n° 24 - uma sociedade civil mais forte e uma democracia ampliada

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Luiz Werneck Vianna é um “clássico moderno”. Egresso da cultura comunista – do comunismo do antigo PCB –, este cientista social e político dirige-se, no entanto, a todas as forças e personalidades da cena pública, no melhor sentido daquela cultura, e isto desde o seu primeiro livro, Liberalismo e sindicato no Brasil.

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Fundação Astrojildo PereiraSDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected] www.fundacaoastrojildo.org.br

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorCaetano E. P. AraújoEditor ExecutivoFrancisco Inácio de AlmeidaEditor Executivo AdjuntoCláudio Vitorino de Aguiar

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Davi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar George Gurgel de Oliveira

Giovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Mário Gazzaneo Luiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Alberto Passos Guimarães FilhoAmarílio Ferreira JrAmilcar BaiardiAntonádia Monteiro BorgesAntonio Carlos MáximoArmênio GuedesArtur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCícero Péricles de CarvalhoCharles PessanhaDélio MendesDenis Lerrer RosenfieldFábio FreitasFernando PardellasFlávio KotheFrancisco Fausto MatogrossoFrancisco José PereiraGildo Marçal Brandão

Gilson LeãoGilvan CavalcantiJoanildo BuritiJosé Antonio SegattoJosé BezerraJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLuís Gustavo WasilevskyLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Antonio CoelhoMarco Aurélio NogueiraMaria do Socorro FerrazMarisa BittarMartin Cézar FeijóMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRaul de Mattos Paixão FilhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRoberto Mangabeira UngerRose Marie MuraroSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermannSinclair Mallet Guy GuerraTelma LoboWashington BonfimWillame JansenWillis Santiago Guerra FilhoZander Navarro

Produção: Editorial AbaréCopyright © 2009 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2009.No 24, agosto 2009200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Agosto 2009

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Política Democrática · Nº 24

Sobre a capa

As obras que embelezam a capa e a contracapa desta edi-ção pertencem ao artista plástico Sérgio Pinheiro (nascido em Jaguaribe/CE, em 1949). Desde muito jovem é artista e

“vive enganando a todos fazendo coisas belas”, como ele mesmo diz. No início dos anos 1960, desenvolveu amizade e aprendizagem, em múltiplas técnicas artísticas, com o mestre Zenon Barreto e viajou pela América Latina. Em 1970, foi para o Rio de Janeiro, onde du-rante um ano estudou comunicação visual, no Museu de Arte Mo-derna, com os professores, entre outros, Frederico Morais e Aloísio Carvão. No MAM, participou da exposição Arte Agora/70, a convite do pintor João Câmara. Nas décadas de 1970/90, fez exposições individuais no Brasil e exterior. Nos anos 1980, estudou artes plás-ticas, como bolsista do governo francês e sob a direção do professor Frank Popper, na Universidade de Paris, onde obteve o diploma de Mestre. Participou do Salão dos Independentes e da Exposição La-tino-Americana de Artistas, inaugurada pelo presidente Miterrand, no Grand-Palais, em Paris. Expôs individualmente em Versailles, na agência do Banco Crédit-Lyonnais, e participou de coletivas com colegas bolsistas, vencendo concurso para cartão de Natal de 1981. Participou da mostra “Art en Boite”, exibida em diversos países. Ainda nos anos 1980, foi para a Inglaterra, ali residindo por quatro anos. Expôs individualmente na Universidade de Durham e reafir-mou relação profissional com a Galeria Denise René, de Paris, porta de entrada de todos que se interessam pelo construtivismo na Eu-ropa e no mundo. Na segunda metade dos anos 1980 e no início dos anos 1990, expôs na França, Inglaterra e Ceará o resultado de estu-dos feitos a partir de embalagens de papelão servindo como suporte para a pintura. Em 2007, teve mostra e comemorou quarenta anos de pintura, no Memorial da Cultura Cearense, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com o tema “Os Ambulantes”. Há dois anos, trabalha interpretações deste tema com a ajuda do computador.

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Sumário

I. ApresentaçãoOs Editores ...................................................................................................................9

II. Entrevista Luiz Werneck Vianna ................................................................................................. 13

III. Os 120 Anos da República

Uma República excludente e autoritária José Antonio Segatto .................................................................................................. 39

IV. Observatório Político

Oligarquia e presidencialismo de coalizão Rudá Ricci .................................................................................................................. 51

Bobbio e a governabilidade das sociedades democráticas Giorgio Napolitano ..................................................................................................... 55

O poder político Luiz Viégas da Motta Lima ......................................................................................... 57

V. Batalha das Ideias

Que futuro nos aguarda? Eric Hobsbawm .......................................................................................................... 63

A esquerda se tornou liberal Evelyne Pieiller .......................................................................................................... 67

O que significa ser gramscianoGiuseppe Vacca ......................................................................................................... 74

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A comunicação na batalha das ideiasDênis de Moraes ....................................................................................................... 78

VI. O Social e o Político

A reforma agrária bifocal José de Souza Martins ............................................................................................... 87

Governabilidade e coesão social: o caso do Chile Isabel Allende Bussi .................................................................................................. 91

Reforma do Estado e cultura políticaLuiz Eduardo Soares ................................................................................................ 100

VII. Direito e Justiça

Mitigando a presunção de inocência Luiz Felipe Haj Mussi ..........................................................................................107

Os princípios e a liberdade subjetiva do juiz Oscar d´Alva e Souza Filho ...................................................................................... 112

A importância do Judiciário para a democracia Leandro do Nascimento Rodrigues ........................................................................... 120

VIII. Ensaio

Que poder feminino?Uma reflexão sobre a representação de mulheres no LegislativoPatrícia Rangel ......................................................................................................... 129

IX. Mundo

Novos tempos para Itaipu e os brasiguaios? Sigrid Andersen ....................................................................................................... 141

Uma terceira via para a guerra em Gaza Jayme Fucs Bar ....................................................................................................... 146

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Pós-Socialismo – Por que o vento da crise varre do mapa a esquerda europeia? Marc Lazar ............................................................................................................... 149

X. Memória

Sobre o Instituto Vladimir Herzog José Serra ................................................................................................................ 155

Permanência de Augusto Pontes (1935-2009)Dimas Macedo ......................................................................................................... 161

Escritores combatentes: o Congresso de Escritores de 1945 Ana Amélia de M. Cavalcanti de Melo ...................................................................... 163

XI. Vida Cultural

Arte, poesia e abolição no Grão-Pará Aldrin Moura de Figueiredo e Moema de Bacelar Alves ........................................... 171

O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão Aline Maria de Carvalho Pagotto .............................................................................. 177

XII. Resenha

Introdução à afirmação dos direitos humanos em dois livros Tiago Eloy Zaidan e Rudrigo Rafael Souza e Silva ................................................... 187

Saga de Zumbi dos Palmares revividaUelinton Farias Alves ............................................................................................... 193

Pandemônio da memória em Chico Buarque Marco Antônio F. de Matos ....................................................................................... 196

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I. Apresentação

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Nossa revista tem se sentido honrada de poder compartilhar um franco diálogo com alguns dos nomes mais expressivos da política e da cultura brasileiras. Nossa seção “Entrevista”,

iniciada duas edições atrás, já permitiu ao crescente número dos nos-sos leitores conhecer as idéias e a sensibilidade do ex-senador Roberto Freire e aspectos da incomum trajetória do poeta e hoje também artista plástico José de Ribamar Ferreira, o maranhense Ferreira Gullar.

Esta edição abre-se com um bate-papo descontraído do nosso editor Caetano Araújo e do ensaísta Luiz Sérgio Henriques com um dos mais ricos pensadores sociais e políticos do país, na linha de Sérgio Buarque de Hollanda e de Caio Prado Jr., que é o carioca Luiz Werneck Vianna. Sua obra tem a profundidade e a argúcia de quem trabalha o processo civilizatório brasileiro, com lupa, nele identifi-cando os nexos causais e os seus desdobramentos, de forma a permi-tir que se avance por caminhos novos, no rumo do aperfeiçoamento da democracia e de oportunidades iguais para todos.

No balanço que estamos realizando, por motivo dos 120 anos da mudança de regime no país, o historiador paulista José Antonio Se-gatto nos oferece um instigante artigo sobre Uma República autori-tária e excludente. O autor de Reforma e Revolução – As Vicissitudes Políticas do PCB faz um breve mas profundo relato sobre a nossa res publica, identificando as marchas e contramarchas na construção desse complexo e delicado edifício, e as mazelas que foi deixando enraizadas na cultura brasileira.

Na seção “Observatório Político”, há três contribuições teóricas da melhor qualidade, como a do sociólogo Rudá Ricci, em que traz angu-lação nova para ver e compreender o presidencialismo de coalizão no Brasil com suas estreitas ligações ao coronelismo regional, seguido por um curioso approach do presidente da Itália, Giorgio Napolitano, em que desvenda aspectos muito interessantes sobre como se pro-cessa, nos dias de hoje, a governabilidade nas sociedades democrá-ticas, e encerrada com o economista Luiz Viegas da Motta Lima, que

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I. Apresentação

mostra como o poder econômico influencia fortemente as disputas eleitorais, desde tempos imemoriais até os dias correntes.

No restante das demais seções, como “Batalha das Idéias”, há atrativos de todo tipo, oferecidos pelo historiador inglês Eric Hobs-bawm, em que pergunta que futuro aguarda o mundo, com a crise ambiental emergindo como um dos problemas centrais da humani-dade e o tempo não sendo favorável ao homem; pela escritora france-sa Evelyne Pieiller, que examina entre fria e emocionada o rumo da esquerda na direção das ideias e da prática liberais; pelo brilhante intelectual italiano Giuseppe Vacca a nos brindar com um curto mas profundo artigo sobre o que significa ser gramsciano, ele que é o presidente da Fundação Instituto Gramsci e que nos deu o prazer de visita ao Brasil a nosso convite, no segundo trimestre deste ano, para um ciclo de palestras e debates e lançamento do seu livro Por um novo reformismo; e, por último, publicamos um texto polêmico do jornalista e escritor Dênis de Moraes sobre um tema sempre atual, que é a comunicação na batalha das ideias.

Já em “O Social e o Político”, temos uma rica análise do sociólo-go José de Souza Martins sobre o que ele chama de reforma agrária bifocal; um enfoque interessante da deputada chilena Isabel Allende, que, a partir da realidade do seu país, discute a importância de se ter governabilidade vinculada a uma real e concreta coesão social; e um texto veemente do antropólogo Luiz Eduardo Soares, em que ele defende uma reforma democrática do Estado de forma a permitir que os brasileiros tenham um sadio ambiente de cultura política (ele aborda uma grosseira agressão feita por importante órgão de comu-nicação contra o líder social carioca MV Bill). Destaque-se ainda na seção “Ensaio” o trabalho de Patrícia Rangel, mestra em Ciência Polí-tica pelo Iuperj, que analisa a participação da mulher na vida política e os espaços ainda pequenos que tem conquistado nas instituições públicas, principalmente nos legislativos.

Além disso, as demais seções estão também cheias de atrações. Como você, leitor, vai constatar, este número – como vem ocorrendo ultimamente - supera nossas expectativas, sobretudo por contar, como ocorre a cada quadrimestre, com novos colaboradores e com trabalhos que sempre mais valorizam seus autores e a nossa publicação.

Boa leitura e amplos debates!

Os Editores

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II. EntrevistaLuiz Werneck Vianna

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Luiz Werneck Vianna é um “clássico moderno”. Egresso da cultura comunista – do comunismo do antigo PCB –, este cientista social e político dirige-se, no entanto, a todas as

forças e personalidades da cena pública, no melhor sentido daquela cultura, e isto desde o seu primeiro livro, Liberalismo e sindicato no Brasil. Os traços da modernização conservadora, ou da revolução-restauração, que assinalam a reconstrução da vida republicana, particularmente a partir de 1930, encontram uma formulação cris-talina já neste livro.

Werneck Vianna ajudou assim a compreender, “no calor da hora”, ainda na década de 1970, que a alternativa à incorporação autoritária dos setores subalternos somente poderia ocorrer no Bra-sil por meio de uma efetiva democratização da vida nacional. Em cada texto que compõe sua já reconhecida obra, política e cultura, ação prática e orientação acadêmica de alto nível se dão as mãos e se fecundam mutuamente.

Este, de resto, o sentido último das “análises de conjuntura” em função das quais o autor tornou-se particularmente conhecido. Análi-ses que, mesmo atentas ao movimento singular dos atores e das forças em campo, sempre se inserem numa “teoria do Brasil” mais ampla, sem que isso em nenhum momento signifique a tentação de deduzir de uma teoria ou doutrina abstrata a realidade necessariamente fluida e contingente em que se mexem aqueles mesmos atores.

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II. Entrevista

Não se trata de concordar com qualquer um dos cenários especí-ficos que estas análises propõem ou propuseram no tempo em que foram formuladas, mas de reconhecer que, pelo arcabouço metodo-lógico e pela amplidão da visão de Brasil que supõem, constituem igualmente peças clássicas no seu gênero, combinando dialetica-mente os movimentos lentos da “estrutura” e o teatro vivo em que atuam personagens de carne e osso.

A atenção às diferentes figuras do intelectual e, nos últimos anos, ao papel do direito nas sociedades contemporâneas, novamente a partir da circunstância brasileira, caracteriza a fase mais recente da produção de Werneck Vianna. O processo de conversão de interesses em direitos, numa consolidação e ampliação permanente do horizonte democrático do nosso tempo, está no centro das preocupações que, pela própria natureza, só aparentemente se distanciam da política prática e da própria vida dos cidadãos comuns, uma vez que, através das indispensáveis mediações, articulam-se com os processos con-temporâneos de mudança social, capazes, no caso brasileiro, de dar vida e animar uma civilização original e profundamente democrática.

Este aspecto “otimista” do pensamento de Werneck Vianna não tem nada de ingênuo; pelo contrário, talvez seja o mais significativo indicador, hoje, da possibilidade de reconciliação não conservadora entre esquerda e nação, entre intelectuais e cultura, entre “subalter-nos” e história brasileira, numa chave distinta daquela da moderni-zação autoritária do Estado e da sociedade. As inquietações e dúvi-das a respeito do caminho brasileiro para a contrução e consolidação da democracia vêm alimentando permanentemente esse “nosso clás-sico” e, com certeza, compõem o núcleo dessa entrevista, concedida a Caetano Araújo e Luiz Sérgio Henriques.

FAP – Acostumamo-nos a ver a sua obra como um conjunto muito coerente de proposições e mesmo de sugestões de método. Gostaríamos de começar falando de Liberalismo e sindicato e do papel específico que neste livro teve sua par-ticular “expropriação” de conceitos de Lenin e Gramsci.

Werneck Vianna – Sua pergunta sobre meu método de trabalho exige de mim uma consciência que desconfio não ter. Vou, então, con-tar como trabalho a partir de um exemplo. Na verdade, acumulo mui-ta informação fática. Assim, no final dos anos 1960 e início dos 70, quando preparava Liberalismo e sindicato no Brasil, defrontei-me com

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o problema da Revolução de 1930, e aí me detive. Não poderia pros-seguir com a elaboração do estudo sem apresentar uma explicação persuasiva sobre aquele fato de importância capital para uma moder-na configuração do mundo trabalho entre nós. Li tudo o que, naquela hora, me era possível ler, tentando uma interpretação que viesse a em-prestar inteligibilidade àqueles fatos, dados, eventos singulares que desafiavam a explicação corrente. De resto, estou sempre consultando os grandes intérpretes brasileiros, testando os conceitos elaborados pela galeria dos clássicos, buscando chaves que me permitam triunfar sobre um cipoal de fatos aparentemente “erráticos”.

Portanto, desconfio que o importante em todo o procedimento de método seja cotejar a acumulação de informações com a bibliografia existente. Somente desse modo sabemos se as explicações correntes dão conta dos problemas que nos atormentam. Sobre 1930, por exem-plo, a bibliografia existente no período mencionado, nas décadas de 1960 e 70, “patinava” muito. Tínhamos uma noção da autonomia do político, derivada de certa leitura do Poulantzas, que foi dominante na época. Havia também certas interpretações conceituais a respeito de categorias sociais determinadas: por exemplo, as Forças Armadas poderiam ser consideradas um fenômeno de camadas médias, ou se-riam uma burocracia strictu sensu operando a partir de sua própria lógica? Houve uma literatura muito abundante sobre isso, e essa biografia não me satisfazia.

Vocês me perguntam também sobre Gramsci. A leitura dele foi, para mim, para minha geração, uma verdadeira iluminação, entre outras coisas porque havia algo em comum entre a Itália e o Brasil: o corporativismo, que foi uma ideologia forte e que Gramsci analisa muito bem. Por outro lado, entre nós havia até algum germe de ame-ricanismo. Pode não ter sido um tema central, mas também tinha vínculos aqui na nossa sociedade. Antes mesmo de 1930, empre-sários de São Paulo experimentaram formas de dominação de estilo americano – Jorge Street e outros. Na discussão sobre o trabalho do menor, na discussão sobre a legislação social, o liberalismo dos empresários brasileiros era de estilo americano. Bem, havia nossa vizinhança com os EUA. Mas penso que essa vizinhança não era apenas geográfica. Havia uma proximidade real entre os EUA e o sentido da política getuliana, que era o de desenvolver novas formas organizacionais. A vinda de Roosevelt para cá não foi um gesto ape-nas de boa vizinhança, foi uma declaração funda de intenção por parte do governo americano. Oswaldo Aranha, um americanista, era

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II. Entrevista

uma presença estratégica no interior do governo Getúlio. Isso para não falarmos de outros personagens que a história perdeu de vista, como Valentim Bouças, assessor pessoal, nos anos 1930, em matéria econômica de Vargas, mais tarde personalidade relevante na criação da IBM no país. Esse era claramente do “partido” americano. Com tudo isso, encontramos aqui a ideia de realizar a americanização “por cima”, que foi uma das hipóteses contempladas por Gramsci. Por isso não fiz exatamente uma importação de conceitos. Eu apenas percebi que alguém tinha estudado uma conjunção fática muito semelhante à que me preocupava e tinha chegado a uma explicação convincente, embora não entendida pelos seus contemporâneos e nem mesmo por muitos que vieram depois, até mesmo nos anos 1970. Tanto assim que o veio principal da leitura de Gramsci, naquele momento, ainda nos anos 1970, enfatizava a guerra de movimento, a guerra de posição, categorias que estavam orientadas por um outro momento histórico.

Acho que é assim que opero – eu não trago previamente o concei-to. Uma vez, há muito tempo, um colega marxista me desafiou com a seguinte observação: “Você, nos seus textos, cita muito pouco Marx”. Eu pensei: “É verdade, mas tudo ali é Marx”. Sobretudo a possibili-dade da inteligibilidade do real. Neste caso do “real concreto”, a me-lhor orientação que encontrava era a do Lenin. Mas o Lenin que me guiou no período em que escrevi Liberalismo e sindicato no Brasil, o Lenin determinante para mim, naquele contexto, foi o Lenin sociólo-go, o dos textos de sociologia agrária, o autor de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Foi na macrossociologia de Lenin, cons-truída com precisão cirúrgica na virada do século XIX para o XX, que fui buscar duas categorias muito poderosas para entender o nosso caso, para apreciar o desenvolvimento capitalista: o modelo ameri-cano e o prussiano. E o que é que nós tínhamos aqui para explicar os anos 1930? De fato, 1930 era um enigma: como é que os homens do latifúndio do Rio Grande do Sul comandam o processo revolucio-nário que leva à industrialização do país, e o fazem sem romper com a estrutura agrária, conservando a coalizão empresários industriais-elites agrárias, como na Alemanha ou no Japão? O que faltava, a meu ver, na nossa bibliografia, era alargar a galeria de casos elenca-dos, porque, na verdade, nossa dificuldade derivava da existência de dois paradigmas apenas – o da Revolução Francesa e o da Revolução Americana, sem que nos encaixássemos em nenhum dos dois.

A leitura de Gramsci, para voltarmos a ele, se torna ainda mais relevante porque alarga o elenco de casos a serem comparados. Não

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dá para entender a revolução brasileira na chave francesa ou na chave americana. Ela tem outra conotação, tem outra forma de qua-lificação. E nela o mundo agrário é essencial, não como algo que vai ser reduzido, que vai ser enfrentado e abatido, mas como elemento partícipe do processo da modernização. Quer dizer, uma moderni-zação feita com a preservação de setores retardatários das elites. E o interessante é que essa apropriação de Gramsci se dava em um momento em que era lançado o livro de Barrington Moore, Origens sociais da ditadura e da democracia, que, afinal, embora trabalhan-do em continente próprio, com categorias e conceitos próprios, visão de mundo própria, se avizinhava das construções marxistas, das construções leninistas sobre a questão agrária. Não sei se foi por isso, pela idoneidade de uma perspectiva como a de Moore, pelo fato de o argumento não estar comprometido com autores apenas mar-xistas, mas a verdade é que minha interpretação teve bastante acei-tação, na época. Outros também trouxeram à tona o mesmo ponto, como o Luciano Martins, o primeiro de todos, na tese defendida na Sorbonne, o Octavio Velho, em O capitalismo autoritário e o campesi-nato, e, mais à frente, a Elisa Reis. Houve um conjunto de trabalhos voltados para esta nova direção. A minha marca em relação a esses trabalhos é apenas uma: é que eu utilizei Barrington Moore mais como uma escora de proteção em relação à cultura da época, mas os alicerces visíveis do meu argumento são Lenin e Gramsci.

FAP – Continuemos com Gramsci. Você vê em 1930, e em vários outros momentos cruciais da história brasileira, um andamento do tipo revolução passiva, de revolução-restau-ração, em que o ator se vê como que ultrapassado pelos fatos e o processo político parece caminhar por si mesmo. E, num mesmo movimento, parece tomar o conceito de re-volução passiva não só como critério de interpretação, mas também como programa político, a ser adotado por atores mais realistas e sábios. Não seria uma forma sofisticada de transformar necessidade em virtude?

Werneck Vianna – Na discussão sobre o caso italiano, em que Cavour é o vencedor e Mazzini o perdedor, Gramsci afirma que, se Mazzini fosse um político realista, ele teria desconstruído a armação passiva do Risorgimento. Teria feito, alternativamente, com que ela fosse menos onerosa para as classes subalternas, com que houvesse rendimentos de outra natureza. Ora, essa não foi uma leitura inde-vida de Gramsci, produzida artificialmente por mim. Gramsci, nessa

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II. Entrevista

hora crucial, em que Cavour acaba de ganhar, afirma que, se Ma-zzini tivesse agido de modo diferente, não teria perdido tanto. Teria perdido, inevitavelmente, mas não tanto. Eu me refiro a isso quando enfatizo o tema da revolução passiva.

Trago a discussão para a nossa história e para perto de nós: es-tamos num momento muito particular, e isso vale para o mundo in-teiro, eu acho, mas, seguramente, para o Brasil: tem-se uma pesada tradição autoritária na política, uma sociedade imobilizada politica-mente, mas, de outro lado, livre, inteiramente livre na sua socia-bilidade, sem nenhum controle, sem formas explícitas de controle. O que faz entender que, na medida em que se luta pela democrati-zação da política e de suas instituições, esse movimento maciço que trabalha a base da sociedade vai ganhar maiores posições. E isto numa dimensão “revolucionária”, importando mudanças de vulto de posições no interior da sociedade. Uma coisa por aí, algo que decor-re até de uma observação puramente demográfica. Além disso, esse mundo é afirmador de direitos e traz com ele novos interesses. En-tão, na medida em que você encontrar passagem e legitimação para esses interesses, mesmo que a ordem excludente persista, você vai minando o campo adversário e ganhando terreno molecularmente. Se “Mazzini” agir segundo um cálculo – um Maquiavel da sociedade civil –, senhor da sua circunstância, que não lhe permite uma vitória final, aproveitando as oportunidades para a defesa de sua identidade e dos seus propósitos, ele pode impor ao seu antagonista uma parte da sua agenda enquanto acumula forças para novos avanços, sem que se entregue à passividade. Com isso, ele se credencia a interditar a cooptação dos seus quadros por parte de Cavour.

Na verdade, tudo isso é uma revolução passiva numa escala que Gramsci não pôde conhecer. Todos esses processos são posteriores a ele. Mesmo de forma passiva, nosso país produziu esta imensa mudança de posições, inclusive no tema do gênero, com a eman-cipação feminina, a chegada da mulher no mercado de trabalho e a perda de controle social em todos os níveis. Também no campo, houve mudanças na relação de propriedade. Então, por que não ser, hoje, um “perdedor” diferente do que foi Mazzini? Por que não ser um político realista, no nosso caso? Por que não introduzir Maquiavel, que é sempre mobilizado como teórico do Estado, nessa dimensão societal? Diga-se de passagem que, quando eu comecei a estudar o tema do direito, também foi essa a direção. Considerei assim os novos institutos criados pela Constituição e até mesmo antes dela.

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Luiz Werneck Vianna

E começamos a compreender esses institutos e a procurar seguir por esses caminhos. São caminhos de pequenas rupturas. Agora, isso está desconectado da política? Não deveria estar, não, mas está.

FAP – Que papel teve a leitura de Gramsci e dos políticos ligados ao eurocomunismo na sua geração e, mais ampla-mente, na cultura democrática brasileira?

Werneck Vianna – Ao falar de eurocomunismo, a referência ime-diata é Enrico Berlinguer, que apareceu como a melhor tradução do pensamento gramsciano no plano político e, inclusive, um dos mais audaciosos. Veja só a tese de que o feminismo era a parte mais revolucionária. Quando eu fui apresentado a ela, reagi, mas ficou claro mais para a frente que Berlinguer tinha toda a razão. Agora, uma coisa que me chamou a atenção, que sempre me incomodou na política dos eurocomunistas foi a desatenção deles para com a cena internacional. Foi uma concepção muito autárquica, a deles...

FAP – Autárquica e europeísta...

Werneck Vianna – Até italiana, eu diria. As possibilidades deles aqui, que eram imensas, não foram exploradas. Eles se recusaram a uma aproximação mais forte em nome de uma boa relação com o partido soviético e demais satélites, em nome de cálculos políticos, não sei com que sentido preciso. Um blefe era importante: dizer que não iam se envolver com os partidos comunistas no poder, mas sem abdicar de um papel “pontifício”, central, que era necessário que os italianos tivessem naquele momento.

FAP – Inclusive em relação ao Brasil.

Werneck Vianna – Inclusive em relação ao Brasil, onde as possibili-dades estavam inteiramente abertas. O Giovanni Berlinguer, irmão do Enrico, tinha um trânsito enorme por aqui, especialmente na área dos sanitaristas. Mas, quando tentávamos uma aproximação mais forte, eles sempre lembravam os limites a que eram obrigados, em face da amizade entre partidos irmãos. Era só conversa. Eu acho que faltou a eles a percepção de que, para serem mais fortes na Itália, teriam que ter presença em outros lugares. E um bom terreno para eles, naquela época, era o Brasil. Como isso poderia ser atestado? Entre outras coi-sas, pelo movimento editorial que tomou corpo em torno das obras de Gramsci, pelos inúmeros intelectuais que passaram a se orientar pela

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leitura gramsciana, enfim, pela “revolução gramsciana” que foi feita na universidade brasileira, a partir dos anos 80. Acho que os italianos não tiveram sensibilidade para perceber isso.

FAP – Apesar de tudo, era também um aparelho político ve-lho, o deles. Seu “ministro das Relações Exteriores” era o Gian Carlo Pajetta, um quadro histórico voltado para o Leste europeu, para o velho bolchevismo. Limitado nesse sentido, sem audácia. Na verdade, faltou audácia externa. Mas, e o Brasil? O que significou, no Brasil, dentro do PCB, a corrente eurocomunista? Gostaríamos de saber sua relação com Armê-nio Guedes, p. ex., e com todo o processo de luta interna...

Werneck Vianna – Apenas digo que esta foi uma possibilidade que se frustrou também por volta de 1980, 1981. Quando a direção do PCB voltou ao Brasil, a minha posição foi abrir um terceiro caminho. Prestes de um lado, Giocondo do outro, e nós numa terceira posição. Fizemos, àquela altura, uma reunião, e fui amplamente derrotado. A ideia vitoriosa foi a de que deveríamos nos associar ao Giocondo, que era o caminho possível etc. Eu me bati por um terceiro caminho, mas era inteiramente dependente do David [Capistrano Filho] para fazer esse movimento, pois ele tinha o controle de São Paulo. Mas aí o passado pesa, não é? Houve quem dissesse que não faria esse mo-vimento para não virar “renegado” e coisas do gênero. O fato é que, se isso tivesse sido feito, nada garante, a meu ver, que teria dado certo, mas pelo menos teríamos tentado um movimento garibaldino e não um movimento mazziniano. Porque dentro do partido havia esse movimento mazziniano. Bom, eu não vou identificar a essa altura quem, a meu ver, consagrava melhor isso. Não faz sentido. Mas ha-via. E, nesse sentido, a “Declaração de Março de 1958”, com todos os elementos de revolução passiva que ela, inconscientemente, estimu-lava, também não ajudava, principalmente no seu determinismo que induzia a crença de que “os fatos” trabalhavam a nosso favor. Não houve o corte ali, e, nisso, Gramsci tornou-se mais vivo nos cenácu-los da cultura universitária do que na política. Porque ele ficou sem portador dentro da política.. Enfim, o “grupo eurocomunista” não se constituindo como tal, Gramsci vai sair da política, vai ser capturado pelo campo da educação, dos estudos sobre folclore, da religiosidade popular, qualquer coisa que não a política. E todo esse nosso movi-mento então foi inteiramente decapitado, ao se dispersar em várias direções. Uma fração dele, mais animada, foi para o PT, mas sem partir de uma reflexão própria. Se nos levantássemos naquela hora e

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disséssemos: “Não, o novo vai conversar conosco”, havia energia ainda. Poderíamos perder. Aliás, deveríamos perder. Mas, talvez, se mantivés-semos linhas de continuidade, linhas de articulação... O fato é que, a partir daí, fomos nos perdendo, até o ponto de hoje estarem inteira-mente isolados os comunistas brasileiros que fizeram a descoberta gramsciana. Hoje é só um tempero específico dentro da política.

Vemos o tema da revolução presente na juventude de agora, nesta juventude do Psol, do PcdoB e de outras formações políticas, e que não conhece a alternativa que os eurocomunistas chegaram a esboçar. Perdeu-se, a meu ver, a oportunidade para a grande política, e aí ganhou a pequena política, ganharam os pequenos ar-ranjos. A falta de recursos também contou. Lembro o golpe mortal que foi a proibição em 1981 da grande festa da Voz da Unidade, que ia se realizar em São Paulo e nos garantir pelo menos um ano de sustentação. Mas quero aludir também a esse sentimento de que a ruptura era uma iconoclastia a ser evitada.

FAP – O americanismo, de extração gramsciana, é uma ins-piração fundamental do seu pensamento, no sentido da bus-ca de uma vida social que possa expressar crescentemente elementos de autogoverno, com um mínimo de sedimenta-ções e crostas parasitárias. No entanto, você se demarca ni-tidamente dos nossos autores que poderiam ser chamados de “americanistas”. Não haverá nisso uma contradição?

Werneck Vianna – A diferença é teórica: sobre o Estado. E tam-bém sobre a relação entre moderno e arcaico, o que leva sempre a um antagonismo: o moderno, para Faoro, tem que erradicar o seu contrário, a tradição. Para mim, não: o moderno tem que assimilar o seu contrário. Minha percepção de Estado é também diversa. Não é possível desqualificá-lo por definição. Embora eu reconheça que há aí um ponto enigmático mesmo, penso que esse enigma é da nossa natureza, é da nossa própria formação: este Estado que está aí nasceu mais moderno que a sua sociedade, portava uma “teoria” para ela, um projeto de formar uma nação, e era autoritário, sem dúvida. Mas o outro lado, os “americanos” da Regência e antes dela – Frei Caneca e outros –, que apontavam para a livre iniciativa, para a liberdade individual, não tinham como resolver uma questão es-tratégica, qual seja, garantir a unidade nacional. No limite, abriam mão dela, como Feijó, que também era um “americanista”. Então, essa articulação entre ibéricos e americanos está presente na nossa

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história. Tocqueville, no começo de A democracia na América, faz uso de uma afirmação: as nações são como as pessoas, pois seguem fiéis às suas condições de origem. Nações, como a francesa, que nascem animadas por dois princípios, vão ter dificuldades mais na frente, vão ter que combiná-los. Nós, como os franceses, nascemos animados por dois princípios: o público e o privado. Somos ibéricos e americanos, com ênfase em ambos. Nós somos assim, nascemos de uma composição entre eles, porque o liberalismo aqui abortou diante da migração da família real. Mais um pouquinho e nós tínha-mos feito uma revolução nacional libertadora.

FAP – Provavelmente esfacelando o país...

Werneck Vianna – Uma perspectiva hispano-americana. É aqui-lo sobre o qual nossos próprios homens do momento de fundação, como José Bonifácio, advertem: a fragmentação hispano-americana não pode prevalecer aqui. Esse é o caminho da guerra civil. Enfim, mesmo diante de um ato libertário, ele diz não. É uma dissidência infernal, não há como ficar com um lado contra o outro. Nós temos que entender isso na nossa história, como foi que isso aconteceu, e agora trabalhar essas duas matrizes, valorizá-las, porque elas não são alienígenas, elas são constitutivas do país.

FAP – Elas perpassam esquerda e direita...

