ser adquirido como um novo livro; é uma atitude, uma busca de sabedoria, uma convicção que se desenvolve em conexão com o conjunto de todos os seres vivos. A perspectiva ecofemi- nista é uma linha de ação e pensamento que, com outras, abre caminhos para ousar uma nova relação com todos os seres.

Quero enfatizar a questão epistemológica ligada ao conheci­mento teológico cristão e particularmente o que se desenvolveu a partir da Igreja Católica Romana da qual herdei muito de meu saber religioso. Trata-se de um ensaio no qual algumas intuições são partilhadas em vista do alargamento de nossas percepções e de uma mudança de nossos relacionamentos. Sem dúvida estas reflexões deverão ser completadas e criticadas para nunca deixar adormecer a energia inquiridora da mente.

Conhecimento e ética

As epistemologias desembocam em questões éticas, pois o j conhecimento é uma ação com conseqüências sobre o sujeito e ‘ a comunidade. Portanto, as questões éticas estão no bojo das

epistemológicas embora isto nem sempre seja claro.

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Em todo ato de conhecimento há uma postura assumida di­ante da vida, dos acontecimentos e em relação às diferentes si­tuações previsíveis e/ou imprevisíveis de nosso cotidiano. Não há neutralidade possível mesmo que não estejamos conscientes da situação em que vivemos e não conheçamos o sistema de influên­cias que nos atinge.

Em todo ato de conhecimento há uma visão e compreensão do mundo e do ser humano que transparece na ação de conhecer e nas conseqüências do conhecimento. Conhecer é tomar uma posição mesmo espontaneamente; é afirmar-se como ser humano em relação a um mundo de valores; é tomar uma posição diante dos seres vivos, dos humanos e de mim mesma.

Nossa vida cotidiana está repleta de exemplos de como nosso conhecimento tem implicações éticas. Basta perceber a importân­cia de conhecer melhor nosso bairro para atuar sobre ele. Não me refiro apenas ao espaço geográfico no qual as casas estão construídas, mas às pessoas que nele moram, suas dificuldades, forma de sobrevivência, esperanças e sonhos. Na mesma dinâmica tento captar por que são “estas coisas” e não outras que chamam mais minha atenção, por que “estas” e não outras habitam mais meu campo de interesses. Penso também na vegetação pobre ou rica presente no bairro, na qualidade do ar, na cor do céu, na quantidade de estrelas visíveis à noite. Dependendo da forma de meu conheci­mento, minha ação ou relação com as pessoas e as coisas se mo­difica. Portanto, a relação entre ética e epistemologia não está num mundo abstrato, mas enraizada no concreto de nossa existência.

A questão ética no conhecimento é cada vez mais abrangente e de uma atualidade ímpar. Hoje não se pode mais falar do conhecimento ilimitado do ser humano, da pesquisa científica sem limites sem pensarmos a serviço de quem é realizada. A questão ética refere-se aos limites que nos impomos em vista do bem concreto das pessoas e do ecossistema. Refere-se também à ! maneira como nos relacionamos com todos os seres e conosco ! mesmas(os). Ela ilumina a consciência do caráter ambíguo de

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nossas ações assim como a dificuldade de estabelecer critérios éticos neste momento da História. Por isso, participação e diálo­go são cada vez mais exigência ética de nosso tempo. Elas nos permitem estabelecer balizas ou encontrar luzes que ajudam a construção de relações mais justas.

Hierarquia antropocêntrica e androcêntrica

As epistemologias filosóficas elaboradas a partir da tradição ocidental são de base antropocêntrica e androcêntrica. Isto não significa que tenham sido falsas ou que quisessem eliminar as mulheres, mas que sua descrição do conhecimento humano refe­re-se particularmente à experiência de uma parte da humanidade apresentada como a experiência de conhecimento de todos os humanos. A primeira vista pensamos que isto não poderia ser dife­rente porque o conhecimento não tem sexo: o ser humano é que * conhece e o conhecimento racional é prerrogativa do anthropos.

Com o desenvolvimento do feminismo percebemos que a tarefa de conhecer de maneira “científica” se desenvolveu mais através dos seres humanos masculinos que universalizaram o sa­ber a partir de sua experiência de sabedoria e poder. Quando se

/ falava em conhecimento científico, filosófico, teológico ou apenas I conhecimento verdadeiro, a referência era o conhecimento reali- ! í zado e divulgado pelos homens. As mulheres e ao povo pobre

I restava o conhecimento empírico, baseado na experiência coti- ; _ diana e que não era reconhecido como verdadeiro.“ Falava-se também dos graus do conhecimento, da sua pro­

fundidade e extensão. Pobres e mulheres eram associados a ní­veis mais baixos de abstração, de ciência e sabedoria. A hierar­quização do saber corresponde à própria hierarquização social. Uma hierarquização fundada na exclusão das maiorias em favor de uma elite masculina detendora do poder e do saber. Ela se refere à questão das classes sociais e também do gênero. O

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gênero masculino tem o monopólio do conhecimento divulgado e socialmente aceito. A questão das etnias também interfere no conhecimento. Em geral, os negros são apresentados como os que menos sabem, assim como os indígenas. A história de domi­nação marcou de tal forma as bases de nossa cultura que ado­tamos como conhecimento nosso aquele divulgado pelos deten­tores do poder político e social. Não percebemos o quanto este procedimento ergueu barreiras entre os povos e impediu uma verdadeira partilha de saberes.

Os processos de exclusão em nosso conhecimento também estão presentes nos meios de comunicação de massa; na forma de dar as notícias ou de apresentar os programas. Ditam os conhecimentos e as atitudes que a maioria da população deve ter. Desconhecem a vida de excluídos e excluídas. Não lhes interessa seu saber nem como sentem a vida. São considerados “nada”. Como diz Eduardo Galeano16:

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada Os ninguéns: os nenhuns, os nenhuneados, correndo como

lebres, morrendo na vida, fodidos, refodidos Que são, embora não sejam Que não falam idiomas, mas dialetos Que não professam religiões, mas superstições Que não fazem arte, mas artesanato Que não praticam cultura, mas folclore Que não são seres humanos, mas recursos humanos Que não têm rosto, mas braços Que não têm nome, mas númeroQue não figuram na História Universal, mas nas páginas

policiais na imprensa localOs ninguém custam menos que a bala que os mata.

16 Gtileano, Eduardo, citado por Sara Newbery, “Seis Histórias de Vida de Mujeres Pobres narradas por ellas mismas”, Buenos Aires, 1994 (texto inédito).

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A mesma hierarquização social se expressa pois em hierar­quização do saber, étnica e sexual. Essa hierarquização marca nossa maneira de conhecer o meio em que vivemos, nossos se­melhantes e a nós mesmas(os). Reproduzimos esse modelo nos níveis de nossa existência desde nossa herança patriarcal.

O conhecimento de base androcêntrica sobretudo nas ciên­cias sociais e históricas sempre coloca em primeiro plano os feitos gloriosos das figuras masculinas, o pensamento emanado dos homens. As outras personagens são secundárias. Na nossa maneira de conhecer está presente a ideologia patriarcal que nos condiciona sem que disso tenhamos percepção clara. Quando, na América Latina, se pergunta “como está a Igreja em sua cida­de?”, quase sempre a resposta privilegia a ação do bispos e sacerdotes. O mesmo se aplica à situação social do Brasil. A resposta tende a se voltar à atuação do governo que, por sinal, tem maioria masculina. Nossa maneira de conhecer é marcada pelo esquema hierárquico androcêntrico. Tal esquema é a marca do conhecimento oficiaí, daquele que introjetamos embora nossa experiência cotidiana o contradiga.

O ato de conhecer é um ato contextuai — situado e datado — e marcado por aspectos ideológicos com tendências sexistas, isto é, que sublinham a importância de um sexo sobre outro. O conhecimento androcêntrico desemboca num conhecimento an- tropocêntrico no qual as ações e reações humanas são colocadas em evidência. Se uma guerra destrói centenas de pessoas e todas as plantações de dezenas de aldeias, essa destruição será consi­derado secundária por quem conta a história. Embora as planta­ções sejam a base da sobrevivência da população, não entram na contabilidade da vitória ou derrota. Basta lembrar das guerras mundiais, ou do Vietnã e do Ruanda. As agressões contra a natureza estão articuladas à agressão contra os habitantes: não há intenção direta de destruir a fauna ou a flora. Entretanto* a agres­são contra os humanos atinge o conjunto da natureza, a qual é usada como arma de guerra. A natureza é envenenada para atin­

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gir o inimigo. Toma-se assim vítima de guerra. O mesmo acon­tece com as mulheres, alvo de guerra, cujo corpo é usado para provocar terror na população civil. Violadas e violentamente golpeadas servem como isca para provocar o ódio dos grupos de resistência que se tomam mais vulneráveis às armadilhas. Golpea­das até a morte, mostram em seu corpo o poder do agressor. Isso se verificou na ação militar e paramilitar no Haiti, no Ruanda, na Sérvia e em muitos outros lugares.

A utilização da natureza, fauna e flora, e das mulheres como armas de guerra têm pouquíssimo espaço nas análises históricas. Quase não interfere no conhecimento e não merece consideração ética ou[teológica. O céu estrelado encoberto pelas nuvens de poluição é totalmente esquecido. É pouco mencionado o ar car­regado de gases assassinos, o chão semeado com milhões de minas explosivas, ativas durante décadas e vitimando sobretudo a população civil e trabalhadora.

Muitos diriam que pensar na natureza em situações de guerra é esquecer-se dos seres humanos para preocupar-se com seres de menor importância. Esse raciocínio não capta a conexão entre todos os seres e energias do universo. Para nós humanos, nossos semelhantes importam em primeiro lugar: a questão não é esco­lher entre um ninho de passarinhos ou uma criança. Espontanea­mente salvamos a criança. Este é um gesto biológico, animal, instintivo. Entretanto, temos de superar o sentimento de imediatez.

> A geografia física e a humana não subsistem uma sem a outra no estado atual da evolução da vida.

Apesar dos avanços positivos do conhecimento humano, a natureza e os seres humanos são cientificamente utilizados para servir a certos interesses políticos e econômicos minoritários. São cooptados nos “jogos de guerra”, dobrados aos desejos de des­truição e até certo ponto esquecidos quando se trata depois de contar a História.

Como entendemos a História? Como nos posicionamos dian­te dos fatos e a partir de que valores passamos a agir? Que tipo

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de saber desenvolvemos, com que finalidade e com que meios? A questão epistemológica suscita implicações éticas para o pre­sente e para o futuro. O quê e como conhecemos, como divul­

gam os nosso conhecimento tem a ver com a maneira como lida­mos e valoramos nossa vida e todas as vidas.