Werneck Vianna – Pensando assim, também a direita. De tal modo que quem contraria a realidade dessas duas matrizes sofre, em ge-ral, sérios percalços. O Collor, por exemplo, quis fazer isso, romper radicalmente com a tradição em nome do mercado moderno, e deu no que deu. Aliás, se vocês me permitem, e isso vai sem maior pre-tensão, o Fernando Henrique só me cita, sempre, nesse ângulo par-ticular. Qual foi, então, a manobra que procurei conceber? Imaginei que o mundo americano, o mundo da sociedade, especialmente da vida associativa, da livre associação, fosse capaz de se elevar à polí-tica e converter o Estado a partir de baixo e a partir de dentro. Um processo de conquista feita ao longo do tempo, em que o direito teria papel a cumprir, um direito criado a partir de baixo. Não o “direito alternativo”, não o “direito achado na rua”. Não é isso. Mas sempre procurei valorizar os novos institutos e preservar também os valores do público. Citando um autor recente, contemporâneo, Pierre Rosan-vallon começa sua Monarquia impossível exatamente como Tocque-ville, ainda que sem citá-lo: “Nós, franceses, temos duas matrizes”

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etc. Nós também temos duas matrizes. No caso dos americanos, não, eles têm uma matriz única.

FAP – Você fala de uma mudança a partir de baixo, da so-ciedade. Isso você encontra em Gramsci e vai buscar tam-bém em Tocqueville. Afinal, qual o papel de Tocqueville na sua reflexão mais recente, assim como de outros teóricos das ciências sociais, de forma geral?

Werneck Vianna – Lembro mais ou menos a relação que Grams-ci teve com Benedetto Croce, que era o ponto culminante do pen-samento na sua época. O que não quer dizer que a esquerda que nós somos, e nem o Gramsci concordava com isso, deve aceitar pas-sivamente qualquer ponto culminante desse tipo. Lembro também, agora, a figura de Habermas, a posição mais poderosa que existe e que de algum modo parte do nosso campo, parte do marxismo. Em Habermas, temos uma origem mais próxima de Marx do que de qual-quer outro pensador contemporâneo significativo, e também temos uma construção democrática extremamente persuasiva das mudan-ças na estrutura Estado, na estrutura do poder a partir da via social, desde que se instituam procedimentos adequados e se libere a fala, com os homens em igualdade de condições para se manifestar. A propósito, o que sempre me aturdiu no Habermas é o fato de jamais ter mencionado a existência de Gramsci. Ele escreveu sobre autores americanos que trabalharam muito com Gramsci, como [Jean] Cohen e [Andrew] Arato, especialmente na formatação do conceito de socie-dade civil. Habermas trabalha muito com estes autores, incorpora-os como uma das balizas do seu pensamento, mas curiosamente não menciona Gramsci, o que sempre me que pareceu um traço pequeno na sua obra.

FAP – Mas Tocqueville é de outro campo, não é marxista. Como você vê essa interação? Ele tem algo a dizer para nós? Na medida em que a questão da democracia ganha peso, Toquevile precisa ser mais incorporado?

Werneck Vianna – Tocqueville, antes de tudo, ganha presença imensa entre nós na medida em que é a principal referência dos nos-sos “clássicos”, dos nossos intérpretes e estadistas. Alguns podem sustentar que as concepções tocquevilleanas aqui são desajustadas, que não há correspondência razoável entre o Brasil e a América do Norte; outros, ao contrário, defendem, como o fazem os americanistas

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extremados, que se deve liberar a economia, liberar o indivíduo e que se vai colher bons frutos com a derrocada dessa tradição barroca, ibérica, pesada, dessa estrutura chinesa de dominação, burocrática, patrimonial. E o ideal da township, da comunidade auto-organizada, era uma presença forte nos municipalistas do Império. Encontramos elogios fortes à obra tocquevilleana no principal opositor das ideias de descentralização, que é o Visconde do Uruguai. Oliveira Viana também. E vai por aí. A tradição autoritária brasileira vai numa dire-ção, a tradição libertária vai em outra tradição... E frequentemente, por peripécias da nossa história, nós da esquerda somos tachados de estatistas, de autoritários, de conservadores.

FAP – Nós da esquerda?

Werneck Vianna – Nós da esquerda. No período pós-suicídio de Vargas, ficamos todos, PSD, PTB, PCB, confundidos no mesmo Es-tado, na mesma estrutura corporativa sindical. E agora no governo Lula isso volta. É como se a história se reanimasse e se fizesse pre-sente com todo o seu peso. A própria estatalização está de volta, em-bora não se possa refazer o percurso de antes, porque, como disse, sabemos que as duas matrizes são poderosas e nenhuma das duas tem força suficiente para aniquilar a outra...

FAP – Mas neste jogo ambas entram em mutação, não?

Werneck Vianna – Ah, entram, vão entrando, e nós vamos nisso. A percepção dessa alquimia é absolutamente necessária para operar o mundo da política.

FAP – O “seu” Gramsci, decididamente, não é o “leitor de Maquiavel”, aquele que supõe a mobilização jacobina da vontade nacional-popular. Mas alguns processos em curso na América Latina, hoje, não parecem estimular esse tipo de leitura revolucionária?

Werneck Vianna – Este quadro latino-americano é difícil. É muito difícil. É aí que, a meu ver, temos que pensar do ângulo de um país continental, com uma história particular, e que olha para este mun-do com simpatia, com interesse – e com reservas. Porque lá se vive um processo que nós não podemos deixar de valorizar: a chegada de milhões e milhões de pessoas ao mundo dos direitos, pessoas que estavam ali embrutecidas em um canto do mundo e agora chegam à

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política, à esfera pública, ao parlamento. Elas vêm com um sistema de orientação dado pela sua particularidade, a mais absoluta, mas também usando um arsenal de linguagem já experimentado e que não foi muito bem-sucedido. Mas, de fato, o pensamento revolucio-narista da América Latina veio com um novo fôlego, ainda que esse novo fôlego seja refratado por uma série de outros processos. Temos uma revolução autocontida espacialmente, ideologicamente.

FAP – Mas não o Chávez, que parece ter construído uma “internacional” bolivariana...

Werneck Vianna – A questão é a seguinte: devemos nos opor a isso, devemos combater isso? Essa é a questão que vocês estão me impondo, não é? Acho que está claro, a partir de certos limites, sim. E, para ser franco, a política externa brasileira em relação a esse ponto tem sido, nas suas linhas gerais, muito inteligente, muito per-tinente. De todo modo, nada disso quer dizer que se deve sacramen-tar no seu conjunto essa nova posição revolucionarista. Se vocês me perguntarem, eu acho que ela tem que ser contestada em termos políticos, tem que ser teoricamente contestada. Agora, o fato é que muitas agências formadoras de opinião, entre nós, aqui dentro, man-têm sobrevivências revolucionaristas... De qualquer modo, é preciso registrar que o cenário em que se inscreve, hoje, o Brasil transcende o da América Latina e já é o mundial,e nele temos como trunfo nos-sos valores e a história da nossa civilização.

FAP – Mas enfrentar teoricamente implicaria apontar as contradições entre essa retórica jacobina e a convivência com a sociedade civil.

Werneck Vianna – Mas seria uma retórica jacobina mesmo?

FAP – No caso dos índios? Do Evo Morales?

Werneck Vianna – É uma revolução agrária que está em curso na Bolívia hoje?

FAP – Não. Até porque já aconteceu uma revolução agrária...

Werneck Vianna – Mais do que pensar em jacobinismo, nós temos que pensar em cesarismo, em categorias mais referidas a um anacro-nismo. E a situação boliviana, de fato, pode terminar em tragédia...

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FAP – Devemos nos preparar para o pior em situações como a de Honduras e outras? Teríamos, como se quis nos anos 60, “um continente em chamas contra o imperialismo”?

Werneck Vianna – Há quem possa pensar assim, mas nesse parti-cular o Brasil é uma presença apaziguadora.

FAP – E cabe considerar também o outro lado da moeda, o lado do “império”, onde há sinais de vitalidade, que podem alterar os dados desta situação. Observamos lá, desde a elei-ção de Obama, uma referência constante aos pais fundado-res, aos valores americanos...

Werneck Vianna – É a volta da religião civil, um fenômeno de im-portância imensa. Sem falar na projeção externa disso, lembro que, internamente, quando os Estados Unidos enfrentam uma questão como a da saúde, rompem uma tradição pesada. Quer dizer, admi-te-se que o Estado tem responsabilidades, há solidariedades entre as gerações, os indivíduos têm que ser protegidos pela lei. E isso é um divisor sem tamanho naquela sociedade. A ideia do pistoleiro, do indivíduo solto, do aventureiro, do homem da fortuna, só por isso sofre um baque considerável. A América se socialdemocratiza. E a nossa experiência brasileira, há dezesseis anos também é uma experiência socialdemocrata. E tudo indica que por mais quatro ou oito anos vai persistir assim...

FAP – Seja Serra, seja Dilma...

Werneck Vianna – Seja Serra, seja Dilma. Isso significa que, com modulações, com variações para lá e para cá, vige uma única pauta. O que há são interpretações da mesma pauta.

FAP – E assim voltamos ao cenário brasileiro, que parece viver esta contradição entre atores exageradamente contra-postos – na retórica – e substancial continuidade de projeto. É como se fossem atores de outra peça, que, no fundo, não é aquela que aqui está em cartaz. Como explicar estes atores fora de lugar? Como explicar o antagonismo radicalizado entre PT e PSDB, que envenena a cena pública? Para expli-car isso, devemos sair da política e recorrer ao narcisismo das pequenas diferenças?

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Werneck Vianna – De fato, a política oficial brasileira não se en-contra sob ameaça, no sentido de que não aparece nenhum grupo forte, de baixo, mexendo com as coisas estabelecidas. Com isso, os partidos hoje dominantes não têm porque se preocupar. Ao fim e ao cabo, vem o aumento do bolsa família... Do plano social não se originam impulsos que interfiram no sentido da mudança do quadro partidário. A desigualdade não cai, mas esse tema – o da desigual-dade – não tem, hoje, a carga dramática suscitada pela questão da pobreza. O tema da desigualdade, a meu ver, se afirma em momentos revolucionários. Num momento como o nosso, visivelmente o que se discute é a pobreza. Além do mais, na sociedade brasileira, ser de-sigual ainda não significa muita coisa, pois as classes subalternas, em grande parte, têm uma vida paralela, culturalmente mais rica, em certos aspectos, do que a do conjunto da sociedade. Do ponto de vista de sociabilidade, do ponto de vista de vida associativa, do ponto de vista do lazer, há um mundo paralelo, que não é ameaçado pela repressão. Tem tráfico, tem policial corrupto, mas tem também imaginação solta, folguedo, dança, feijoada e churrasco na laje, co-milança, festa de São João e muita energia para organizar tudo isso. Não é um mundo anômico. Ao contrário, é cheio de energia.

O que coloca a seguinte questão: nesse contexto,para os setores das elites políticas e econômicas exercerem hegemonia precisam ne-gociar o tempo todo. Qual foi a agência cultural que mais cedo e me-lhor compreendeu tudo isso? A Rede Globo de Televisão. Ela foi mui-to ajudada nessa tarefa por alguns intelectuais formados no nosso campo, como Dias Gomes, Vianinha, Armando Costa, Paulo Pontes e muitos mais. Mas, com isso, tendo de abrir o sistema à invenção popular - é claro que mistificando, mascarando etc. –, novos perso-nagens são mobilizados para a tarefa de organizarem a cena cultural. A Globo exerce uma ação hegemônica? Exerce. É um aparelho cultu-ral que é capaz de interpelar vivamente o que está embaixo e dirigi-lo Tome-se o Estandarte Globo como exemplo: a Globo trouxe para si a premiação das Escolas de Samba, deixando em segundo plano o júri organizado pelas direções das Escolas. E isso vale para qualquer coisa que viva, que se mexa no Rio de Janeiro, vale para qualquer manifestação cultural da cidade e mesmo do país. O que faz com que seja um domínio muito difícil de sacudir, de deslocar, mas também muito permeável e invadido por baixo. Enfim, um território da revo-lução passiva, em que muitos são decapitados e têm suas cabeças ocultadas para que o andamento cultural possa prosseguir.

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FAP – Já na questão partidária, a permeabilidade em rela-ção ao que vem de baixo, da sociedade civil, não é similar. Ambos os partidos, PT e PSDB, têm uma reação igualmen-te reativa ao que vem da sociedade civil, ou há diferenças entre eles?

Werneck Vianna – Essa é uma ótima questão. Ambos os parti-dos, e até mesmo seus candidatos, têm a postura tradicional do po-lítico progressista brasileiro: são favoráveis ao que ocorre embaixo, procuram entender, estabelecer políticas adequadas, mas uma rela-ção orgânica, mesmo que simbólica, se dá com o tipo representado pelo Lula. Porque a relação de Lula, no caso, é visceral. E vai haver novidades nesse ponto a partir de 2010, porque tanto com Serra quanto com Dilma teremos turbulências: nenhum dos dois vai ser capaz de manter, de segurar esse equilíbrio precário que existe hoje no interior do governo, no interior do Estado, e encarnar essa representação da articulação entre Estado e sociedade que o Lula faz em si. Não é o estilo do Serra nem da Dilma. Eles são adminis-tradores, têm uma outra formação, outro estilo.

FAP – Mas continuaremos sempre no âmbito da revolução passiva, sem esperar explosões...

Werneck Vianna – Já que a vida é imprevisível, tudo pode aconte-cer, mas não é isso que se espera que vá acontecer, principalmente quando a sociedade já conhece os trilhos domesticados por onde an-dar. Por outro lado, é possível fazer grandes mudanças obedecendo aos institutos existentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, posso ir ao Congresso e mudar a legislação sobre saúde. É duríssimo, mas posso mudar e avançar em muitas outras. E também aqui podemos avançar em muitas direções. Olhando agora para a sociedade, como resistirá o Serra ou a Dilma, logo que um deles tome posse, a uma movimentação ativista do MST? Que nem Lula, resguardando um pedaço de chão no interior do governo para eles? Acho que o Serra não faria isso.

FAP – Não tem feito em São Paulo...

Werneck Vianna – Não tem feito em São Paulo... Quanto a isso não há dúvida. E a Dilma, fará? Poderá fazer, mas ela também não tem se chocado com o agronegócio. Ela vai suportar a pressão do agro-negócio, com a alegação, por parte deste, de que sustenta o país e

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quer sustentar o mundo? O agronegócio tem, de fato, o argumento de que constitui uma base de lançamento estratégico para o Brasil na cena mundial, e a Dilma, ao que parece, não é a favor de algo como um jardim zoológico por aqui, e aparenta mais ser uma portadora do lema do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Já o Lula, o que faz? “Olha, meus amigos do mundo agrário, venham os dois aqui, vamos conversar...”. Sempre com jeitinho, e tem dado certo. O que poderia ter dramatizado a política brasileira não aconteceu: a luta pelo terceiro mandato. O que quer dizer o seguinte: o presidente subscreveu as instituições. Ele se alinhou nesta questão capital, for-taleceu as instituições, jogou as regras do jogo. Ponto.

FAP – A velha esquerda nacional-desenvolvimentista tinha um déficit de pensamento democrático (refiro-me aqui à democracia representativa). O PT traz em si alguns ele-mentos constitutivos (como a esquerda egressa da luta armada ou o “populismo” de certas correntes do pensa-mento católico), mais afeitos à democracia substantiva ou aos mecanismos diretos de estruturação da vida política. Corremos o risco de, além do desenvolvimentismo, repli-carmos o velho déficit democrático?

Werneck Vianna – Devemos sempre ter em mente que o PT vive a dinâmica da democracia representativa. As posições de força dentro do partido dependem muito do mandato parlamentar. Os parlamentares ouvidos, os políticos que falam para a sociedade são credenciados pelo mandato. Isso é totalmente distinto do par-tido político de esquerda dos anos 1950/1960 em que o mandatá-rio era visto como um quadro menor na estrutura partidária, que cumpre ordens e não tem autonomia. Isso mudou. Os parlamen-tares começaram a ser quadros mais influentes do que os demais, tal como ocorrera na Itália, onde a tradição revolucionária também enfatizava o carisma do quadro, seu papel na estrutura organiza-cional e não no parlamento. Essa passagem, no PT, já foi feita ca-balmente. E não tem volta. O Genoíno, o Zé Dirceu, que está sem mandato agora, mas vai voltar, o Palocci, enfim, todos buscam sua legitimação como quadros parlamentares.

Quanto à posição do PT, ao medo de que o partido não valorize as instituições da democracia representativa, essa é uma questão mais complicada. Como será o petismo sem Lula? Esse é o grande proble-ma. Um dilema muito curioso, esse da formação do PT. Isso já foi vis-

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to várias vezes, tanta gente escreveu sobre este dado, digamos, xiita da formação. O partido chega para atingir um determinado objetivo, não tem como atingi-lo, a não ser parcialmente e na dependência pessoal do chefe. Então, todos ficam nesta dependência e monta-se um equilíbrio que não tem como ser quebrado, até que o próprio che-fe se autonomiza e declara: “O programa do partido não me regula, eu me adapto às circunstâncias. Sou um político de faro, de intuição. Sou um político pragmático”.

FAP – Como o Zelig, do Woody Allen... Mas, nessa perspec-tiva, o PT sem a presidência Lula, vai ter uma queda forte? Ou seja, o sucesso do Lula se teria dado em detrimento do partido, pelo menos até certo ponto?

Werneck Vianna – Terá uma queda, sim. E o sucesso do Lula, paradoxalmente, fez com que a estrutura partidária ficasse ainda mais desfalecida. O que a direita pretende com essa campanha que tem como alvo preferencial o Sarney? Está querendo demolir a de-mocracia representativa? Não é o caso. Pretende quebrar o PMDB? Certamente. Seu objetivo é impedir que o PMDB se torne uma plata-forma de lançamento da candidatura Dilma? Certamente, também. Mas está difícil perceber a natureza desse movimento mais recente da política, porque há algo nele que é geral, universal, que tem a ver com a valorização do princípio da moralidade pública. O tema da moralidade pública é um tema emergente no mundo. E é muitíssi-mo democrático. Li o depoimento de um ministro da Suprema Corte Americana, que diz passar alguns dias da sua vida sem pensar noutra coisa senão elaborando a sua prestação de contas anuais. Se essa prestação não for minuciosamente correta, aparece um promotor e... Esse é um novo mundo, uma nova ordem. E quem não entende isso, perde, é derrotado. A democracia tem isso: vai avançando e vai assus-tando também. A propósito, esse é um dos argumentos do Tocqueville. Há algo nisso que é inexorável.

FAP – Uma palavra, ainda, sobre a contribuição brasileira tanto no plano mais imediato, fortemente afetado pela crise em curso no mundo e na América Latina, quanto em termos mais estratégicos, como contribuição para uma superação dos problemas de hoje que signifique ganhos civilizacionais. Ou, para sermos mais diretos, o Brasil tem jeito?

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Werneck Vianna – Tem. O Brasil é uma ponta de luz no mundo. Tornamo-nos isso a partir da grande tragédia que foi a escravidão. Ela fez com que cada um de nós se sentisse culpado e conhecesse a compaixão. Viver sob uma ordem liberal, orientada desde a hora de fundação do Estado-nação, pelos ideais da civilização, e coexistir com a escravidão... Proclamar a sua iniquidade, como em José Bonifácio, e admitir a sua existência, mesmo que por um tempo que deveria ser breve – e que não foi – por falta de alternativas. Tenho pensado muito nisso, na nossa visão compadecida, na presença da culpa em cada um de nós, que convivíamos com uma instituição desumana e para a qual não encontrávamos justificação, salvo as do mais estreito utilitarismo. Organizar essa circunstância aflitiva, agônica, implicou uma negociação ininterrompida em cada um, no sentido de conciliar princípios com práticas que os desautorizavam, de onde, especulo, nos veio a dialética como forma fundamental da nossa cognição. Não tenho medo de dizer que aprendemos a ter uma percepção dialética do mundo a partir da escravidão. Uma dialética sempre refratária à síntese, obrigando a negociação entre pólos opostos. Tudo deve ser negociado, e essa não é uma marca apenas do Brasil tradicional. Isso se reitera nas práticas políticas modernas - no fundo, a experiência da social-democracia brasileira, de FHC a Lula, é a da permanente negociação entre princípios e interesses. A escravidão nos obrigou a uma negociação permanente, inclusive porque, aqui, ela não im-plicou o afastamento americano, o apartheid. Hoje se considera que tolerância racial e tolerância religiosa, marcas do Brasil, não são lá muita coisa. Bom, agora quem mais tem isso do jeito que nós temos? Neste mundo de ódios raciais e guerras de religião isso é pouco?

FAP – Mas você então subscreve o Gilberto Freyre, o Joa-quim Nabuco, que foram mais ou menos subestimados pela sociologia marxista no Brasil?

Werneck Vianna – Em boa parte, sim. O diagnóstico da negociação tanto no plano da política como no da sociabilidade está presente neles. O fato é que nós temos sabido compor, de um modo ou de outro, duas matrizes de orientação diversa, e assim evitando, para o bem e para o mal, que conhecêssemos rupturas revolucionárias. O estilo beligerante pode ter sucesso em um público restrito, mas terá muita dificuldade para se universalizar. Entre nós, o político que tem conseguido passagem é aquele que se aproxima do modelo do nego-ciador, como Vargas, JK, Fernando Henrique e Lula.

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II. Entrevista

Sob certos aspectos são desvantagens amargas, mas das quais podemos obter algumas vantagens. Teria sido melhor para nossa tra-jetória se tivéssemos começado com uma revolução? Mas não come-çamos. Certamente a história seria outra. Mas não se pode perder de vista que a construção da civilização brasileira foi uma obra de arte política, não foi uma construção qualquer. E nossa passagem para o moderno também foi uma obra de arte política. Getúlio foi capaz de compor as elites emergentes com as tradicionais, favorecer os traba-lhadores urbanos e alterar a identidade, a natureza do país, embora nos tenha deixado marcas difíceis de serem carregadas. O fato de tudo se passar sempre assim, expropriando-se a vontade popular e operando por cima, está na base de uma herança nefasta que temos de erradicar. Mas o julgamento da nossa história também tem de ser dialético. É impossível não valorizar Frei Caneca, mas, com ele, aquele Norte-Nordeste teria ido embora. Sem dúvida. Para o bem ou para o mal.

FAP – O Evaldo Cabral de Mello disse que seria para o bem, opondo-se ao José Murilo, que ele chama de “saquarema”.

Werneck Vianna – É, saquarema. (Risos) Agora, essa história é que permitiu a vitória do Lula em 2002. A esquerda, naquele momen-to, podia mais uma vez ter jogado com tudo que tinha, ter convocado seus fantasmas. No entanto, ela foi fazer o quê? Foi revisitar a histó-ria, reconstituindo-a e legitimando-a. Porque uma coisa é consultar o inventário, pegar isso e aquilo, outra é convocar os fantasmas. Se os fantasmas fossem convocados, eles se desfariam em contato com a realidade. Porque não tem mundo para isso.

FAP – O mundo aponta em que direção? Uma sociedade civil mais forte, uma democracia ampliada...

Werneck Vianna – Certamente, e os recentes avanços nessa direção não podem ser subestimados. A vida associativa em geral tem-se for-talecido bastante, embora ainda se mantenha distante da esfera pú-blica tradicional, em boa parte por incapacidade dos partidos políticos e do desprestígio atual das instituições de representação política. Mas, veja-se o caso dos movimentos sociais quilombolas que têm descober-to o caminho para se atingir a esfera pública pela via do direito, seus procedimentos e instituições. O mesmo com os Sem Teto etc.

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Luiz Werneck Vianna

Mas, voltando à sua questão, quando sustento que temos jeito, penso em uma revalorização da nossa história, das nossas tradições, operadas por esse mundo novo, emergente, que brota por aí. Porque há o risco, talvez, de o mundo do passado ficar no passado, e esse moderno contingente que aí está criar indivíduos atomizados, intei-ramente orientados para ideais de prosperidade, esvaziando-se de valores e de sociabilidade. O fato também de a grande inteligência brasileira ter sido deslocada, salvo alguns pouquíssimos persona-gens, é um outro problema. A universidade tornou-se um lugar de formação de profissionais, de especialistas. Mas o Brasil tem jeito. Vai depender também da política, de como nós vamos operá-la e fa-cultar às novas gerações uma vida pública animada e centrada em valores da igual-liberdade e da fraternidade. Como é que nós vamos lidar, na política, com esse mundo que está emergindo? Mesmo afir-mando que temos jeito, preciso admitir também que faltam partidos, faltam personalidades exemplares, falta muita coisa. Mas é seguro que fizemos uma Constituição que se tem confirmado, em todos os grandes embates republicanos e em delicadas controvérsias recentes de interesses, como as que, entre outras, tiveram como objeto as ter-ras da Raposa do Sol. Com ela, na medida em que se organiza, a so-ciedade tem em mãos um mapa confiável para continuar a perseguir objetivos de justiça social e de defender as garantias da liberdade.

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Autor

José Antonio SegattoProfessor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978), doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1993) e Livre-Docência pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999). Autor de várias e importantes obras, das quais se destacam Reforma e revolução: as vicissitudes políticas do PCB; Breve história do PCB (1954-1964).

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José Antonio Segatto

Nos seus 120 anos de história, a República no Brasil com-portou fases e períodos distintos e peculiares que, a grosso modo, poderiam ser divididos ou resumidos em cinco: 1889-

1930, liberal-oligárquico; 1930-1945, centralizadora e ditatorial; 1945-1964, liberal; 1964-1985, ditatorial e 1985... democrática-li-beral. Apesar dessas fases e períodos serem diversos entre si, eles têm algumas características essenciais comuns: restrição aos direi-tos civis, sociais e políticos; limitações do caráter público do Estado, apropriado ou privatizado indevidamente por grupos e/ou facções da classe dominante; utilização de formas arbitrárias, opressivas, repressivas e/ou coercitivas de exercício do poder; presença de uma cultura política antidemocrática, preservando e reproduzindo traços perversos, presentes no clientelismo, no fisiologismo, no patrimonia-lismo, no corporativismo.

Em 15 de novembro de 1889 a República foi implantada através da intervenção do Exército, como se estivesse realizando uma parada militar. Para o destronamento do todo poderoso império dos senho-res e sua substituição pelo regime republicano bastou uma simples proclamação militar e foi realizada de um só golpe (pacífico e sem ne-nhuma resistência), fruto de conspiração de um pequeníssimo grupo na calada da noite. Pasmada, a sociedade brasileira só tomou conhe-cimento do fato depois acontecido.

Instaurada a República, o governo provisório, chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, tomou diversas medidas visando a

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reorganização do Estado sob novas bases e sob a égide do lema “Or-dem e Progresso”. Medidas ampliadas depois pela Constituição de 1891. A nova carta estabeleceu o federalismo – as províncias foram transformadas em estados que passaram a ter maior autonomia so-bretudo administrativa e financeira; o presidencialismo; o poder e mandatos eletivos e temporários – o presidente da República e dos estados passava a ser eleito pelo voto direto com mandato de quatro anos, os deputados e senadores passavam também a ter mandatos eletivos de três e nove anos respectivamente; instituía-se o voto uni-versal facultativo em substituição ao voto censitário – passaram a ser eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos, alistados segundo a lei, excluindo-se as mulheres, os analfabetos, os mendigos, soldados e membros de ordens religiosas; assegurou a liberdade de pensa-mento e imprensa e estatuiu o habeas corpus; a religião católica dei-xou de ser oficial, separando a Igreja do Estado, agora laico.

Por terem sido os protagonistas principais na troca de regime, os militares, inicialmente, assumem a direção do novo governo. Nos primeiros anos (1889-1894) da República, o poder político do gru-po militar aumenta em detrimento das oligarquias republicana ci-vis: “Nessa época, seu poder é um fato, pois dos vinte estados, dez são governados por militares” (CARONE, 1972, p. 359). Influenciados pelo positivismo, suas concepções antidemocráticas seriam expres-sas no governo de Floriano Peixoto que emprega práticas repressivas e excludentes. Aliás estas concepções e práticas marcarão presença e ressurgirão ao longo de quase toda a história republicana.

Não obstante ter desempenhado papel fundamental na consolida-ção das instituições republicanas nos primeiro cinco anos, o grupo militar foi pouco a pouco, perdendo o poder para as oligarquias civis, principalmente a cafeeira que, por sua vez, foram se impondo e assu-mindo o comando do poder estatal. Desde 1894 e nos anos seguintes (mandato de Prudente de Morais), as oligarquias estaduais, mais pre-cisamente as de São Paulo e Minas Gerais, assumem o controle quase absoluto da República, reforçado depois de 1898 com o estabelecimento da “política dos governadores”, durante o governo Campos Sales.

A “política dos governadores” consolidou o domínio das oligarquias estaduais sob o comando do governo federal, controlado pelos parti-dos republicanos paulista e mineiro. Envolvia um complexo sistema de trocas e lealdade entre os poderes federal, estaduais e locais – o coronel representava o eleitor, monopolizando o poder político nos municípios onde imperava o voto de cabresto, o “curral eleitoral”, a corrupção, a fraude e a violência; estes, por sua vez, eram representados pelos governadores, pelas oligarquias dominantes e pelos partidos re-

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publicanos; os governos estaduais seriam a base de sustentação do presidente da República com suas bancadas na Câmara e no Senado. Em troca o governador recebia o apoio político, verbas, cargos, obras e retribui o poder local deixando a este as nomeações (delegado de polí-cia, coletor de impostos, agente do correio, professora...) e fornecendo verbas e obras. O descomprimento de acordos podia significar desde a intervenção nos estados e municípios até a “degola” das bancadas estaduais (o não reconhecimento das eleições de senadores e deputa-dos). “O comando do sistema caberá ao governador, isto é, ao grupo estadual por ele representado, intermediário dos favores e benefícios da União sobre as comunas” (FAORO, 1975, p. 630). Este arranjo de dominação serviu para corroborar os poderes locais e oligárquicos, im-pondo “uma ampla teia de submissão e dependência”, envolvendo “o eleitor, o coronel, o partido e o Estado” (CASALECCHI, 1987, p. 13).

Houve um revigoramento do poder local – embora dependente dos governos estaduais que passou a exercer um papel funda-mental nas localidades do interior, tanto político-eleitoral como de controle social. O fenômeno do coronelismo envolvia de um lado a violência, a coerção, a opressão e também o favor, a proteção, a ajuda e de outro a obrigação, a fidelidade, a obediência. “O co-ronelismo não representava um mero obstáculo ao livre exercício dos direitos políticos. Impedia de fato a democracia, porque, em primeiro lugar, negava os direitos civis. Nas fazendas imperava a lei do coronel, instaurada e praticada por ele. Seus trabalhadores e dependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, mas súdi-tos do coronel” (CARVALHO, 1995, p. 43).

Uma medida importante que contribuiu para o fortalecimento do coronelismo e do poder oligárquico foi o controle ou o monopólio das terras. A Constituição de 1891 transfere as terras devolutas da União para os estados ou para as oligarquias regionais. “Cada esta-do desenvolverá sua política de concessão de terras, começando aí as transferências maciças de propriedades fundiárias para grandes fazendeiros e grandes empresas de colonização interessadas na espe-culação imobiliária” (MARTINS, 1981, p. 43).Terra e poder tornam-se quase que sinônimos na República, o antigo senhor de escravos do império “se transforma em senhor de terras” (idem, p. 44).

Nesse regime, os espaços para a oposição eram estreitos e os canais legais de manifestação bloqueados. Partidos e movimentos políticos que não estivessem atrelados ao sistema de poder oligár-quico estavam fadados ao isolamento e ao insucesso eleitoral. Toda e qualquer manifestação de descontentamento, de litígio ou de negação daquela ordem era punida pela força, com violência. Casos exempla-

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res foram os de Canudos e Contestado onde milhares de sertanejos, lavradores e posseiros foram massacrados pelo Exército, polícia e capangas das oligarquias. Um outro exemplo emblemático foi a tenaz perseguição a socialistas, anarquistas, comunistas, sindicalistas, “tenentes” e outros (mendigos, “vadios”, capoeiras, prostitutas etc.) – para os nacionais o destino era o confinamento e o desterro para o Núcleo Cleveland no Oiapoque; para os estrangeiros “indesejáveis” e “perigosos à ordem pública e nocivos aos interesses da República” (leis de 1907/13 e 21), o resultado era a expulsão. Na década de vin-te (1922/26), Artur Bernardes, a pretexto de manter a ordem contra os levantes tenentistas, governou sob constante estado de sítio, com prisões políticas, repressão policial, censura à imprensa, empastela-mento de jornais, limitação do direito de habeas corpus, depuração da Câmara e do Senado pelas “degolas”, intimidação do Judiciário, fechamento de sindicatos, perseguição a comunistas e anarquistas, deportação e expulsão de lideranças nacionais e estrangeiras etc.

Os direitos sociais, por seu lado, praticamente inexistiam. Se, de um lado, os trabalhadores rurais (colonos, agregados, parceiros, me-eiros, vaqueiros, assalariados) estavam submetidos à opressão dos senhores de terras e subjugados pelo coronelismo, as leis e garantias trabalhistas para o proletariado urbano eram parcas e não respei-tadas. O liberalismo burguês-oligárquico da Constituição de 1891 afirmava a não intervenção do Estado no mercado e nas relações de trabalho. A regulamentação das relações entre capital e trabalho era vista como prejudicial e atentatória à livre circulação de mercadorias, mais especificamente à compra e venda da força de trabalho. “Em úl-tima análise, as questões trabalhistas caíam na jurisdição do Código Penal: daí a afirmação repetida de que a questão social na Primeira República não passava de um caso de política” (RODRIGUES, 1979, p. 47). Criminalizado, o movimento operário estava sujeito a cons-tante e violenta repressão.

Ao longo da década de vinte emergem problemas e contradições que conduzem à derrocada do regime oligárquico – uma série de mu-danças e movimentos iriam se intercalando e conjuminando e ao longo do tempo provocariam o desgaste e a desagregação da ordem sociopolítica: a) problemas acumulados com a política de valorização do café, prolongando artificialmente o fôlego da economia agroex-portadora, em profunda crise estrutural desde o início do século; b) cisões nas oligarquias estaduais, motivadas, em boa parte, pela rei-vindicação de setores oligárquicos de alguns estados de maior parti-cipação na política federal que privilegiava São Paulo e Minas Gerais; c) oposição de facções da burguesia e das camadas médias urbanas

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que buscavam áreas de participação política e no poder; d) o combate proletário que, simultaneamente, reivindicava medidas imediatas e esboçava projetos de transformações mais radicais; e) mobilização de setores das Forças Armadas que propugnavam contra as oligarquias através dos levantes “tenentistas” – a revolta do forte de Copacabana (1922), o levante de São Paulo (1924) e seu desdobramento na coluna Miguel Costa-Prestes.

Os problemas nacionais, agravados pela política inflexível de Washington Luís e pela crise econômica de 1929, fortalecem as fra-turas das oligarquias estaduais: vários de seus setores, principal-mente segmentos do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e da Para-íba alinhados na Aliança Liberal, com apoio de militares e de outras forças sociopolíticas, preparam a insurreição depois de derrotados nas eleições de março de 1930 (vencida pelo candidato das oligar-quias dominantes). O movimento eclode no Sul, Minas e no Nordeste. Com sua vitória, a 24 de outubro, Getúlio Vargas assume o governo provisório. Mesmo contando com a simpatia e o apoio populares, o movimento procurou manter o povo afastado do processo, quer pela demagogia, quer pela repressão, reordenando o poder de cima para baixo, arranjando e conciliando as frações e grupos dominantes. “O receio consistia em que a revolução viesse temerosamente, como esclareceu João Neves da Fontoura, de baixo para cima” (RODRIGUES, 1982, p. 98). A filosofia do movimento foi bem resumida por um de seus líderes, o presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos de An-drade: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. O movimento político-militar de 1930, mantinha assim a antiga tradição da histó-ria brasileira: a mudança de regime resumiu-se a um acerto entre grupos dominantes e através de uma operação militar, reduzindo o povo a mero espectador.

Nos anos 30, no governo Vargas, há uma rápida e intensa mo-dernização do Estado, que passa, inclusive, a ter papel importante na acumulação de capital, no desenvolvimento das forças produtivas e nas relações de produção. O Estado é reorganizado e centralizado e intervém em diversos setores da vida socioeconômica e política. Toma muitas medidas econômicas e administrativas, cria novos ór-gãos, comissões, conselhos, departamentos, institutos, fundações, códigos para regular e planejar a economia. Intervém nos governos estaduais, dissolve Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional. Em 1932, decreta um novo Código Eleitoral, estabelecendo o voto obrigatório e secreto, criando a Justiça Eleitoral e estendendo o direito de voto para as mulheres; além de convocar eleições para a Assembleia Constituinte.

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Entre 1930 e 1943 é criada uma ampla e complexa legislação trabalhista. Ainda em 1930 foi criado o Ministério do Trabalho, In-dústria e Comércio, visando substituir e a luta pela colaboração de classes ou instituir a “paz social”. A seguir, é criado um grande nú-mero de leis e decretos que regulamentariam as relações entre ca-pital e trabalho: nacionalização do trabalho (empresas deveriam ter pelo menos dois terços de trabalhadores nacionais); regulamentação do trabalho da mulher e do menor; férias anuais de 30 dias; criação da carteira profissional; jornada de oito horas; limitação de trabalho noturno e descanso semanal remunerado; regulamentação das pro-fissões; indenização por dispensa sem justa causa; aposentadoria por tempo de serviço e idade; lei de acidentes de trabalho; salário mínimo etc. Ao lado disso é implantada a Justiça do Trabalho e es-tabelecida uma nova estrutura sindical, atrelada ao Estado. Estas medidas seriam sistematizadas na Consolidação das Leis do Traba-lho (CLT), em 1943. Observe-se que essa legislação não era extensiva aos trabalhadores rurais.

Apesar de incorporar as reivindicações dos trabalhadores, o Esta-do procura colocá-los sob o seu controle, além de manter o movimen-to operário sob constante e violenta repressão policial. De 1931 a 1939 o governo cria uma estrutura sindical totalmente subordinada ao Estado. Sua intenção era nítida, disciplinar e evitar os conflitos sociais e impor a colaboração e a harmonia entre as classes.

Depois de derrotar São Paulo na Guerra de Secessão de 1932, o governo faz um reordenamento das forças políticas no poder. Isso permite a Vargas se reeleger na constituinte corporativa de 1934 e recompor setores da classe dominante, cooptando inclusive boa par-te da oligarquia paulista. Em 1935, fecha a Aliança Nacional Liber-tadora com base na Lei de Segurança Nacional; e depois do levante aliancista (novembro) nos quartéis, desencadeia violenta repressão, estabelece o estado de sítio, equiparado depois a estado de guerra, cria o Tribunal de Segurança Nacional (para julgar crimes políticos), recria o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), além de outras medidas que são postas em prática, “sempre numa restrição contínua dos direitos democráticos” (CARONE, 1974, p. 344). Prisões, tortura, perseguições, intimidações tornam-se normas. “Durante a repressão desencadeada após a revolta de 1935 foram presas cerca de 6 mil pessoas” (PINHEIRO, 1991, p. 322). Com isso, Vargas abriu caminho para a implantação da ditadura do Estado Novo, em 1937, quando dá um golpe de Estado, outorga uma nova Constituição, suspende as eleições, extingue os partidos, fecha o Congresso, decla-ra estado de emergência, suspende as liberdade civis, impõe a cen-

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sura à imprensa, governa através de decretos-leis e outras medidas repressivas e antidemocráticas.

No início dos anos quarenta (1942/3) depois de vários anos de ditadura, as forças políticas democráticas começam a se rearticular. Nesses anos, devido à forte pressão sobre o governo, o Brasil entra na guerra ao lado dos aliados, criando um paradoxo: o país lutava na Europa contra o nazifascismo, ao mesmo tempo em que, interna-mente, o regime do Estado novo guardava semelhança com aquele. Depois de 1943, o movimento oposicionista começa a tomar corpo, reivindicando a realização de reformas político-institucionais: anis-tia, eleições, convocação da Constituinte, liberdade de expressão e organização. O movimento passa a aglutinar diversos setores da so-ciedade – de comunistas, liberais, operários, empresários, estudan-tes, intelectuais e outros – numa ampla frente democrática contra a ditadura. No primeiro semestre de 1945 o movimento democrático chega ao auge: é rompida a censura à imprensa; são marcadas elei-ções; os partidos são legalizados, inclusive o PCB; é conquistada a anistia aos presos e perseguidos políticos; é convocada a Assembleia Constituinte. A sociedade civil se reorganiza e se mobiliza rapida-mente e com desenvoltura – há uma grande renovação nas entidades estudantis e nas direções sindicais; renascem os movimentos reivin-dicatórios e grevistas.

As eleições de dezembro de 1945 foram, sem dúvida, as mais democráticas que já haviam ocorrido no país até então, disputadas por 12 partidos. São eleitos, o presidente da República e mais 320 parlamentares que comporiam a Assembleia Constituinte. Após seis meses de trabalho, elaborou uma nova Constituição com caracterís-ticas liberais. Não obstante garantir diversos direitos civis, sociais e políticos, mantinha ainda elementos e instituições autoritários do regime deposto, como, por exemplo, a estrutura sindical atrelada ao Estado.

Esta euforia democrática do pós-guerra, no entanto, não duraria muito tempo. Já em 1946, o governo Dutra regulamenta o direito de greve, restringindo-o fortemente; impõe a Lei de Segurança Nacional. E depois de 1947, sob inspiração da guerra-fria, põe o PCB na ilega-lidade; fecha diversas organizações dos trabalhadores (MUT, CGTB); intervém em centenas de sindicatos; desencadeia dura perseguição política e toma medidas repressivas.

Os anos 50, repletos de conflitos sociopolíticos, será palco de vá-rias tentativas golpistas dos setores liberais-conservadores da classe dominante e das Forças Armadas, provocando crises políticas difí-

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ceis, como a que levou ao suicídio de Vargas (1954) e a tentativa de impedir a posse de Juscelino e Jango (1955). O quinquênio seguinte (55/60) seria de relativa estabilidade democrática e de ingresso do Brasil numa nova dinâmica de desenvolvimento capitalista. No início dos anos 60, inicia-se num clima de instabilidade política, com a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa dos setores golpistas de di-reita tentando barrar a posse de Goulart (1967) – a crise continuaria até desembocar no golpe de 1964.

Paralelamente, desde meados da década de 50, houve um aumen-to da capacidade mobilizatória do sindicalismo urbano: renovam-se diretorias de sindicatos, federações e confederações; é criada uma grande quantidade de entidades, de intersindicais e de centrais (CGT), esboçando a criação de uma estrutura organizativa horizontal, em de-trimento à horizontal oficial; as lutas (greves, mobilizações) têm uma razoável expansão e além das reivindicações econômicas e corpora-tivas, agrega outras mais amplas, como as reformas de base. Com isto “se transformava em uma força que pretendia se fazer presente na definição dos rumos da vida política nacional...” (NEVES, 1981, p. 39). Por outro lado passa a penetrar e se apoderar de agências estatais e para-estatais e influir no aparato governamental, criando, inclusive uma situação anômala, na medida em que subverte as fina-lidades (de controle e subjugação) para as quais foi criado.

Um elemento novo neste quadro é a emergência dos trabalha-dores rurais no cenário sociopolítico nacional. O surgimento de as-sociações, ligas, uniões na década de 50, se transformam em sin-dicatos no início dos anos 60, reconhecidos a partir de 1962. Esse fato impulsionou a luta pela reforma agrária e pela conquista de direitos sociais. Em 1963 é promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural estendendo aos trabalhadores do campo os direitos trabalhis-tas já conquistados pelos trabalhadores urbanos. O desenvolvimento organizativo e mobilizador seria momento singular de extensão da cidadania ao trabalhador rural, historicamente excluído e subjugado pelo patronato e pelas relações clientelistas.

Concomitantemente ocorre uma ampliação muito grande das or-ganizações e mobilizações estudantis, de profissionais liberais (mé-dicos, advogados, jornalistas), o estímulo polizante da vida artística, intelectual e de outros setores da sociedade civil (como a Igreja) e política. Isso tudo permitiu que se colocasse na ordem do dia um conjunto de exigências no sentido de promover reformas estruturais e mudanças que pressupunham a ampliação da democracia e um alargamento dos direitos de cidadania. O avanço organizativo, po-litizado e mobilizador foi favorecido naqueles anos pela vigência de

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determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal.

Contrapondo-se a essas tendências, setores dominantes desen-cadeiam uma forte campanha de desestabilização que, a partir de 1962, acabou por dividir e isolar as forças transformistas. A extrema polarização direita x esquerda, beneficiada pela crise econômica e política, criaram condições para o golpe político-militar que, em 1º de abril de 1964, depôs o governo constitucional de João Goulart.

Após o golpe, uma junta militar assume o controle do país. A 09 de abril, é baixado um Ato Institucional (no 1) concedendo ao Executivo po-deres excepcionais para cassar mandatos de parlamentares e suprimir direitos por até 10 anos e decretar estado de sítio entre outras medidas. Simultaneamente outras providências da ditadura recém-instalada: perseguições, prisões, demissões de funcionários públicos, intervenção em sindicatos, entidades estudantis, associações civis, instituições e outras – a violência e o arbítrio tornaram-se normas. “A violação da ordem democrática, em 1964, colocou em recesso a dimensão políti-ca da cidadania brasileira” (SANTOS, 1979, p. 100).

Nos anos que se seguem, novas medidas arbitrárias são toma-das para fazer frente à rearticulação da oposição e das manifesta-ções estudandis e operárias: extinção dos partidos políticos, mais cassações, novos atos institucionais, cerceamento das garantias e liberdades individuais, eleições indiretas, repressão, tortura, assas-sinatos, censura à imprensa etc. Criou uma amplíssima legislação de exceção: Lei de Segurança Nacional, Lei de Imprensa, Lei de Greve, leis cerceando atividades estudantis etc. Militarizou-se o Estado e criminalizou-se a sociedade civil – o terrorismo de Estado implantou a lógica da força e o domínio do medo. Implantava-se aí o mais longo e brutal período de ditadura da história republicana brasileira, sob a ideologia e prática do lema “Segurança e Desenvolvimento”.

No combate à ditadura as forças políticas em particular e a so-ciedade civil em geral, tiveram que travar uma longa “guerra de po-sições”, envolvendo embates eleitorais, mobilizações, campanhas, greves, protestos, movimentos etc. Nesse processo houve uma ampla reorganização da sociedade civil; a conquista do estado de direito democrático, a extensão de direitos civis, políticos e sociais – mas, não obstante isso, sobrevivera com muita força a discriminação e a iniquidade, a exclusão e o arbítrio, a opressão e a coerção; e muitos dos direitos obtidos com grandes lutas e sacrifícios estão constan-temente ameaçados de serem abolidos ou subtraídos por poderosos setores dominantes que continuam a deter posições de mando.

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III. 120 Anos da República

ReferênciasCARONE, Edgard. A República Velha (instituições e classes sociais). São Paulo, Difel, 1972.

_____. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974.

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). São Paulo: Brasiliense, 1987.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 2. ed. São Paulo: Globo/Edusp, 1975.

MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Pe-trópolis: Vozes, 1981.

NEVES, Lucília de Almeida. O comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964). Belo Horizonte: Veja, 1981.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

RODRIGUES, José Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. 2. ed. São Paulo: Símbolo, 1979.

RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Ja-neiro: Campus, 1979.

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Autores

Rudá RicciSociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Obser-vatório Internacional da Democracia Participativa. Site: www.cultiva.org.br – E-mail: [email protected] – Blog: rudaricci.blogspot.com.

Giorgio NapolitanoPresidente da República Italiana. Formado em Direito, foi eleito deputado pela pri-meira vez em 1953 pelo Partido Comunista Italiano, sendo reeleito por sucessivos mandatos. Passou pela presidência da Câmara dos Deputados da Itália, foi ministro do Interior e tornou-se europarlamentar de 1999 e 2004. Em 23 de setembro de 2005, foi nomeado senador vitalício pelo presidente italiano Carlo Azeglio Ciampi.

Luiz Viégas da Motta LimaEconomista, contador, aposentado pelo Banco do Brasil, ex-dirigente nacional das Confederações dos Bancários e dos Aposentados, atual presidente de Honra da Fede-ração dos Bancários do RJ-ES, sociocolaborador da ABI e conselheiro nato da AAFBB (Associação dos Antigos Funcionários do Banco do Brasil).

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Oligarquia e presidencialismo de coalizão

Rudá Ricci

Um artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco, intitulado “Simbiose – oligarquia e populismo”, motivou esta reflexão sobre o quanto o presidencialismo de coalizão montado pelo

lulismo confere uma sobrevida (e enquadra) às oligarquias e corone-lismos regionais. Di Franco recupera a avaliação do sociólogo Leôn-cio Martins Rodrigues para quem a multiplicação de escândalos não punidos é fruto da aliança entre os grupos de Lula e de Sarney. Na verdade, trata-se de um preço pago pelo lulismo pelo apoio que Sar-ney deu ao presidente Lula durante o auge da denúncia do esquema que ficou conhecido como mensalão.

Para Leôncio, “o líder das oligarquias tradicionais do Nordeste junta-se ao líder das novas classes ascendentes” e, ainda, “a união foi possível por que os “novos” aderiram rapidamente ao projeto dos “velhos”, de fazer da política uma escada para obter proveitos pes-soais, enriquecimento e desfrute puro e simples do poder. É algo de fato original. Entre nós, a ascensão dos plebeus não significou a expulsão dos velhos oligarcas. Eles se entenderam, chegamos aonde chegamos.”

Di Franco parece acertar o alvo quando afirma, em seu artigo, que o “presidente da República, invariavelmente, sai em defesa daqueles que compõem o seu cinturão de proteção”. Mas, a partir daí, perde o prumo porque parte para uma análise personalista, fulanizando a política. Reafirma a tese da oposição para quem o lulismo seria le-niente. Perde, assim, a chance de aprofundar a análise sobre a lógica

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IV. Observatório Político

da Corte brasileira, dos acordos entre forças que corroem qualquer inovação política em nosso país.

O fato é que o lulismo tem na coalizão presidencialista uma de suas pedras fundamentais, nascida do pragmatismo sindical. Uma coalizão que fez da partilha de cargos públicos uma blindagem que praticamente inviabilizou qualquer discurso hegemônico da oposi-ção. Mas como qualquer coalizão vitoriosa em nosso país depende do partido “omnibus” que responde pela sigla PMDB, esta opção vai tomando rumos imprevistos. Lembremos, apenas, que o conceito de partido “omnibus” foi criado por Fernando Henrique Cardoso para nomear os partidos que têm como intenção reunir várias doutrinas e ideologias para atingirem o objetivo comum, no caso, a manutenção de seu poder de influência direta junto ao Poder Executivo (em todos seus três níveis).

O poder do PMDB reside em sua expressiva força parlamentar e no número de prefeitos e vereadores. Significa dizer que é um partido que se acomoda à peculiaridade das culturas locais, territoriais. Em algumas localidades, possui lideranças mais populistas; em outros, mais conservadoras; em outras, ainda, detentoras de discursos éti-cos e moralistas. Mais à esquerda ou mais à direita, é o protótipo da acomodação e do pragmatismo. É aí que se casa com o lulismo.

Assim, a coalizão presidencialista, ao mesmo tempo em que con-fere um imenso poder ao lulismo, possibilita o fortalecimento de li-deranças regionais, que se portam como porta-vozes das decisões federais, já que participam direta ou indiretamente de ministérios e fóruns de decisões do governo federal. E, assim, alimenta indireta-mente as oligarquias regionais. Como contingência, não como inten-ção, já que a coalizão envolve muitas tonalidades ideológicas.

O que há de interessante nesta equação é a criação de um sistema de lealdades que garantem autonomia ideológica (ou programática) à cúpula do governo federal, como se as lideranças regionais incorpo-radas à coalizão de governo tolerassem as identidades programáticas do lulismo desde que pudessem exercer seu poder ao longo do terri-tório nacional. Uma situação muito parecida com o que a literatura dedicada ao estudo do sindicalismo rural brasileiro denominou de “Complexo Contag”.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Con-tag) é a maior confederação de trabalhadores do Brasil. A partir do fi-nal dos anos 60, em plena ditadura militar, foi retomada por lideran-ças nordestinas próximas ao PCB, mas que fizeram composições com outras forças políticas ao sul do país. Nos anos 70, o núcleo central

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Oligarquia e presidencialismo de coalizão

da Contag forjou uma fortíssima coalizão de gestão, envolvendo fe-derações estaduais e sindicatos (STRs). Também incorporou em seu corpo de assessores técnicos e lideranças oriundas do PCB e MR8.

Na prática, um conflito local era prontamente atendido por ad-vogados e técnicos das federações e mesmo da Contag. Um dirigente estadual ou local envolvido com este sistema de lealdades recebia, em época de eleição das direções sindicais, apoio das instâncias su-periores e vice-versa. Uma trama complexa porque não era raro que numa localidade surgisse uma oposição sindical ideologicamente próxima da direção da Contag, mas que não recebia qualquer apoio da direção da confederação justamente porque não fazia parte do sistema de lealdades que sustentava todas direções. Tempos de-pois, era possível perceber que este sistema transformou-se numa articulação de cúpulas dirigentes, com pouca possibilidade de par-ticipação direta da base sindical no processo decisório. O único momento de participação foram os congressos nacionais da Contag, um evento, não um processo de gestão política.

A coalizão presidencialista lulista possui este signo. Não interfere (ou interfere raramente) nas disputas regionais. Procura limitar a força de seu próprio partido onde lideranças de partidos que fazem parte da coalizão têm relevância eleitoral. Em troca, ganha liberda-de programática, tendo utilizado como moeda cargos e ministérios. Como se oferecesse anéis para preservar os dedos. Uma troca política nítida, definida, que se esboçou com mais clareza quando do ingres-so do PMDB no governo Lula. Por este motivo, é fundamental que se entenda que o PMDB tem responsabilidade central na conformação final do lulismo.

Até então, o lulismo ainda era depositário de certa lógica petista, onde o partido liderava (ou subjugava) com mão de ferro outros alia-dos (daí o mensalão). A partir da entrada do PMDB no governo fede-ral, desenhou-se a coalizão presidencialista lulista com todas suas cores. Os dirigentes do PT que operavam os bastidores dos acordos entre partidos da base governista se retraíram às disputas internas. O núcleo gestor do lulismo passou a receber um salvo conduto da cúpula de todos partidos de sua base política, incluindo o seu pró-prio partido.

Depois de Getúlio Vargas, o lulismo se constrói como modelo de gestão política mais fiel ao maquiavelismo. Soube aliar a administra-ção da Corte com a relação direta com as massas populares. Conduz uma política de Estado no fio da navalha desta relação. Daí a contra-dição entre análises que o consideram populista e as que o consideram

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refém das oligarquias (ou ele próprio uma oligarquia). O populismo ignora as instituições e, em especial, as estruturas de mediação na representação política (sindicatos, por exemplo). As oligarquias, por seu turno, limitam a estrutura de poder a poucos expoentes, às elites econômicas e políticas tradicionais.

O lulismo não trabalha em nenhuma dessas formas políticas. An-tes, as redefine. Enquadra esses extremos num sistema de lealdades absolutamente pragmático. Não se trata de uma mera ascensão po-lítica de um segmento social, da elite sindical cutista (como sugere Leôncio Martins Rodrigues). Esta, talvez, fosse uma evidência na pri-meira gestão Lula. Mas a partir da coalizão com o PMDB, forjou-se o lulismo, uma expressão política muito mais complexa que mero acordo entre elites.

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Bobbio e a governabilidade das sociedades democráticas

Giorgio Napolitano

Às vésperas do dia 25 de abril de 2009, dia em que foram co-memorados os 64 anos da libertação da Itália do nazifascis-mo, o atual primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, se

jogou numa campanha pela necessidade de reformar a Constitui-ção italiana em nome das exigências de governabilidade. Para isso, em sucessivas declarações, procurou mostrar que a Constituição de 1948 era, por um lado, pró-soviética; e por outro lado, um empecilho às exigências de governar o país de maneira mais eficiente.

Homem político absolutamente contrário àquilo que Berlusconi representa, o presidente da República, Giorgio Napolitano, teve uma rápida reação. Assim, na abertura da 1a Bienal Democracia de Turim, o presidente Napolitano deixou claro o seu posicionamento contrário às intenções pouco democráticas de Berlusconi, recorrendo às ideias do filósofo italiano Norberto Bobbio, para quem “a denúncia da ingo-vernabilidade tende a sugerir soluções autoritárias”, como se verá a seguir. O trecho do discurso foi publicado no jornal italiano La Repu-blica, edição de 23/04/2009.

[...] Já foi aberto, há décadas, o debate geral sobre a governabi-lidade das sociedades democráticas. Ao afrontar no seu tempo esse tema crucial, Norberto Bobbio observou que enquanto no início da disputa sobre a relação entre liberalismo e democracia “o alvo prin-cipal tinha sido a tirania da maioria”, este estava acabando por as-sumir um sinal oposto, “não o excesso, mas o defeito de poder”. E Bobbio acrescenta, mesmo sem elidir o problema: “a denúncia da ingovernabilidade tende a sugerir soluções autoritárias”. Uma adver-tência, esta última, que não se deveria esquecer nunca. E da qual se deve extrair a exigência de ter sempre bem assentada a validade e o caráter irrenunciável das “principais instituições do liberalismo” – concebidas em antítese a todo despotismo – entre as quais, na clás-sica definição do próprio Bobbio, “a garantia de direitos de liberdade (in primis liberdade de pensamento e de imprensa), a divisão dos po-

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deres, a pluralidade dos partidos, a tutela das minorias políticas”. E sempre Bobbio igualmente enfatizava a representatividade do Parla-mento, a independência da magistratura e o princípio da legalidade.

Tudo isso não constitui uma bagagem obsoleta, sacrificável – ex-plicitamente ou de fato – sobre o altar da governabilidade, em função de “decisões rápidas, peremptórias e definitivas” da parte dos poderes públicos. Evoquei – e está certamente entre os institutos não sacrifi-cáveis – a distinção dos poderes (Legislativo, Executivo, Judiciário); e que me seja permitido fazer referência também ao reconhecimento do Chefe de Estado como “poder neutro”.

Mencionei igualmente como essencial a representatividade do Parla-mento: a propósito da qual penso que se possa dizer que essa não vem fatalmente eivada por regras vigentes em diversos países democráticos, finalizadas para evitar uma excessiva fragmentação política, mas periga ser seriamente debilitada pela ausência de válidos procedimentos de formação das candidaturas e de mecanismos feitos para ancorar os eleitos na relação com o território e com os eleitores.

Definitivamente, não se pode recorrer a simplificações de sistema e a restrições de direitos em nome do dever de governar. Não há, sob o plano democrático, alternativa ao confrontar-se, ao combinar escuta, mediação e decisões, ao chegar à síntese com a necessária tempestivi-dade, mas sem sacrificar os direitos e a contribuição da representação.

Sabemos quais horizontes novos a Constituição abriu para o nosso país: horizontes de liberdade e igualdade, de modernização e de soli-dariedade. A condição para cultivar essas potencialidades, em termos que respondam às necessidades e a instâncias que amadurecem no corpo social, na comunidade nacional – a condição para reforçar as-sim as bases da democracia e o consenso do qual se pode trazer se-gurança e ímpeto – é um empenho que atravesse a sociedade, que se faça sentir e pese enquanto expressão da consciência e da vontade de muitos, homens e mulheres de cada geração e de cada classe.

Tradução de Marcos Mondaini.1

1 Professor da Universidade Federal de Pernambuco e, atualmente, faz pós-doutorado no Depar-tamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.

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O poder político

Luiz Viégas da Motta Lima

Na teoria, as agremiações partidárias existem para buscar a conquista do poder político e passar a dirigir a nação. Nada mais legítimo. Objetivam levar à prática, por imposição ou

persuasão, seu ideário, seu programa ou suas normas de vida em so-ciedade. Assumindo o poder, estruturam o controle do Estado atra-vés de um novo governo.

De imediato, não estamos questionando a forma como se dá essa conquista. Se existirem condições objetivas e subjetivas, ela poderá ser legitimada, tanto em movimento pacífico como em processo violento. Por um só partido político ou por uma frente partidária. Isto sem levar em conta que, muitas vezes, de forma condenável, o poder é alcançado por golpe de força. Geralmente, isto acontece para imposição de normas até então inexistentes ou completa supressão do “status quo”. Outras vezes, para simples substituição de pessoas ou grupo no poder.

A história está repleta de exemplos onde organizações partidárias pregam ou pregaram, abertamente, a substituição de governos, mes-mo sem quebra das normas existentes. São os casos de renúncia, muito frequentes nos regimes parlamentares, mediante apresenta-ção de moção de desconfiança. Ou, ainda, pela pressão popular e política, como no nosso episódio de “impeachment”.

Mas, em quaisquer destes casos, mesmo na pacífica pressão po-pular, pode desencadear-se processo revolucionário, assim entendido aquele que transcende as normas existentes e impõe a substituição, não só do governo e da estrutura de poder, mas do próprio regime.

Pouco importando, pois, o caráter inicial do movimento, havendo resistência dos grupos governistas, ele poderá modificar-se e trans-formar-se em confronto armado. Outras vezes, podendo ter início como luta armada, porém sem possuir conteúdo revolucionário, resulta frustrante acordo entre os “litigantes”, para repartição do poder.

Nos países da chamada democracia representativa – o que mais nos diz respeito – essa disputa acontece ou deveria acontecer através do voto dos cidadãos conscientizados, em campanha eleitoral livre e abrangente, sem pressões ou coações de qualquer natureza.

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IV. Observatório Político

Na prática, porém, não é bem assim. Mesmo nos países tidos como os mais avançados, é inegável a existência de contrafações. A mais comum é a influência do poder econômico, que interfere de todas as formas no tecido social, sobretudo na mídia. Durante a campanha eleitoral, ou mesmo, antes dela, na elaboração do arcabouço legal que a preside. As próprias agremiações partidárias, em sua essência, pecam por ausência de conteúdo ideológico. Nos Estados Unidos da América, alardeados como a maior democracia vigente, fica mais do que flagrante a falta de espaço para qualquer outro partido, além dos dois dominantes, que se alternam no poder, sem que haja, entre eles, diferenças fundamentais. E o processo eleitoral, específico em cada estado federado, não está isento de episódios suspeitos. Como na votação e recontagem dos votos ocorridas na Flórida, por ocasião da reeleição de Bush, filho. O “padrão democrático” dos nossos irmãos do norte não é, como eles tentam fazer crer, exemplo de democra-cia a ser impingido a quem quer que seja. A eleição de Obama, em decorrência de uma intensa participação popular, pode representar um sinal auspicioso de mudança, pois há menos de 60 anos, os ne-gros, nos EUA, não podiam, sequer, sentar nos bancos da frente, nos transportes coletivos. Hoje, a Casa Branca é ocupada por um negro, com delegação para dirigir a maior potência do mundo.

Em nosso país, também é mais ou menos desse modo o que vem ocorrendo. Desde o antigo “parlamentarismo” do Império, passando pela Velha República, pela Revolução de 1930, até os nossos dias. Entre-tanto, seria dramático se não pudéssemos assinalar alguma evolução. Lógico que da época das “eleições a bico de pena” até os dias de hoje, acentuada foi a evolução, tanto em métodos de votação e de apuração do pleito, quanto em formas e amplitude de participação. O direito de voto foi estendido a quase todos os cidadãos maiores de 16 anos. Tam-bém evoluiu o melhor esclarecimento do eleitorado. Até mesmo surgi-ram esboços de organizações políticas com algum conteúdo ideológico ou, pelo menos, programático. Sejam elas à esquerda ou não.

Mas persiste, no fundamental, a influência do fator econômico, da manipulação da mídia e de profunda deficiência da propaganda elei-toral. E a gritante falta de compromisso programático. Poderíamos, mes-mo, assegurar a inexistência de partidos políticos autenticamente de âmbito nacional, como impõe a lei, ou caracterizados por inequí-voca posição ideológica. Daí a facilidade com que os políticos trocam de legendas. Eis porque a verve popular caracteriza os partidos, em geral, como “sopa de letras”, ou “coração de mãe”, onde sempre cabe mais um. Esta a razão pela qual aqui não teve êxito a verticalização dos votos, intentada pela Justiça Eleitoral. Em cada estado ou, até

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O poder político

mesmo, em cada município, as coligações são diferentes, em razão de interesses locais que, mais das vezes, conflitam com os programas partidários legalmente registrados. Ou, ainda, por simples rivalida-des entre caciques.

Mais triste, entretanto – e o que mais se pratica – é a busca do po-der, pelo poder. Pela cata de cargos, não importando o escalão. Pelas vantagens oferecidas pelo poder. Pelas chamadas mordomias. Tanto no aparato do Estado, quanto nas empresas ditas estatais. Mesmo por aqueles grupamentos que, em épocas anteriores, fora do poder, critica-vam a prática e alardeavam pudores e objetivos programáticos.

A nosso entendimento, é justa a participação de representantes das coligações partidárias vencedoras, na cogestão do Estado. É a oportu-nidade de aplicar seu programa. Porém, a participação deveria ficar restrita ao primeiro, no máximo segundo, escalão. E, assim mesmo, por representantes em funções políticas de direção. O restante caberia aos quadros do funcionalismo público, admitido por concurso, capacitado e estimulado por perspectiva de carreira. Não a orgia de ocupações, às vezes apenas burocráticas, a que assistimos, a cada nova eleição, nos âmbitos nacional, estaduais e municipais. Muitas vezes em detrimento do bom funcionamento dos serviços públicos, seja por incompetência ou por simples inaptidão. Os nomeados terminando por serem meros ocupantes de cargos, ostentadores de títulos ou rótulos administrati-vos. Mas, assim sendo, fazendo jus às mordomias da posição.

Nesse particular, é vasta, quase ilimitada – a gama de cargos, até os de menor importância, que são ocupados pelos próprios dirigentes partidários, por correligionários, parentes ou amigos, muitas vezes de forma irregular ou sem transparência. O recente episódio surgido no Senado Federal é emblemático.

Infelizmente, é o que vemos, de forma quase generalizada. Não fosse isso, não teríamos do que criticar aqueles que, na direção do Estado, praticam hoje o que ontem, quando oposição, negavam até de forma um tanto extremada. Não fosse isso e não veríamos as mais esdrúxulas e dominantes coligações partidárias. Não fosse isso e não assistiríamos as mais díspares nomeações de políticos para os mais variados cargos dos diversos escalões do governo. Em todos os governos, com as honrosas e episódicas exceções, que acabam por justificar a regra.

Para agravar esse apego ao poder, pelo poder, é flagrante a sub-missão de muitos oposicionistas de ontem, a cada novo governo. Dos membros do Legislativo e do Judiciário ao todo poderoso Executivo. Presenciamos, na mídia, a naturalidade com que magistrados, sem

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IV. Observatório Político

despir-se da toga, antecipam suas opiniões ou posições a respeito de feitos sub judice. Ou, sem modéstia, ditam regras para procedimen-tos legais ainda não promulgados. Já vimos casos de juízes de Alta Corte excursionarem em cargos do Executivo e, depois, retornarem ao tribunal de origem. Também estão presentes casos de magistra-dos que, aposentados, retornam à política partidária, sem qualquer constrangimento. Entendemos que, nos homens públicos, quaisquer que sejam os motivos, o comportamento ético deve sempre prevalecer sobre a eventual legalidade da ação.

Também convivemos, no Senado Federal, com elevado número de membros que não sabem o que é receber um único voto do elei-torado. Só é mandatário quem recebe mandato, neste caso, o voto. Mas eles são os suplentes sem voto, efetivados por motivos os mais variados. Consta que, até por acordo pré-eleitoral. Parlamentares há, de ambas as Casas, que se afastam do posto, para o qual mereceram a confiança do eleitor, para exercerem funções outras que não lhes foram delegadas pelo povo. Em todos os níveis: federal, estaduais e municipais. Isto não deveria ocorrer. Para transferir-se a outra fun-ção, o parlamentar teria que renunciar ao mandato.