Uma reflexão sobre o conhecimento não está presente em todos os momentos na nossa consciência. A maioria das pessoas mal pensa nisso. Conhecem simplesmente, sem perceber que sua forma de conhecer é fruto do ambiente em que vivem, de sua educação, de seu lugar social. Fruto da ideologia vigente, mais ou menos escolhida ou simplesmente acolhida.

A maioria das pessoas nem pensa que pode modificar sua forma de conhecer, a qual é continuamente modificada pela so­ciedade de mercado e consumo. O conhecimento é algo quase espontâneo em nós. Entretanto, intelectuais e sobretudo filósofas(os)

i devem pensar sobre estas questões e ajudar as pessoas a perce- / ber as conseqüências pessoais e coletivas de seu tipo de conhe­

cimento. E nosso dever alargar o nível de conhecimentos para perspectivas mais amplas em que a solidariedade mútua e a ter­nura sejam resgatadas como componentes importantíssimos nos processos de conhecimento e educação. Isto deve ser conside­rado no nível social mais amplo e no cotidiano.

Para tomar mais simples e acessível o trabalho das filósofas(os) vamos pensar a epistemologia patriarcal que orienta nossa teolo­gia e abrir-nos para uma perspectiva epistemológica ecofeminista. Não é propor a substituição simplista de uma por outra nem fazer uma crítica destrutiva à epistemologia base da tradição cristã ociden-

* tal e sim inaugurar uma problemática, um desafio. Trata-se de “mover o solo” de nossas seguranças para perceber o quanto elas repousam em construções que podem ter sido válidas num tempo e menos válidas em outro. Trata-se de pensar a Vida como um processo a partir do qual as modificações são introduzidas e que boa parte do presente e do futuro dependem das nossas escolhas cognitivas.

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Nessa perspectiva situamos os dois grandes itens deste capítulo: a) epistemologia teológica patriarcal; b) epistemologia ecofeminista.

a) Epistemologia Teológica Patriarcal

Os trabalhos de Nancy Tuana e Seyla Benhabib revelaram a ! problemática patriarcal na História da Filosofia.17 Seu trabalho e

inspiração está presente em algumas de minhas percepções.Alguns traços me parecem característicos na epistemologia

patriarcal; estas trazem conseqüências no conjunto da vivência cristã. Hoje começam a ser problemáticas frente à compreensão da vida humana e do mundo, embora tenham sido a forma pela qual milhões de pessoas expressaram suas convicções mais pro­fundas. Por isso, é com respeito ao conjunto da obra humana passada e aos significados que forneceu que me permito abrir um espaço crítico de reflexão. Afirmo em termos simples os limites de nossa percepção cognitiva tradicional diante das conseqüên­cias destrutivas presentes no mundo em que vivemos.

Epistemologia essencialista

Uma das características mais importantes da epistemologia patriarcal vigente na teologia cristã é seu caráter essencialista. Mesmo tentando ser realista, ela mantém um referencial que parece ser mais importante do que ela mesma. Para a teologia cristã existe uma essência das coisas, aquilo que faz com que algo seja “isto” e não outra coisa e lhe dá sua especificidade. Buscamos |

17 Tuana, Nancy, “Woman and the history of Philosophy, Paragon House, 1992. - Bennhabib, Seyla, “Situating the self: gender, community and postmodernism in contemporary ethics”, Routledge, New York, N. Y„ 1992.

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sempre a essência de cada coisa, ou, a forma como Deus criou cada ser. É como se todo o nosso conhecimento e ações éticas devessem conformar-se à vontade de uma realidade superior ou a uma realidade natural anterior a nós mesmas(os). Parece que não somos o que somos na nossa cotidianeidade. Há uma pré- definição de nós mesmos, até certo ponto inacessível ao conhe­cimento e ao mesmo tempo reguladora dele.^A pré-definiçãõMo ser humano está na sua finalidade.

Tudo funciona como se, ao longo do processo histórico, ti­véssemos obscurecido essa essência e nossa tarefa será tentar restaurá-la em meio às vicissitudes da vida. Mas, essa restaura­ção histórica nunca é totalmente realizável.

Assim, através de um processo nunca acabado, o ser humano tem a missão de tentar restaurar sua imagem, o ideal no qual foi criado apesar de todos os desvios. O movimento é de volta, embora a vida caminhe para diante, uma volta sem fim a um estado anterior, pré-definido, referência para julgar o presente. Cada nova geração deve recomeçar essa tarefa até que se chegue “ao final dos tem­pos”. Essa compreensão da teologia católica foi fundamentada na Escritura e atribuída à Revelação de Deus. A “essência humana”

I corresponderia à realidade anterior à “queda” de Adão e Eva. A | ela devemos voltar sempre, em busca da unidade perdida.

Como se estabeleceu no imaginário humano a teoria da es­sência ideal? Como se desenvolveu a ponto de servir de modelo para nossa atual maneira de ser? Como se tomou tão universal a ponto de anular as diferenças próprias à nossa condição de seres culturais? Tais perguntas nos assolam quando assuminos a tarefa filosófica de pensar os referenciais teológicos.

A crítica à epistemologia essencialista não anula a fragilidade e a não coincidência do ser humano consigo mesmo. Não anula um sentimento paradoxal de sermos maiores e menores que nós mesmos, não nega nossa dificuldade de amar e fazer o bem. ‘Fazemos o que não queremos e não fazemos o que queremos”, dizia São Paulo. Nossos sonhos são sempre maiores do que nós

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e as frustações são comums em nossa existência. Bem antes das tragédias gregas se expressou o sentimento da dramaticidade da existência humana devida à nossa paradoxal capacidade de ser-

| mos construtores e destruidores da vida, maiores e menores do f que nós mesmos.

Uma epistemologia essencialista não é captada à primeira vista, sobretudo quando se descreve a atividade humana, as di­ficuldades no relacionamento. E difícil captá-la quando se toca nos problemas de injustiça e desigualdade sociais. No conheci­mento teológico existe uma certa negação da realidade paradoxal que nos caracteriza e a afirmação da necessidade de nos confor­marmos a um ideal de ser humano, a um ideal de convivência humana, a um ideal de obediência a Deus/O mais impressionante é que esse ideal é muitas vezes buscado no referencial bíblico, como um dado revelado, para além da realidade empírica. É como se ele pudesse fornecer certezas que legitimariam nosso conheci­mento e ações: eis a epistemologia de referencial essencialista^

A epistemologia essencialista é fundamentalista em relação à Bíblia. Fundamentalista aqui não é necessariamente interpretar os textos ao pé da letra, dar-lhes uma correspondência factual. Sig­nifica tomar a Escritura ou a Bíblia como referência indis­cutível, capaz de me definir a partir do passado ou de um estado ideal, uma essência ideal querida por Deus. A Bíblia conteria elementos expressos na cultura judaica, mas que seriam, “algo” para além de todas as culturas. Ao buscar esse “algo”, as pistas não seguem mais a lógica da razão.

O fundamentalismo bíblico pode até tomar formas progressis­tas e revolucionárias, embora expresse uma característica essen­cialista. J im a variante desta epistemologia estabelece modelos futuros de conhecimento e comportamento, como se caminhásse­mos para um final seguro, pré-estabelecido. Transportam para o

18 Mesters, Carlos, “Paraíso, saudade ou esperança?’’, Ed. Vozes, Petrópolis, R. J. , 1971, p. 31.

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final da História aquilo que no texto bíblico se apresenta como o início ou como aspiração dinâmica por um mundo melhor. Então, por exemplo, fala do paraíso terrestre não como origem, mas como esperança, desejo, sonho coletivo da comunidade cristã. O livro de Carlos Mesters, Paraíso, saudade ou esperança?'*, é um exemplo disso. “O ideal que Deus queria para o homem está descrito na primeira parte (do Gênesis). E o paraíso. Dentro desta narração, o ideal do paraíso funciona como uma imagem- contraste que se opõe parte por parte, realidade do mundo atual, escrita na terceira parte. Então, se não é Deus, quem é o respon­sável por esse mal estar generalizado do mundo e da vida?... responsável é o ADAM, o próprio homem, ele mesmo e nenhum outro. Nele está a origem dos males, então — e aqui está outro objetivo da narração — esse mesmo homem, por sua conversão e iniciativa, poderá rovocar a eliminação dos males e atingir o ideal do paraíso. Todo o esforço neste sentido terá êxito, pois a vontade de Deus não mudou”.

Muitas perguntas poderiam ser feitas a este texto de Mesters, que alimentou a esperança de muitos grupos latino-americanos na década dos 70. Hoje, esta formulação da esperança em termos muito antropocêntricos e idealistas parece enfraquecida e não faltam questionamentos a essa compreensão do ser humano e desta reali­dade última que tudo sustenta e que precariamente chamamos “Deus”.

Algumas pessoas objetariam que isto que chamo de pers­pectiva essencialista é a expressão da esperança humana, a qual corresponderia à afirmação da bondade fundamental do ser hu­mano e da possibilidade de felicidade. Equivaleria a dizer que o mal não tem a última palavra na História humana e sim o bem. Embora admita valor a esta objeção, creio que ela traz uma perspectiva essencialista que colocax) ser humano como substan­cialmente bom. Essa determinação da Substância humana do lado do bem parece cada vez mais problemática. O que nossa expe­riência pessoal nos ensina? O que a convivência com a alegria e o sofrimento humano nos revelam? O que a violência crescente

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nos faz experimentar? O que nos revela esta mistura de maldade e bondade em nossos comportamentos?

Não estaria na hora de tentarjrepensar o ser humano não mais a partir de essências boas, ideais, mas a partir dessa reali­dade cósmica misturada e complexa de que fazemos parte?

Epistemologia monoteísta

A epistemologia monoteísta entende que há um Deus, ou um modelo divino centralizador que toma possível o conhecimento humano. Embora esse monoteísmo tenha origens culturais preci­sas, tenta impor-se às demais culturas como expressão da von­tade e da verdade do Deus Único e Criador. Esse monoteísmo epistemológico se afirma de diferentes maneiras. Não é novidade, por exemplo, a afirmação de que Deus é o “objeto” do conhe­cimento teológico, que tenta captar sua maneira de agir, desejos ou projetos e algo de seu Ser. Deus é tratado como um “objeto” de conhecimento, embora bem pouco objetivo. Para Kant, a afirmação de Deus era um dos postulados da razão prática e portanto não explicável a partir da razão pura. Deus é um objeto sem objetividade, sem personalidade socialmente identificável. Mas é desse “objeto” presente/ausente que fala a teologia; ela não discute a forma de existência de Deus mas parte de sua existência como um dado. Trata-0 como uma “aquisição” incontestável. A meu ver, essa aquisição toca a “iracionalidade”, a criatividade poética e não as “certezas da razão”.

A questão que levanto à teologia patriarcal não é sua insis­tência em falar de Deus, desse Mistério que nos envolve, mas o jeito pretenciosamente objetivo como se falou dele e as conse­qüências históricas desta fala na vida de grupos sociais, sobretu­do oprimidos e mulheres.

O discurso teológico sobre Deus dá-lhe uma consistência histórica, uma imagem e um papel. Mas, quem são os que lhe

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atribuem um papel? Sem dúvida são os seres humanos e, numa estrutura patriarcal, os humanos masculinos, os maiores respon­sáveis pela imagem de Deus veiculada na sociedade. São os que detêm maior parcela de poder social, político e religioso.

Ao conhecermos a imagem de Deus apresentada pelos ho­mens de um determinado grupo social, conhecemos um pouco os mesmos homens dos quais Deus aparece como imagem. Apreen­demos seus valores, hierarquias, paixões e principalmente sonhos.f Conseqüentemente, conhecemos aqueles que falam de Deus e quase desconhecemos aqueles(as) que se calam, que não produ­zem os discursos públicos sobre Deus. Trata-se de fazer aparecer o quanto o discurso sobre Deus da teologia tradicional revela mais as ações masculinas como expressões do divino e obscure­ce o que está fora dos cânones patriarcais. Esta é uma questão epistemológica fundamental a partir da qual se percebe como o gênero masculino se torna o critério de veracidade do conheci­mento e encobre as percepções diferentes.

Alguns exemplos da Bíblia nos ajudam a entender esse monoteísmo epistemológico. O narrador oculto no Gênesis mos­tra os grandes feitos de Deus: “Haja Luz e houve Luz... que a terra verdeje de verdura, ervas que dêem semente e árvores frutíferas... e a Terra produziu verdura... façamos o homem à nossa imagem e semelhança e que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os reptéis que rastejam sobre a Terra”.(l, 26)

Nem sempre se respeitou o caráter transcendente e misteri­oso desse sopro criador. Algumas vezes, ele foi reduzido a um impulso mecânico. É bom lembrar que, no texto, o ser humano não apenas nomeia a criação como obra da Palavra de Deus, mas se nomeia como obra da mesma Palavra. Essa Palavra é absolutamente Transcendente, para além de todas as palavras. Ao examinarmos o texto, verificaremos que se constrói nele uma descontinuidade. O Transcendente, aquele que tudo cria e jus­tifica, é de outra ordem, é um outro Ser absolutamente diferente.

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A Transcendência como realidade absolutamente “outra” se toma o fundamento de tudo o que existe. O que é “totalmente diferen­te” funda aquilo que é, o existente aqui e agora.

Mas, o fato de o ser humano ser entre todas as criaturas o único capaz de nomear suas origens, isto é, nomear Deus, lhe dá o poder de tomar Deus sua imagem, o centro da criação. Ao mesmo tempo que o homem nomeia Deus ou uma imagem de Deus como seu centro, nomeia-se como centro da História. Antropo- centrismo e monoteocentrismo se confudem e se distinguem num mesmo processo. Um depende do outro para viver. Por isso, o monoteísmo ocidental masculino teve chances de assumir uma postura imperialista capaz de destruir as expressões do divino

x consideradas inferiores e excluir as mulheres do “poder sagrado”.Não foram poucos os episódios nos quais em nome do co­

nhecimento do verdadeiro Deus se desrespeitaram seres humanos e culturas, se destruiu, se conquistou e se estabeleceram impérios. Em nome de Deus, as mulheres foram silenciadas, queimadas, submetidas por força do poder que se proclamou como único caminho da verdade.

Outro exemplo tirado da Bíblia esclarece mais a questão da epistemologia monoteísta de expressão masculina. No capítulo 3 do Livro do Êxodo, em que é narrada a vocação de Moisés, o protagonista principal é ainda Deus, embora o herói seja Moisés. “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso, desci para libertá-lo da mão dos egíp­cios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra onde mana leite e mel” (v. 7 e 8).

De novo a “pessoa” de Deus capta a necessidade de liber­dade do povo e parece tomar a iniciativa da saída do Egito. Aqui o povo transforma sua experiência em “palavra” ou “ação de Deus”. Entretanto, ela não é transmitida como “nossa palavra” e “nossa experiência”, mas como sendo uma palavra e uma decisão acima de nós com uma expressão histórica claramente masculina.

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Há uma estrutura básica que preside os discursos sobre as ações libertadoras de Deus. Sempre se pode verificar a transcen­dência absoluta introduzindo-se no mundo da imanência, no mundo dos fenômenos vividos pelos seres humanos. A justiça da qual estes necessitam não parece vir deles, mas de Deus. A denúncia dos males causadores de morte e destruição também provém da ação divina. No fundo, só Ele sabe do que o ser humano neces­sita. Essa estrutura leva-nos a uma organização sociopolítica fun­dada na transcendência absoluta de um Deus que parece influir diretamente no curso da História, embora nem sempre seja vito­rioso. Parece que isso corresponde à estrutura de organização sociopolítica vigente na época, a qual justifica a autoridade dos que detêm o poder de libertar o povo e favorece a conservação de uma estrutura hierárquica necessária à manutenção da ordem social.

Os estudos bíblicos contemporâneos mostram inegável parti­cipação das mulheres no processo libertador descrito pelo Êxodo. Entretanto, do ponto de vista do conhecimento, nosso olhar esta­va limitado às ações masculinas e à transcendência divina expres­sa especialmente a partir de referenciais masculinos. Nosso conhe­cimento é condicionado por aqueles que dão as “cartas do jogo” e detêm o poder do conhecimento e de decisão na vida social.

Epistemologia privilegiadamente androcêntrica

O centro de todo o conhecimento teológico se situa na ex­periência masculina. Assim, o grande representante da luta do Êxodo é Moisés. As figuras femininas desaparecem do cenário. Quase não se percebe que três mulheres preparam o caminho de Moisés: sua mãe, sua irmã Miriam e a filha do Faraó que o criou. A interpretação do texto, se não oculta totalmente a presença dessas mulheres, as nomeia muito discretamente. Phillis Trible, professora de Literatura Sagrada do “Union Theological Seminary”

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de New York, mostra o quanto os traços das ações de mulheres ma Bíblia foram apagados pela dominação patriarcal.

Assim como a criação física (luz, água, verde) parece obra de uma “voz” masculina, também o processo libertador, explicitado como busca de justiça social parece reduzido a uma iniciativa masculina. Ler a História sem perceber essas reduções foi próprio do ensinamento patriarcal. Tal leitura influencia nosso conhecimento, nosso agir e nossa identidade religiosa, cultural, social e pessoal.

A História é compreendida como absolutamente dependente da vontade do Ser Supremo com imagem masculina. Este parece tomar partido e embora nem sempre se identifique de que lado está, o mundo bíblico situa-o freqüentemente junto dos amantes da justiça e da misericórdia (de gênero mais masculino que feminino). Assim, as grandes decisões sociais e políticas e as obras de justiça e misericórdia proviriam do sexo masculino. O mundo doméstico, território das mulheres, não entraria na grande aventu­ra de fazer acontecer a justiça, a solidariedade e a paz. Ao contrário, é o lugar de violentos castigos de Deus. Exemplos típicos são a história de Eva e de Miriam, irmã de Moisés e Aarão.

Phillis Trible analisa tal situação: “Míriam se muda com o povo de Israel para o deserto enquanto desaparece do Êxodo. Mais tarde ela retoma na Bíblia, em conexão com um possível choque de liderança, do qual emerge. Esse ressurgimento ocorre no Livro dos Números, em que Míriam e Aarão são ouvidos acerca da autoridade de seu irmão. ‘Será que o Senhor falou apenas através de Moisés?’ Javé não puniu Aarão, mas Míriam: por sua rebeldia, foi atingida por uma doença de pele, talvez lepra, vindo a morrer mais tarde por causa dela.”19

19 Phyllis Trible, “Women and the Bible”, entrevista feita por Murphy, Cullen em The Atlantic, August 1993, p. 50. Ver também o artigo de Phillis Trible, “Eve and MiriarmFrom margins to the Center” in “Feminist Approaches of the Bible”, Edited by Hershel Shanks, Biblical Archaelogy Society, Washington, D. C. , 1994.

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Comportamentos semelhantes se reproduzem hoje em nossa cultura patriarcal. As mulheres são sempre acusadas e conside­ram-se culpadas quando sua família não cresce harmoniosamente, quando os filhos têm problemas escolares e outros. A história oficial é sempre masculina, mas suas conseqüências nefastas com freqüência recaem sobre os ombros femininos.

O mesmo se dá nas igrejas. As mulheres são sempre mais responsabilizadas do que os homens. Ver o ensinamento que se refere à limitação da natalidade e ao planejamento familiar. Os juizes masculinos são mais condescendentes com seus seme­lhantes!

Até esse final de século, a dogmática teológica, cristológica e mariológica estabelecida particularmente na Igreja Católica vinha sendo objeto de controvérsias entre diversas tendências mascu­linas. As mulheres não participavam ativamente nessas discus­sões. Hoje a situação é diferente. Há uma reversão do quadro patriarcal. Mulheres buscam expressar à sua maneira a fé e con­vicções e tal comportamento levanta sérias perguntas à dogmática tradicional. “Afinal Deus falou apenas pela boca de Moisés?”, gritou a irada Míriam, no Livro dos Números, 12, 12.

Epistemologia de verdades eternas

A epistemologia patriarcal, especialmente a teológica, repou­sa em “verdades eternas”. O que significam elas? São verdades indiscutíveis, a substância na qual repousariam conhecimentos verdadeiros porque seriam manifestação da Luz divina em nós.