Outra questão: o voto secreto é salvaguarda do cidadão, para ga-rantir-lhe a plena liberdade e autonomia no momento de eleger seus mandatários. Mas é indigno e antidemocrático que o mandatário elei-to, se esconda do cumprimento de seu mandato e da fiscalização do eleitor, exercendo qualquer tipo de voto secreto.

Todo este arrazoado é uma constatação que fazemos, motivada por recentes e contumazes confirmações de “vetos presidenciais” a projetos de leis. Aprovados no Senado Federal, ratificados pela Câ-mara dos Deputados ou vice-versa, muitas vezes por ampla maioria, são vetados pelo presidente. Atualmente pelo Lula, mas anteriormen-te pelos demais. E os mesmos parlamentares, integrantes dos órgãos legislativos criadores da nova lei, diante do ato do Poder Executivo, em maioria renegam sua anterior decisão. Não, por uma questão de quorum ou de convencimento. Por subserviência, mesmo.

Tinham, portanto, razão os populares do Brasil Império, quando afirmavam que nada é mais parecido com um conservador, que um liberal no poder.

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V. Batalha das Ideias

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Autores

Eric HobsbawmConsiderado um dos maiores historiadores vivos, é presidente do Birbeck College (Lon-don University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: A Era da Revolução: Europa 1789-1848 (1962); A Era do Capital: 1848-1874 (1975); A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas e lançados em edições brasileiras.

Evelyne PieillerEscritora, autora entre otras obras de Dick, le zappeur des mondes, La Quinzaine littéraire, París, 2005; e L’Almanach des contrariés, Gallimard, colección “L’arpenteur”, París, 2002, nenhum ainda traduzido para o português.

Giuseppe VaccaPresidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma, formado em Filosofia do Direito, e autor, entre outros, de Por um novo reformismo, editado pela Fundação Astrojildo Pereira e pela Editora Contraponto. Esteve na London School of Economics, seguindo cursos de História Econômica dos Estados Unidos e da União Soviética. De 1978 a 1983, fez parte do Conselho de Administração da RAI (Rádio e Televisão Italiana).

Dênis de MoraesEscritor, professor da UFF. Este texto é parte do ensaio “Imaginário social, hegemonia cultural e comunicação”, incluído no seu novo livro, A batalha da mídia. Rio de Janei-ro: Pão e Rosas, 2009.

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Que futuro nos aguarda?

Eric Hobsbawm

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. A prioridade não é o aumento do lucro e do con-sumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz

Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Isso significa iniciativa pública não baseada na busca de lucro. De-cisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.

Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políti-cos imaginam. O século XX já ficou para trás, mas ainda não apren-demos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a ideia básica que dominou a economia e a política no século passado de-sapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos era um modo de pensar as modernas economias industriais – em realidade todas as economias –, em termos de dois opostos mutua-mente excludentes: capitalismo ou socialismo.

Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sis-temas em sua forma pura: por um lado, as economias de plani-ficação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a eco-nomia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo

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global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globa-lização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dú-vida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anar-quismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planificado e descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O fu-turo, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante de nós hoje, em particular para a gente de esquerda.

Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas de tipo soviético, não só por suas deficiências políticas, mas também pela crescente indolência e ineficiência de suas economias, ainda que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxi-tos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do ca-pitalismo de livre mercado.

Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não re-cordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour, o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser quali-ficados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos.

A ideia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socia-lismo era desnecessário e que se podia confiar no sistema capitalista para fazer florescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma distribuição equitativa.

Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização di-ficultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Traba-lhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de 1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir

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a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de uma atualização.

Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização eco-nômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para a exportação (ao contrário do que fizeram Alemanha, França e Suíça) e apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos ser-viços financeiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lava-dores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra e a economia britânica será provavelmente o mais catastrófico de todas as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também.

É possível afirmar que tudo isso já são águas passadas. Que so-mos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a na-cionalização –, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No entanto, essa ideia sugere que sabemos o que fazer com as ferramen-tas. Mas não é assim.

Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as institui-ções financeiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída.

Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas. Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa pri-vada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eficaz meio de fazer as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial? Não creio que tenham superado tudo isso.

No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais dos últimos 30 anos.

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Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico e a abundância que comporta são um meio, não um fim. Os fins são os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expec-tativas das pessoas.

Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós que a economia de Londres floresça. Mas a prova de fogo da enorme riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contri-buído com 20% ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é ne-nhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos. Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restau-rantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles mesmos em estrelas.

Podem levar seus filhos à escola? A falta de escolas adequadas não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres po-dem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores de prêmios Nobel.

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim públi-ca. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso significa – ou deveria significar – iniciativa pública não baseada na busca de lu-cro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.

Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a crise do meio ambiente.

Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, significará um deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pú-blica, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico. E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.

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Evelyne Pieiller

A questão não é nova, mas cada vez mais candente. As promes-sas de Liberdade-lgualdade-Fraternidade anunciadas pela República aponta vam para um mundo compartilhado, e não

se cumpriram. Como fazer para que esses compromissos não sejam apenas enunciados formal mente, como direitos, mas tornem-se da-dos concretos, efetivos?

Evidentemente, é no domínio da “igualdade” que o descumpri-mento é mais flagrante, traduzindo-se tanto em diferenças gritantes de renda quanto na fa mosa “pane” do elevador social, ou, ainda, na crescente vulnerabilidade dos mais pobres que se convencionou cha-mar de “acidentes da vida”, advindas do desemprego, das doenças, entre outros...

Da mesma forma, a “liberdade” só tem sentido completo quando se pode escolher uma profissão, ou o lugar onde se quer morar. To-dos livres e iguais, mas, claro, uns mais que outros...

A missão tradicional da “esquerda” é buscar atenuar as dispari-dades. Mas depois da chamada “queda do comunismo”, as referên-cias se relativizaram. Se gundo alguns analistas, teríamos entrado então numa era radicalmente nova, marcada pelo famoso fim das ideologias, ou, na verdade, pelo fim da História.1 Ainda que essa afir-mação pareça um tanto arrogante, seria necessário, ao me nos, re-conhecer a morte da “utopia” comunista e o triunfo do bom senso e, com mais ou menos entusiasmo, aceitar que a economia de mercado e a democracia são intrinsecamente ligadas.

A partir daí, tudo se torna mais simplificado e mais complicado ao mesmo tempo. Simplificado porque tal ideia consagra o “mercado” como um dado na tural e julga qualquer “revolução” destinada a inven-tar outra economia como um equívoco, tanto no plano das liberdades quanto no da eficácia – e a prova seriam os países do Leste Europeu. E complicado porque com os dois “extremos” legitimadamente desqua-

1 Francis Fukuyama, La fin de l’histoire et le dernier homme [O fim da história e o último homem], Paris, Flammarion, 1992.

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lificados, a esquerda – de Anthony Blair a Lionel Jospin – tornou-se “realista” e Pascal Lamy, membro do Partido Socialista (PS), foi pro-movido a responsável da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A realidade, nesse contexto, permanece preocupante. As desi-gualdades crescem e os questionamentos se fazem urgentes, por ve-zes desoladores. Com a revolução excluída e a “modernidade” aceita, como fazer para que a democracia, o governo do “povo para o povo”, funcione, sob o regime do mercado? Certa mente, os valores da es-querda diferem dos da direita, mas qual ideal, qual proje to para o mundo pode se afirmar sobre a marca do realismo? Não há, por defi-nição – e ousemos dizê-lo –, contradições a nomear e resolver?

Esse enorme problema gera enormes expectativas. E diz respeito não apenas aos eleitores de espírito dito socialista, mas provavel-mente a todos os cidadãos inquietos, desejosos de compreender se as mazelas sociais são uma fatalidade, se o futuro tem apenas uma cara, com diferentes maquiagens, ou se uma mudança de fato é pos-sível... Em suma, trata-se de questionar o pensamento da es querda, que se tornou liberal.

O debate no âmbito desse socialismo modernizado procura res-ponder se é a inscrição concreta de valores éticos no mundo real que, essencialmente, permitiria a concretização das promessas da democracia. Trata-se de uma concepção particular de igualdade e dos meios de alcançá-la. Propõe-se ou tra visão de homem.

Talvez não seja completamente inútil procurar definir com mais exatidão a “esquerda liberal”, já que, às vezes, ela parece sofrer de falta de unidade.

O filósofo Serge Audier, conhecido por seus ensaios consagrados a Raymond Aron, lembra, no breve volume2 no qual retoma a ge-nealogia do socialismo liberal, que este foi fundado sobre uma dupla recusa: a do libe ralismo “burguês” e a do “totalitarismo co munista”. Se a rejeição do “totalitarismo co munista” é certa, a do liberalismo “burguês” é mais fluida.

Sejam quais forem as diferenças entre uma centro-esquerda “mo-derna”, a terceira via do New Labour, e um socialismo libe ral, que não seria uma “simples adaptação da social-democracia ao capitalismo”, o que sobra é um socialismo renovado que se diz “igualitário” e não “igualitarista”, que não pretende erradicar todas as desigualdades (na-turais e sociais) e que “exige o reconheci mento do caráter irrefutável e potencial mente benéfico de um mercado regulamen tado e correto”.

2 As citações do parágrafo seguinte foram tiradas daí.

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Trata-se de pôr em prática, na lógica da eficácia econômica, uma “bus ca pela igualdade”, que se traduz em primei ro lugar pela exigên-cia de “solidariedade”.

É exatamente esse ponto que caracteri za o socialismo liberal, sejam quais forem as nuances e divergências reivindicadas por cada corrente. O importante é renunciar ao igualitarismo – que visaria igualdade ci-vil, política e social – e agir por uma “filosofia dos direitos do homem”, complementada pelos direitos sociais que reconhecem “a to dos os indi-víduos um mínimo de justiça so cial, condição de uma liberdade política efe tiva”. Assim, adeus utopia e bem-vinda a lucidez: os homens não são, não podem ser, realmente iguais. Seria conveniente, no en tanto, criar instrumentos que impeçam ní veis gritantes de desigualdade, o que não se ria frutífero nem para a democracia, nem para... o mercado. E a solidariedade está no núcleo desses dispositivos.

Essa noção de solidariedade pertence ao domínio da filosofia polí-tica e moral e foi in troduzida em 1840 por Pierre Leroux, um dos fun-dadores do socialismo republicano. Ele a explica de maneira clara: “quis substi tuir a caridade cristã pela solidariedade hu mana”.3 Léon Bourgeois, um dos fundado res da Liga das Nações, prolongou essa reflexão sobre a “necessidade moral” da soli dariedade como dever até o fim do século XIX. É uma noção que, além de substituir a ideia de justiça social, possui o charme da virtude fluida, já que dependeria de cada um, em seu espírito e consciência, muito mais do que da autoridade das leis.

A “solidariedade” permitiria a moraliza ção do capitalismo brutal ao introduzir, no interior do próprio sistema, a “possibilida de” de su-avizar suas agruras. É a consciên cia dolorosa da inevitabilidade da desigual dade entre indivíduos que induz à busca de uma conciliação entre eficácia econômica e apoio aos “desfavorecidos”.

Essa concepção de desigualdade é cen tral. E se articula perfei-tamente com a pró pria ideologia do capitalismo, que supõe que o melhor ganhe, que o mais trabalhador ou o mais inteligente faz a diferença e sabe abrir seu caminho, contribuindo para a demo cracia. O sucesso vem para aqueles que me recem, e os mais belos discursos igualitaris tas não impedem que alguns sejam mais talentosos para subir na escala social.

Monique Canto-Sperber, diretora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), afirma que se a precariedade au mentou, “as

3 Pierre Leroux, De I’Humanité, Paris, Perrotin, 1840.

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oportunidades para os talentos e iniciativas” também aumentaram entre aqueles que sabem agarrar as oportunida des. O intervalo logica-mente vai se aprofun dar. Será assim, pois que não temos todos as mesmas capacidades.

Seria preciso, portanto, acabar com os “mitos”, que serviram para alimentar o “ter rível espetáculo” do socialismo “real”. E mais: seria preciso reconhecer que se “é pos sível exercer uma influência sobre o homem, não se pode modificá-lo”. Nada de inocência à Rousseau, de que o homem é bom por na tureza. O mal existe e é precisamente “no re conhecimento do mal e do conflito” que o liberalismo se desenvol-veu – e o liberalismo de esquerda deveria levar isso em conta.

As diferenças de ânimo, de vontade, de competência, criam o con-flito, a luta, a hie rarquia. É por essa razão que “é ilegítimo se servir de categorias morais, como, por exem plo, o predicado ‘justo’ para quali-ficar fenô menos tão complexos como a divisão das ri quezas, cuja pro-dução resulta de uma variedade de ações voluntárias cruzadas”.

O liberalismo de esquerda trabalhará, dessa forma, por um “li-beralismo solidário e trágico”. O “trágico” refere-se aqui à aceita ção vigilante da constatação do mal inscrito potencialmente na natureza do homem.

É exatamente em torno dessa defini ção que tudo se organiza. O mercado é indissociável do homem e refutá-lo seria recusar “a complexidade, a saber, a am bivalência do real”, que é fundamental-mente desigual.

Uma sociedade solidária deve ter co mo objetivos reduzir “si-tuações de domi nação” e preservar “a riqueza da vida hu mana – a preocupação com o bem comum, a família, a espiritualidade, o saber, a cria ção, a tradição, a força irredutível do mal e uma visão humanista”.4

Para alcançá-los, as “regulações”, os “acompanhamentos so-ciais” deveriam bus car superar “o pluralismo irredutível de in-teresses e opiniões”. “As pessoas afetadas por uma ruptura no trabalho” poderiam, as sim, ter a “segurança de estarem protegidas da miséria e de que encontrarão soluções para voltar ao trabalho”, sem que sejam impedidas as demissões – o que garantiria o cres-cimento em longo prazo.

De fato, seria importante preservar o mercado e, ao mesmo tem-po, permitir que cada um continue a participar, pois é “a con dição

4 Léon Bourgeois, Philosophie de Ia solidarité, Edrteur, 1897.

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não somente do enriquecimento, mas também da autocrítica e do aperfeiçoamen to do ser”. Com um mercado correto – ferramenta para a liberdade e não um instru mento de dominação – todos teriam a chance de buscar autonomia e “pleitear um projeto de vida”. O li-beralismo de esquerda, apresentado de maneira equivocada como muito diferente do neoliberalismo, garante as “funções protetoras de base” e permite “às pessoas retomar a iniciativa, ou ao me nos encon-trar um sentido para a vida”. Na medida em que o coeficiente intelec-tual de cada um permita...

Lembremos ainda que Raymond Aron, cujo pensamento não está longe de Audier ou Canto-Sperber, já buscava uma concilia-ção entre o socialismo e a tradição liberal “sem ilusão, mas não sem vontade”.5

Essa aproximação parece se manifestar com uma clareza particu-lar no governo de Nicolas Sarkozy. Além da crucial “solidarie dade”, se a questão social está diluída e sai do campo da decisão política para passar ao da boa consciência compartilhada, é a ideia de “povo” que, de maneira furtiva, muda de definição.

A partir de uma escala de valores que to ma como referência a do liberalismo econô mico, a lei dos grandes números não saberá ser automaticamente justa se nada puder ga rantir que esse maior nú-mero saiba pensar de maneira justa. Dito de outra forma, é pre ciso se voltar à noção de “povo” e seu uso.

Quando, em La légitimité démocratique!6 [A legitimidade demo-crática], o historiador Pierre Rosanvallon interroga a validade do su-frágio universal como única fonte de po der democrático, ele não se apoia na desi gualdade das capacidades naturais, mas nas diferenças entre os indivíduos. Segundo ele, fazer com que o maior número va-lha para a totalidade é uma “ficção fundadora”, na qual o “povo” é considerado representante do conjunto da sociedade.

De acordo com Rosanvallon, os cida dãos têm cada vez mais consci-ência de se rem insuficientemente representados, o que se comprova pelas taxas elevadas de absten ção. “A ideia de maioria tem um sen-tido arit mético, mas não corresponde a nada de or dem antropológi-ca”. Para que a democracia volte a ter importância, seria conveniente dar-lhe legitimidade: o povo não se apresen taria mais como uma massa

5 Citado por Serge Audier, em Raymond Aron, philosophe de I’histoire. Obra coletiva sob a direção de Serge Audier, Marc Olivier Baruch, e Perrine Simon-Nahum, Paris, Edi tion de Fallois, 2008.

6 Esta obra é a continuação de La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance, Le Seuil, 2006 (reeditado por Points-Seuil, 2008).

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homogênea, mas “como uma sucessão de histórias parti culares”. O povo se tornaria o conjunto “plu ral das ‘minorias”’, e, pela preocupa-ção de indivíduos concretos, seria possível imple mentar “a constituição de um poder da so ciedade em geral”. Para acompanhar o “no vo mundo” é preciso, de acordo com o autor, levar em conta os novos valores que dão sen tido ao ideal de democracia e pensar em meios que os efetivem.

A equidade necessitaria de instituições das quais ninguém po-deria se apropriar, pluralização das expressões da soberania popu-lar, escuta ativa da multiplicidade de situações pelo reconheci-mento das singula ridades. Essas instituições estariam a cargo de “denunciar o intervalo entre a realidade e os princípios fundadores da democracia”.

Para Rosanvallon, uma “sociedade de imparcialidade radical” abriria espaço para os valores caros ao novo cidadão: compai xão, proximidade, transparência etc. As ins tituições seriam reguladas por agências ci dadãs, espécies de conselhos de orientação. Esse povo, assim, não seria mais apenas po pulação eleitoral, reduzida a uma maioria, nem somente povo social, “soma de protes tos e iniciativas”, mas também povo-princí pio, no qual “cada um quer ser considerado em sua existência e dignidade”.

Nesse contexto, a democracia é enfim “moral”: a maioria não faz mais a lei. Passou se da aplicação mecânica do estatuto à escu ta do indivíduo, “o exercício dos direitos se torna indissociável da apre-ciação dos com portamentos”, a aplicação da regra inuma na porque mecânica está ultrapassada, a noção de povo se amplia para povo-huma nidade, para que advenha, graças às instân cias de “deliberação racional”, confiadas aos conhecedores e esclarecidos, a possibilida de de “afirmação positiva do ser”.

Tal ideal político não está longe daquele proposto pelo Tratado Constitucional Euro peu e acompanha certo discurso difundido, pró-prio de um liberalismo atento a se huma nizar e que se diz arauto e defensor de uma “sociedade da particularidade”, assim como de uma “economia da particularidade”.

Mas a proposta, com todas as bases deli neadas por Rosanvallon, não tem uma incli nação... aristocrática? Oh, certamente essa aristo-cracia não se justificaria a não ser por seu esclarecimento e mérito, e interviria ape nas no contexto da democracia representa tiva. No entanto, e sem se deter sobre algu mas afirmações surpreendentes – como, por exemplo, a de que o voto seria determinado por “atrações e repulsões” – somos obriga dos a observar que esses diferentes contra-poderes, para tentar “aprofundar” a demo cracia, pretendem simples-

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mente limitar o sufrágio universal, o poder de voto de cada eleitor, esclarecido ou não...

No mesmo estado de espírito, em La Rei ne du Monde [A rainha do mundo], o histo riador e jornalista Jacques Julliard, diretor de reda-ção do Nouvel Observateur e da Esco la de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), examina, após a comoção criada pelo resultado do referendo europeu, como contrariar “essa piedosa mentira que cha-mamos sistema representativo” e a “trapa ça” do sufrágio universal. Ele questiona, as sim, o poder da opinião pública que permite não deixar ao parlamento a função legisla dora e destruir o monopólio da vontade ge ral, considerada “totalitária”.

A opinião é a voz do povo, e é em geral uma potência moral, que leva, por exemplo, à criação de um tribunal penal internacio nal, uma dessas instâncias independentes, caras a Rosanvallon. Mas opinião e sufrágio universal não se opõem. “Sondagens, elei ções, referendos, debates coletivos são mo dalidades diferentes de expressão de um mesmo fenômeno: a opinião pública”.

O futuro da democracia repousa, assim, sobre uma cooperação entre o sistema par lamentar e o sistema de opinião pública com a condição de educar este último. Ora, “não há outro educador para o povo que não ele mesmo, à luz da razão e da experiência histórica, do estímulo de seus chefes. É, en tão, da coragem de homens políticos que procede a sabedoria do povo”. O povo preci sa de um “líder demo-crático” que “o leve a querer aquilo que é de seu interesse supe rior”. Não poderia ser mais claro.

Assim, de modo mais ou menos preci so, a vontade de democratizar a democra cia – o que implica tratar de igualdade, em suas diferentes acepções – leva ao pensa mento liberal social. Do mesmo modo, faz com que a política deslize para o campo da moral. E substitua mais ou menos parcial mente as elites pelo “povo” – mas resiste, claro, a colocá-lo no controle. Da lei ao con trato, do coletivo ao particular, da escolha ao consenso, do voto ao diálogo, é esse mo vimento que vai caracterizar o “novo indi víduo democrático”.

É perturbador observar até que ponto essas modificações do ideal de “cidadão” correspondem ao novo “look” de um capi talismo de rosto humano. Podemos nos perguntar, assim, se se trata de moderni dade ou de dar passos para trás no cami nho da virtude, inteligentemente fantasia dos de progresso.

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O que significa ser gramsciano

Giuseppe Vacca

Encontrei Gramsci enquanto preparava a tese de conclusão da graduação. Estudava Direito e havia decidido tentar seguir o cami-nho do “trabalho intelectual como profissão”. Interessavam-me a fi-losofia e a política. Empenhei-me numa tese sobre a filosofia política de Benedetto Croce. Tinha 20 anos, vivia em Bari, e o meu ponto de referência – penosamente alcançado depois de atravessar todo o arco de posições, da direita à esquerda – era a política cultural do PCI. Para mim, então, no Sul da Itália, tornar-me “um intelectual” significava antes de qualquer outra coisa “acertar as contas” com Benedetto Croce, percebido como o principal obstáculo no caminho para o marxismo. Li Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce [Concepção dialética da história], mas não me tornei gramscia-no. Arranjei-me com leituras muito mais esquemáticas e “liquidei” o idealismo à força de citações de Materialismo e empirocriticismo de Lenin. Para Croce, julguei conveniente a fórmula com a qual Lukács o rotula em O assalto à razão: uma variante fraca do “irracionalismo” europeu do início do século XX.

Comecei uma leitura mais séria de Gramsci depois da formatura, quando, estudando a genealogia do marxismo italiano, cheguei ao idealismo napolitano. Mais uma vez a minha investigação inspirava-se em Togliatti, e me dediquei a Bertrando Spaventa, que estudei com paixão e grande proveito. Filiei-me ao PCI, unindo o estudo à atividade militante. O magistério intelectual de Togliatti convivia com uma grande impaciência política em razão da moderação do partido, e sentia curiosidade pelas experimentações radicais da esquerda dos anos 60: os Quaderni Rossi, de Panzieri, os Quaderni piacentini, de Bellocchio, o messianismo de Fortini, La sinistra de Colletti.

Mas eu vivia no Sul da Itália, e a insatisfação com a política do PCI – à qual, de qualquer maneira, me sentia vinculado como por uma “escolha de vida” – estava ligada principalmente à sua incapaci-dade de reelaborar o “meridionalismo”, à sua irrelevância urbana, ao fato de estar instalado no campo e bastante distante da capacidade de conduzir lutas hegemônicas. O meu primeiro escrito apareceu em 1964 nas Cronache meridionali. Estava dedicado à mudança de fun-ção e papel dos intelectuais meridionais e era de genuína inspiração

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O que significa ser gramsciano

gramsciana. Havia aprofundado Alguns temas da questão meridional, Os intelectuais e a organização da cultura e o Risorgimento, e com-preendido que o principal mecanismo de reprodução do dualismo italiano estava na destruição da autonomia relativa da intelligentsia meridional e na concentração dos recursos fundamentais do “cérebro nacional” – a indústria cultural, a pesquisa científica e a informação – nas capitais industriais do Norte.

Mas até 1968 estes primeiros núcleos de “gramscismo” continu-aram a conviver, contraditoriamente, com outros “marxismos” mais coerentes com meu radicalismo político, que me levava a valorizar teorizações aparentemente mais rigorosas, sobretudo as de Galvano Della Volpe. Bertrando Spaventa, o estudo direto de Marx e a fusão buscada pelo PCI entre lutas de classe e lutas antiautoritárias, assim como as teorizações mais sofisticadas do movimento estudantil – as teses de Trento e do Palazzio Campana – é que dissolveram aquela antinomia. Como pano de fundo, a vitoriosa guerra de libertação no Vietnã, a Primavera de Praga e a repressão que se lhe seguiu. Depois dessas experiências, não esperava mais nada da URSS, do “socialis-mo real” e da visão dicotômica do mundo, da qual o “campo socia-lista” era o álibi e a sustentáculo, e, consequentemente, diluíram-se as incongruências do “mix de marxismos” que se abrigara na minha mente na década anterior.

Como deixam evidente as lembranças até aqui evocadas, a minha formação intelectual ocorreu em simbiose com a ação política, e eu a considerava como parte da afirmação de uma determinada orienta-ção da cultura italiana sobre outras. Foi assim que me ensinaram, e este modo de conceber a ação política de um intelectual correspondia perfeitamente à minha moral e também talvez ao meu próprio tem-peramento. Condenando a invasão soviética à Tcheco-Eslováquia, o PCI começa o seu lento distanciamento de Moscou. Pessoalmente, considerava-o muito tímido. Com os companheiros que animavam o novo projeto da editora De Donato, pensávamos que se deveriam generalizar os fundamentos teóricos e estratégicos da política do PCI, que nos pareciam configurar não apenas uma “variante nacional” do comunismo internacional – um “comunismo democrático” motivado pelas condições históricas e geopolíticas nas quais se enraizava sua ação –, mas uma experiência histórica original, de valor geral e não apenas italiano.

Para contribuir com a reelaboração da “tradição comunista” ita-liana, mergulhei no estudo de Gramsci e de Togliatti. Mas, eviden-temente, era sobretudo o segundo quem dava a sustentação para a revisão teórico-política desejada, bem como para nossa dura disputa

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não apenas com os seus críticos e adversários de sempre, mas tam-bém com a canonização da sua “herança” operada pelo PCI berlin-gueriano. O que estava em jogo não era só a relação entre o PCI e o comunismo internacional, mas também a interpretação de 1968 e a estratégia do “compromisso histórico”, que nos iludíamos pudesse se desenvolver como “assédio recíproco” entre DC e PCI, e como expe-rimentação de uma transformação democrática e socialista inédita, de valor europeu. Éramos “giobertianos”, como, de resto, também o era o PCI nos enunciados da sua estratégia, cada vez mais distantes da política que efetivamente praticava. Partilhávamos com o PCI a incompreensão da transição dos anos setenta, que marcavam o fim do “reformismo nacional” na Europa e no mundo.

É nesse contexto que se desenvolveu e se aprofundou o meu en-contro com Gramsci. Desde o início dos anos setenta, Franco de Fe-lice, principal historiador e figura intelectual de referência para o grupo da editora De Donato, empreende o estudo diacrônico dos Ca-dernos do cárcere e, com um breve mas denso ensaio publicado no Contemporaneo (Rinascita, n.42), em 1972 – “Uma chave de leitura de Americanismo e fordismo” –, estabelece as primeiras bases para derrubar as interpretações canônicas de Gramsci. O fato de eu não ter realizado nunca um estudo sistemático dos Cadernos foi para mim uma vantagem. Não estava demasiadamente condicionado pela edição temática de 1948-1951, e iniciei um verdadeiro estudo destes Cadernos com base na edição Gerratana de 1975. Acompanhar sua redação quase dia a dia originava uma real mudança de paradigma. Antes de tudo, ficava evidente que o pensamento de Gramsci tivera uma evolução muito significativa entre 1929 e 1935. Daí se destaca-vam as inovações em relação à década de 1915-1926 e o entrelaça-mento entre os “parágrafos” dos Cadernos e os desenvolvimentos da política mundial. Nada de “pesquisa desinteressada”! Seria preciso reconstruir a biografia política do prisioneiro para nos orientarmos na ingens silva dos Cadernos e delinear sua biografia intelectual. Surgia uma pergunta: qual teria sido o “programa cientifico” de Gramsci na prisão de Turi? Em que medida dava sequência ao que tomou for-ma entre a Grande Guerra e o advento de Stalin? Ao contrário, em que pontos o reformulava? O grupo de estudiosos que trabalhou na preparação do seminário do Instituto Gramsci, em 1977, intitulado, não por acaso, “Política e história em Gramsci”, compartilhava esta diretriz. Mesmo que, no seu resultado final, o trabalho de preparação tenha sido substancialmente posto de lado, Franco De Felice, Biagio de Giovanni, Marisa Mangoni, eu mesmo e outros produzimos um volume preparatório que projetava uma nova abordagem do pensa-mento maduro de Gramsci.

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A esta abordagem comecei a me dedicar, com certa continuidade e com aprofundamentos progressivos, depois de ter assimilado a cri-se mundial dos anos setenta, ter construído uma ideia pessoal desta crise e começado a compreender que estávamos frente a um declí-nio talvez irreversível do sistema político da Itália republicana. Este alargamento do campo de visão e uma significativa revisão dos meus instrumentos de pesquisa me libertaram do “giobertismo” político e cultural do PCI, que havia compartilhado na década anterior. Em Gramsci descobri gradualmente os fundamentos de um pensamento histórico-político útil para compreender o século XX como o século da interdependência e da globalidade, da modernidade completa e da sua crise, mas também os primeiros elementos daquele “novo modo de pensar” que indica as perspectivas para superá-la. É o Gramsci no qual trabalho ainda hoje: são mais de vinte anos, e creio poder di-zer que, de fato, finalmente o encontrei e o elegi como guia da minha pesquisa política e intelectual.

Tradução de Alberto Aggio1 e revisão de Luiz Sérgio Henriques.2

1 Graduado em História pela FFLCH-USP, mestre e doutor em História Social pela mesma fa-culdade. Realizou estudos de pós-doutorado na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valência (Espanha). Atualmente é professor adjunto da Unesp, campus de Franca.

2 Editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta, tradutor e um dos organizadores das obras de Antonio Gramsci em português, especialmente a nova edição de Cartas do Cárcere.

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A comunicação na batalha das ideias

Dênis de Moraes

A comunicação jamais esteve tão fortemente entranhada na ba-talha das ideias pela direção moral, cultural e política da sociedade. Reconhecendo o caráter estratégico da produção simbólica nas dispu-tas pelo poder, compartilho da ideia de Jean-Paul Sartre (1994: 23) de que a mídia desempenha os papéis de “servidores da hegemonia e guardiães da tradição”. Ocupa posição proeminente no âmbito das relações sociais, visto que fixa os contornos ideológicos da ordem he-gemônica, elevando o mercado a instância máxima de representação de interesses.

Sob alegação de que exerce uma função social específica (infor-mar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de con-tenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal. A opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevân-cia aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e pa-péis tradicionalmente desempenhados por instâncias intermediárias e representativas da sociedade (sistema escolar, família, partidos políticos, organismos da sociedade civil etc.). Os grupos de comuni-cação sentem-se desimpedidos para selecionar as vozes que devem falar e ser ouvidas – geralmente aquelas que não ameaçam suas conveniências políticas e metas mercadológicas.

Essa posição hipertrofiada dos meios tem a ver com a sua con-dição privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos, tal como fixado por Karl Marx (1997, v. 1: 67): “Transportam signos; ga-rantem a circulação veloz das informações; movem as ideias; viajam pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhem, produ-zem e distribuem conhecimento e ideologia”.

Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci (2000: 78) situa a im-prensa (o principal meio de comunicação de sua época) como “a parte mais dinâmica” da superestrutura ideológica das classes dominan-tes. Caracteriza-a como “a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica ou ideológica”, ou seja, um suporte ideológico do bloco hegemônico. Enquanto aparelhos políti-co-ideológicos que elaboram, divulgam e unificam de concepções de

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A comunicação na batalha das ideias

mundo, jornais e revistas cumprem a função de “organizar e difundir determinados tipos de cultura” (ib., 32), articulados de forma orgâni-ca com determinado agrupamento social mais ou menos homogêneo, o qual contribui com orientações gerais para exercer influência na compreensão dos fatos sociais.

Ao referir-se à imprensa italiana do início do século XX, Gramsci (ib., 218) situa a ação dos jornais como verdadeiros partidos políti-cos, na medida em que influem, com ênfases e enfoques determina-dos, na formação da opinião pública e nos modos de assimilação dos acontecimentos: “Jornais italianos muito mais bem-feitos do que os franceses: eles cumprem duas funções — a de informação e de dire-ção política geral, e a função de cultura política, literária, artística, científica, que não tem um seu órgão próprio difundido (a pequena revista para a média cultura). Na França, aliás, mesmo a função distinguiu-se em duas séries de cotidianos: os de informação e os de opinião, os quais, por sua vez, ou dependem diretamente de partidos, ou têm uma aparência de imparcialidade (Action Française – Temps – Débats). Na Itália, pela falta de partidos organizados e centraliza-dos, não se pode prescindir dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos”. Mas ele ressalva que a imprensa não é o único instrumento de publicização: “Tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indireta-mente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e o nome das ruas” (ib., 78).

No artigo “Os jornais e os operários”, de 1916, Gramsci (2005) insiste que os operários devem recusar os jornais burgueses, manti-dos por capitais privados, visto que privilegiam as verdades de parti-dos, políticos e classes dominantes. Para ele, os operários precisam lembrar sempre que “o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente in-fluenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. [...] E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador”.