Afirmar Deus como Ser Absoluto, criador de todas as coisas, faz parte dessas verdades etemas. Acrescentam-se as verdades reveladas que segundo a tradição cristã não podem ser condici­onadas aos diferentes contextos sócio-culturais embora se mani­festem neles. É como se elas aparecessem na história concreta mas proviessem de uma realidade para além ou anterior a ela. Tal

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perspectiva nos abre para o mundo da experiência humana natu­ral e ao mesmo tempo para a Revelação sobrenatural, ato gra­tuito da bondade e misericórdia de Deus. A Revelação sobrena­tural, nessa perspectiva, é indiscutível e daria sustentação à nossa busca de verdade. Deve estar sempre presente em qualquer ela­boração teológica e na experiência cotidiana de fé dos crentes. Do ponto de vista epistemológico estaríamos articulando em nossa própria experiência cognitiva dois tipos de fenômeno: um, obra da reveíação divina; outro, obra da fé e experiência humanas. Estaríamos situados em dois níveis cognitivos: conhecimento na­tural; conhecimento sobrenatural. Um não se opõe necessaria­mente ao outro, mas há prevalência do sobrenatural sobre o natural, como do espírito em relação à matéria.

Essa estrutura epistemológica fica clara, por exemplo, no livro de Ronaldo Munoz, O Deus dos cristãos10:

“( . . . ) nós, os que cremos em Jesus Cristo, cremos que com sua ressurreição dentre os mortos seu DEUS foi confirmado como o verdadeiro e o ‘Deus’ de seus juizes condenado como falso. Cremos que nessa ‘crise’, nesse juízo feito por Deus mesmo entre Jesus e seus condenadores, nos foi dada a chave definitiva para — em qualquer tempo, em qualquer situação social e ecle­siástica — reconhecer a imagem do Deus vivo, distinguindo-a de suas caricaturas e falsificações.”

O nível de certezas que se infere destas afirmações parece provir da estrutura metafísica platônico-aristotélica acoplada à tradição teológica, à trágica experiência de Jesus na sua luta-pela vida dos marginalizados. A ressurreição é afirmada como um evento após a morte de Jesus e como uma vitória de “seu Deus”. Aqui não se trataria de simbologia, a partir da qual se abririam novos significados, mas de “verdade eterna”, “verdade revelada”, constitutiva e imutável de nossa fé. O que toca nossa experiência

20 Munoz, Ronaldo, “O Deus dos cristãos”, Ed. Vozes, 1986, p. 26.

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se oculta e dá lugar a afirmações de princípio que até hoje inco­modam diante da tragicidade de nossa vida concreta.

No texto, o Deus verdadeiro, o Pai de Jesus Cristo é afirma­do como “o Deus verdadeiro” e portanto como Verdade indubi­tável. As provas para esta afirmação são de ordem até certo ponto histórica, porém interpretadas a partir de uma metafísica dualista e a-histórica.

Entretanto, numa estrutura não metafísica, a ressurreição seria afirmada prioritariamente como a própria prática histórica de Jesus, a qual lhe valeu a morte. Essa prática, continuada por seus dis­cípulos e discípulas, é que é continuamente ressuscitada. Numa estrutura teológica diferente não se afirma a ordem metafísica da ressurreição, necessária no esquema patriarcal dada a afirmação de Jesus como verdadeiramente homem e Deus. Acolhe-se o mistério enigmático e processual da Vida. Silencia-se diante de seu silêncio e acolhe-se o mistério da vida e da morte como realidade sempre maior do que toda compreensão humana. Silen­cia-se também diante das tão sutis distinções entre os falsos deuses e o Deus verdadeiro: elas introduzem na estrutura metafísica deste pensamento um julgamento de valor, certo moralismo e redução da Transcendência a conflitos históricos. Do ponto de vista teó­rico, este pensamento encerra também contradições flagrantes. A quem pertence a autoridade na afirmação das verdades eternas? Como se estabelece sua eternidade e o que seria mesmo esta eternidade? Como seriam estas verdades se não se sustentassem por sua pretensa eternidade? A que modelo de História corres­pondem? A que modelo de ser humano nos remetem?

A partir dessas hipóteses, consideradas fora da ótica dogmática tradicional, a proposta de Jesus não introduz nenhum esquema que poderia ser identificado ao das verdades eternas. Sua pro­posta de fraternidade não é nem um programa político nem uma afirmação metafísica. Trata-se de uma orientação da existência, de um caminho a ser construído e aberto a partir dos imprevistos e previstos da vida cotidiana, a partir do encontro com os

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excluídos(as). Não é metafísica dizer que o Reino é semelhante ao fermento que uma mulher mistura à farinha, ou a um grande banquete em que todos(as) se saciam, ou a pães multiplicados que matam a fome da multidão. É lição ou sabedoria tirada do cotidiano da vida, daquilo que toca nossos corpos e tece nossas relações. Abre-se aqui uma pista relativa às cristologias feminis­tas. Entretanto tal enfoque foge ao objetivo deste livro.

Epistemologia aristotélico-tomista

A epistemologia presente especialmente na Igreja Católica Romana conserva a estrutura aristotélico-tomista, própria da Ida­de Média. A maneira como Aristóteles, e mais tarde Santo To­más de Aquino, entenderam e organizaram seus conhecimentos se tomou uma espécie de óculos a partir dos quais entendemos nossa vida e a fé cristã. Aristóteles que viveu no IV século A.C. e Tomás de Aquino que viveu no século XIII forneceram os referênciais para compreendermos as “verdades de nossa fé”.

Essa maneira de entender o mundo consiste em distinguir entre as verdades adquiridas pela razão natural e as verdades da fé. Não há contradição entre elas, mas diferença. A razão natural pode provar a existência de Deus, mas não a Trindade, a Encar­nação, a Ressurreição. Estas são as verdades da fé, que conhe­cemos através da revelação presente na Sagrada Escritura. A razão nunca pode contrariar as verdades da fé e a razão deve estar submissa às verdades da fé.

A ordem dos conhecimentos naturais pode ser modificada, mas não a ordem dos conhecimentos revelados por Deus, as verdades da fé. Há uma estrutura básica considerada acima da contingência dos lugares e dos tempos. Entretanto, essa estrutura “imutável”, que veio diretamente de Deus, se explicita num certo tempo e espaço, sendo acolhida pelos crentes como caminho de salvação.

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A revelação divina feita num tempo histórico é vivenciada como presente gratuito em vista da salvação da humanidade. Na perspectiva da teologia tradicional, ela não pode ser mudada pois corre-se o risco de mudar o próprio “depósito da fé” entregue por Deus.

Do ponto de vista epistemológico revela-se a presença de uma estrutura de conhecimento teológico limitada por afirmações imutáveis. As perguntas sobre nossa fé e sua formulação podem ír até certo ponto. Não podem ultrapassar o limite das “verdades de fé”. Pode-se dizer muitas coisas sobre Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria, mas tudo o que dissermos seguindo nossa cria­tividade deve manter as mesmas verdades “reveladas”, confir­madas pelos concílios ecumênicos em suas declarações dogmáticas. Elas ganham quase uma existência em si mesmas e não podem ser questionadas pela história e vida das comunidades cristãs. A partir delas também se afirma o poder dado às auto­ridades eclesiásticas masculinas como guardiãs da fidelidade a esta doutrina. Tais autoridades exercem o controle sobre o que os fiéis podem e devem crer, afirmando seu poder como emana­do de Jesus Cristo, fundador da Igreja segundo a vontade abso­luta de Deus.

Embora se fale em “comunidade de fé”, em consenso entre seus membros, esse esforço democrático teve pouco lugar na história das igrejas cristãs. Por várias razões, a Igreja se opôs ao modernismo e ao diálogo mais aberto com os grandes problemas do mundo. Seu fundamento “não era deste mundo” embora seu poder aqui se manifestasse com força. A Igreja Católica Romana, especialmente, permaneceu com uma epistemologia paralela à epistemologia racionalista e mecanicista da Modernidade. Não aceitou bem a autonomia da busca científica. Condenou, perse­guiu e até matou os que ousavam discordar do conhecimento explicitado a partir das verdades eternas.

A epistemologia do cristianismo afirma as verdades da fé como imutáveis no interior do processo histórico. E como se tudo

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mudasse, mas algumas coisas permanecessem iguais a fim de garantir a imutabilidade de Deus.

Este esquema que encobre a estrutura dualista da teologia cristã não permite a formulação dos valores humanos inerentes à experiência dos seguidores de Jesus de forma diferente da esta­belecida dogmaticamente e considerada inquestionável. Podería­mos até dizer que a experiência de Jesus, sua luta contra os poderes destruidores do ser humano foi reduzida a um esquema intelectual que muitas vezes viola nossa razão, violenta nossas percepções e agride nosso coração. Este esquema dogmático dualista, a meu ver, não permite a flexibilidade necessária à com­preensão dos valores que deram substância à vida de Jesus e à nossa vida.

Do ponto de vista dos valores se poderia falar da sua univer­salidade histórica. O amor, a misericórdia, a prática da justiça são valores sem os quais a convivência humana seria impossível. Nesse sentido seriam universais, embora sua interpretação seja particu­lar e muitas vezes ambígua. Lembrar tais ambigüidades ajuda a não cair em novos idealismos.

A perspectiva dualista fundada nas verdades eternas cria barreiras para a reflexão feminista. As mulheres estão fora do que se afirmou como “revelação” e por isso suas reivindicações são consideradas heterodoxas e quase heréticas. A abertura episte- mológica que propõe implica uma maneira diferente de ver o mundo, os seres humanos e sua relação com o Mistério Último que nos constitui. Ela desestabiliza as “verdades eternas”, ques­tiona seu caráter parcial e pretendidamente universal.

Pode-se objetar que depois do Concílio Vaticano II e, na América Latina, com a Teologia da Libertação, se introduz uma nova epistemologia. Creio que o Concílio trouxe em primeiro lugar uma abertura aos grandes problemas especialmente do Primeiro Mundo; surgiu uma tentativa de diálogo e de aproxima­ção institucional em relação a diferentes igrejas e religiões; se abre também um diálogo maior para as questões de justiça social

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a nível mundial. Cresceu um espaço para o debate de questões e desafios lançados pelos cientistas. Mas não houve propriamente mudança de epistemologia. A cosmologia e antropologia cristã continuaram as mesmas, embora a linguagem dualista tenha sido mitigada sobretudo pelo trabalho dos setores progressistas.

Quanto à Teologia da Libertação, seu mérito foi recuperar a situação dos pobres como uma questão teológica fundamental e a partir daí alimentar uma espiritualidade de libertação das dife­rentes opressões, especialmente os pecados sociais. Mostrou a relação íntima entre a adesão a Jesus e a luta contra as cotidianas injustiças sociais do continente.

A Teologia da Libertação introduziu autores do Iluminismo moderno como Marx e Engels que, apesar dos méritos incontes­táveis, guardaram a estrutura mecanicista da ciência de seu tempo na compreensão da História. Assim, a Teologia da Libertação parece sobrepor à epistemologia antiga e medieval uma episte­mologia moderna e mecanicista em que à primeira vista parecem harmonizar-se conceitos como luta de classes, sociedade sem classes e Reino de Deus. Mas não se introduz uma nova abor­dagem: apenas se acrescentam aspectos da epistemologia da modernidade numa perspectiva teológica de libertação integral dos pobres da América Latina. Por exemplo, a reinterpretacão de Jesus de Nazaré não critica a dogmática tradicional, não faz a desconstrução do dogma cristológico, mas o relê à luz da opção pelos pobres e da luta pela justiça.21 Trata-se de uma tentativa de harmonizar dois universos epistemológicos sem a eliminação ou modificação de nenhum deles. A questão é saber qual prevalece com mais intensidade no discurso teológico. A resposta não é fácil pela sua complexidade e pela diversidade dos autores, teó­logos da Libertação. Dado o limite desta reflexão não podería­mos aprofundar este aspecto de forma exaustiva. Alguns exem-

21 Sobrino, Jon, “ Cristologia desde América Latina”, México, Centro de Reflexion Teológica, 1977.

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pios poderão ajudar a entender melhor minha reflexão. Começo por Gustavo Gutierrez:

“O Deus feito carne, o Deus presente em todos e em cada um dos humanos não é mais ‘espiritual’ que o Deus presente no monte, no templo. É, inclusive, mais ‘material’, não está menos empenhado na história humana; pelo contrário, seu compromisso é maior com a realização de sua paz e sua justiça entre os hu­manos. Não é mais ‘espiritual’, e sim mais próximo, visível e, simultaneamente, mais interior.

Desde que Deus se fez homem, a humanidade, cada pessoa, a História, é templo vivo de Deus vivo. O ‘pro-fano’, o que está fora do templo, não existe mais”22

Não se trata de uma crítica ao pensamento de Gutierrez, mas de uma discussão teórico-prática para tentar ver por onde vão as setas que indicam os novos caminhos para hoje. A teo­logia tradicional é muitas vezes necessária para afirmar a diferen­ça dos caminhos novos.

Não se trata também de querer que Gustavo diga o que não poderia dizer, dada a sua formação e o contexto sócio-eclesial em que atua. O que pretendo é que se perceba como certas linhas de pensamento e ação se incorporam aos movimentos sociais e como é preciso ver os fios que a constituem para tentar captar sua estrutura epistemológica.

O caráter antropocêntrico e androcêntrico da Teologia da Libertação é indiscutível nesse exemplo. Trata-se de Deus na história dos homens, um Deus que continua sendo o Criador e Senhor. A partir daí, toda a tradição tomista sobre Deus, a Encarnação é recuperada. Não se sente a necessidade de rever as bases cosmológicas e antropológicas da formulação da fé cristã. Salva-se a bondade e a justiça de Deus sem se perguntar sobre as conseqüências das imagens de Deus ao longo da história.

22 Gutierrez, Gustavo, “Teologia de la Liberación”, Ed. Sigueme,Madrid, 1970, p. 250.

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Não faço julgamento de valor: apenas cito um exemplo tirado de uma obra pioneira para mostrar como o evento Jesus de Nazaré é lido a partir de uma estrutura epistemológica que continua a traba­lhar em dois níveis, mesmo ao tentar superar a distinção entre o sagrado e o profano. O julgamento da História é ainda de ordem transcendente e marcado pela anterioridade da Revelação cristã. É como se a Revelação cristã pudesse ser juíza da História.

Esse pensamento dos anos 70 parece continuar nos anos 90: “O motivo último do compromisso com os pobres e oprimidos não está na análise social que empregamos, em nossa compaixão humana ou na experiência direta que possamos ter da pobreza. Todas elas são razões válidas que jogam sem dúvida um papel importante em nossas vidas, mas enquanto cristãos esse compro­misso se baseia fundamentalmente no Deus de nossa fé. E uma opção teocêntrica e profética que afunda suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é exigida por ela.”23

Embora se concorde com a totalidade da postura ética de Gustavo Gutierrez sobre as interpelações dos pobres à comuni­dade cristã, há uma estrutura de pensamento que se situa no referencial epistemológico aristotélico-tomista. A “discontinuidade” entre a vida de Deus e a humana continuam a ser acentuadas. Isto não significa que tal referencial seja ruim, mas não dá conta da realidade atual e não responde mais aos desafios lançados neste final de milênio. Afirmar um Deus da História é comprometer-se com os pobres e este compromisso não vem de nossa solidarie­dade coletiva, mas de Deus. Há um desnível lógico nesta afirma­ção e uma consideração implícita de que o compromisso humano para os cristãos está ligada à fé em Deus. Creio que isto é compreensível. Mas, de que imagem de Deus se nutre esse com­promisso? Sem dúvida, um Deus libertador: mas com que ima-

25_________, “La opción preferencial por los pobres”, in “La religionen los albores del siglo XXI”, Ed. Universidade de Deusto, Bilbao, 1994, p. 116.

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gens históricas? Serão igualitárias? São inúmeras as questões. Entretanto, uma primeira questão se impõe para quem procura novos caminhos: “Seria o cristianismo pensável fora das estrutu­ras filosóficas tradicionais? Seria possível pensá-lo a partir de outros referenciais; para além das formulações dogmáticas que marcaram tantos séculos de História?”

Tais questões nos surgem com freqüência e não temos uma resposta satisfatória. Minha resposta pessoal, na provisoriedade, é ser possível um caminho diferente da filosofia grega clássica e do tomismo, embora estejamos no mar das inseguranças e das discussões doutrinais. Acredito num outro caminho epistemológico a partir do qual a experiência do “movimento de Jesus”24 pode se expressar de forma mais inclusiva e menos patriarcal.

b) Epistemologia ecofeminista

Falar de epistemologia ecofeminista pode parecer estranho e até pretencioso. A questão que nos interessa é abrir a percepção a fim de captar os aspectos fundamentais da vida, ocultados de nosso campo cognitivo. O ecofeminismç) nos abre para outras conexões, denunciando o caráter ideológico de boa parte da ciência patriarcal.

A perspectiva ecofeminista tenta introduzir outra epistemolo­gia por sua percepção diferente do ser humano, de sua relação com a Terra e com o Cosmos. Claro, não se pode ter a preten­são dos começos absolutos. Somos um mesmo corpo em pro­cesso, em crescimento e não se podem negar os momentos das fases anteriores como se fosse possível recomeçar de um ponto

24 Elisabeth Fiorenza cunhou esta expressão “movimento de Jesus” para indicar a necessidade de sairmos da referência absoluta aos heróis patriarcais. Cf.: “In memory of her: a feminist Theological Reconstruction of Christian Origins”. New York, Crossroad, 1983.

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zero. Sabemos que conhecer, organizar e reorganizar o sentido de nossa vida e das coisas é tarefa relativa e nunca acabada.

O que chamamos de “conhecimento” é a maneira mais plau­sível de dizer algo do mistério que somos e no qual somos, É uma das expressões de nossa maneira reflexiva de existir, de expres­sarmos nossas imagens do universo, das relações humanas, per­cepções, desejos e sonhos.

Algumas afirmações, fruto de vivências, integram a epistemo­logia ecofeminista. Esta é um esboço cujos contornos expressam aspectos da busca sempre recomeçada pelo mundo do conheci­mento. Movemo-nos num horizonte no qual se podem acrescen­tar percepções, corrigir outras, incluir aproximações diferentes, reconhecendo o desafio e o mistério da palavra “conhecer”.

Conhecer não é, em primeiro lugar, um discurso racional sobre o que estamos conhecendo. Conhecer é antes experimentar e nem sempre se consegue traduzir em palavras o que se experimenta. Aquilo que dizemos conhecer é um pálido desenho do que experi­mentamos. O que se diz é apenas uma tradução limitada do que se experimenta. Por isso, o que se experimenta não é pensado de maneira completa pela razão nem consegue ser expresso de for­ma exautiva por palavras. A palavra está sempre aquém da ex­periência, embora seja o único meio de expressá-la. A palavra poética, musical ou pictórica são aproximações do que sentimos.

Nesta perspectiva, é fundamental perguntar: “A que experiên­cia humana corresponde tal afirmação?”. Dizer em palavras pro­visórias e limitadas qual é nossa experiência em relação a isto ou àquilo é tentar traduzir não só as vibrações que atravessaram nosso corpo mas também nosso silêncio meditativo sobre coisas e fatos da vida. Este seria o segundo passo do que chamamos de “conhecimento”. O primeiro passo é só nosso, aquilo que senti­mos acontecer nos limites de nosso corpo, de nossa intimidade pessoal. O segundo passo é a expressão do que conhecemos e esta expressão toma formas variadas segundo os condicionamen­tos a que estamos expostos. Entre o primeiro e o segundo passo

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não há um hiato temporal, da mesma forma como não há inicial­mente a inspiração e depois a poesia. A poesia já é palavra inspirada e a palavra inspirada é tradução de algo que vivenciamos. A expressão literária, artística ou cotidiana é reveladora da não- coincidência de nosso eu conosco mesmas(os). Essa mesma “rea­lidade” pode ser dita da teologia.

O que afirmamos serem verdades da teologia são experiên- cias de diferentes tipos feitas por algumas de nós, expressas segundo nossa cultura e vivências. Nós as repetimos como se fossem nossas mas muitas vezes sem tomá-las próprias. Nós as repetimos como lição aprendida na escola ou como argumento de autoridade. Aqui começa a perda dos significados religiosos.

Por isso, se não tomamos nossas essas experiências, corremos o risco de quebrar a sequência experiencial da vida, dos significados dados através do vivenciado. Fazemos delas “verdades” superiores ao nosso corpo, à experiência e ao cotidiano. Damos-lhes quase existência própria, independente da experiência limitada que as provocou e das palavras limitadas em que foram expressas.

A medida que as distanciamos de suas origens e de nós mesmas(os), fazemos com que tenham um poder oculto sobre nós. Não se trata de um processo unicamente pessoal, mas co­letivo. A maioria de nós herdou as verdades da religião como experiências superiores de outros tempos, vindas talvez de outros mundos, que chegam até nós para serem aceitas, confirmadas e contempladas. Embora digamos que vivemos uma religião, na maioria das vezes nos apropriamos apenas epidermicamente des­sa vivência. Tal postura justifica em parte o desenvolvimento dos “poderes sagrados”, de sua autoridade sobre a vida das pessoas, das manipulaçães que encerram e dos medos que provocam. É como se apenas os “sábios” e “poderosos” na hierarquia religiosa conhecessem os segredos da religião e experimentassem seus profundos mistérios. Fazer a pergunta a partir da experiência é democratizar esses poderes fazendo perceber que eles existem de formas variadas nos diferentes seres e grupos humanos.