O filósofo italiano reprova o trabalhador que lê regularmente e ajuda a manter com seu dinheiro os jornais burgueses, “aumentando a sua potência” e esquecendo-se de que tais veículos “apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa com prejuízo da política e da classe operária”. Exemplifica com a cobertura tendenciosa das greves: “Para o jornal

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burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os mani-festantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”. Assim, o convencimento sobre o irremediável conflito de interesses entre a classe trabalhadora e a imprensa da burguesia justifica a atitude política que Gramsci julga mais conse-quente: boicotar os jornais vinculados às elites hegemônicas.

Ao retomar mais tarde, nos Cadernos do cárcere, a análise crítica sobre a imprensa, Gramsci assinala que o papel dos jornais trans-cende, muitas vezes, a esfera ideológica em sentido estrito. Chama a atenção para as determinações econômico-financeiras das empresas jornalísticas, que as impelem a agregar o público leitor para asse-gurar rentabilidade e influência. Avalia que a imprensa burguesa se move em direção ao que pudesse agradar o gosto popular (e não ao gosto culto ou refinado), com o propósito de atrair “uma clientela continuada e permanente”. A seu juízo, “os jornais são organismos político-financeiros e não se propõem divulgar as belas-letras ‘em suas colunas’, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita” (2002d: 40).

Esses componentes socioeconômicos e ideológicos estão na base do que Gramsci denomina de “jornalismo integral”, isto é, o jorna-lismo que não somente visa satisfazer as necessidades de seu públi-co, “mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (2000: 197). O jornalismo integral de Gramsci atua como aparelho privado de hegemonia, na medida em que procura intervir no plano político-cultural para organizar e di-fundir informações e ideias que concorrem para a formação do con-senso em torno de determinadas concepções de mundo.

Aos jornais, segundo Gramsci, interessa conquistar “o leitor em toda a sua concretude e densidade de determinações histórico-polí-ticas e culturais, de motivações éticas, como indivíduo e como expo-ente de uma associação humana, como depositário de recursos inte-lectuais latentes e como ‘elemento econômico”, ou seja, precisamente como adquirente de uma mercadoria, de um produto”. Existem aí nexos e remissões entre as dimensões políticas (a intervenção na formação da opinião pública) e econômicas (o caráter empresarial e mercadológico) que incidem na atividade jornalística. Gramsci atri-bui ao jornalismo integral o exercício de um pressuposto categórico à orientação ideológica hegemônica: “É dever da atividade jornalísti-ca (em suas várias manifestações) seguir e controlar todos os novos movimentos e centros intelectuais que existem e se formam no país. Todos”.

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A comunicação na batalha das ideias

Se pensarmos no contexto contemporâneo, poderemos perceber ecos da apreciação gramsciana. Os meios de comunicação elaboram e divulgam equivalentes simbólicos de uma formação social já cons-tituída e possuidora de significado relativamente autônomo. Na es-sência, o discurso midiático se propõe fixar a interpretação dos fatos por intermédio de signos fixos e constantes que tentam proteger de contradições aquilo que está dado e apareça como representação do real e verdade. Tal discurso interfere preponderantemente na carto-grafia do mundo coletivo, propondo um conjunto de linhas argumen-tativas sobre a realidade, aceitas ou consideradas por amplos setores da sociedade. Assume, pois, uma função ideológica que consiste, se-gundo Chauí (1982: 21), em compor “um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto particular, dando-lhe a aparência do universal”.

O estabelecimento de uma concepção dominante consiste, assim, em “conservar a unidade ideológica de todo o bloco social, que é ci-mentado e unificado precisamente por aquela determinada ideologia” (Gramsci, apud Gruppi, 1978: 69-70). Do ponto de vista das cor-porações midiáticas, trata-se de regular a opinião social através de critérios exclusivos de agendamento dos temas que merecem ênfase, incorporação, esvaziamento ou extinção. O ponto nodal é disseminar conteúdos que ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de princípios e medidas de valor. Por isso, formar a opinião pública é uma operação ideológica “estreitamente ligada à hegemo-nia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (Gramsci, 2002a: 265). O processo da hegemonia importa, então, disputa pelo mono-pólio dos órgãos formadores de consenso, tais como meios de co-municação, partidos políticos, sindicatos, Parlamento etc., “de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica”.

Daí a importância crucial de se analisarem as formas de conven-cimento, de formação e de pedagogia, de comunicação e de difusão de visões de mundo, as formas peculiares de sociabilidade, as manei-ras de ser coletivas e as clivagens, assim como as contradições pre-sentes em cada período histórico (Fontes, 2008: 145). A referência à difusão de ideias, valores e padrões de comportamento tem a ver com um dos reconhecimentos decisivos no pensamento crítico atual: é no domínio da comunicação que se esculpem os contornos ideológicos da ordem hegemônica e se procura reduzir ao mínimo o espaço de circulação de ideias alternativas e contestadoras - por mais que estas continuem se manifestando e resistindo. A meta precípua é esvaziar

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análises críticas e expressões de dissenso, evitando atritos entre as interpretações dos fatos e os modos de entendimento por parte de indivíduos, grupos e classes.

Sem esquecer a constante reverberação do ideário dominante nos canais midiáticos, devemos reconhecer que fatores mercadológicos, socioculturais e políticos repercutem de alguma maneira na defini-ção das programações. Um dos traços distintivos da mídia, enquanto sistema de produção de sentido, é a sua capacidade de processar cer-tas demandas da audiência. Os meios não vivem na estratosfera; pelo contrário, estão entranhados no mercado e dele dependem para suas ambições monopólicas. Do mesmo modo, precisam ter seus radares permanentemente ativados para captar sinalizações, insatisfações e carências. E com isso preencher vácuos abertos, antecipar tendências, criar modismos, atenuar variações e repensar aproximações. Decisivo não perder de vista que tais deslocamentos devem ocorrer, o máximo possível, dentro das margens de controle delineadas por estrategistas e gestores corporativos.

É impossível conceber o campo midiático como um todo harmo-nioso e homogêneo, pois está atravessado por sentidos e contrassen-tidos, imposições e refugos, aberturas e obstruções. Daí a existência de entrechoques de concepções que se enfrentam e se justapõem em diferentes circunstâncias históricas. É um campo atravessado por contradições, oscilações de gostos, preferências e expectativas. Enquanto mediadora autoassumida dos desejos, a mídia tenta iden-tificar indicações do cotidiano e eventuais alternâncias de sentimen-tos que podem incidir em predisposições consensuais ao consumo. Para tentar sintonizar-se com essas demandas, os veículos procuram substituir formas disciplinares clássicas por um marketing mais ma-cio e persuasivo, capaz de seduzir consumidores de diferentes estra-tos sociais e somar capitais publicitários, patrocínios e audiências. Ainda que prescrevam fórmulas e juízos, não há dúvida de que, em maior ou menor grau, absorvem, essencialmente por razões de mer-cado, determinadas inquietações do público. Quando as incorporam em suas programações, fazem-no de acordo com suas escalas in-terpretativas, sem deixar de avaliar intenções concorrenciais. Seria, portanto, um equívoco ignorar injunções que se alojam nas diretivas dos veículos e em seus perfis específicos e fisionomias competitivas.

O aparato midiático tem que atualizar programações e ofertas para assegurar máxima fidelidade possível da audiência, em conso-nância com suas conveniências estratégicas. O que não quer dizer que as atualizações resultem em qualidade editorial ou pluralidade real de pontos de vista. O fulcro de grande parte dos ajustes é seguir modelando comportamentos e consciências, bem como influencian-

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do agendas públicas e privadas. Busca-se incorporar peculiaridades socioculturais a determinados produtos e serviços, de modo a usu-fruir vantagens simbólicas associadas ao trabalho de conversão de identidades à lógica consumista.

Em paralelo, a exploração de brechas dentro das corporações mi-diáticas não deve ser descartada como recurso tático na resistência ao pensamento único. Claro que a grave assimetria comunicacio-nal — uma parte ínfima da sociedade é proprietária dos veículos, enquanto a coletividade é apenas destinatária — impõe limitações e obstáculos. Mas não impede que sejam desenvolvidas algumas ações criativas no interior das organizações, conseguindo-se, às vezes, vei-cular materiais informativos que contrastam com o edifício ideológico construído por seus proprietários.

Existem, simultaneamente, pontos de resistência aos discursos hegemônicos que abrem horizontes de enfrentamentos de pontos de vista. A começar pelos meios alternativos de comunicação, impres-sos, eletrônicos ou virtuais, que se contrapõem aos modelos e crivos midiáticos. Eles procuram disseminar ideias que contribuam para a elevação da consciência social, o exercício da crítica e a intensificação do debate sobre possibilidades de transformação do mundo vivido. De igual maneira, é essencial a reivindicação de políticas públicas que possam coibir monopólios e oligopólios e conter a obsessão comercial das indústrias culturais, ao mesmo tempo estimulando a produção audiovisual independente, as mídias comunitárias e a organização co-operativa em redes e coletivos de comunicação, bem como asseguran-do o controle social democrático sobre empresas concessionárias de licenças de rádio e televisão.

Em qualquer dos cenários, não podemos alimentar falsas ilusões no enfrentamento do poderio midiático. Seria grave erro subestimar a agressividade ideológica, a penetração social e a eficiência merca-dológica das organizações de mídia. Trata-se, isto sim, de conceber estratégias criativas e consistentes de difusão e pressão, que se tra-duzam na ocupação de espaços táticos na sociedade civil por meios alternativos, bem como no interior das corporações. O objetivo pri-mordial é desenvolver dinâmicas informativas que reverberem visões de mundo comprometidas com a efetiva liberdade de expressão, o pluralismo e os direitos da cidadania. Essa ação ideológico-cultural precisa inserir-se no plano geral de lutas sistemáticas para debilitar as estruturas da dominação exercida pelas classes dominantes e al-cançar, progressivamente, novas condições concretas de hegemonia que priorizem a justiça social e a diversidade.

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––––––. Cartas do cárcere (v. 2: 1931-1937). Org. de Luiz Sérgio Hen-riques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a.

––––––. Escritos políticos. Org. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004a (v. 1: 1910-1920) e 2004b (v. 2: 1921-1926).

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GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janei-ro: Graal, 1980.

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MORAES, Dênis de (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

––––––. Cultura mediática y poder mundial. Buenos Aires: Norma, 2006.

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SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.

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Autores

José de Souza Martins Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-dade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de Fronteira – A degradação do Outro nos confins do Humano; (2a edição, Contexto, 2009); Retratos do Silêncio, Edusp, 2008; Reforma Agrária: o Impossível Diálogo, Edusp, 2000; Exclusão Social e a Nova Desi-gualdade, Editora Paulus, 2007; A Sociedade Vista do Abismo (Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais), Editora Vozes, 2008; A Sociabilidade do Homem Simples (2a edição revista e ampliada, Contexto, 2008).

Isabel Allende BussiSocióloga formada pela Universidade do Chile, fez estudos de mestrado em Sociologia pela Universidade Nacional Autônoma do Mexico (Unam) e também de Ciência Política na Flacso (México). Filha do ex-presidente Salvador Allende e de Hortensia Bussi, é deputada nacional pelo Partido Socialista do Chile, desde 1994.

Luiz Eduardo Soares Cientista social e antropólogo, foi secretário nacional de segurança pública, do governo federal (janeiro a outubro de 2003), subsecretário de segurança pública e coordenador de segurança, justiça e cidadania do governo do Estado do Rio de Janeiro (janeiro de 1999 a março de 2000). Tem dez livros publicados, entre eles Meu Casaco de General, finalista do Prêmio Jabuti em 2000, e junto com André Batista e Rodrigo Pimentel, Elite da tropa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006).

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A reforma agrária bifocal1

José de Souza Martins

Se o número de entidades que falam em nome da demanda popular por reforma agrária passar das 89 recentemente lis-tadas por pesquisadora da Unesp, provavelmente não haverá

trabalhadores rurais sem terra, em número suficiente, para tanta organização política falando e pleiteando em nome deles. Estamos em face de um curioso fenômeno histórico e político, raro, senão único, na história das lutas agrárias que acompanharam a crise do antigo regime e o nascimento e expansão do capitalismo nos últimos dois séculos. É o da lentidão e da demora na suposta desagregação da velha ordem latifundista e na superação de suas sobrevivências, entre nós.

Porque reforma agrária é isso: a remoção e superação dos arcaís-mos que na tradição fundiária travam o desenvolvimento da econo-mia moderna. Ou, então, nosso impasse agrário é de outra natureza, de mera disputa de interesses partidários, o que se pode suspeitar com base na proliferação de agentes de reivindicação, sem a coerên-cia ideológica que nos diga que estamos, de fato, em face de um im-passe histórico que pede uma ação política em nome dos pobres da terra e com sua participação ativa. E não, como se está vendo, uma luta de escritórios de serviços políticos, e lideranças de classe média, não raro sustentados por verbas do próprio governo.

Não é a história que está em jogo e sim o poder. Justamente por isso a reforma agrária, no Brasil, tornou-se irrelevante em face da

1 Versão revista e ampliada de artigo publicado em O Estado de S. Paulo [Ca-derno Aliás, A Semana Revista], domingo, 24 de maio de 2009, p. J7.

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VI. O Social e Político

institucionalização da luta social que se trava em nome dela e dos trabalhadores que a necessitam. O objetivo da luta é a luta e não propriamente a remoção política dos entraves históricos que imobili-zam os trabalhadores rurais aquém do historicamente possível e do socialmente necessário.

As lutas agrárias têm sido expressões autodefensivas e conserva-doras das vítimas da desagregação do velho regime e de suas injus-tiças sociais. Tornaram-se uma força involuntariamente auxiliar do surgimento e disseminação de uma nova ordem econômica, social e política baseada no lucro (e não na renda fundiária), na igualdade jurídica de seus membros (e não na desigualdade de nascimento das pessoas) e na democracia representativa (e não na dominação patri-monial e pessoal).

As lutas agrárias, ainda que também motivadas pela resistência às iniquidades de uma ordem social adventícia, baseada na coisa e não na pessoa, de algum modo tem contribuído para aperfeiçoar essa mesma ordem, nela introduzindo, como observou E. P. Thompson, em relação aos privilégios das corporações de ofício na sociedade inglesa, um pressuposto moral regulador e humanizador da racio-nalidade da produção e do lucro. T. H. Marshall, o introdutor da so-ciologia na Universidade de Cambridge, fez estudos pioneiros sobre o mesmo tema, constatando que foram esses setores historicamente retrógrados da sociedade contemporânea que, sem expressamente pretendê-lo, asseguraram o nascimento dos direitos sociais, civili-zando o que parecia caminhar para a incivilidade da coisificação ple-na e absoluta do ser humano.

Numa escala bem mais modesta, aqui no Brasil o conservadoris-mo agrário das lutas populares tem erguido uma barreira à latifun-dização plena do país. Não fossem elas, o Brasil, a partir da ditadura militar teria se transformado numa federação de enclaves territo-riais, financiados pelos incentivos fiscais e dotados de poder próprio, latifúndios modernos no sentido político e não latifúndios no sentido histórico de fazendas descomunais e arcaicas.

Esse desencontro profundo entre a motivação imediata e a ação dos movimentos sociais, de um lado, e seus resultados históricos, de outro, têm sido característico das lutas sociais dos pobres na socie-dade contemporânea, mesmo quando já não esteja em jogo a demo-lição de uma ordem social e política pretérita. Nem por isso, esses movimentos deixam de ter uma indiscutível importância histórica na faxina que promovem, em nome de valores da tradição conservadora, nos resíduos de arcaísmos que tolhem o desenvolvimento econômico e social.

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A reforma agrária bifocal

No entanto, também eles se perdem na contradição que os move e desfigura. Uma coisa é o elenco de suas modestas demandas ma-teriais, outra coisa é o que com elas fazem os grupos de mediação interpretativa que as traduzem em política partidária e política de Estado. O sem terra de referência do Ministério de Desenvolvimento Agrário e do Incra, como o do próprio MST, é irreal e mero instru-mento de demandas completamente estranhas às dos que carecem de terra para trabalhar e de trabalho para sobreviver. Sem dúvida, pode haver algum grau de coincidência entre o que precisam uns e o que querem outros, aqueles que tutelam a formatação política das carências sociais.

Mas pode haver distanciamentos e rupturas, como se vê agora nas tensões entre o MST e setores da Igreja, de um lado, e o governo Lula de outro, este implementando uma política agrária predominan-temente orientada para favorecer o agronegócio. Política que retroce-de, no que se refere aos direitos sociais sobre a terra e à soberania nacional sobre o território, ao mais reacionário dos momentos de nossa história fundiária, que foi o da República Velha. Com a dife-rença de que essa política fundiária é a de um governo tido e havido como de esquerda, enquanto a República Velha era a república das oligarquias e dos grandes proprietários de terra. Os de ontem agiam em nome de interesses próprios; os de agora agem em nome de inte-resses alheios.

Nesse plano, a multiplicação do número de organizações que fa-lam pelos que poderiam ser beneficiados pela reforma agrária e a ide-ologização tanto do MST quanto da Pastoral da Terra, nos indica uma crise nos indevidamente chamados de movimentos sociais. A crise se enuncia na palavra do agente de pastoral da terra que, entrevistado pelo jornal O Estado de S. Paulo, define a reforma agrária do governo do PT, de cuja ascensão a CPT tem sido uma das responsáveis, como sendo uma reforma agrária cínica. O padre que emitiu esse juízo tem suas ponderáveis razões. Mas não sei que outra palavra empregar para definir a conduta partidária dos que estando em desacordo com a política agrária de Lula e do PT, ainda assim, os consideram os únicos capazes de realizar as aspirações dos pobres da terra quando eles mesmos estão dizendo exatamente o contrário.

Se o regime militar pensou a reforma agrária como instrumento do Estado para acalmar os nervos dos trabalhadores rurais, é evidente que o governo Lula vai na direção oposta, mas não necessariamente melhor. Desde o início do primeiro mandato, ele considera a reforma agrária um recurso tópico para amenizar a pobreza rural e urbana, um modo de aplacar o apetite dos famintos. É o que se vê agora

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VI. O Social e Político

na extensão do Bolsa Família aos residentes dos acampamentos de pressão do MST, e de outras entidades, em favor de mais desapro-priações e mais assentamentos. Reforma agrária, aliás, em declínio notório no governo petista, como acusam e confirmam com dados MST e CPT.

Com essa medida, o Ministério do Desenvolvimento Social anexa os sem terra aos moradores de rua e aos remanescentes de quilom-bos. Reconceitua-os como sem destino, em exata oposição à ideolo-gia, tanto do MST quanto da CPT, de que os desvalidos da terra são vítimas de uma injustiça social histórica. Como os proletários de Lênin, seriam também eles portadores de uma alternativa social e política que os faria agentes privilegiados da transformação social. Sujeitos do futuro e não do passado.

Um governo que, no agrário, optou em termos absolutos pelo he-roísmo do agronegócio não poderia deixar de fazê-lo em face de uma servil luta pela reforma agrária, alienada e incapaz de reconhecer-se na possibilidade do agronegócio alternativo e popular, fundado no capital social dos que, privados de terra, não foram privados de um saber ancestral criativo e produtivo.

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

Isabel Allende Bussi

Trata-se de conceitos se complementam e constituem, sem dú-vida, matérias de interesses para o Chile e os demais países da América Latina. Governabilidade é um conceito pluridimen-

sional. Sua expressão fundamental tem relação com a democracia, que dispõe de mecanismos legitimados para resolver civilizadamente as discrepâncias ou as diferentes opções que aparecem na sociedade, recorrendo ao acatamento das minorias frente à opinião das maio-rias, assim como do respeito às minorias por parte das maiorias; tudo isso, na moldura do Estado de Direito. Democracia e governabi-lidade são termos complementares. Para que exista governabilidade, deve ocorrer o funcionamento estável das instituições, a legitimidade dos governantes, um projeto de país majoritariamente compartilha-do, e o bem-estar da população em relação à diversidade e respeito aos direitos humanos.

Governabilidade é também a capacidade de ação do governo; a efi-cácia de suas políticas públicas, particularmente aquelas orientadas para os setores mais desprotegidos; a capacidade de dispor de um sistema de educação equitativo e de qualidade; a transparência e a eficiência da gestão pública; o desenvolvimento ou a incorporação da ciência e tecnologia; a possibilidade de resolver os conflitos sociais; atingir consensos sociais em matérias fundamentais; impulsionar o crescimento sustentado e proteger o meio ambiente. Assim mesmo, está relacionada com a capacidade de antecipar soluções frente a fatos que podem se converter em destoantes de mal-estar social.

A governabilidade deve incorporar a participação e a organização da sociedade civil para que esta cumpra um papel de maior protagonismo na defesa de seus direitos e na formulação de suas aspirações e pro-postas. Desta maneira, ela pode envolver-se no diálogo nacional e na tomada de decisões sobre os grandes temas que preocupam os países. A governabilidade democrática respeita os direitos das pessoas e resolve os conflitos através de canais que permitem o diálogo, a negociação.

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VI. O Social e o Político

A governabilidade na América Latina e no ChileA América Latina superou o período de ditaduras militares que

se prolongou entre as décadas de 1970 e 1980 na maioria dos países. Hoje, existem regimes democráticos depois de um período de transição que significou superar anteriores estruturas de poder militar autoritário e repressivo. No entanto, nos últimos 17 anos, 12 presidentes de países latino-americanos eleitos democraticamente concluíram prematuramente seus períodos constitucionais por si-tuações de ingovernabilidade. Suas renúncias obedeceram a crises políticas que não puderam resolver, que detonaram violentas reações sociais e que os obrigaram antecipadamente a deixar seus mandatos. Em todos esses casos, não existiam esses mecanismos institucionais para resolver os conflitos.

Contudo, é positivo verificar que tais crises não resultaram em golpes de Estado e em ditaduras militares, como ocorreu em décadas passadas. Isso é porque hoje em dia não existem condições sociais nem políticas que legitimem ações dessa natureza.

No Chile, a passagem da ditadura à democracia se conseguiu ten-do como base uma coligação de centro-esquerda. Pela primeira vez, em toda a história política de nosso país, temos uma aliança. Forças políticas que sempre fomos quase antagônicas e adversárias, e tal-vez quase inimigas. Estou falando da democracia-cristã e do mundo socialista. Conseguimos gestar a Concertación de Partidos pela De-mocracia, que foi capaz de elaborar um projeto de país que permitiu o triunfo de quatro governos sucessivos, o último deles o encabeça, pela primeira vez em toda a história de nosso país, uma mulher, a presidenta Michelle Bachelet. A Concertación conseguiu estabelecer condições de paz e de confiança que permitem o funcionamento das instituições nos marcos do Estado de Direito. O prolongado período de transição à democracia que tem experimentado o país tem sido pacífico, as desconfianças políticas tenderam a desaparecer depois da saída do ex-ditador do Comando do Exército e de sua detenção em Londres. Um feito significativo para a democracia foram as reformas constitucionais promulgadas em 2005 que, entre outras modifica-ções, terminaram com a Doutrina de Segurança Nacional que era parte da Constituição imposta em 1980 e que entre outras coisas, designava as Forças Armadas como garantia da democracia. Ainda que não tenha eliminado todos os enclaves, ao menos, creio, que avançamos bastante no aprofundamento da democracia. Mas ainda temos certas ataduras, entre outras, um sistema eleitoral binominal excludente, que altera a representatividade cidadã. Eu espero que

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

seja uma das tarefas que seremos capazes de cumprir, apesar de que já levamos 17 anos de transição democrática.

Os países da América Latina têm melhorado sua situação eco-nômica e têm avançado num processo de inserção no mundo glo-balizado. Persistem, não obstante, altos indicadores de pobreza, marginalidade social, carências na educação, saúde, moradia e sub-desenvolvimento rural. Ainda que tenha existido progresso, coexis-tem na América Latina segmentos sociais de modernidade e riqueza comparáveis com os países desenvolvidos junto com setores sociais majoritários que vivem no atraso e na pobreza – às vezes, extrema. Essa situação tem provocado descontentamento, desconfiança nas instituições públicas e na política; tudo isso afeta a validade da de-mocracia e é germe de ingovernabilidade.

O Chile tem diferenças e semelhanças em relação aos demais pa-íses latino-americanos. Entre suas diferenças temos, por exemplo, a conquista de termos diminuído consideravelmente a pobreza por mais da metade, descendo de 38,6% em 1990 – primeiro ano de governo de-mocrático – a 13,7% em 2006. Assim, na década de 1990, o Chile du-plicou sua produção, o que lhe permitiu alcançar maior crescimento e bem-estar social. Ambos os resultados fortaleceram a governabilida-de. Paralelamente, temos conseguido equilibrar os macroindicadores econômicos e incrementar o investimento e a poupança nacional. A estratégia de desenvolvimento impulsionada pelo Chile está vinculada a sua capacidade exportadora. Para isso, tem dado importância aos tratados bilaterais e multilaterais de livre comércio, cuidadosamente negociados, cuja principal característica foi estabelecer condições de intercâmbio de mútua equidade com países ou blocos. Esperamos que isso implique proteção a longo prazo para os setores mais débeis da economia nacional. Hoje, o Chile possui tratado de livre comércio com 85% da população mundial. O que não deixa de ser bastante notável para um país de 15 milhões de habitantes.

Além da desigualdade de renda, entre as semelhanças do Chile com os demais países latino-americanos está o baixo prestígio de instituições como o Poder Judiciário, o Congresso Nacional e os partidos políticos. A grande variável externa para nossos países é a globalização, processo que mesmo podendo gerar oportunidades, também produz inequidade.

O capital financeiro especulativo é um dos causadores da crise em nossos países. Há dois efeitos que são consequência da globaliza-ção: por um lado, pode produzir uma forte tendência a integração e a interdependência, mas, por outro, produz processos de fragmenta-ção e erosão cultural de etnias e nacionalidades.

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VI. O Social e o Político

Requisitos para uma maior governabilidadeA governabilidade como preocupação fundamental nos convoca a

refletir sobre os requisitos que tornariam possíveis o estabelecimento das melhores e mais favoráveis condições para alcançá-la. Em minha opinião essas condições são:

Em primeiro lugar, a democracia, o respeito ao Estado de Direito e o normal funcionamento das instituições.

Segundo. Melhorar a qualidade da política. É necessário, na América Latina, e creio que não só nela, que a política tenha um claro conteúdo ético, rigor de análise e riqueza propositiva. O prag-matismo, a tecnocracia desumanizada, a corrupção, a inflação de oferta de promessas impossíveis de cumprir, a pobreza do debate político, os recursos efetivos e às vezes meramente conjunturais da política midiática e as práticas populistas, devem ser evitados.

Terceiro. Melhorar a qualidade das organizações políticas. Os diagnósticos afirmam que existe uma crise de representatividade na América Latina. Nossos partidos políticos têm perdido protagonismo e se têm debilitado como mediadores da cidadania. Penso que os partidos políticos devem se colocar à altura da sociedade do conheci-mento, na qual este tem centralidade, e buscar capacidade técnica e especialização, já que de suas fileiras surge um número importante de quem assume papéis de condução do Estado ou daqueles que vão se constituir em lideranças nacionais.

Quarto. Aumentar a participação e responsabilidade social. A so-ciedade civil deve ter uma maior participação na tomada de decisões, isso dá maior legitimidade às políticas públicas e, seguramente, mais transparência, além de poder ser um mecanismo que ajude a evitar a corrupção. É fundamental legislar a respeito para poder garantir um amplo espaço de participação.

Quinto. Enfrentar a pobreza não só é um requisito de governa-bilidade mas constitui um imperativo ético. Uma modificação na estratégia de desenvolvimento predominante se faz necessária para dar melhores respostas às necessidades e expectativas da popu-lação. Essa estratégia, em minha opinião, deve ter, entre outras características, uma participação mais ativa do Estado na regula-gem do mercado e no controle das empresas privadas que prestam serviços públicos.

Sexto. É importante combater a discriminação de gênero, de et-nias, de classes sociais, construindo sociedades mais inclusivas e pluriculturais.

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Sétimo. É importante modernizar o Estado. Deve existir uma me-lhor coordenação entre o Estado e a sociedade civil e entre o Estado e as empresas privadas e cooperativas; da mesma forma, é necessá-rio que o Estado exerça ações corretivas, maior controle e aplique medidas compensatórias. O Estado deve impulsionar processos de descentralização, melhorar a eficiência do gasto público e melhorar os serviços ao cidadão. Não deveria ser uma utopia que o Estado seja mais transparente e próximo às pessoas.

Oitavo. Em um sentido mais instrumental, o Estado tem que ter capacidade de gestão sólida: entendemos por isto planejamento, or-ganização, gestão de pessoas, motivação, controle, liderança, inova-ção, produtos e serviços de qualidade, avaliação e acompanhamento dessas políticas. No Chile, estamos experimentando o resultado de haver aplicado de forma ineficiente e ineficaz um sistema de trans-porte público para a Região Metropolitana conhecido como “Transan-tiago”. Hoje, estamos afetando a qualidade de vida de mais de cinco milhões de pessoas que utilizam esse serviço público. E, com a in-tenção de melhorá-lo, lamentavelmente, hoje temos que reconhecer que ainda não o conseguimos e é, sem dúvida, um desafio pendente. Resultado: tem se deteriorado a imagem de nosso governo, de nossos partidos e a relação entre nosso governo e a cidadania. Creio que é uma lição que todos devemos aprender.

Nono. A qualidade e a igualdade da educação é outro dos compo-nentes de governabilidade. Ela permite um desenvolvimento humano integral, o acesso do conhecimento, o desenvolvimento da criativida-de, a inovação e, seguramente, ganhar em competitividade.

Décimo. Como fator de governabilidade, também adquire signi-ficação um novo conceito de segurança hemisférica e de segurança no âmbito planetário. Hoje temos fenômenos como o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de armas não convencionais e as redes interna-cionais de delinquência, que se instituem como novas modalidades de ameaça. Esses fenômenos nos exigem melhores normas e ins-trumentos internacionais para serem enfrentados e a cooperação de todos os países.

Décimo primeiro. Também a colaboração entre nossos países pode se expressar em contribuir para um clima internacional de paz, onde predomine o respeito às instituições internacionais e, por certo, ao direito internacional.

Décimo segundo. E, quanto à globalização, é necessário evitar o efeito desestruturante que esta produz. Para isso se requer dar a ela governabilidade política e governabilidade ao movimento de capitais especulativos.

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VI. O Social e o Político

Coesão SocialNão se pode falar de governabilidade se não existe coesão social,

ou seja, se nossas sociedades não são inclusivas. Estar excluído dos benefícios econômicos produz uma baixa credibilidade dos governos, da política e dos partidos políticos que não são capazes de gerar al-ternativas para resolver situações de iniquidade. A América Latina é, de acordo com os organismos internacionais, a região mais desigual do mundo, particularmente no que se refere à distribuição de ren-da. Apesar da diminuição percentual dos pobres, o número absolu-to aumentou concentrando-se particularmente nos setores rurais; o desemprego segue em alta, cresce o trabalho informal sem proteção social e coexiste um mercado de trabalho precário e instável. Por ou-tro lado se tem produzido uma alta concentração do capital e o surgi-mento de oligopólios que desprezam pequenos e médios empresários. Tudo isto produz exclusão. Na América Latina, em 2005, quase 40% da população vivia em condições de indigência. Estas cifras, de acor-do com a Cepal, sofreram uma pequena baixa em 2006.

A população indígena da América Latina chega a 30 milhões de pessoas, cuja maioria habita zonas rurais; tal população é constituí-da por 650 povos caracterizados por uma grande diversificação étni-ca e cultural. A grande maioria dos indígenas latino-americanos vive em situação de pobreza e marginalidade. Estamos longe de cumprir a Convenção 169 da OIT que, entre outras coisas, assume um compro-misso com a não discriminação; direito à integridade cultural; direito à propriedade, uso, controle e acesso às terras e seus recursos; o direito ao desenvolvimento e ao bem-estar social; direitos de partici-pação política com consentimento livre, prévio e informado.

Até o momento, os modelos de desenvolvimento dos países da América Latina e Caribe não conseguiram avançar suficientemente em equidade e coesão social. Venezuela e Bolívia, com governos de-mocraticamente eleitos, exploram novas vias para alcançar o bem-estar de seus povos, nas quais o econômico se afasta da ortodoxia do Consenso de Washington e no social buscam construir democracias mais participativas. Em ambos os países, o Estado assume novas funções, como um novo trato com empresas estrangeiras que explo-ram os recursos naturais e uma maior ingerência no que se refere ao âmbito econômico e social. O tempo se ocupará de demonstrar seus resultados. Brasil, Argentina, Equador e Nicarágua, têm ou-tras características, também impulsionam projetos de mudanças, que no caso de suas instituições democráticas, tem conseguido su-perar gradualmente as desigualdades anteriores e promover o cres-cimento e bem-estar.

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Chile tem seguido uma via distinta, de acordo com sua própria realidade. A estratégia desenvolvida por nossos governos de Con-certación é definida como um crescimento sustentável com equi-dade e tem aumentado consideravelmente os empregos, sendo que a metade destes novos empregos estão sendo ocupado por mulhe-res – e ainda temos a mais baixa jornada de trabalho feminina da América Latina.

Temos aumentado os gastos com saúde, ampliando sua cobertura (os gastos com saúde por habitante aumentaram a uma taxa anual de 10%); foram construídos mais de um milhão de habitações (sob o comando do governo de Concertación,1990-2006, foram construídos mais de um terço das habitações que existem atualmente em nosso país), 72,6% destas habitações são ocupadas por seus proprietários; os salários aumentaram em termos reais, 90% entre 1990 e 2006; se constata um aumento considerável da taxa de investimento e se me-lhorou o capital humano. Atualmente, de dez estudantes que entram na universidade, sete deles são os primeiros da família que estão em uma unidade de ensino superior. Na educação, temos tentado fazer reformas curriculares e melhorar a capacitação docente, assim como a ampliação da infraestrutura educativa junto com a obrigação do Estado de elevar para 12 anos a educação obrigatória. Podemos dizer que o último censo demonstrou uma melhora significativa na quali-dade de vida da população, dentre outras coisas, em razão ao acesso à habitação, à educação e a equipamentos como televisão, aparelhos de som, lavadora etc...