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Quando fazemos a pergunta “a que experiência humana corresponde falar de Deus, de Encarnação, de Trindade, de Ressurreição, de Eucaristia?”, nos enchemos de espanto. Às vezes parece que estamos à beira do ateísmo ou da heresia porque estas perguntas só se justificam naqueles que foram adoecidos pela dúvida ou perderam o respeito pela autoridade das igrejas. Nos sentimos tomadas(os) de medo por ousar perguntas como estas. Entretanto, elas animam a perspectiva ecofeminista. Recu- perar a experiência humana, permitir que aflorem em nossa mente e corpo ò significado de nossãsTcrenças mais profundas é o fio condutor desta epistemologia. Recuperar a experiência hu­mana é dar-lhe o valor que de fato tem, para além da multiplici­dade de palavras e expressões que usamos para explicitá-la. Recuperar a experiência humana é situar-nos na tradição de nossos antepassados e antepassadas, cujos corpos vibraram como os nossos ao vivenciar a atração e repulsão vivida em relação a tantas coisas de nosso cotidiano.

Isto tudo nos abre para o combate a alienações que nos mantêm cativas(os) de um sistema autoritário que limita nossa capacidade de beber de nossa experiência. Recuperar a expe­riência não é afirmá-la isolada, individualista ou apenas antropo- cêntrica. O antropocentrismo presente em nós, e é inegável pela nossa condição humana, deveria partir de um biocentrismo mais amplo. Nossa consciência humana reflexiva não existe separada do conjunto de nosso Corpo Sagrado. Não podemos prescindir de nossa realidade humana nem de nossa realidade cósmica mais ampla e da realidade do ecossistema.

A partir de nossas experiências nos afirmamos não só ho­mens e mulheres, mas também experiencialmente na e da Terra, no e do Cosmos e tendo-os em nós. É a partir de minha respi­ração que percebo o ar, sua importância, sua presença atraves­sando todos os seres vivos. Embora o ar seja maior que minha respiração, só posso falar dele com um mínimo de autoridade porque o experimento como vital. E a partir da atração que sinto

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por outros corpos que posso vislumbrar palidamente a força de atração que existe na Terra. Como escreve Rosemary Radford Reuther no livro Gaia & God: “A capacidade de ser consciente é em si a experiência da interioridade de nosso organismo feita possível pelas células altamente organizadas de nosso cérebro e sistema nervoso e que constituem a base material de nossa expe­riência de consciência. A consciência humana, então, deveria separar-nos do resto da ‘n a freza ’. Mais, a consciência é o local onde esta dança da energia se organiza em vias crescentemente unificadas, até que se reflita a si mesma sob forma de autocons­ciência. Ela está e deve estar onde reconhecemos nossa integração com todos os outros seres”.25

A partir daí se pode falar de algumas características da epis- temologia ecofeminista que está em gestação e em busca de seu corpo de referências.

A interdependência no conhecimento

Se tomamos a experiência de cada ser vivo, podemos dizer que a interdependência é sua primeira nota constitutiva./A interdependência ou relacionalidade é a experiência mais básica de todos os seres, anterior à nossa consciência dela. /

Por isso também se pode dizer que o ponto central da epis- temologia ecofeminista é a interdependência entre todos os ele­mentos que tocam o mundo humano. Esta afirmação vem de nossa experiência. Basta estarmos atentas(os) para o que acon­tece com nosso corpo, por exemplo, quando sentimos alguma dor intensa. Os gestos mais habituais se tomam difíceis. Quando respiramos com dificuldade até nosso pensamento, ou capacida­de de expressar ternura são afetados.

25 Reuther, Rosemary Radford, “Gaia & God - an Ecofeminist Theology of Earth Healing”, Harper San Francisco, 1992, p. 250.

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Interdependência significa acolher como fato básico que uma situação vital, comportamento ou crença é fruto de todas as interações que constituem nossa vida, história, realidade terrena e cósmica mais amplas. ̂ Não se trata apenas da interdependência e relação com os outros seres humanos, mas com a natureza, as ̂forças da Terra e do Cosmos. O conhecimento é um ato humano no que se refere ao tipo de elaboração e consciência particulares a nosso tipo de organização vital, mas é também conhecimento animal, vegetal e cósmico em nós^Essa segunda forma de inter­dependência não é trazida à luz de nossa consciência e quase não é considerada. Não lhe damos importância porque parece óbvio que, se vivemos em algum lugar, é a partir dele que respiramos, nos alimentamos, caminhamos. Entretanto, nossos sentidos ainda não estão educados para dar-lhe importância. No momento em que o fizermos, seremos capazes de cuidar da Terra e seus habitantes como parentes próximos, como partes de nosso corpo maior, sem o qual nenhuma vida e conhecimento individuais são possíveis.

A perspectiva ecofeminista quer abrir-nos para a importância de um Corpo Maior que meu própio eu individual a fim de alargar nossa capacidade de respeitar e cuidar dele. Não se trata de negar minha individualidade e todas as minhas experiências pessoais. Trata-se de uma convocação em vista de uma percepção maior de nosso Ser Maior e de uma abertura para captar outros recursos disponíveis em nossa existência que não se limitam ao horizonte antropocêntrico.

A partir da interpendência delineia-se uma nova compreensão do conhecimento. Temos de abrir-nos para experiências mais amplas do que aquelas a que nos habituamos secularmente. Te­mos de introduzir nos processos educacionais a perspectiva de “comunhão com” e não a de conquista da Terra e do Cosmos. Daí se reduziria a competitividade nas escolas e na organização econômica e nos abriria para o cultivo de qualidades esquecidas neste sistema hierárquico e excludente.

A história da filosofia ocidental nos revelou diferentes aspec­tos do ser humano, desde sua dimensão de animal racional até a

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sua solidão e “ser para morte”. Embora essas filosofias mante­nham valor e a capacidade de expressar muito do que experi­mentamos, o ecofeminismo nos convida a sair da subjetividade fechada e da consideração do mundo e dos outros como objetos submissos à nossa vontade.

Não se trata apenas de afirmar a relação entre o sujeito humano e os objetos de conhecimento mas perceber que os objetos estão contidos no sujeito. O sujeito é sujeito e objeto não separado, mas interdependente, inter-conectado com tudo o que se propõe a conhecer. E o conhecimento pessoal é apenas um aspecto dessa relação. Trata-se de articular subjetividade/ obje­tividade, individualidade/ coletividade, transcendência/ imanência, temura/compaixão/solidariedade, plantas/humanidade, animais/hu­manidade a partir de uma perspectiva englobante.

.0 drama existencial do ser humano não é isolado, embora saibamos que a dor maior é misteriosamente sentida em cada ser. Nossa trágica situação de miséria, violência, júbilo, ternura e esperança é uma relação íntima com o conjunto de nosso Corpo Cósmico e nos abre para uma nova compreensão do ser humano. Nessa epistemologia, o “humano” aparece na sua espantosa co­nexão com o “não humano”. Assim, não se podem mais reduzir as experiências humanas a um tipo de consciência existencial moderna, mas tentar uma nova compreensão de nosso ser pes­soal no Ser Maior, no Corpo Sagrado da Terra e do Cosmos.

Admitir a interdependência entre todas as coisas pareceria quase uma evidência e o fato de admiti-la não modificaria nosso conhecimento. Muitas vezes se admite a interdependência de forma mecanicista. Mas o que propomos não é uma interdependência mecânica, mas vital, visceral, sagrada.

Esta interdependência sagrada exigiria uma modificação radi­cal nas economias de mercado transnacionais que não respeitam as culturas regionais e quase sempre agridem o solo e as popu­lações ali estabelecidas. Isto exigiria uma nova compreensão da constituição das nações ligadas a etnias, usos e costumes assim

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como uma nova rede de relações entre os povos. Isto exigiria a extinção das indústrias de armas e o incremento de nossas frentes de trabalho. Isto exigiria repensar a teologia cristã não a partir do dogma pré-estabelecido mas da vivência concreta dos grupos que se inspiram da mesma fonte de sabedoria que inspirou Jesus de Nazaré. Essa fonte tem de ser acolhida como múltipla e di­versificada. Abre-se um novo diálogo entre as religiões, fundado no respeito às formulações diferentes e sobretudo na abertura a um aprendizado de novos caminhos de convivência humana e ecossistêmica. Melhor seria falarmos de diálogo entre religiões diferentes e não de religiões não-cristãs para não conservarmos o ranço da superioridade imperialista que caracterizou o mundo cristão. A interdependência do conhecimento abriria uma nova página na teologia cristã, levando-nos a afirmações mais existen­ciais, humildes, aproximativas e dialogais.

A realidade processual do conhecimento

A epistemologia patriarcal acentuou uma perspectiva de pro­gresso do conhecimento em linha reta. A linearidade evoca o caminho da retidão, com conotação moral. O melhor estaria sempre adiante e para além de nós.

Estamos longe da curva que se assemelharia aos caminhos tortuosos e moralmente desviantes. Estaríamos longe da espiral, dos polígonos de múltiplos lados, das formas criativas cujos con­tornos não têm nome. Na linearidade embora cheia de acidentes, a finalidade do conhecimento teológico sempre se apresentou de forma clara. Esta se apresenta como o conhecimento “verdadei­ro” sobre Deus e sobre Jesus Cristo. Falar de lineraridade do conhecimento é referir-se a sua causalidade. E preciso voltar ao começo da linha para descobrirmos as causas e no final encon­traremos o mesmo começo. E uma linearidade circular. O come­ço parece ter algo de explicativo, de regenerativo. Sem dúvida é

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significativa essa experiência numa perspectiva que se quer alter­nativa, mas é preciso superar essa linearidade e acolher a com­plexidade da realidade processual que somos.

A perspectiva ecofeminista prefere a palavra “processo” a “li- I nearidade’ Conhecimento processual significa que, ao conhecimento

I global da humanidade, acrescentamos algo de múltiplas formas quenão necessariamente obedecem a uma causalidade previsível. Perde­mos sempre algo de experiências, de sabedorias, de poesias.

Conhecer é perceber, captar, organizar, perder, transformar em forma de sentido o universo no qual existimos. E este é um processo contínuo, como as peças de um caleidoscópio passível de novos arranjos. Basta um leve balanço para que tudo se organize de outra maneira, algumas formas se percam e não consigamos recuperá- Íasi/Nessa perspectiva não se consagra um momento do passado ou do futuro como um paradigma para todos os tempos mas afirma- se a extraordinária dinâmica do conhecimento condicionando-a às necessidades vitais dos grupos humanos. /

Há populações que não modificaram hábitos ancestrais en­quanto outras já ultrapassam a era atômica. Daí se deduz que o conhecimento não é inerte, mas diversificado segundo os condicio­namentos por que passamos. Sobretudo, o conhecimento é movi­mento a partir de uma determinada cultura, de um grupo historica­mente situado/Não se pode estabelecer certo conhecimento cultural como o ponto central e paradigmático a partir do qual todos deve­riam ser julgados. Por isso, todo conhecimento é relativo ao mundo a partir do qual se conhece e às pessoas que realizam o ato de conhecer. Mais uma vez a palavra “processo” expressa melhor a experiência humana cotidiana e nossa estrutura cognitiva. ■

Espírito/matéria, mente/corpo

O discurso da unicidade do corpo e do espírito já foi objeto de muita discussão. Entretanto, é preciso tirar as conseqüências

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disso, para uma elaboração antropológico-teológica diferente. Com freqüência essa unidade foi apenas afirmada para se opor ao dualismo tradicional e se tomou um jeito novo de camuflar esse dualismo.

Como diz Rosemary Radford Reuther: “O conceito de dois tipos de corpos permitiu à teologia explicar a imortalidade do ‘corpo criado’ como a passagem do corpo mortal para o corpo imortal, ‘espiritual’. Se toda matéria é material e mortal, e não há mais um refúgio celeste espacialmente localizado no cume do sistema cósmico, então esse retrato do mundo onde Deus paira e a alma vive com seu corpo transfigurado vai para a morte e desaparece.”26

Concretamente, falar de unidade de nossa realidade humana implica afirmar outra cosmologia, outro “retrato” do mundo, outra imagem de Deus. E isto é um grande desafio para o ecofeminismo.

A antropologia cristã tradicional baseia-se na distinção dua­lista entre “coisas do corpo” e “coisas da mente” ou do espírito. No universo teológico distinguem-se as coisas de Deus das coi­sas do mundo e humanas. Privilegia, nessa perspectiva, uma teologia da ressurreição bastante vulgarizada que conserva o dualismo. O discurso sobre a ressurreição como um “acontecimento” pós-morte anula a importância das ressurreições, das simples conquistas co­tidianas, dos gestos de justiça, ternura e beleza na história.

Na perspectiva filosófica tradicionaE.o discurso em relação ao corpo e ao espírito não se refere apenas a uma linguagem para expressar maneiras diferentes de captar nossa realidade, mas se refere a duas “substâncias” conjugadas na existência.

Trata-se de uma metafísica com contornos definidos, de uma cosmologia, antropologia e epistemologia que se fixaram e privi-

| legiaram um mundo em detrimento de outro, partes do corpo em detrimento de outras, um sexo em detrimento do outro, a vontade

V do Criador em oposição à vontade das criaturas. Isto significa

., op. cit, p. 33 e 34.

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que se pensa, se trabalha e se age como se o nosso universo não apenas correspondesse a estas separações mas, de fato, Deus assim o quisesse. Ele aparece como quem dá fundamento a essa construção imaginária do real.

Numa perspectiva ecofeminista, tais separações desaparecem e somos convidadas a viver a unidade da matéria, da energia que nos constitui sem saber o que ela é. Já não podemos abrir o combate do espírito contra o corpo, dos anjos contra os demô­nios, de Deus contra a humanidade, mas é preciso recomeçar em todos os níveis a reconstruir a unidade que somos, a inclusão de nosso ser em todos os processos evolutivos no espaço e no tempo. Então acolheremos a mortalidade de nossa vida junto com a das flores e pássaros, de nossos sonhos e deuses. Aco­lheremos a transformação de nosso corpo individual no mistério de nosso Corpo Sagrado. E porque a vida irrompeu nesse uni­verso, tomou-se vitalmente mortal que o amor do instante tem que ser intenso, que o respeito a todos os seres uma obrigação, a busca da justiça uma luz e a felicidade possível um direito inalienável de todos os seres.

Há uma beleza nessa indissociabilidade e interconexão que nos convida a desenvolver posturas de vida que não posterguem a justiça e a temura e a felicidade para uma eternidade imaginada; posturas de vida que revalorizem o efêmero, o momento que passa, o pôr-de-sol, a flor, a morte. Efêmera é a vida e o conhe­cimento, efêmera e misteriosa é a sabedoria.

A questão é contextualizar o conhecimento a partir daexpc- riência cotidiana de homens e mulheres. Sabemos o quanto a sociedade patriarcal insistiu na separação entre o domínio do público e o privado. O público era um domínio masculino e o privado ou doméstico, feminino. Atribuiu força e coragem aos homens; fragilidade e temor às mulheres. Ora, isso não é essen- cialismo mas cultura fundada em interpretações biológicas e cul­turais ideologizadas. E isso tem a ver com nossa maneira de nos aproximar do mundo, de desenvolvermos nossos papéis sociais e

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o conhecimento que temos deles. Não fazemos valer uma essên­cia feminina pré-determinada, nem uma natureza bruta a ser do­mada, mas a realidade concreta relacional de um estado de fato, no qual nosso conhecimento de mulheres se desenvolveu e per­maneceu reduzido ao universo doméstico.

Uma epistemologia femista afirma que a dimensão de gênero não só tem algo a acrescentar ao conhecimento, mas modifica seus princípios, seu fundamento e expressão histórica.

Epistemologia de gênero e de ecologia

A epistemologia ecofeminista introduz a questão de gênero e a questão ecológica como mediações para a compreensão e in­terpretação do mundo e do ser humano. Tais mediações não são instrumentos ou objetos para o conhecimento no sentido de que as empregamos como meios para conhecer a realidade. “Media­ção” tem um significado mais amplo: aquilo que é meio e finali­dade constitutiva do sujeito que conhece e da realidade que se dá a conhecer. O meio não é instrumento que uso e descarto quando não necessito mais dele. Nesse sentido, “meio” é meio e início e fim que se incluem num mesmo processo cognitivo; a dimensão feminina é constitutiva da realidade humana assim como a ecoló­gica, embora estas só recentemente tenham emergido à luz da consciência histórica.

Ao introduzir gênero em epistemologia afirmamos que na construção social do conhecimento humano o masculino e o fe­minino devem expressar sua maneira de ver o mundo. Ora, nós mulheres estamos denunciando o caráter prioritariamente mascu­lino e universalista do conhecimento social. Assim, pleiteamos sair da universalização e da sobregeneralização do masculino sobre o feminino. Universalização significa que se toma o conhecimento masculino como paradigmático. Sobregeneralização significa que não se sabe bem se se trata de algo referente ao masculino ou ao

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feminino. Assim, muitas vezes se fala de “direitos humanos” mas se sabe que no concreto apenas alguns homens privilegiados podem usufruir deles. Provavelmente, nem se tem consciência das situações concretas e possibilidades reais das mulheres de ter acesso a tais ou tais direitos.

A questão de gênero introduzida pelo feminismo quebra o mito do universalismo masculino nos diferentes campos do saber. Decretou a necessidade de rever o conhecimento humano reve­lando seus limites e mostrando o quanto a História oficial não inclui as mulheres e os povos oprimidos. O conhecimento adqui­rido e expresso como tal revela quase que unicamente a expe­riência masculina. Como escreve Seyla Benhabib, em Situating the Self. “Precisamos apenas lembrar da crença de Hegel de que a África não tem História. Até muito recentemente nem as mulhe­res tinham História própria, narrativa própria com categorias es­pecíficas de periodização e regularidades estruturais.”27

O masculino não pode mais ser sinônimo de humano e de histórico e o ecológico não pode mais ser considerado um objeto da natureza a ser estudado e dominado pelo homem. Tal abertura introduz outros referenciais para o nosso conheci­mento, mais amplos do que os estabelecidos pela epistemologia patriarcal.

Algumas pessoas temem que o ecofeminismo traga nova perspectiva essencialista ao afirmar a diferença entre aproxima­ções epistemológicas femininas e masculinas. Não se trata de essencialismo biológico ou filosófico, mas de abrir a epistemolo­gia para uma perspectiva plural que inclui aspectos comuns a

> homens e mulheres de uma dada cultura, mas inclui aspectos diferentes nascidos de experiências diversas.

Estamos abalando os processos cognitivos tradicionais e o A feminismo é incluído como um dos movimentos sociais que mais

contribui para provocar este abalo.

27 Benhabib, Seyla, op. cit. , p. 213.

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Esta insersão crítica, do feminismo na epistemologia não é a mudança radical do ato de conhecer mas a mudança na sua perspectiva e resultados, nos seus conteúdos e história, na orga­nização do conhecimento, da sociedade e do poder. Significa^- relativizar “verdades” culturais ou científicas, por exemplo em relação à inferioridade “intelectual” das mulheres ou a sua capa­cidade intuitiva.

O feminismo levanta suspeitas quanto às aquisições tranqüilas da tradição patriarcal, questiona a objetividade da ciência, seu caráter aparentemente a-sexual para reafirmar que o conhecimen­to humano é situado em nossa realidade social, cultural e sexual. O conhecimento passa a ser um caminho andado às apalpadelas, no qual cada hipótese e percepção se corrige, se precisa e complementa ao se caminhar através das gerações.

Gênero e ecologia também modificam o conhecimento teológi­co. A afirmação de uma divindade absoluta , expressão de seu dublê histórico masculino não resiste às críticas já fortes de todos os movimentos feministas latino-americanos e mundiais. Uma di­vindade de expressão masculina que preside a todos os fenôme­nos da natureza, movendo-os segundo sua vontade já não se sustenta diante da complexidade da história do Universo como é narrada por muitos cientistas, particularmente nos últimos 20 anos.

A ecologia vem revalorizando em diferentes partes do mundo o resgate das “culturas originárias”, que não se limitam ao mundo indígena latino-americano mas abrem-se às tradições africanas vigentes em nosso continente. Um mundo em que os ancestrais e as forças da natureza têm lugar privilegiado é resgatado como valor cultural e não como “coisa do demônio” como diziam os antigos missionários.

Depois de um curso que animei em 1994, uma aymara da Bolívia me disse: “Com o ecofeminismo não tenho vergonha de falar de minhas crenças desde minha cultura. Não preciso dizer que elas têm elementos cristãos para que sejam boas, mas que elas simplesmente valem o que valem e não valem o que não

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valem”. Isto porque também o cristianismo se impôs como crité­rio de verdade das religiões do continente.