Ainda que tenha existido progresso, que é inegável e do qual es-tamos muitos orgulhosos, considero que a estratégia econômica do Chile tem dado indícios de que está se esgotando em razão de temas muito complicados. Temos um mercado altamente desregulado e, ao mesmo tempo, uma economia altamente privatizada, na qual a busca de lucro, muitas vezes, predomina em detrimento da quali-dade do serviço prestado, entre eles a previdência social e a saúde. Ambos componentes – falta de regulação e privatização – têm criado uma alta concentração da riqueza além de termos uma educação insuficiente em qualidade e um sistema de pensões que estamos em via de reformar.

Esta mesma estratégia de desenvolvimento tem se mostrado de grande utilidade para algumas empresas transnacionais que explo-ram o cobre, e que pagam ao Estado baixíssimos impostos. Estas empresas entregaram ao Estado, entre 1991 e 2004, uma receita mé-dia de 225 milhões de dólares produzindo mais de 50% do cobre na-cional. Por outro lado, a empresa estatal Codelco, tem entregado ao

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VI. O Social e o Político

Estado mais de 1,3 bilhões de dólares anuais para o mesmo período, por exportar um pouco mais de 40% da produção. A esse respeito, nunca devemos esquecer que a nacionalização do cobre foi realizada pelo presidente Salvador Allende, em 1971, expressão visionária que se tornou realidade em nosso país. Outra debilidade da estratégia econômica tem sido a falta de incentivo à pesquisa para o desenvolvi-mento e a inovação (apenas 0,7% do PIB se converte em pesquisa). O Chile necessita não somente exportar matérias-primas, mas também devemos exportar produtos com valor agregado que criam mais em-pregos e constroem condições competitivas mais dinâmicas. No Chile existe uma baixa proporção de pesquisa aplicada, o que resulta em baixos níveis de impacto produtivo. Um aspecto que incide na gover-nabilidade e na coesão social é a falta de importância dada no Chile às Pymes (pequenas e médias empresas), que geram mais de 70% dos empregos. Estas necessitam de maior apoio, tanto do Estado, como da iniciativa privada, para melhorar sua capacidade inovadora, produtiva e competitiva.

A coesão social tem relação com a identidade ou o grau de con-senso que se tem em torno de um projeto de país. No âmbito do país ou região, a coesão social e a exclusão são consequências de decisões políticas e econômicas, de fatores estruturais e do peso das culturas que se fazem hegemônicas. Interferem na falta de coesão social a escassa participação civil e a discriminação que muitas vezes encon-tramos por gênero, etnia ou por raças.

Não deixa de ser paradoxal o fato de que durante a ditadura ti-vemos múltiplas formas de organização civil (entre outras as cha-madas ollas comunales que eram uma estratégia de sobrevivência em pleno período ditatorial); tivemos vários meios de comunicação alternativos em plena ditadura, e hoje, depois de 16 anos de demo-cracia, reduzimos e perdemos toda essa participação. O que resul-ta no fato de que não temos praticamente meios de comunicação escritos que não pertençam aos monopólios que são propriedades da direita em nosso país.

E mais, uma recente pesquisa, feita por uma empresa conhecida (Cerc), mostra que, no Chile, 92% das pessoas consideram que não existe igualdade no trato que dão as autoridades. Em 2005, 84% dos entrevistados responderam não acreditar que exista igualdade perante a lei. A mesma pesquisa foi aplicada a jovens, e obteve as seguintes respostas frente à pergunta: “O que falta para a sociedade chilena se tornar mais democrática”? Responderam: “escutar mais as pessoas, suas necessidades e opiniões; melhorar a aplicação da justiça; diminuir as diferenças e a desigualdade e dar maiores

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

oportunidades à população”. E mais, em nosso país a inscrição elei-toral não é obrigatória, mas o voto sim. Temos mais de 800.000 jo-vens que não estão inscritos e que têm a idade de votar, abrindo mão assim do direito de participar da vida política do país. Creio que isto demonstra a falta de confiança no atual sistema democrático, sendo esse mais um dos desafios pendentes.

Como avançar na coesão social?Os governos devem impulsionar políticas públicas que promo-

vam a coesão social em suas dimensões sociais, culturais, política, econômica, territorial e no que diz respeito ao meio ambiente. Adi-cionalmente, seguindo o exemplo da União Europeia, é importante que a America Latina avance em integração regional, a partir de um consenso de iniciativas que promovam a equidade e a coesão social. Sobre este ponto, valorizamos a Declaração de Viena e a disposição da União Europeia, expressada através do “Consenso Europeu sobre Desenvolvimento”, no sentido de “colocar a erradicação da pobreza no centro da cooperação para o desenvolvimento da União Europeia, no contexto de um desenvolvimento sustentável, com a inclusão dos Objetivos de Desenvolvimento de Milênio”.

Corresponde ao Estado, então, cumprir um papel no avanço da coesão social, gerando estas condições para uma cultura solidária, servindo de base para a construção de um pacto social que envolva diferentes setores sociais. Corresponde ao Estado também regular e intervir no mercado, especialmente quando este produzir inequida-des. O mercado não produz equidade nem resolve as aspirações de bem-estar de toda a sociedade; é o Estado, por meio de suas políticas publicas e de articulação da vontade política e social, que pode ter e cumprir este papel principal, no sentido de gerar benefícios compar-tilhados como consequência do desenvolvimento.

Dissemos que é necessário resolver as iniquidades que existem em saúde, educação e em relação à previdência social; desenvolver mais o capital humano e social. Ter e aprofundar as convicções de-mocráticas, no respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direi-to, identidades culturais fundamentais, fomentar o associativismo, a aceitação da diversidade, e gerar maior confiança entre os atores sociais em torno de um projeto de país.

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Reforma do Estado e cultura política

Luiz Eduardo Soares

A crença dominante é a seguinte: para construir um país mais justo, com governos mais eficientes, com menos corrupção e vio-lência, é preciso punir mais e com penas mais longas, o que, por sua vez, deve ser precedido pela promulgação de leis que ampliem os mecanismos de controle sobre a sociedade e o Estado. Quanto a este último, o senso comum diz que é necessário inibir desvios de conduta, impondo regras rígidas para que seus atos se tornem mais compatíveis com o respeito ao interesse público.

Em tese, soa perfeito. Na realidade, não é o que acontece. Tome-mos o caso do Estado e da extensa e meticulosa legislação a que se submete o executivo, em todas as esferas – federal, estadual e muni-cipal. Cada nova lei que visa impedir a transgressão provoca, para-doxalmente, a qualificação dos criminosos e a valorização do crime, tornando-o mais atraente. O interesse transgressor não cede ante a nova barreira, mas é levado a sofisticar seus procedimentos e refinar o preparo técnico de seus “operadores”.

O cálculo de custo e benefício acaba compensando, porque, se o aumento do risco encarece o crime, o preço cobrado a quem con-trata o serviço transgressor também se eleva, tornando o negócio mais lucrativo.

Em suma, na medida em que se expande a malha de controle, cres-ce a disposição de transgredi-la e se aprimora a capacidade de fazê-lo. O tráfico internacional de drogas e o prosaico contrabando, o teatro das licitações e as leis sobre convênios são exemplos conhecidos.

Depois de ter passado os últimos dez anos atuando nas três esfe-ras do Executivo, posso dar o testemunho de que o que parece lógico e quase indiscutível, quando se vê de fora, é irracional e destrutivo, visto de dentro. É isso, mais do que as diferenças ideológicas, que explica o choque frequente dos gestores públicos contra membros do Legislativo, sintonizados com o senso comum das ruas, mas ignoran-tes das armadilhas do controle normativo (e do aparato institucional que lhe dá suporte e consequência).

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Reforma do Estado e cultura política

E é por isso que quando as oposições chegam ao governo adotam as soluções que antes criticavam. Não é uma traição a princípios, mas a indispensável adaptação a uma realidade imperiosa, que cas-tra sem piedade a criatividade e a eficiência, produzindo governos abúlicos sem que a corrupção seja sanada. Um exemplo: as diversas modalidades de terceirização. Em teoria, trata-se de um mau cami-nho. O melhor seria que o Estado funcionasse, valorizasse seus pro-fissionais, garantisse condições adequadas de trabalho e gestão. Mas os governos retrocederiam ou fechariam as portas se tivessem de renunciar aos convênios que terceirizam, quando não privatizam.

Para falar francamente: governar é quase inviável. Ser eficiente, no governo, é inviável, salvo nas áreas em que a sobrevivência nacio-nal abriu picadas para a oxigenação – a Fazenda, o Banco Central e alguns poucos setores, nas distintas esferas.

O processo de democratização, gradualmente, com o propósito de prevenir o autoritarismo e de apagar a memória sombria de Leviatã, amarrou o Estado em uma camisa de força. Atire a primeira pedra quem assumir a responsabilidade de governar o país sem medidas provisórias, quem se comprometer a prover os serviços públicos sem recorrer a organizações sociais, Ocips, ONGs ou aos mediadores in-ternacionais. Os críticos da terceirização e da privatização não co-nhecem a realidade – se assumirem o poder estarão condenados a repetir seus adversários.

A consequência desse argumento deve ser o fim de toda regu-lamentação e de todo bloqueio normativo? Deve ser a capitulação e a entrega do Estado à voragem privatista? Deve ser o triunfo do laissez-faire, justamente quando o liberalismo anárquico naufraga, tragado pela crise mundial, gerada pela desregulamentação irres-ponsável? Não. Nada disso.

É necessário, em nome da justiça e da democracia, defender o Estado e fortalecê-lo, mas isso não se faz bradando velhos slogans e tapando o sol com a peneira. Para revigorar o Estado, impõe-se transformá-lo, profundamente, liberando-o de amarras artificiais e apostando mais na transparência, na mídia livre, na participação so-cial e nas eleições do que no aparato controlador. Não podemos con-tinuar nessa via: para proteger a honestidade, estamos alimentando a corrupção; para salvaguardar o Estado dos interesses privados, estamos liquidando sua capacidade administrativa.

Agora, o outro lado da moeda: é nesse contexto que devemos en-tender as dinâmicas em curso na sociedade. O fisco sufoca os empre-endedores. O empregado negocia soluções informais com seu patrão,

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VI. O Social e o Político

porque precisa trabalhar. O pequeno empresário tem de escolher: dar três empregos informais ou um, formal. As boas instituições são as que convertem vícios privados em virtudes públicas, e não as que, inutilmente, se devotam a corrigir os indivíduos. Como julgar as mi-crodecisões dos milhões de brasileiros que, na selva dos controles normativos e ante a voracidade da exação fiscal, encarando o desa-fio que é sobreviver, buscam opções menos onerosas e mais econô-micas, sem cometer qualquer crime?

Nesse ponto, creio que todos podemos atribuir o verdadeiro sig-nificado ao ato de Celso Athayde e MV Bill: negociar, licitamente, os direitos autorais de um de seus livros com uma empresa legalmente instituída (o que ela faria em outras áreas de atuação não se ti-nha como saber) para que ela represente os autores no contrato com a editora, fazendo com que se tornasse possível recolher impostos como pessoa jurídica, em vez de como pessoa física. Qual o crime?

Extraordinário o cinismo de setores da grande imprensa. A revis-ta Veja, por exemplo, célebre por sua “isenção e objetividade” – apli-cadas numa versão muito peculiar de ambas as qualidades –, abriga um colunista que se dedica ao esporte do tiro ao alvo – na semana passada praticou tiro ao negro. Faz um grande sucesso transgredin-do algumas regras básicas do jornalismo civilizado. Nada original. A grosseria sempre foi um filão fecundo para a exploração comercial e a difusão de valores antidemocráticos. Sobretudo a grosseria chi-que, blasé, arrogante, elitista e pseudointelectual. O clichê da direita continua vendendo: por que mudar? A ideia não é essa? Vender e desmoralizar os adversários sem direito de defesa?

Pois a última rodada de linchamento, promovido pelo arguto es-criba com aquele conhecido requinte de sadismo – que se compraz em apontar dedos para sentir-se puro e afirmar-se superior –, atingiu MV Bill e Celso Athayde. Simplesmente, repita-se, porque recorreram a uma empresa para representá-los em um contrato com uma edi-tora. Essa empresa, anos depois, tornar-se-ia objeto de denúncias e investigações. Que responsabilidade poderiam ter, em qualquer eventual ilícito por ela cometido, aqueles que negociaram com ela, honestamente, licitamente?

O mais inacreditável vem agora: sabem quem tem contratos com a tal empresa? A editora Abril, que publica a revista Veja.

Ora, de duas uma: ou todos os que negociaram com a tal empresa tornaram-se automaticamente cúmplices dos ilícitos que ela porven-tura tenha cometido, e nesse caso a Editora Abril é tão culpada quan-to os cidadãos que ela acusou; ou ninguém pode ser acusado pelas

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possíveis faltas cometidas por terceiros, só por ter mantido alguma relação contratual, de forma lícita, com o suposto faltoso. Neste último caso, aqueles que a revista acusou merecem desculpas públicas.

Essa conclusão é tão clara que mesmo o mais parcial e astucioso dos jornalistas teria de admiti-la. E teria a obrigação moral de divul-gá-la. Mas falar em moral nesse ambiente envenenado pela ideologia e a manipulação arbitrária não faz mesmo sentido. Nosso debate público anda tão pobre e sujo que mesmo o gesto mais abjeto acaba naturalizado. Ainda bem que existem os políticos para encarnar todo o mal. Se não fosse assim, teríamos de discutir ética pública a sério, sem bodes expiatórios.

Parece claro que a hipótese de Bill vir a ser candidato ao Senado, mesmo sendo fantasiosa, foi suficiente para despertar a cólera deso-nesta dos que mal conseguem disfarçar o racismo e o ódio – e/ou in-veja – que sentem do sucesso de uma liderança popular legitimamen-te construída e de enorme potencial mobilizador. A doença paranóica do controle contagia. Use sua desconfiança com moderação.

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VII. Direito & Justiça

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Autores

Luiz Felipe Haj MussiAdvogado, presidente do Conselho Nacional de Ética do PPS e desembargador federal do Trabalho aposentado. Foi Secretário da Segurança Pública do Paraná e secretário extraordinário de Assuntos Fundiários, ambos os cargos no Paraná.

Oscar d’Alva e Souza FilhoProcurador de Justiça do MP/Ce. Mestre em Direito Público pela UFC. Livre Docente em Filosofia do Direito, pela UVA. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA). Autor de obras jurídicas e filosóficas. Professor de Filosofia do Direito da Unifor e e da Escola Superior do Ministério Público do Ceará - ESMP. Email:[email protected]

Leandro do Nascimento RodriguesDoutorando em Ciência Política – Ipol/UnB

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Mitigando a presunção de inocência

Luiz Felipe Haj Mussi

I – Introdução

A nação está constatando indignada o que poderíamos deno-minar de sedimentação cultural da corrupção. Diariamente a imprensa nacional divulga a prática constante e habitual de

ilícitos cometidos em face do poder público por cidadãos que ocupam funções públicas. O que assusta a todos é que os cofres públicos são objeto de um butim permanente e os assaltantes não são punidos. Praticam tais assaltos como se fossem inerentes ao exercício dos car-gos que ocupam. Ficamos com a impressão de que a locupletação ilícita virou regra.

A nação precisa reagir e apontar soluções.

No meu entender, dois são os principais fatores que consolidaram essa situação: o exercício permanente de uma velha prática política que utiliza o Estado como fonte de benefício privado e a certeza da impunidade.

Os sucessivos episódios pondo a nu o parlamento e o Poder Exe-cutivo mostram a fragilidade das instituições brasileiras no combate à corrupção.

Não possuímos instrumentos seguros e ágeis que possam contra-balançar, de um lado a pronta resposta que o Estado deve dar aos seus cidadãos e de outro assegurar ampla defesa aos eventualmente envolvidos.

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VII. Direito e Justiça

A tarefa competiria ao Poder Judiciário, mas este, além de vi-ver carente de meios humanos e materiais e de efetiva vitalidade de muitos de seus componentes, está preso a uma legislação arcaica, extremamente formal e meticulosa, com pesada burocracia e que só faz retardar a prestação jurisdicional.

Assim, o sentimento de anomia que se abate sobre todos, fazendo reviver e circular um movimento de desesperança em relação ao Es-tado Democrático de Direito, tem sua razão de ser.

Porém, cabe àqueles que acreditam no poder sadio das institui-ções democráticas apontar sugestões, ainda que possam ser acusa-dos de autoritários ou de apresentar sugestões desrespeitosas aos direitos civis.

Temos, por dever cívico, de provocar, ao menos, o debate.

II – A presunção da inocênciaNo que diz respeito à adoção de medidas coibidoras imediatas aos

agentes que, no exercício de atividades públicas, praticam atos de corrupção, o principal argumento obstativo que surge é a arguição do princípio constitucional da presunção da inocência.

Com efeito, é da tradição de nosso direito o respeito a esse prin-cípio universalmente formulado1.

Diz a nossa Constituição [art. 5º, inciso LVII] que ninguém será con-siderado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condena-tória. Vale dizer, ninguém pode ser considerado culpado enquanto não tiver contra si uma sentença condenatória irrecorrível. Sempre defendi – e continuo defendendo – esse importante fundamento. É básico para a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Mas, convenhamos, o princípio tem por finalidade proteger o in-divíduo em relação a eventual desmando ou arbitrariedade provindos de autoridade pública, investida no poder momentaneamente domi-nante e não o contrário.

1 Todas as constituições brasileiras, com algumas variáveis, inseriram o princípio da presunção da inocência em seus textos. A conferir: Constituição Imperial de 1824; Constituição Federal de 1891; Constituição Federal de 1934; Constituição Federal de 1937; Constituição Federal de 1946; Constituição Federal de 1967; Emenda Constitucional nº1/69 e Constituição Federal de 1988.

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Mitigando a presunção de inocência

Ou seja, tal princípio não se presta a defender a sociedade em re-lação ao indivíduo inescrupuloso. Temos que fazer uma real distinção. Sob o ponto de vista da individualidade e da particularidade de cada cidadão brasileiro ninguém pode acusá-lo de criminoso enquanto não sobrevir uma sentença penal condenatória da qual não caiba mais nenhum recurso. É o que o preceito constitucional assegura.

Porém, quando estamos diante da res publica, latu sensu, o critério da oponibilidade contra todos [presunção absoluta da ino-cência] deve ceder. E deve ceder porque temos que estar com o pensamento voltado para a proteção de outros princípios consti-tucionais, mais relevantes, que dizem respeito ao conjunto da ci-dadania nacional, tais como o da moralidade, da lisura, da exação e da transparência no trato da coisa pública. Tais princípios são republicanos, cidadãos, coletivos e sociais e, portanto, têm prece-dência em relação aos individuais.

O nosso Estado está, todo ele, desenhado constitucionalmente para considerar a preponderância da proteção da coisa pública em relação à proteção individual, quando colididos eventuais in-teresses. E isso tem uma forte razão de ser, pois cabe ao Estado velar pelos fundamentos republicanos, tais como, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político [art. 1º, CF], bem como o livre exercício dos direitos sociais, a liberdade, a se-gurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, conforme está ex-plicitado no Preâmbulo da Constituição.

Penso que, no eventual confronto entre ambas as situações [pre-valência do interesse público ou prevalência do interesse privado] quando não está em jogo o sagrado direito à liberdade que todo cida-dão tem, deve prevalecer a primeira.

A prevalência da proteção pública em face da proteção individual é também regra universal de direito.

III – O impedimento vencível A ideia, portanto, é mitigar a aplicação do princípio da presunção

da inocência. Aplicar nos casos que envolvam a utilização indevi-da de recursos públicos o princípio do impedimento vencível, impe-dindo, de imediato, que pessoas condenadas em segundo grau de

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VII. Direito e Justiça

jurisdição permaneçam exercendo uma função pública ou a ela se habilite, havendo sido condenado na constância do processo. Que fique claro: não estou advogando a quebra do princípio da presunção da inocência.

Porém, há que se impedir, pronta e temporariamente, que aque-les que sejam condenados pela prática de atos de corrupção, em segundo grau de jurisdição, continuem a exercer ou venham a exer-cer funções públicas ou privadas, diretas ou indiretas, de quaisquer natureza.

Justifica-se a limitação ao segundo grau de jurisdição porque é exatamente nessas duas instâncias ordinárias que se supera a con-trovérsia da existência ou não do fato considerado improbo ou ilícito. As instâncias especiais ou extraordinárias, via de regra, não anali-sam as questões fáticas.

No caso, não se violaria o princípio do duplo grau de jurisdição, da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório vez que estariam esgotadas as instâncias ordinárias. Em regra, as ações refe-ridas são propostas em juízo de primeiro grau, cabendo recurso das sentenças para os tribunais de justiça ou federais regionais. Por ou-tra, aos tribunais superiores [instâncias especiais ou extraordinária] é vedado analisar matérias meritórias. Nos casos em que o agente possui foro privilegiado, o marco também seria o esgotamento da instância ordinária.

Como não possuímos lei que regule a situação, o que se sugere é que o Supremo Tribunal Federal edite uma Súmula Vinculante mitigando a extensão e aplicabilidade do princípio da presunção da inocência, adicionando a ideia do princípio do impedimento vencível, de tal modo que a sociedade possa impedir, de imediato, o exercício do cargo público ou de cargo em entidade que receba verbas do poder público ao cidadão que venha a ser condenado.

O condenado pode até ser candidato, mas se eleito, não toma pos-se. Só tomará posse quando absolvido ou findo o processo. Se estiver no exercício do cargo e for condenado, deverá imediatamente dele se afastar. Só retornará com a absolvição ou finalização do processo.

Aplicado o impedimento vencível, teremos outro salutar efeito: os condenados procurarão resolver as pendências jurídicas o mais rápido possível e, não, proceder como hoje procedem: apostar que o tempo é o senhor da razão.

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IV – PropostaA proposta poderia ficar assim sintetizada: publicado o acórdão,

o condenado por ato lesivo ao patrimônio público, em segundo grau de jurisdição, em processo criminal, ação civil pública, ação popular ou em ação de improbidade fica impedido de exercer mandato, cargo ou função de qualquer origem ou natureza, civil ou militar, cuja in-vestidura decorra de eleição, concurso, nomeação ou indicação, em qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, na administração direta ou indireta, nas autarquias profissionais, entidades sindicais, partidos políticos, organizações sociais, serviços sociais ou organizações internacionais das quais a República Federativa do Brasil seja membro.

Como se pode notar a proposta é de larga abrangência. Alcança todas as entidades, públicas ou privadas que recebam recursos fi-nanceiros do poder público. Foi assim pensada e estruturada para não excluir nenhum dirigente dessas entidades, que manipulem ver-bas advindas dos cofres públicos, sejam federais, estaduais, distri-tais ou municipais.

A edição de uma súmula nesse sentido permitiria uma pronta coibição, pois bastaria uma reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal para se obter uma decisão imediata não permitindo o acesso ou a continuidade da gestão do condenado por corrupção.

Possuir uma ferramenta dessa natureza, criteriosamente analisa-da pelo mais importante tribunal do país, seria um bom recomeço no combate à endêmica corrupção que estamos vivenciando e um alento para os que acreditam na seriedade do exercício da função pública.

Eis um bom debate cidadão.

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Os princípios e a liberdade subjetiva do juiz

Oscar d´Alva e Souza Filho

O conceito de hermenêutica remonta a Hermes Termegisto, do antigo Egito, (séc.V antes da era cristã) com quem Pitágoras e depois Platão teriam conversado acerca da imortalidade

da alma e dos fenômenos ou acontecimentos sobrenaturais, segundo nos informa Diógenes Laércio, em sua Vida dos Filósofos Ilustres. Até então, em razão da especialidade de Hermes nas “ciências ocultas” ou “sagradas”, hermenêutica significava tão somente a interpretação que o grande sábio e mago egípcio fazia das coisas do além túmulo.

Em razão dessa origem a “operação de Hermes” ou “hermenêuti-ca” por muito tempo significou a interpretação dos textos bíblicos e religiosos, e foi desenvolvida por místicos de todos os matizes.

Convém observar que, por um período bem longo, na Mesopo-tâmia e na Grécia, a ideia de uma justiça divina ou sobrenatural serviu de base ou fundamento aos decretos, regulamentos ou leis das cidades antigas. A ideia divulgada para o povo ensinava que a lei civil ou nomos traz em si uma verdade religiosa e divina, daí porque a única atitude que o povo haveria de assumir diante da legislação seria uma conduta de total obediência. Os povos mesopotâmicos ali-mentavam a crença segundo a qual a ordem dos acontecimentos do mundo físico e social era providenciada pelo deus Anu, responsável, pois, por tudo que ocorria no mundo terreno e celestial. Caso alguém ousasse desrespeitar os comandos de Anu, teria de haver-se com Enlil, o deus da tempestade, dos raios e dos trovões, responsável pela administração do castigo aos que se atrevessem a se opor às determinações de Anu. Como vemos, à ideia de obediência estava ligado o conceito de penalidade a quem não anuísse com a vontade do deus supremo.

A ideologia religiosa, por muitos séculos, serviu de fundamento justificador das leis editadas por reis, tiranos, chefes militares e go-vernantes em geral, que circunstancialmente dominavam o aparelho administrativo e político do Estado. Daí porque os filósofos sofistas

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

(os primeiros críticos do Estado e do Direito Positivo) afirmaram, no século V antes da era cristã, que a lei nada mais seria que uma con-venção dos poderosos. Trasímaco o mais crítico, chegou a discutir com Sócrates (que acreditava na origem divina das leis), chamando-o de ingênuo por desconhecer que a lei é a vontade dos mais fortes, em Atenas e em todas as polis existentes no mundo, conforme registro da República, de Platão.

Outras interpretações da leiAlém da interpretação religiosa das leis das cidades e de seus go-

vernantes, imprimindo a estas um caráter de respeitabilidade e de sa-cralidade que muito ajudava a sua aceitação, outras interpretações advieram, umas identificando o nomos (lei civil) com o physis (lei da natureza), no propósito de demonstrar o caráter imutável dos decretos dos governantes, bem como a sua justiça natural ou cósmica.

A partir desse modo de compreender as leis promulgadas pe-los governantes, interpretações diversas surgiram procurando de-monstrar a existência de uma justiça na organização das coisas do cosmo, uma necessidade contra a qual nada poderíamos fazer, a não ser a aceitação dessa mesma ordem. A crença de que os melhores e mais fortes devem triunfar nos céus, nas selvas, nos rios e oceanos, e também na vida social, foi lecionada por Cálicles, Tucídides e depois pelo grande Aristóteles, quando afirmou que as desigualdades sociais provieram da própria natureza. Disse ele na sua Política: “Foi a natureza quem fez animais grandes e ferozes e animais fracos e inofensivos, peixes grandes e peixes pequenos, abutres, águias, condores que se alimentam de aves pequenas como rouxinóis e andorinhas. É lei da natureza que o mais forte domine o mais fraco.”

Interpretando o mundo político, Aristóteles diria ser natural que alguns homens dominem a outros homens, pois alguns nas-ceram destinados, por sua natureza, ao comando (são homens melhores, aristós) e outros que não têm a mesma qualidade, são pessoas inferiores, (idiothés) destinadas a cumprir as ordens de seus senhores.

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VII. Direito e Justiça

Vozes discordantes da versão oficialConstata-se ao longo da histórica civil, antiga, medieval, moderna

e contemporânea, que o Direito Positivo, que tem por fonte formal o Estado e seus governantes, sempre foi explicado, interpretado e justificado, de modo que os súditos, cidadãos ou os homens em ge-ral, tivessem diante dele uma postura passiva de aceitação natural e de obediência absoluta.

Mas, devemos salientar que essa “orientação” embora dominante, pois imposta pelos grupos que efetivamente controlam o governo e o Estado, quase sempre receberam contestação por parte da comu-nidade dominada, que aqui acolá, consegue traduzir em linguagem filosófica, política, poética ou jurídica uma aspiração discordante da versão oficial produzida pelos grupos dirigentes.

A presença discordante e relutante da população dominada e escra-vizada é salientada e prevista pelo poeta Teogonis de Mégara, quando alerta à aristocracia dominante para ter cuidados especiais com a gran-de massa de idiothés, diz ele:

Ponha teu duro pé sobre o peito do ignaro vulgo./Dá-lhe com a espora de bronze, faze-o encurvar-se/ante o opressor!/ Não há sob o sol que tudo vê, nem há neste vasto mundo,/Um povo sequer que voluntariamente aguente as fortes/ rédeas dos senhores. (SVETLOV, V. in SHCHEGLOV, A.V. Historia de la Filosofia, p. 12, tradução de Mariza Aderaldo).

O jovem sofista Alquidam ou Alcidamante chegou a proclamar que “a natureza fez a todos os homens iguais em valor e em dignida-de... foi a lei da cidade (o nomos) que transformou a uns em senhores e a outros em escravos...”

Seguindo a essa concepção valorativa da lei civil, tida como odio-sa e injusta, Alquidam e depois Licófron e Antifonte proclamaram a igualdade natural de todos os homens, pregaram contra a escravidão, e ainda defenderam a igualdade de homens e mulheres. Lecionaram afinal que a lei civil deveria ser baseada na lei natural presente na consciência de cada homem (ethos) e se o nomos não se adequasse às recomendações da consciência do homem, este não seria obrigado a respeitá-lo. A disciplina da consciência individual tem primazia qualitativa sobre a disciplina legal.

Vemos assim, diante de um só fenômeno: a lei positiva criada pela Polis ser interpretada de três formas diferenciadas: uma herme-nêutica religiosa, uma naturalista ou fisicista e uma outra eticista, pois baseada na consciência ética do homem.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

A versão do governante como hermenêutica literalA vontade política que triunfou no curso das lutas sociais tem

invariavelmente o privilégio de ditar aos súditos ou aos vencidos, as leis que prevalecerão no dia a dia da vida social. Por isso se diz que a lei é a vontade vencedora, ou a vontade dos mais fortes, dos governantes enfim. O governante comunica aos cidadãos, na Grécia e em Roma, por exemplo, a sua vontade ou o seu poder administra-tivo e político através de normas legais, obrigatórias, impostas e de força coercitiva.

O Direito positivado nas leis civis (da cidade), sejam leis que or-ganizem a vida dos cidadãos, sejam normas penais, comerciais ou eleitorais geralmente se traduz por normatizações codificadas pro-mulgadas pelo governante/legislador.

Muitas vezes (nas monarquias), o governante exerce todas as di-mensões do poder político, de modo pessoal e centralizado. É admi-nistrador, legislador e julgador. Seu poder pessoal confunde-se com o Estado e tem caráter vitalício. Nesses casos, a vontade do rei é a lei que obriga a todos, menos a si mesmo. Ele pode mudar de vontade e revogar a lei que criara anteriormente.

Em estágios evolutivos posteriores, o soberano ou imperador de-lega poderes judicantes a alguns funcionários de sua confiança, mas detém o poder de recurso ou o poder de graça ou de perdão. Essa delegação de poderes permite ao legislativo adquirir uma relativa au-tonomia, como o Senado romano, por exemplo. Mas o conjunto das leis criadas pelo Legislativo tem que ser previamente aprovado pela autoridade imperial. Caso seja aprovada, a questão do direito esta-rá resolvida. A vontade do rei está na lei escrita (positiva) e caberá aos juízes do império simplesmente aplicar as ordenações reais. Se a lei é a vontade do rei não deve ser discutida e investigada, pois está expressa claramente na codificação. Cumpre aos juízes traduzir em suas decisões a vontade legal ou real expressa na normatização, nada mais. Justiniano, ao promulgar suas Institutas, deixou claro, logo no art. 2º, que: aquele que ousar interpretar qualquer norma des-tas Institutas, será processado por crime de falsum.

Ficou bem evidenciado o papel judicante de mero aplicador da lei. O legislador cria a lei e o juiz a aplica, sem discutir seu conte-údo, sua essência justa ou injusta. A grande característica dos go-vernos autoritários (que justificam sua autoridade através da força militar, econômica e política que manipulam) é o culto à legalidade que produziram. Quanto mais a lei positiva se afirmar sem discus-são, melhor para o governante autoritário. Por isso mesmo, a única

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VII. Direito e Justiça

hermenêutica que tais governos admitem da parte do Judiciário é a hermenêutica legal ou literal.

O grande exemplo do autoritarismo legalista se efetivou com a chamada Escola Francesa da Exegese, defendida freneticamente, no período pós-revolucionário do Código Napoleônico (POITHIER, 1804) por notáveis, que o Direito está feito, está no Código e que não cumpre a ninguém trazer dúvidas e incertezas ao Direito Positivo, através de interpretações.

Essa atitude era compreensível pelo fato das leis serem feitas pelo Parlamento burguês e os juízes de então (séc. XIX) serem ligados a uma formação intelectual iluminista e aristocrática. Eram homens cultos e enxergavam as falhas legislativas da lei criada pelo parla-mentar burguês (homem de poucas letras como ainda hoje) e quando dos julgamentos, preenchiam as lacunas e interpretavam a vontade do legislador, às vezes dando-lhe um conteúdo diferente ideologica-mente. Por isso, Montesquieu defendia que o juiz deve ser simples-mente a boca da lei. Somente depois, o Judiciário ganhou a confian-ça da burguesia que o transformou em Poder do Estado, e passou a se preocupar inclusive com o resultado financeiro que as demandas causariam ao erário.

O momento da hermenêutica principiológicaA evolução das questões compreensivas do ser do Direito permi-

tiu a que chegássemos ao estágio atual, quando o operador do Direi-to superou a postura legalista e positivista dos Estados autoritários e a subserviência servil do Judiciário de então, e, buscando uma identificação ontológica com o Estado democrático de Direito, vem desenvolvendo uma hermenêutica nova, hoje denominada de herme-nêutica principiológica.