Essa revalorização não é um processo conduzido pelos “bran­cos arrependidos”, mas pelos filhos e filhas das vítimas dos pro­cessos colonialistas em que o racismo foi usado como arma para impor as verdades “brancas, cristãs e masculinas”.

Estamos no começo de um processo de grandes conseqüên­cias para o mundo. Por isso, o cuidado em respeitar nossa his­tória pessoal, a história dos diferentes grupos e em denunciar as violências escondidas é uma exigência para toda a comunidade humana.Uma solidariedade vital começa a se fazer sentir entre os grupos humanos para sua sobrevivência e a da biodiversidade de nosso planeta. Este é um desafio ético presente na epistemologia ecofeminista.

Epistemologia contextuai

A epistemologia ecofeminista é contextuai, é exigência do momento histórico em que vivemos e se desenvolve a partir de contextos locais embora se conecte numa perspectiva global

“Contextuai” significa não absolutizar nossa forma de conhe­cer hoje mas admitir sua provisoriedade histórica e a necessidade de estarmos sempre abertas(os) aos novos referenciais que a história e a vida mais ampla nos sugerem. Uma epistemologia contextuai busca referir-se ao contexto vital de cada grupo huma­no como referência básica. É a partir desse contexto que suas questões são formuladas assim como suas tentativas de resposta. Busca afirmar a originalidade de cada grupo assim como seus limites de abertura e de acolhida do diferente. Não se trata de julgar os grupos feministas do Nordeste do Brasil a partir dos grupos de São Paulo ou de Nova York. Não se trata de assumir as comunidades de base de alguns países da América Latina como modelo para os países africanos e vice-versa. Trata-se de

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captar a lógica em cada epistemologia contextuai, seu sistema de valores e contra-valores, sua tradição histórica escravista, libertária ou outra. Partilho as observações sábias de Otto Maduro: “Tal­vez um dos muitos maus costumes ocidentais seja a mania de definir, classificar e julgar outras pessoas e culturas pelas respos­tas que elas dão a nossas perguntas. Mas, e se nossas perguntas não tiverem o menor significado para essas outras pessoas? Além disso, quem nos garante que nossas perguntas serão entendidas pelos outros da mesma maneira como nós as entendemos?”28

A epistemologia que propomos valoriza o contexto em que a experiência e o conhecimento se desenvolvem embora se abra para horizontes e articulações mais amplas. Ela requer uma cosmologia/antropologia contextuais, embora com abertura para o fato de que nos diferentes contextos estão presentes elementos de universalidade. Esses elementos comuns são a expressão de que pertencemos à mesma e extraordinária explicitação da Vida a que chamamos vida humana.

A interconexão entre todos os aspectos da vida humana, inclusive nossas crenças, está na base da construção desse novo tecido de relações, comportamentos e significações.

A epistemologia contextuai mantém a tensão entre o caráter regionalista e o caráter universalista do conhecimento humano. Um conhecimento é sempre um conhecimento a partir de algo. Essa localização espaço-temporal o abre à universalidade. Ela não significa a validade de um conhecimento concreto para todos os grupos humanos, mas a regionalidade universal de todo o conhecimento. O conhecimento é universal não quanto à forma do conteúdo apreendido mas à maneira regional de apreender a dimensão de universalidade que nos caracteriza. A partir daí, o mundo humano se encontra na sua diversidade universal.

28 Maduro, Otto, “Mapas para a Festa - Reflexões latino-americanas sobre a crise do conhecimento”, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1994.

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fA epistemologia feminista e ecológica anuncia, já, a presença

talvez embrionária de outra compreensão do mundo e do ser humano que se distancia em parte das concepções tradicionais. Este é um dos desafios positivos desse final de milênio.

Epistemologia holística

As epistemologias de origem cartesiana, epistemologias do “penso, logo existo”, nos condicionaram a entender o conheci­mento humano como limitado a processos mecânicos que se passam no interior do sujeito e se expandem para o “mundo objetivo”. A partir dessa subjetividade “objetiva” afirmam a racionalidade e a cientificidade de seu conhecimento ou sua ob­jetividade.

Uma epistemologia holística quer acolher o fato de que não apenas somos num todo, mas o todo está em nós. Conhecemos desta maneira porque a evolução do todo nos preparou para

, tanto. Dessa evolução anterior a nós e em nós, se constituiu a nossa forma atual de nos aproximar da realidade e de dizermos que a conhecemos.

A epistemologia holística nos abre para a possibilidade de conhecer o que está para ser conhecido de formas múltiplas, fazendo apelo as diferentes capacidades cognitivas que nos habi­tam e que são irredutíveis a um único discurso de tipo racionalista. Esta perspectiva toca também a teologia, convidando-a a “alargar suas tendas” para além de um discurso monoteísta sobre Deus, para além de um aprendizado catequético e de uma dogmática que pode ter até caráter fascista, pois se toma impositiva e pu- nitiva/O holismo teológico abre as portas para a múltipla expe­riência humana da relação com os valores que dão sentido a nossa existência e poderiam ser chamados de “sagrados”. “Sa­grado” é o nome das coisas e relações que nos são caras, que têm relevância em nossa vida. Sagrada é a beleza que atravessa

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todas as coisas, são nossas perguntas sem resposta, que atraves­sam os mais diversos tempos e espaços culturais e continuam sendo interpelações incessantes. Sagrada é a Vida! /

Epistemologia afetiva

Introduzir a afetividade no conhecimento espanta os filósofos mais objetivos. Afeição tem a ver com sedução, com movimento apaixonado para os outros ou para as coisas que queremos

( conhecer. Afeição tem a ver com erotismo, com os sentidos, com as emoções que tomam conta de nossas entranhas. A partir do envolvimento apaixonado, se percebem aspectos que passariam despercebidos na ação de conhecer.

A introdução da afetividade sugere a impossibilidade de de­terminar com clareza os limites entre objetividade e subjetividade; ela nos abre para o universo das emoções como fonte de conheci­mento e não como o lado obscuro de nossa razão. Esta perde sua força quando a cortamos das paixões, da sedução, da emoção, da admiração, do encantamento que os seres, do universo e humanos, exercem sobre ela. O que é isto que chamam de razão? Seria possível isolá-la de nosso ser, tomá-la coisa superior, melhor, mais nobre? Como sobreviveria sozinha em sua pureza racional?

A identificação da razão a uma “senhora rígida”, regida por regras estritas, aprisionou a criatividade, exilou a razão de si mesma, alienando-a do todo o nosso ser, do qual depende e se alimenta.

A razão não existe por si, não é algo em nós com existência i independente. Somos razão, e emoção, e sentimento, e paixão, e

sedução. Somos uma extraordinária mistura, capaz de acentuar diferentes aspectos de nós mesmas(os).

Já não se aceitam mais as antigas distinções entre o mascu­lino/razão e o feminino/emoção-intuição. Tais divisões são impos­tas ao ser humano a partir da visão dualista própria da estrutura patriarcal e apresentada como simplesmente natural.

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Uma epistemologia com característica afetiva reconhece que a gama imensa de emoções e afeições se manifesta em homens e mulheres em sua originalidade pessoal, seus condicionamentos e cultura. Natureza e cultura não são realidades separadas no universo humano, mas são realidades interconectadas que nos permitem ser o que somos e permitem à Terra ser hoje o que ela é. Natureza e cultura são inseparavelmente razão e emoção.-

Epistemologia inclusiva

A epistemologia ecofemista tem a pretensão de querer ser inclusiva. Isto significa que não impõe limites rígidos ao conheci­mento. Em primeiro lugar, trata-se de inclusivismo no que se refere à diversidade de nossas experiências; ele não tem apenas conseqüências cognitivas, mas conseqüências éticas. Assim, não nos orientamos por um único padrão, paradigma, cultura, cristi­anismo ou orientação sexual que se imponham como normativas. Daí a vacuidade de um único critério para o conhecimento ver­dadeiro.

O caráter inclusivo toca os diferentes saberes. Por exemplo, um estudo sociológico se abre a outros ramos do saber e deles dependente. Dá uma contribuição específica, tem certa autono­mia, mas não é independente dos outros saberes.

Tentamos superar as formas mecanicistas de conhecimento em que o todo é apenas a soma das partes e cada parte pode ser considerada uma peça independente. A epistemologia inclu­siva tem a ver com o caráter de interdependência recíproca no qual existimos e somos. Se acentuamos um aspecto do conheci­mento, deveremos estar cientes de que se trata de procedimento metodológico, dada a nossa impossibilidade de discursos total­mente abrangentes. Mas, o que conhecemos não deixa de estar conectado a outros conhecimentos e sobretudo a tudo o que desconhecemos.

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Nosso conhecimento é ao mesmo tempo desconhecimento e, certamente, mais este do que aquele. O desconhecimento nos abre para o conhecimento, incita nossa curiosidade e desejo de ver o que ainda não vemos. Tal epistemologia relativiza nossa pretensão de dominação do mundo apenas através das ciências e do imperialismo que elas nos impõem.

A dimensão inclusiva é essencial ao conhecimento teológico. A experiência de Deus é inclusiva de outras; nossas percepções, intuições, êxtases e buscas são arte e conhecimento que se ex­pressa de mil e uma maneiras sem que nenhuma esgote a outra.

A experiência religiosa é polifônica, multicolorida embora no fundo de cada uma se ouça algo de uma mesma nota ou se perceba algo de uma mesma cor: a busca de sentido para a existência, de algo misterioso que nos habita e ultrapassa, de algo sem nome nem lugar embora com muitos nomes e em muitos lugares.

Uma epistemologia inclusiva acolhe a multiplicidade das ex­periências religiosas como expressões diferentes de uma mesma respiração e busca de unidade. Não é um novo idealismo nem um inclusivismo sem critério. Propomos a rearticulação dos nossos valores de vida no interior de nossos processos cognitivos.

Tudo isso nos prepara para acolher a biodiversidade na na­tureza mas a biodiversidade como realidade constitutiva dos seres humanos. A acolhida desta “realidade” é passo fundamental para uma fala sobre a “biodiversidade do Mistério de Deus”:

(...) Flor não é Deus, terra não é, eu não sou.Pobre e desvalida entrego-me ao que seja esta força de perdão e descanso, paciência infinita.Quase posso dizer, eu amo.29

29 Prado, Adélia, “A Sagrada face” in “Poesia Reunida”, Ed. Siciliano, São Paulo, 1991.

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