Paulo Bonavides, um dos propugnadores dessa nova hermenêu-tica, assinala que vivenciamos uma nova época, a da superação do direito-regra para atingirmos o direito-princípio. Em nossa A Ideologia do Direito Natural (Ed. ABC, 2a.ed. p. 346/347) recolhemos do consti-tucionalista que:

A Filosofia do Direito e o Direito Natural atualmente convergem no sentido da renovação da concepção do Direito, e transcendem o po-sitivismo jurídico clássico (vinculado à sociedade liberal) e, segundo lhes parece, a presença mais relevante do Direito Natural, exercitando influxos sobre os conceitos jurídicos.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

Com o novo Direito que se formou à sombra da organização do Estado Social e da positivação dos direitos humanos, nas três esferas, dimen-sões ou gerações de direitos fundamentais, é perfeitamente perceptível a presença e a ação de princípios e valores inspirados no Direito Na-tural e que explicam o quadro de renovação hermenêutica no campo do Direito.

Em seguida, o notável professor arremata de modo conclusivo o seu pensamento:

Hoje, o Direito Natural, por seus valores e princípios, impregna a nova positividade do Direito que transparece no jus-constitucionalismo contemporâneo, que caminha do esforço da normatividade em bases hermenêuticas, que não são os da subsunção e do dedutivismo, mas da hermenêutica que pondera valores e se exercita na discussão prin-cipiológica, que é a dimensão da legitimidade, agora, preponderante sobre a legalidade em termos axiológicos hierárquicos. Daí surgiu a nova metodologia interpretativa dos conteúdos constitucionais, com base no emprego do princípio da proporcionalidade.

Pode ser constatada, com facilidade, ante a afirmação cabal e predominante nos dias presentes, da Hermenêutica Principiológica e da preocupação do operador do Direito com a justiça material e o Estado democrático de Direito, a superação do velho positivismo exegético da denominada Escola da Aplicação. Hoje, o direito positivo ou direito posto, de origem estatal-legislativa, não mais é apresenta-do como o direito feito, definitivo, ao qual o operador e os cidadãos devem se curvar e obedecer.

Diante do caso concreto de um julgamento e ao cotejar uma lei determinada, o juiz pode e deve, de início, indagar sobre a origem da casa legislativa que engendrou o diploma legal, (Câmara Municipal, Assembleia legislativa estadual ou Câmara Federal), sobre a data do ato legislativo, sobre seu conteúdo social e a propósito da realização ou não dos ideais humanistas do Estado Democrático de Direito. A partir daí, pode posicionar-se como ser humano e como cidadão interessado na felicidade da comunidade jurisdicionada, e finalmente interpretar a norma legal, diante do caso concreto em julgamento, adicionando-lhe conteúdos éticos e ideológicos. Pode até mesmo recusar o cumprimen-to ou a aplicação da lei por inconstitucionalidade ideológica, quando reconhecer nela um caráter espúrio e antissocial.

Vivenciamos um momento especial da existência do Poder Judi-ciário, o instante da judicialização do direito legislado, o que significa uma recriação do direito pela atividade do julgador.

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VII. Direito e Justiça

Críticas à liberdade de julgar do juiz contemporâneoA atitude judicante proporcionada pela adoção da hermenêutica

principiológica do Estado democrático de Direito, sem dúvida tem colocado o juiz de direito no maior espaço de liberdade que já conhe-ceu em sua história judiciária.

Por isso, os inimigos dessa hermenêutica fazem coro na conside-ração crítica de que tal atitude poderia incentivar uma postura sub-jetivista e autoritária, a ponto de comprometer a segurança jurídica, que é um dos pilares do Estado de Direito. Ora, se o juiz, limitado pela Escola da Exegese (formalista e positivista) muitas vezes come-te erros absurdos, muito mais poderia errar, tendo por parâmetros critérios éticos e ideológicos advindos de sua formação subjetiva. Aí reside a crítica principal contra a Escola Principiológica e à Escola do Direito Alternativo, que postula por atitudes judiciais semelhantes.

A defesa dessas duas escolas reside na afirmação da necessi-dade da reforma do Estado e do Poder Judiciário, ambos ainda em desconformidade com o modelo constitucional de 1988. À medida que o Judiciário assumisse a sua condição de membro de um poder representativo da República e não se constrangesse com a neces-sidade de prestar contas de seu mistér judicante à sociedade civil jurisdicionada, ganharia com tal exercício mais poder, mais autori-dade e mais legitimidade.

A ideia é a de que juízes, promotores de justiça, defensores pú-blicos, advogados e delegados de polícias trabalhem em conjunto sob a fiscalização e avaliação, também, de entidades sociais e comuni-tárias, pois na verdade seus trabalhos têm a sociedade civil como principal destinatária. As autoridades judiciárias em geral haveriam de desempenhar seus papéis sociais junto à própria comunidade a quem se destinam seus trabalhos. Ninguém melhor que os jurisdi-cionados para avaliar o desempenho da justiça do Estado. As co-munidades, através de suas emissoras de rádios, de sua imprensa comunitária, suas lideranças e associações poderiam sim, ajudar em muito ao funcionamento da máquina burocrática judiciária e promo-ver com toda legitimidade a cobrança contra a incrível morosidade dos julgamentos. Por que não? Democracia não faz mal a ninguém.

ReferênciasARISTóTELES. La Política. Traducción directa del griego por Antonio Tovar, bajo la dirección de Rodolfo Mondolfo. Ed. Bilíngue. Argentina: Editora Universitária Buenos Aires – Eudeba, 1966.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

ADRADOS, Francisco Rodríguez. Ilustración y Política en la Grécia Clásica. Madrid. Revista de Occidente. Biblioteca de Política y Socio-logía, v. 03, 1966.

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Ed.Saraiva,1967.

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SOUZA FILHO, Oscar d´Alva – A Ideologia do Direito Natural – editora ABC – 2. ed. – Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo –2008

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______. Tetralogia do Direito Natural. Apresentação do Ministro César Asfor Rocha, do STJ. Editora ABC – Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo, 2008.

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TORRES, Mas Salvador. Ethos y Polis (Una Historia de la filosofía práctica en la Grecia clásica). Madrid: Ediciones Istmo. S. A., 2003.

VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força (estudo da coação jurídica). São Paulo: Ed. Dialética, 2003.

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A importância do Judiciário para a democracia

Leandro do Nascimento Rodrigues

O Poder Judiciário, como órgão de um Estado democrático está estruturado em função da soberania popular e tem por objetivo último o respeito integral dos direitos fundamentais

da pessoa humana. Vale ressaltar que:

[...] diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apre-senta uma notável particularidade. Embora seja ele, por definição, a principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, na ge-neralidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular (COMPARATO, 2004, p. 151).

O que compatibiliza o Poder Judiciário com a ideia democrática (sob a ótica de Montesquieu) é o prestígio público, fundado no amplo respei-to moral, é a legitimidade pela confiança e respeito que os juízes inspi-ram no povo. Isso é capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral.

Comparato (2004, p. 151-152) coloca, ao analisar a independên-cia do Judiciário, que:

[...] o Poder Judiciário em seu conjunto é independente quando não está submetido aos demais poderes do Estado. [...] Ao contrário da for-ma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros. A Independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático.

A Independência do Judiciário é, por conseguinte, um conceito que envolve vínculos, ou a ausência destes, entre o Judiciário e ou-tros componentes do sistema político.

A Independência do Judiciário também pode ser vista como uma característica fundamental da democracia liberal. Para os países que estão em transição do autoritarismo ou outros modelos democráticos menos avançados para a democracia liberal, um dos pontos mais importantes acerca da independência judicial é como manter e res-guardar seus requisitos mínimos.

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A importância do Judiciário para a democracia

Assim,

[...] se a transformação de regimes autoritários em direção à democra-cia liberal levanta a questão das condições mínimas de independência do Judiciário necessárias para que um regime seja considerado ver-dadeiramente liberal, o crescimento do poder judicial em democracias liberais consolidadas e com muito tempo de existência, bem como a designação das principais responsabilidades do Judiciário em demo-cracias liberais emergentes ou novas, levanta uma questão oposta de quão independente um Judiciário forte pode ser independente sem debilitar a democracia. Aqui, o princípio liberal da independência do Judiciário vai de encontro ao princípio democrático de Accountability (RUSSELL, 2001, p. 2, tradução nossa).

Russell (2001) propõe uma teoria geral da independência do Ju-diciário. O primeiro requisito para tanto é ter clareza analítica e con-ceitual sobre o fenômeno que está sendo denominado independência do Judiciário. Desta forma, é preciso indagar se a independência do judiciário refere-se apenas às relações entre instituições judiciais e juízes individuais, ou não se deve ter nenhum tipo de relação com outras instituições, grupos ou indivíduos.

Um segundo requisito é se buscar ideias coerentes do propósito ou base lógica na Independência do Judiciário. Importante frisar que esta não é um fim em si mesma. Independência do Judiciário existe para cumprir um importante papel, contribuir para se alcançar rela-ções estatais mais desejáveis. Outro requisito importante para se al-cançar uma teoria geral da Independência do Judiciário é identificar os principais componentes e elementos desta.

A Independência do Judiciário apresenta alguns significados. Tal expressão tem sido usada na literatura da ciência política para se referir a dois conceitos. Um destes é a autonomia dos juízes, tanto coletiva quanto individualmente em relação a outras instituições e indivíduos. “Usado neste sentido, é um termo relacional que se refere a características cruciais da relação que os membros do Judiciário devem ter um com o outro e que o Judiciário como um todo deveria ter com outras partes do sistema político” (RUSSELL, 2001, p. 6, tradução nossa).

A Independência do Judiciário também é utilizada para se referir ao comportamento judicial considerado indicativo dos juízes usufru-írem de um alto grau de autonomia.

Essas duas interpretações da Independência do Judiciário são bem próximas. Uma serve como base para a outra.

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VII. Direito e Justiça

Buscamos juízes que usufruam de um alto grau de autonomia para que possamos pensar e agir de forma independente ao invés de ser controlado por outros em seu processo de tomada de decisão. [...] A capacidade de um juiz de ter discernimento e capacidade de julgar próprios, a segunda interpretação, não gera resultados automáticos por usufruir de um alto grau de autonomia, a primeira interpretação (RUSSELL, 2001, p. 6, tradução nossa).

Existem vários pontos críticos na Independência do Judiciário. Talvez o mais relevante para a proposta deste estudo seja o que diz respeito à administração dos tribunais. Esta é claramente uma área em que os princípios de accountability democrática e independência do Judiciário devem ser cuidadosamente balanceados.

Juízes e tribunais fornecem um serviço público. Numa democracia, deve existir accountability na forma e eficiência como esse serviço é fornecido e como os fundos públicos investidos nele são gastos. Legis-ladores e membros do Executivo, liderados por políticos eleitos, devem assumir alguma responsabilidade pela administração dos tribunais. Inversamente, se tal responsabilidade é levada a um ponto em que autoridades políticas também controlam aspectos vitais da adjudica-ção, a Independência do Judiciário pode ser duramente enfraquecida (RUSSELL, 2001, p. 19-20, tradução nossa).

A Independência do Judiciário é algo fundamental para que os tribunais possam cumprir sua função de controle constitucional, ac-countability legal e administração da justiça. Autonomia dos tribu-nais e Independência do Judiciário são necessários para se alcançar a imparcialidade nos julgamentos e para garantir o avanço do Estado de Direito e de accountability legal mais efetiva. Autonomia política em relação a outros poderes é essencial, principalmente na questão de accountability horizontal.

Entretanto,

da mesma forma que o Judiciário de maneira ideal como fiscal dos outros poderes do governo, é desejável também que os juízes sejam sujeitados a algum grau de controle político para garantir um nível de accountability democrática dentro do Poder Judiciário. Isso é ainda mais importante quando as decisões judiciais têm um impacto políti-co, uma vez que através de suas decisões os juízes também participam do processo de criação das leis e função social de controle do Estado. Desse modo, o objetivo do princípio da separação dos poderes é al-cançar um grau ideal, e não máximo, de independência institucional (DOMINGO, 1999, p. 154, tradução nossa).

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A importância do Judiciário para a democracia

O Estado de Direito1 é outro tema central no debate acerca do Ju-diciário. As principais questões relevantes para o Estado de Direito estão na preocupação com os mecanismos de accountability, limite efetivo para o governo e proteção dos direitos. Em termos sociais, o Estado de Direito traz à tona a necessidade de penetração social e fixação dos direitos e obrigações dos cidadãos que saíram de um regi-me autoritário e agora vivem sob a égide de um regime democrático.

Accountability é um dos aspectos do Estado de Direito em que agentes públicos prestam contas por seus atos dentro de um modelo legal e constitucional pré estabelecido que delimita poderes e limites de agentes estatais e órgãos do governo. É neste contexto que o papel do Judiciário ganha relevância nos empreendimentos contemporâne-os para se alcançar legitimidade do regime e formas significativas de práticas democráticas.

O Judiciário é a instituição-chave nas incumbências de accounta-bility legal e controle constitucional. A questão de accountability le-gal deveria ser dirigida não apenas em termos de quão efetivamente o Judiciário cumpre suas funções de manter agentes públicos sob prestação de contas; devemos também direcionar accountability in-terna para os tribunais. Como estes deverão ser monitorados e con-trolados? (DOMINGO, 1999, p. 151-152, tradução nossa).

A tradição democrática liberal requer o vínculo entre Estado de Direito e política democrática. Para tanto, discutiremos a seguir um pouco mais sobre o Estado de Direito e Independência do Judiciário, bem como o papel do Judiciário na democracia.

O Estado de Direito refere-se:

[...] às regras estabelecidas de uma natureza impessoal e geral que ordena a relação entre Estado e sociedade, entre indivíduos na socie-dade e no interior do próprio Estado. Claramente, o Estado de Direito é um termo contestado e que desafia uma definição precisa. Para nos-sos objetivos, Estado de Direito é tomado como o governo pela lei, com a lealdade a uma ordem legal previsível e que funcione. O Estado de Direito fica latente quando o governo é refreado ou reprimido pela lei, através de limites efetivos da prestação de contas do poder político e agentes públicos, ordenado num formato constitucional (DOMINGO, 1999, p. 152, tradução nossa).

Podemos dizer ainda que o Estado de Direito refere-se aos me-canismos de controle nos quais o Estado e os detentores do poder sofrem limitações e podem ter que prestar contas de acordo com

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VII. Direito e Justiça

critérios normativos estabelecidos (geralmente corporificado numa Constituição escrita) com o objetivo de consolidar um governo limi-tado e responsivo. Existe ainda um outro significado para o Estado de Direito: também se refere a uma proteção significativa a certos direitos.

O Judiciário cumpre duas funções em qualquer democracia: uma função política, relacionada ao sistema republicado de freios e con-trapesos2, e uma função legal, baseada em se aplicar a lei e dissolver conflitos. A efetividade do Estado de Direito baseia-se na existência de um Judiciário tratando a lei de forma consistente e imparcial.

Consequentemente, a credibilidade do judiciário e a confiabilida-de de suas decisões derivam de sua independência do poder político e particularmente do Executivo. Além disso, um Judiciário impar-cial, atuando como um agente de limitação das autoridades políticas garante a separação e balanço dos poderes. Dessa forma, trata-se de uma instituição central de accountability horizontal, complementan-do os mecanismos de accountability vertical, garantidos por eleições regulares, justas e livres.

Deste modo:

[...] o papel dos tribunais é central para a consolidação democrática, uma vez que é o Judiciário que escora o estabelecimento do Estado de Direito e a accountability legal para normas constitucionais. O Judi-ciário que realiza as seguintes funções: resguarda a lei e os princípios constitucionais; provém o espaço para a resolução de disputas entre indivíduos na sociedade e entre indivíduos e a sociedade, e finalmente, é parte do sistema para administrar a justiça penal (DOMINGO, 1999, p. 153, tradução nossa).

A participação do Judiciário na política demonstra-se relevante para a questão de legitimação e consolidação. Sem mecanismos mi-nimamente efetivos do Estado de Direito, duas questões importantes do governo constitucional não estarão completas: primeiro, controlar o Estado contra o abuso de poder e submeter o governo aos controles de transparência, accountability e constitucionalidade; e segundo, prover as condições necessárias para a mínima proteção dos direitos através de mecanismos judiciais imparciais, previsíveis e acessíveis.

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A importância do Judiciário para a democracia

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DOMINGO, Pilar. Judicial Independence and Judicial Reform in La-tin America. In The Self Restraining State: power and Accountability in new democracies. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1999.

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MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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RUSSELL. Peter H. Toward a General Theory of Judicial Independen-ce. In Judicial Independence in the Age of Democracy. Critical Perspec-tives from Around the World. University Press of Virginia. Charlottes-ville, 2001.

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VIII. Ensaio

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Autora

Patrícia RangelDoutoranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFE-MEA), é responsável pelas áreas de Trabalho & Previdência e Poder & Política. Sua linha de pesquisa na pós-graduação é Gênero e Democracia.

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Que poder feminino?Uma reflexão sobre a representação de

mulheres no Legislativo

Patrícia Rangel

E m 2007, a eleição da primeira parlamentar completou 100 anos. Não é surpreendente que tenha sido obra da Finlândia, país de excepcional histórico de acolhimento da mulher na

vida política. Infelizmente, na maior parte dos países, as mulheres tiveram de esperar muito para serem eleitas e a representação femi-nina não tem progredido satisfatoriamente.

Muitos elementos influenciam a performance de candidatas que concorrem a uma cadeira em assembleias legislativas. Contudo, cada vez mais se destacam a relação entre representação de mulheres e ti-pos de sistemas eleitorais e as novas interpretações sobre os vínculos entre as duas dimensões. Mas será que o sistema eleitoral é, por si só, uma variável suficiente para determinar o sucesso ou o fracasso das eleições de mulheres para cargos legislativos? Em que medida fatores culturais, socioeconômicos e outros fatores políticos também influenciam a presença feminina nos parlamentos?

O intuito do trabalho é analisar o impacto dos sistemas eleitorais na eleição de mulheres e apontar outros fatores que possam influen-ciar o que chamaremos de feminização das assembleias legislativas, explorando o modelo analítico proposto por Manon Tremblay em sua obra Women and Legislative Representation (2007). A contribuição do artigo se encontra em promover o debate sobre representação, gênero e política. Como afirma Cynthia Enloe (2000), introduzir e

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VIII. Ensaio

aprofundar a questão do gênero nos leva a explorar diferenças po-líticas enraizadas nas diferenças naturais. A institucionalização de disciplinas e trabalhos focados em gênero, a conformação de grupos de pesquisa, a revisão de conceitos e o aprendizado de teorias femi-nistas fazem parte do esforço de lançar holofotes à existência e ação social das mulheres, empoderando esses atores políticos.

I – Mulheres e política institucionalDefinindo poder político como a capacidade de tomar decisões e

fazer valer escolhas no mundo público, é patente que as mulheres ainda não alcançaram uma posição de poder na sociedade. Tal fato não justifica, entretanto, nem respalda mitos como apatia política ou desinteresse pelas coisas públicas por parte das mulheres. Como bem explica Lúcia Avelar (2001), tende-se a considerar participação somente formas de ação ligadas ao mundo masculino, de classe mé-dia alta, da população branca. Por isso, diversos tipos de envolvi-mento das mulheres na política não são reconhecidos1.

Argumenta Avelar (2001) que as dificuldades encontradas pelas mulheres em função de sua condição não são decorrentes de qual-quer situação individual ou deficiências particulares: as razões para a baixa representação feminina são de natureza estrutural. A autora ressalta que, apesar de toda a militância feminista pela igualdade na organização política, os ganhos ainda são poucos, uma vez que a conquista da igualdade formal não é a mesma da igualdade real, e que a ampliação dos direitos de cidadania é um processo lento.

Cada vez mais a representação feminina tem sido considerada fator relevante para se analisar uma democracia, e é hoje amplamen-te aceita como critério para mensurar a cidadania e a igualdade de oportunidades. Por conta disso, governos e organizações internacio-nais têm se dedicado a propor e implementar soluções para o pro-blema. Em 1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas estabeleceu um mínimo de 30% como meta mundial de par-ticipação feminina em casas legislativas. Entretanto, dados da União Interparlamentar da ONU (IPU, da sigla em inglês) apontam que, 13 anos depois, essa meta foi alcançada em somente 20 Câmaras de Deputados no mundo.

1 A participação partidária e eleitoral vai desde o ato de votar até apoiar candidatos, passando por estar no debate político, contribuir financeiramente com os partidos, candidatar-se a cargos eleitorais e ocupar cargos públicos etc.

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Que poder feminino?

Trabalhos sistemáticos de monitoramento como o realizado pela IPU (nível de representação alcançado nos parlamentos nacionais) e pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance – Idea (adoção de cotas nas casas legislativas) têm contribuído forte-mente para apontar onde há avanços na área. Segundo a IPU, em feve-reiro de 2009, havia 18,4% de mulheres legisladoras no mundo, sendo 18,5% das Câmaras Baixas e 17,6% das Câmaras Altas (IPU, 2009).

II – Fatores que influenciam a representação política de mulheres

1) Representação feminina e sistemas eleitorais

Diversos autores apontam que um dos fatores que ajudam a com-preender resultados distintos em países semelhantes é o tipo de sis-tema eleitoral. Suas características, apesar de não serem decisivas, influenciam as chances de elegilibidade das candidatas. Do ponto de vista da representação formal, podemos considerar os sistemas elei-torais como o principal mecanismo da escolha dos representantes. É importante ressaltar que a opção por um sistema eleitoral não é neutra, pois reflete a concepção de representação política de um país e determina a forma através da qual a vontade do povo será traduzi-da no Legislativo.

Podemos considerar três grandes famílias de sistemas eleitorais: sistemas majoritários; sistemas de representação proporcional (RP); e sistemas mistos. Cada um deles está baseado em uma concepção de representação política que representa a configuração da assem-bleia legislativa no momento. Um estudo realizado com base no ín-dice da Freedom House em 2005 indicou que a proporção de mulhe-res em câmaras baixas ou câmara única de 88 países democráticos se distribuía da seguinte forma: 10,8% em sistemas majoritários, 17,7% em sistemas mistos e 21,1% em sistemas de representação proporcional. Ou seja, assembleias legislativas formadas com base em um sistema proporcional acolhem quase o dobro de mulheres que o sistema majoritário acolhe.

Sistemas majoritários são desvantajosos para a eleição de mulheres na medida em que cada partido político designa apenas um candidato por distrito eleitoral, ao contrário do sistema de RP, no qual cada candidato indica diversos nomes em cada distrito. O sistema de re-presentação proporcional se fundamenta na noção de “microcosmo” contida na definição de representação simbólica. Ele busca reprodu-

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VIII. Ensaio

zir a configuração da sociedade convertendo votos de cada partido em assentos no parlamento, estimulando os partidos políticos a pro-duzir uma lista balanceada que tenha apelo em todos os setores da comunidade. Consequência direta disso é o favorecimento da eleição de mulheres.

Apesar de a representação proporcional ser geralmente atrela-da ao sucesso feminino em eleições, nem sempre esse sistema se mostra amigável às mulheres. A análise dos estudos da IPU (2007) sobre a participação feminina nos permite perceber que, apesar de a maioria dos Estados que possuem mais de 25% de mulheres parlamentares adotarem a RP, muitos dos países que estão nas piores colocações também o fazem. Não devemos, portanto igno-rar a influência dos sistemas eleitorais sobre as chances de eleição das mulheres, mas devemos ter em mente que eles interagem com um amplo arranjo de outros fatores, criando uma dinâmica que in-fluencia a proporção de mulheres parlamentares. Outras variáveis relevantes podem ser agrupadas em três categorias: culturais, so-cioeconômicos e políticas.

2) Fatores culturais

Por cultura entendemos os padrões, valores, crenças e atitudes que permeiam uma sociedade e suas instituições, contribuindo para definir como um povo fala, interage, delibera, enfim, qual é seu estilo de vida. A maior parte das comunidades está enraizada em valores patriarcalistas, sobretudo as sociedades periféricas do capitalismo tardio, nas quais há forte legitimação de papéis bastante distintos para homens e mulheres. Esse fato implica numa forte resistência das instituições partidárias e do eleitorado à participação político-institucional de mulheres, associadas à esfera privada, às tarefas domésticas e ao cuidado.

São sociedades transpassadas pela divisão sexual do trabalho, que perpetua valores machistas no estabelecimento e desenvolvi-mento de papéis sociais. Para Nancy Fraser, a capacidade destrutiva dos valores androcêntricos estaria em seu exercício cotidiano e nos processos de socialização mais básicos de um sistema de crenças que situa as mulheres em posições de inferioridade. Na maioria dos casos, a primeira barreira à participação política feminina já aparece em casa.

Daí a necessidades de se estabelecer normas que condicionem práticas sociais mais igualitárias, de modo a alterar a cultura políti-

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Que poder feminino?

ca e a mentalidade da população. Os próprios partidos apresentam resistência à incorporação das mulheres na arena política, dada a vi-são geral conservadora sobre o papel social da mulher. Aliando-se os valores patriarcais às variáveis que determinam uma baixa demanda por candidatos, resulta-se em uma realidade na qual os partidos não tomam como prioridade a presença feminina em cargos políticos. Faz-se necessário então desconstruir padrões institucionalizados de valores culturais que privilegiam as masculinidades e desconside-ram o que está no escopo do feminino, impedindo o estabelecimento de uma verdadeira justiça, principalmente no âmbito material.

3) Fatores políticos

Quando falamos em fatores políticos, estamos nos referindo àqueles elementos que moldam a demanda por candidatos. Há quem insista que o incremento da participação feminina depende mais dos partidos políticos do que do sistema eleitoral ou dos eleitores. Para Araújo & Alves (2007), os partidos de esquerda teriam uma tendência maior a estimular a participação feminina e a eleger mais mulheres.

Em relação ao âmbito organizacional, procedimentos internos ins-titucionalizados, regras claras e vida partidária ativa seriam pontos que incentivam a participação e o recrutamento eleitoral de mulhe-res. Sobre o sistema partidário, pode-se considerar uma tendência dos sistemas pluripartidários à estabilidade institucional e, conse-quentemente, a proporções mais elevadas de mulheres eleitas. Uma assembleia onde atuam vários partidos políticos, portanto, possuiria mais chances de eleger mulheres que uma casa bipartidária.

As cotas para o sexo minoritário nas listas eleitorais, por sua vez, apresentam-se como fator de impacto imediato no processo de feminização das casas legislativas. Elas funcionam como mecanis-mos de discriminação positiva para combater o problema estrutural da baixa participação feminina e corrigir a injustiça do monopólio da representação masculina e dos interesses desse grupo social (AVELAR, 2001). A adoção de cotas é um artifício positivo nas estra-tégias eleitorais, sobretudo quando a política se torna personalizada e extremamente volátil. Esse artifício foi recomendado pela primeira vez em 1986 pela conferência ministerial europeia sobre a igualdade, e hoje é uma estratégia cada vez mais utilizada para reduzir a sub-representação feminina. Os países que possuem maior número de mulheres em seus parlamentos são os que desenvolvem leis de igualdade entre os sexos.

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VIII. Ensaio

4) Fatores Socioeconômicos

Trabalhamos aqui com fatores socioeconômicos enquanto ele-mentos que moldam as condições materiais que favorecem ou im-pedem que mulheres se dediquem à política como candidatas. Uma vez que os partidos políticos recrutam poucas, é natural que as mu-lheres sejam sub-representadas nas assembleias legislativas. Alguns acadêmicos argumentam que os partidos não convocam mulheres por não encará-las como candidatos em potencial. Segundo eles, se as condições socioeconômicas das mulheres fossem mais elevadas, haveria um crescimento análogo na presença destas em partidos e nas casas legislativas.

Relacionadas à falta de condições materiais suficientes estão as responsabilidades domésticas, variável que pode ser apontada como um dos principais fatores que impedem as mulheres de se dedicarem à política. Aproximadamente 30% das legisladoras não têm encar-gos familiares. Parlamentares mulheres também possuem mais que o dobro de chances do que os homens de serem solteiras.

Segundo Avelar (2001), a sub-representação política da mulher deriva da lógica de marginalização social. Na sociedade capitalista, possui maior valor social o indivíduo que tem maior status ocupacio-nal. As mulheres acabam por desenvolver menor status social, o que diminui seu valor social e político. A ideologia do desempenho, base-ada na tríade qualificação, posição e salário também gera implicações diretas nas relações de gênero, de modo a perpetuar a desigualdade entre os sexos e o mito de inferioridade da mulher.

III – ConclusõesA sub-representação das mulheres é um sintoma do déficit de-

mocrático presente em diversos regimes eletivos. Falamos em déficit democrático pois, considerando o princípio da representação descri-tiva, uma assembleia legislativa só é considerada representativa se sua composição for uma reprodução reduzida da sociedade. Assim, podemos dizer que existe um déficit de representação em Estados nos quais não existe paridade entre os sexos nas casas legislativas.

Vimos, neste breve compêndio de ideias, que as regras eleito-rais influenciam diretamente as chances das candidaturas femini-nas. Observamos também que a forma como a sociedade se organiza materialmente e a cultura têm peso no processo de feminização das assembleias legislativas. Acredita-se que a política seja uma arena

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Que poder feminino?

predominantemente masculina, pensamento que se reflete no baixo índice de participação das mulheres nesse espaço e reproduz uma si-tuação de marginalização. As desigualdades entre os sexos são perpe-tuadas por mecanismos sutis de dominação, que naturalizam e legiti-mam a diferença e funcionam como o habitus de Bourdieu: disposições duráveis incorporadas desde a mais tenra infância que pré-moldam oportunidades e proibições de acordo com condições objetivas.

Nesse sentido, Clara Araújo e Celi Scalon (2005) indicam que, a despeito do desenvolvimento de uma cultura mais igualitária, as prá-ticas ainda são exercidas de forma bastante tradicional e certas desi-gualdades não são percebidas como injustas. Com base num survey que analisou percepções sobre papeis sociais, as autoras apontaram que grande parcela da população ainda pensa que existem atividades distintas para homens e mulheres.

Retomando as perguntas de partida deste trabalho, podemos fa-zer algumas afirmações:

1) Os sistemas eleitorais exercem grande influência sobre o processo de feminização das Câmaras Legislativas.

2) Cada tipo de sistema eleitoral possui características que, em de-terminados momentos, favorece ou prejudica a eleição de mu-lheres, mas isso não pode ser tomado como uma regra universal e imutável. Os sistemas de representação proporcional são to-mados como os mais favoráveis à feminização das assembleias legislativas, mas em alguns casos, não impediram mulheres de ter uma performance insatisfatória em eleições. O sistema majori-tário elegeu mais legisladoras do que o sistema proporcional ou o sistema misto nos casos da Escócia e do País de Gales. É necessário afastar generalizações e adotar uma perspectiva microanalítica capaz de capturar detalhes importantes. Outros autores sugerem a realização da análise com base em contracategorias.

3) É impossível analisar os impactos do sistema legislativo sobre o número de mulheres legisladoras eleitas sem considerar as cotas e a atuação dos partidos políticos.

4) Além dos partidos e das cotas, há outros fatores que interagem com estes e com o sistema eleitoral e acabam por influenciar a elei-ção de mulheres nas assembleias legislativas. Estes são aspectos culturais, socioeconômicos e políticos. O impacto desses fatores é maior durante o processo de seleção de candidatos pelos partidos.

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VIII. Ensaio

ReferênciasARAÚJO, C.; ALVES, J. Impactos de Indicadores Sociais e do Sis-tema Eleitoral sobre as Chances das Mulheres nas Eleições e suas Interações com as Cotas. Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 3. Rio de Janeiro: DADOS, 2007.

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Que poder feminino?

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IX. Mundo

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Autores

Sigrid AndersenGraduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorada em Geografia pela Universidade de Aberdeen, Escócia. É professora-adjunta da Universidade Federal do Paraná atuando nos temas: Políticas Públicas Ambientais, Socioeconomia e Gestão de Zonas Costeiras e Turismo Sustentável

Jayme Fucs Bar Economista, morou em São Paulo, onde foi militante do PCB. Há vários anos, resi-de em Israel.

Marc LazarProfessor de História e Sociologia Política do Instituto de Estudos Políticos de Paris.

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Novos tempos para Itaipu e os brasiguaios?

Sigrid Andersen

A posição do presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, de rever as cláusulas do Tratado de Itaipu, desperta a velha ge-opolítica do Prata de um sono letárgico de mais de 40 anos.

O Paraguai exige o aumento no preço da energia excedente que vende ao Brasil; liberdade para vender a energia a terceiros países e; a redu-ção drástica da dívida que lhe coube na construção da hidrelétrica de Itaipu. Por ter sido uma obra em litígio com a Argentina, Itaipu não pode ser financiada por bancos multilaterais de desenvolvimento. Foi financiada por bancos comerciais norte-americanos movidos a juros de mercado; foi originalmente orçada em US$ 3.5 bilhões, custou aproximadamente U$S 20 bilhões e tem prestações até 2023.

Nacionalismos exagerados, tanto de brasileiros quanto de para-guaios, são pouco úteis neste momento de integração, de construção de um bloco sul-americano que melhor se posicione no mundo glo-balizado e que acima de tudo, dê dignidade de vida à sua população. Ademais, para entender as demandas do Paraguai há que se consi-derar os vários elementos em jogo. Não se exige apenas conhecimen-tos de economia e direito internacional. Requer memória histórica, em especial, sobre as teorias geopolíticas concebidas por Mário Tra-vassos nos anos 30, aprimoradas no âmbito da Escola Superior de Guerra, e postas em prática durante os sucessivos governos milita-res do Brasil, entre 1964 e 1985. Coube, em grande parte, ao General Golbery do Couto e Silva a realização da tarefa.

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IX. Mundo

Itaipu foi um projeto geopolítico, por excelência, e concebido com múltiplos objetivos.

Não visava somente fornecer a energia necessária ao desenvolvi-mento do “Brasil Potência”, concebido pelos militares. Sua constru-ção representava a disputa Brasil-Argentina pelo poder regional e a hegemonia do continente sul-americano, nos anos da Guerra Fria. Foi construída sob um rio internacional, compartilhado, contíguo e sucessivo da Bacia do Prata, à montante do território argentino, o rio Paraná. É na “tríplice fronteira”, formada pelos limites territoriais entre Brasil, Paraguai e Argentina que Itaipu foi edificada.

A batalha para a sua construção, travada em bastidores, ocorreu em pleno exercício das ditaduras militares do Cone Sul, sem divulga-ção ao grande público. Durante sua construção, a obra protegeu-se sob a lei de segurança nacional e foi diretamente subordinada ao governo federal. Seus reflexos regionais e internos foram colossais, correspondendo, em magnitude, aos kilowatts gerados. Dentre os impactos, a perda territorial, de riquezas naturais e infraestrutura dos municípios do oeste do Paraná, o que uniu vários políticos e per-sonalidades do estado pelo pagamento dos royalties de Itaipu.

Na arena internacional, o conflito com a Argentina tomou propor-ções quase bélicas. Para a construção de Itaipu, Brasil e Paraguai não consultaram a vizinha Argentina, conforme determinações da VII Conferência Interamericana (1933) firmada pelos países do Prata. A Conferência, realizada em Montevidéu, estabelecia o “princípio da consulta prévia” a todos os países integrantes de uma mesma bacia hidrográfica quando obras hidrelétricas ou outros empreendimentos fossem nela projetados (CAUBET, 1989). A Doutrina Harmon, defen-dida pelo Brasil, caracterizou o atropelo diplomático.

Os argentinos poderiam ser prejudicados com Itaipu, pela im-possibilidade da construção de outras usinas hidrelétricas no rio Paraná, mais precisamente no nordeste argentino, pela redução do potencial hidrelétrico. A barragem de Itaipu causou, também, o blo-queio da navegação argentina nos rios interiores da Bacia do Prata. A elevação da barragem dificultou as possibilidades de interligação fluvial com outros sistemas, inclusive o Paraná-Tietê. Foi feita sem eclusas. Com Itaipu e a implantação do corredor rodoviário de ex-portação (BR-277), a produção paraguaia e boliviana passa a ser escoada pelos portos brasileiros do Atlântico, com o inevitável esva-ziamento econômico do porto de Buenos Aires. Quagliotti de Bellis nomeou esta estratégia, desenhada por Travassos no seu livro A Pro-jeção Continental do Brasil publicado em 1931, como a “batalha dos

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Novos Tempos para Itaipu e os brasiguaios?

paralelos contra os meridianos”; os paralelos favorecendo a posição brasileira e os meridianos oferecendo vantagens naturais à Argenti-na, agraciada com a força centrífuga do Prata (ANDERSEN, 2005).

Militares argentinos ainda consideravam o lago artificial de Itaipu (1.460 km²) uma verdadeira “bomba de água”, estimada em dezenas de bilhões de metros cúbicos, situada acima de seis províncias argentinas, cinco grandes cidades do nordeste argentino e a própria capital Buenos Aires. O Acordo Tripartite (1979), ardorosamente batalhado pela Argentina no campo jurídico e diplomático, permitiu a compatibilização das usinas de Corpus e yaciretá, também para regular qualquer acidente artificial ou natural que pudesse ocorrer com Itaipu. Não é de se surpreender que generais argentinos mais desesperados tenham tentado impulsionar, na época, a construção da bomba atômica naquele país.

O argentino Guglialmelli (1981) revela que, com Itaipu, a Argentina finalmente admite haver perdido o seu domínio na Bacia do Prata e, consequentemente, sua liderança continental. Vê, ainda, sua influên-cia sobre o Paraguai reduzir-se drasticamente. Lembra que o confronto com o Brasil seria impossível, dado os fortes laços deste país com os EUA, já que havia se tornado um satélite privilegiado ou key-country no campo sul-americano, durante os anos da Guerra Fria. Além dis-so, confrontar-se com o Brasil, uma respeitável potência emergente em termos industriais, econômicos e militares deveria ser evitada. Nada sobrava à Argentina, senão agir pelos meio diplomáticos fazendo uso de todas as instâncias oficiais regionais e internacionais possíveis.

O “Aprisionamento Geopolítico” do ParaguaiCom Itaipu e os corredores de exportação, dissolve-se a política

externa pendular exercida pelo Paraguai, desde a guerra da Tríplice Aliança, e consolida-se a hegemonia brasileira sobre aquele país. A opção do Paraguai pelo desenvolvimento associado com o Brasil, ou como descreve Kohlhepp (1983), em “converter-se em periferia da periferia”, cria condições para a penetração brasileira na fronteira oriental paraguaia.

Um ano após a assinatura da Ata do Iguaçu (1966), o presidente Alfredo Stroessner altera o Estatuto da Terra do Paraguai que proibia a venda de terras a estrangeiros, nos 150 km de faixa de fronteira. A medida é justificada pela importância da colonização brasileira para a modernização e o incremento da produção agrícola com a fi-nalidade de fortalecer a economia paraguaia. Em paralelo, oficializa

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IX. Mundo

a venda de terras, libera créditos bancários e reduz impostos aos colonizadores. Os lucros escusos obtidos pelos membros do partido colorado, com a venda de terras aos brasileiros, são amplamente conhecidos.

Migrações massivas de brasileiros acabaram transpondo a fron-teira do Brasil para ocupar as terras férteis dos departamentos fron-teiriços de Alto Paraná, Itapua, Canindeyu, Amambay, Alto Paraná, Caaguazu, Concepción e San Pedro. Laino lembra que, em meados de 1979, somavam-se 454.500 o número de brasiguaios vivendo no Paraguai, formado por pequenos, médios e grandes proprietários ru-rais, fortes cooperativas e grandes companhias do agronegócio. Ali se instalaram para o cultivo predominantemente da soja, reproduzindo o mesmo modelo agroexportador aplicado no sul do Brasil. Enquanto isso, dados do Centro Paraguayo de Estudios Sociológicos aponta-vam que cerca de 1.100.000 paraguaios saíram do Paraguai, entre os anos 70 e 80, para buscar sobrevivência como pequenos comer-ciantes e mão de obra barata, legal ou ilegal, na Argentina e em ou-tros países do Prata, configurando um fenômeno sem precedentes na América do Sul.

Hoje, os brasiguaios são responsáveis por 80% da soja produzi-da no Paraguai e o acesso aos mercados internacionais é feito, em grande escala, pela BR-277 e o porto de Paranaguá. No Paraguai, o movimento nacionalista e campesino se estrutura para reaver as perdas do passado.

Um imbróglio previsívelAs relações Brasil-Argentina foram estremecidas na época, mas

a reconciliação veio sob o marco da integração regional, a partir dos anos 90, com o Mercosul, a Unasul e outras formas de cooperação bilateral. Já o embate atual entre Brasil e Paraguai era mais do que previsível. A eleição do presidente Fernando Lugo interrompe a di-nastia dos “colorados” que sustentaram o longevo governo ditatorial de Stroessner marcado pela abertura do país à ocupação brasileira. Eleito por uma coalizão de forças de esquerda e liberais, a campanha do presidente Lugo centrou-se na revisão do Tratado de Itaipu e na reforma agrária no país.

Teme-se que o preço a ser pago pela recusa na revisão do Tratado, pelo Brasil, possa recair sobre os brasiguaios. A ameaça de expulsão, seja pela desapropriação oficial de terras para a reforma agrária, seja pelas invasões de campesinos sin terras, deliberadamente não contidas

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Novos Tempos para Itaipu e os brasiguaios?

pelo governo paraguaio, pode constituir-se em “trunfo” ou “moeda de troca” do Paraguai para a pretendida renegociação, ainda que o Itamaraty evite correlacioná-los.

O quadro mostra que as relações Brasil-Paraguai estão mais ata-das do que se imagina. Até que os dois países encontrem soluções aos impasses e que se estabeleçam formas mais harmônicas de coo-peração, continuarão prevalecendo nas fronteiras do Paraná, os so-nhos visionários de Travassos e Golbery.

Referências ANDERSEN, S. M. Geopolitics and Ecology in Brazil (1964-1985): The Effects of Brazilian Geopolitics on the Natural Environments of Ama-zonia and the Plata River Basin. Tese de doutorado. Universidade de Aberdeen, Escócia, 2005.

CAUBET, C.G. As Grandes Manobras de Itaipu: Energia, Diplomacia e Direito na Bacia do Prata. São Paulo: Editora Acadêmica, 1989.

GUGLIALMELLI, J. H. Geopolítica Del Cono Sur. México: El Cid, 1979.

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Uma terceira via para a guerra em Gaza

Jayme Fucs Bar

Existe, hoje, no contexto da guerra entre Israel e Hamas, “realidades”. Realidades diversificadas, onde grande parte delas estão contaminadas por tendências. Não existe na mí-

dia uma procura de entender a realidade de forma profunda, muito menos objetiva, muito menos sequer dentro de uma visão humaniza-dora. O que existe é uma grande lavagem cerebral, manipulação des-sas “realidades”, em que cada lado usa a mídia como uma efetiva e poderosa arma de guerra para conseguir ganhos na opinião pública. A manipulação é total e absoluta, o objetivo é desumanizar o outro lado como forma de deslegitimar o adversário.

Não devemos cair nessa armadilha da lavagem cerebral de que “sionismo é racismo”, “ataque nazista” etc ou como “todo Islã é ter-ror”, “todo palestino quer destruir o Estado de Israel”.

Quem se posiciona com uma postura humanista deverá procurar ter uma prática e uma linguagem diferente da manipulação desses dois lados do conflito. Poderia enviar a vocês dezenas de filmes feitos em Israel e por seus simpatizantes no mundo onde se “prova”, com as fotos de mortes, o sangue e destruição dos atentados terroristas e os foguetes nas cidades de Israel. Poderia também enviar a todos plataforma do Hamas, do Hezbollah e do Irã onde anunciam de forma clara a destruição de Israel.

Mas essa não poderá ser a questão principal de nossos discursos, pois cairíamos na armadilha de um dos lados. Nós, humanistas, de-vemos estar conscientes em não cair num discurso desumanizador.

Importante entender que não existe um cidadão israelense que não perdeu alguém próximo no Holocausto, ou num atentado terrorista ou numa das sete guerras destes seus 60 anos de existência. Assim como não existe uma família palestina que não perdeu um de seus queridos numa das guerras com Israel. Isso se chama tragédia humana!

O conceito da guerra Israel-Hamas, aqui no Oriente Médio, não é como se pensa ou se faz ser entendido como mais uma guerra isola-

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Uma Terceira via para a guerra em Gaza

da. Ela é consequência de uma cadeia de violência que começou na tentativa de extermínio absoluto do povo judeu pela besta nazista, continuou na construção do Estado judeu e, em consequência, nas guerras de 1948, 1955, 1967, 1973, 1982, 2006 e 2008. Essas guer-ras são uma disputa sem fim pelo direito à herança histórica, religio-sa e cultural de um mesmo território.

A solução para nós, humanistas, em Israel, é a divisão das terras reivindicadas por judeus e palestinos em dois países e dois territó-rios, Israel e Palestina (Cisjordânia e Faixa de Gaza), uma trégua sem vencedores! Basta de mortes! Basta de guerras! Basta de tragédias a esses dois povos sofridos, judeus e palestinos. Não devemos fazer essa macabra contabilidade de verificar de que lado morreu mais ou menos gente. Cada ser humano que cai em cada lado do campo de batalha é um ato de tragédia, de autodestruição da espécie humana que jamais devemos aceitar, nem mesmo uma só morte pelo ato de violência.

Acredito numa concepção de vida que procura uma terceira via, diferente do capitalismo global (representada pelo atual governo de Israel) e diferente do fundamentalismo religioso (representada pelo Hamas, Irã, Hesbollaz, Al Qaeda). Sim, é verdade, não abro mão de minha inocência. Talvez a única forma de estar lúcido, dentro desse grande delírio que vivemos neste mundo, é a inocência.

Vocês sabem alguma coisa sobre o Partido Meretz, Paz Agora, “Hashomer Hatzair”? Não? Porque eles pertencem à terceira via, são militantes ativos contra a postura bélica de Israel e contra o fundamentalismo islâmico. Meretz, Paz Agora e Hashomer Hatzair são eterna oposição a essas duas forças políticas, destruidoras, que manipulam a opinião publica e conseguem, sob base do poder que têm nas mãos, criar uma desinformação coletiva, dividindo o público mundial totalmente massificado por uma dessas alternativas, como se fossem essas as “únicas alternativas” viáveis à “realidade” possível no Oriente Médio.

Vocês sabem alguma coisa sobre os grupos palestinos que lutam em Gaza contra o fundamentalismo islâmico? Não? Eles existem? Sim! Claro! E eles também são parte dessa terceira via. A diferença entre esses grupos em Gaza é que eles não têm a possibilidade de se organizar ou se manifestar de forma aberta, como os grupos em Israel, pois vivem em um Estado totalitário e não numa democracia.

Vocês sabem alguma coisa sobre os grupos de árabes e judeus em Israel que atuam em conjunto pelo diálogo e coexistência? (Newe Shalom, Sulra, Altenative, Givat Haviva etc) Não? Sabe por quê? Eles também são terceira via! A mídia não se interessa por esse discurso

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IX. Mundo

humanista de diálogo e paz, pois isso não vende jornais, nem dá Ibo-pe na TV, e os meios de comunicação estão contaminados por uma dessas duas alternativas ameaçadoras.

Para nós, humanistas que vivemos em Israel, o conflito e a guer-ra fazem parte da nossa triste “realidade” de vida. A tendência num conflito é ver somente um lado, o seu lado, o lugar onde você vive, porém a nossa luta aqui é outra! Ela é maior ainda, pois temos que bater de frente contra essas duas forças opressivas, pois neste delírio do ódio vivido no Oriente Médio devemos estar em estado de cons-tante consciência frente a uma forte e poderosa opinião publica que justifica a guerra em Israel. Consciência é saber que mesmo como minoria vamos fazer escutar nossos gritos e que não vamos abrir mão de nossa postura e opinião.

Com certeza que vemos “realidades” e aspectos diferentes de mui-tos de vocês que estão do outro lado do planeta, porém o diálogo é justo, o ódio não! E o mais importante é saber que a nossa luta aqui é a luta de vocês, e a luta no Brasil também é a nossa luta, que não estamos sozinhos e temos que unir todas as forças humanistas em cada canto desse planeta, criar juntos, através da educação e da conscientização, uma massa crítica de seres humanos onde cada um possa assumir responsabilidades sociais e ecológicas no seu espaço de atuação, organizando manifestações de ativismo, de não violên-cia. Queremos fazer de nossos atos e ações “realidades” diferentes ao capitalismo global e ao fundamentalismo religioso.

Nós, humanistas, devemos criar em nossas ações e em nossos atos a possibilidade prática de criar um novo conceito de vida para o mundo e para os seres humanos. Queremos uma terceira via de esperança, que reivindica uma sociedade diferente dessa que vive-mos hoje, em que a vida seja sagrada e seres humanos tenham esse simples direito, o de nascer, viver e morrer em paz, com dignidade, sem guerra e sem violência.

Shalom, Salam, Paz!

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Pós-Socialismo Por que o vento da crise

varre do mapa a esquerda europeia?1

Marc Lazar

O resultado das eleições europeias, que penalizou a esquerda, suscita duas interrogações iniciais: a primeira é sobre o seu atual estado de saúde; o segundo sobre seu futuro, que já

diz respeito ao pós-socialismo. Delineiam-se duas respostas de sinal contrário. A primeira relativiza o insucesso e insiste sobre o caráter particular dessa consulta eleitoral, apelando para a especificidade de cada país e recordando que a história da esquerda registra um alternar-se ininterrupto de ciclos ora favoráveis, ora negativos. A se-gunda, mesmo reconhecendo a pertinência de tais argumentos, vê nessas eleições europeias – que já foram precedidas de outras perdas – uma derrota histórica. E é essa última resposta que devemos levar em consideração.

De fato, a esquerda reformista teve de engolir nada menos que 16 derrotas, algumas das quais de considerável relevo, que golpeiam as suas formações mais importantes e emblemáticas.

A esquerda foi atingida não obstante a sua atual colocação – na oposição, sozinha no poder ou associada a coalizões de governo – e independentemente da sua trajetória histórica. Como explicar tal desastre? Reunindo uma série de considerações de fato, de razões conjunturais e de fatores mais estruturais.

O recorde de abstenções registrado nas eleições europeias deve ser relacionado ao eleitorado predileto da esquerda: os jovens e, so-bretudo, as camadas populares e operárias e os eleitores com nível de instrução mais modesto, que são hoje os mais despolitizados e os menos interessados na Europa. Os simpatizantes da esquerda que foram às urnas dispersaram os seus votos. Quem vê na União Europeia a causa de cada uma das suas atuais dificuldades votou nos partidos eurocéticos, ou quem sabe naqueles xenófobos e populistas, como parece tenha sido o caso de uma parte do eleitorado popular. Os

1 Publicado na edição do dia 16/6/09 do jornal italiano La Repubblica.

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V. Mundo

moderados, mais voláteis e incertos que nunca, optaram pelas for-mações de centro-direita. Os europeus com rendimentos assegura-dos e um alto nível de instrução, mais abertos ao mundo, preferiram os Verdes (que progrediram em alguns países, entre os quais a Fran-ça) achando que hoje os temas prioritários sejam aqueles da ecologia e do meio ambiente.

Além disso, emergiu um paradoxo significativo: longe de favorecê-la, a crise financeira e econômica, pelo contrário, fez mal à esquerda, que era convicta de poder tirar vantagem dela, já que a atual conjun-tura assinala o fim das ilusões sobre os benefícios da economia de mercado e a ruína do mito neoliberal, com a necessidade de regras emanadas do Estado e de políticas sociais. O Partido Socialista Euro-peu não tinha, ademais, encontrado particular dificuldade na apro-vação de um manifesto comum, e a sua campanha estava focalizada sobre a Europa social. Também a esquerda radical acreditava que fosse chegado o seu momento, para fustigar de um lado o capitalis-mo e de outro o reformismo, réu de todas as traições; ao invés disso, mesmo tendo feito alguns progressos, no total terá dez deputados a menos no futuro parlamento europeu. Mas por que não se escutou a esquerda? Antes de tudo, como escreveu Bernardo Valli no La Repub-blica de 9 de junho, porque a direita, dando prova de grande pragma-tismo, parou de se referir ao neoliberalismo – ao qual na verdade a Europa não havia nunca se convertido – adotando posições protecio-nistas; e não hesitou em se apropriar dos temas da esquerda.

Além disso – e, sobretudo – a esquerda mostrou uma tendência a ler o presente através dos óculos do passado, sem colher toda a com-plexidade dessa crise, reveladora das mutações bem mais profun-das que atormentam há décadas as nossas sociedades. Crise quer dizer desemprego, desigualdades sociais crescentes, exacerbação da pobreza; e, no entanto, ao menos pelo momento, essa crise não suscitou importantes mobilizações coletivas. Porque se tem medo. Porque os sindicatos estão debilitados. Porque houve uma evolu-ção nas relações sociais no interior das empresas. Porque o mun-do do trabalho mudou. Porque a precarização agora é generalizada. Em consequência, muitos europeus, deliberadamente ou por força maior, tentam ainda estratégias individuais de sobrevivência e de adaptação; e gostariam de se considerar livres e independentes, mes-mo tendo fortes exigências de proteção. Quanto aos anciãos – cada vez mais numerosos –, são sensíveis a temas como a segurança e a imigração; e muitos aspiram refundar a própria identidade. Enfim, por sua vez, também os nossos regimes políticos sofreram uma pro-funda transformação, em particular com o afirmar-se da democracia

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Pós-Socialismo – Por que o vento da crise varre do mapa a esquerda europeia?

do público e da opinião, na qual o papel do líder é decisivo. E é claro que há uma década, nesse campo, toda a esquerda sofre de um dé-ficit flagrante.

A esquerda reformista não ficou nem imóvel nem muda. Recu-sou-se a recuperar, como faz a esquerda radical, as velhas receitas do passado; explorou outras vias, tentando voltar-se a outras faixas de eleitores. Mas de frente a uma direita unida, capaz de propostas incisivas, decidida a impor uma hegemonia cultural e a responder à necessidade de identidade que se manifesta nos europeus, apre-senta-se dividida, na defensiva, sem projetualidade nem identidade, privada de líder, pouco acreditada, não em sintonia com as trans-formações em curso. Por isso, a esquerda reformista tem uma prio-ridade: a de iniciar rapidamente uma reflexão aprofundada sobre os fundamentos e as modalidades do seu reformismo, e analisar a complexidade das mudanças em curso nas sociedades e nas nossas democracias. Sob pena do seu desaparecimento.

Tradução de Marco Mondaini.2

2 Professor da Universidade Federal de Pernambuco e, atualmente, faz pós-doutorado no Depar-tamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.

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X. Memória

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Autores

José SerraGovernador do estado de São Paulo. É formado em Engenharia pela Universidade de São Paulo, possui mestrado em Economia pela Universidade do Chile (1968), da qual foi professor entre 1968 e 1973. Foi deputado federal (1987-1995) e senador (1995-2003), ministro do Planejamento e Orçamento (1995-1996), ministro da Saúde (1998-2002) e prefeito de São Paulo (2005-2006). É autor, dentre outros, dos livros Reforma Política no Brasil (1993), Manual dos Direitos do Trabalhador e Ponto de Chegada, Ponto de Partida (2002).

Dimas MacedoPoeta e critico literário, professor da Universidade Federal do Ceará e membro da Aca-demia Cearense de Letras.

Ana Amélia de M. Cavalcanti de MeloProfessora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

José Serra

E u fiz questão de preparar uma fala a respeito da criação deste Instituto, que representasse ao mesmo tempo uma visão do Governo de São Paulo a respeito da pessoa e do papel que

teve na nossa história o Vladimir Herzog. Algo como uma espécie de documento oficial. Esta cerimônia é um ato, na verdade, voltado para o futuro, testemunho de uma vontade de contribuir para o que há de melhor neste país.

É um momento em que reverenciamos a memória do Vladimir Herzog, o Vlado, como era conhecido por seus amigos – eu nunca o conheci – associando ao futuro esse empreendimento e pretendendo marcá-lo com seu nome e, mais ainda, com sua presença. O que este instituto virá a ser no futuro não depende do passado, mas sim do que os seus organizadores e futuros colaboradores vierem a fazer. Eu creio, espero mesmo, que o nome do Vlado sirva como fonte de inspiração para coisas boas, construtivas, como estímulo para ideias inovadoras e boas iniciativas.

Além de razões pessoais de seus amigos e familiares, evidente-mente, reverenciar a memória do Vladimir Herzog se justifica por motivos políticos e por motivos morais. Do ponto de vista político, sua morte nas mãos do aparelho repressor do regime militar foi o marco decisivo no processo de distensão então desencadeado pelo general (Ernesto) Geisel (ex-presidente da República), pois provocou uma confrontação decisiva com os setores mais duros do regime, que resistiam a qualquer forma, por mínima que fosse, de liberalização:

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X. Memória

a chamada abertura lenta, gradual e segura, anunciada pelo governo militar, que acabava de começar.

Não é à toa, aliás, que vários presos daquele período ouviram den-tro do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Cen-tro de Operações de Defesa Interna) a afirmação de que o objetivo da ação repressiva era identificar e derrubar autoridades supostamen-te condescendentes com a ação subversiva ao patrocinar pequenos gestos liberais, como a nomeação do próprio Vlado para a direção de jornalismo da TV Cultura (de São Paulo). Por certo, as coisas depois não mudaram de um dia para o outro, as detenções arbitrárias con-tinuaram, as agressões de tortura contra detidos políticos também, e prosseguiram os assassinatos – outros assassinatos, inclusive em 1976, mais de um ano depois, em torno daquela famosa reunião de dirigentes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) no bairro da Lapa (em São Paulo).

Mas o fato é que o enorme contingente ajudou a quebrar a espi-nha dos setores mais radicais do regime e, assim, dar prosseguimen-to ao lento processo da abertura programada. O clamor provocado pela morte do Vlado foi também o marco, talvez o mais importante ao lado das eleições de (19)74, na mudança da forma de expressão política da sociedade, até então presa em uma espécie de armadilha. A despolitização, o controle estrito da ação partidária, das manifes-tações de opiniões e das lutas reivindicatórias parecia deixar espaço apenas para o conformismo, a omissão, ou para a ação política de contestação frontal clandestina ao regime. Mas a reação da socieda-de (em consequência da morte de Vladimir Herzog), que teve na pre-sença de muitos, de tanta gente no enterro e no culto ecumênico na Praça da Sé, o seu primeiro grande ato público, mostrou que era pos-sível fazer oposição e defender a democracia de modo pacífico, quase silencioso, como exigia o sentimento de luto – mas ao mesmo tempo (uma oposição) corajosa, firme, clara nos princípios que defendia e na condenação a qualquer forma de violência como instrumento da ação política.

E esse marco de resistência contra a ditadura na luta pela rede-mocratização deve muito à pessoa de Vladimir Herzog, à sua figura moral. A tortura e assassinato não se justificam em nenhum caso. Mas o choque provocado pela morte do Vlado foi ainda maior, por-que ele não era um combatente clandestino, armado e pronto para a confrontação. Não era uma ameaça nesse sentido, por mínima que fosse, para os seus algozes. Era um jornalista, alguém que atuava abertamente por meio da palavra, que fora detido quando exercia um cargo de confiança do então secretário da Cultura do Estado, José

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

Mindlin – ou, talvez exatamente por isso, foi encarado como um pe-rigo para a ditadura.

Era um homem, segundo todos os testemunhos que eu tenho, do Markun, do Goldman e de tanta gente, afável, de modos tranquilos, quase sempre sorridente. Não tinha nada de agitador, do polemista, de líder autoritário. Isto acabou elevando a repulsa moral ao regime. Não havia mais recuo possível. Se o Vlado tinha morrido vítima da repressão, ninguém poderia se sentir seguro, pois não havia limites para a violência da ditadura. O ato na Sé mostrou que havia espaço para uma oposição moral, intelectual e política ao regime militar – e que essa oposição expressava os sentimentos da imensa maioria, e que seria tanto mais eficaz quanto mais ampla e mais pacífica, su-perando as divisões ideológicas sem perder a firmeza e a clareza do objetivo comum: a volta à democracia.

O culto e o enterro foram atos de serena coragem, de superio-ridade moral da sociedade civil sobre um regime antidemocrático e cruel. O movimento que levaria a ditadura a sucessivas derrotas elei-torais, ao ressurgimento da luta sindical e, finalmente, à campanha das Diretas e à eleição de Tancredo Neves. Para não dizer da própria anistia, da qual eu fui um dos beneficiários depois de 14 anos de exílio. Aliás, o sucesso eleitoral da oposição, o MDB (Movimento De-mocrático Brasileiro, antecessor do atual PMDB), nas eleições de 74, é preciso ter claro isso, havia sido o fator desencadeante da ofensiva dos setores mais radicais do regime sobre as forças que, dentro da oposição, pregavam a participação ativa nas campanhas eleitorais, apesar das intimidações e das limitações às liberdades de palavra.

Uma grande parte da oposição, mais militante, era inclusive con-trária à participação nas eleições, na perspectiva de que a única saída era o enfrentamento, era um confronto, algo frontal contra a ditadu-ra. Mas havia forças que defendiam a exploração das possibilidades democráticas das eleições então existentes. E, dado os resultados de 1974, passaram a ser essas forças o alvo principal dos ataques dos setores mais radicais da ditadura. A vítima maior desse momento foi o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, que não pregava a luta arma-da, que teve muito dos seus militantes presos, torturados e assassi-nados. Alguns, quero dizer aqui, amigos meus, próximos, pessoais.

A memória de Vlado certamente estava na mente de muitos dos que levaram adiante, a partir daí, a luta democrática. Sobretudo, anonimamente. Mesmo porque ele já estava engajado, intelectual e profissionalmente, naquela mesma direção. Vale lembrar aqui uma frase escrita por ele numa reportagem que investigou o clima reinante

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X. Memória

no mundo da cultura, no início da década de 70. Vale a pena ler o que dizia ele. Abro aspas: “O mergulho nas trevas do lamento e da impotência foi tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâ-neos, ficaram na margem ou escolheram as viagens permanentes. Mas muitos cansaram de lamentar, talvez com medo de se tornarem tristes heróis de uma guerra acabada. Estão voltando a querer, isto é, estão recuperando a vontade para voltar a fazer apesar de tudo”. Isso é o que dizia o nosso Vlado, e voltou a fazer antes mesmo de aceitar colaborar na Secretaria da Cultura.

No início de 1975, foi convidado para ser uma espécie de editor, em São Paulo, do jornal Opinião, que foi tão fundamental para a re-democratização brasileira nos anos 70, para as lutas da redemocra-tização. Era um semanário criado no Rio de Janeiro pelo Fernando Gasparian, com apoio de várias lideranças intelectuais, especialmen-te a de Fernando Henrique Cardoso.

Naquele momento, o eixo de renovação da liderança política e da efervescência da sociedade civil, inclusive do movimento sindical e das primeiras organizações de bairro, tinha se transferido para São Paulo. Vlado passou a se reunir semanalmente com um grupo de colaboradores, para estabelecer uma pauta de temas que a gran-de imprensa, ainda sob censura, tinha dificuldades em abordar. Os mais assíduos, como José Augusto Guilhon (Albuquerque), Francis-co Weffort, José Álvaro Moisés, revezavam-se com Fernando Henri-que para publicar, toda semana, editoriais assinados sobre o foco da conjuntura. As reuniões eram na antiga sede do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), na rua Bahia, que chegou, em outros momentos, a ser palco de atentados. E que teve alguns de seus pesquisadores detidos, encapuzados e torturados.

O Opinião estava aberto a todas as correntes da oposição e de-fendia os resultados da eleição de 74 como um fator decisivo no pro-cesso de redemocratização futura. Mutilado pela censura, ainda as-sim conseguia publicar o que a grande imprensa não queria, ou não podia divulgar. Mas para enfrentar a censura não adiantava só se lamentar, ainda que fosse preciso usar de algum contorcionismo sin-tático. Vlado encarava o desafio com bom humor e tranquilidade – é o testemunho que eu tenho. Hesitou, mas não recusou, diante do convite para dirigir o jornalismo da TV Cultura, onde certamente imaginava continuar jogando aquele jogo em favor da democracia e liberdade. Foi substituído no jornal por Paulo Markun, na época um jovem franzino e, pelo que eu vi nas fotos, dono do maior bigode rela-tivo com o tamanho do rosto que eu vi na minha vida. Eu disse isso a ele, ele concordou, de maneira que não pode ser encarado como

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

um reparo. Aliás, o Markun era pouco mais que um menino, e ficou muito marcado por este emprego.

Ele sabe tudo sobre o Vlado. Eu aprendi com ele, inclusive, o que eu tive de comum com o Vlado, além da tendência à calva. Ele (o Vlado), como eu, era filho de imigrantes. Ele mesmo, um imigran-te. Seu pai tinha um armazém, como o meu pai. Na Europa, viviam (a família Herzog) onde hoje é a Bósnia, mas durante a guerra fugiram para a Itália. Vlado virou Aldo, e se passava por italiano, língua que ele dominou rapidamente, certamente muitíssimo melhor do que eu e, com isso, na prática, se tornou um imigrante italiano a mais quan-do chegou ao Rio e, depois, a São Paulo.

Em São Paulo, estudou no Roosevelt, alguns anos antes de mim. Eu só não sei na verdade, eu me esqueci de perguntar, para que time ele torcia. Eu não quero nem saber. Palmeiras? Já é demais. Ele gosta-va sobretudo de cinema, literatura, música e teatro, como eu. O teatro era uma paixão tão grande que o Vlado arranjou um lugar de figu-rante, como soldado romano, para assistir de graça às apresentações no Teatro Municipal. Devo dizer que eu também fiz incursões incon-fessáveis na área do teatro, cheguei até a ser diretor na Politécnica (Escola Politécnica da USP-Universidade de São Paulo). Seu sonho era ser crítico de cinema, ou melhor, cineasta, como eu, para retratar a saga de Canudos, sob o título “Antonio Conselheiro”.

Nos idos de (19)75, havia algo sim de subversivo, no bom sentido da palavra, quando um jornalista assumia a direção dos jornais da (TV) Cultura com a seguinte meta - e aqui vou ler palavras do próprio Vlado, que apesar de tímido, como me disse o Goldman, que o conhe-ceu bem, era um homem arrojado.

Dizia ele: “Um telejornal de emissora de governo também pode ser um bom jornal, e para isso não é preciso esquecer que se trata de emissora do governo. Basta não adotar uma atitude servil”. Vlado ficou menos de dois meses na chefia do Departamento de Jornalismo do Canal 2, e não conseguiu implementar seu projeto. Sua gestão foi bombardeada desde o primeiro dia por colunistas áulicos e parla-mentares a serviço da extrema direita, agindo como propulsores do conflito nos porões da ditadura, que visava contestar a política de abertura do então presidente Geisel. E Vlado acabou se tornando o elo mais fraco desta cadeia.

Foi detido e morto estupidamente na prisão. Ele, que escapou da guerra, um judeu que sobreviveu às perseguições nazistas e migrou para um país livre.

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X. Memória

Mas sua morte não foi o seu fim. Ele viveu na redemocratização e, depois de 34 anos, continua vivendo na nossa memória – a prova é esta noite. Eu, na época de estudante, nos primeiros anos de mi-litância política, aprendi uma consideração a respeito do presente: era ver o presente como futuro. Isso é que dá sentido a uma militân-cia política bastante intensa, bastante agressiva: encarar o presente como história, e nós estamos fazendo história.

Ao longo dos anos aprendi outra coisa, e a noite de hoje é uma de-monstração: que o passado sempre erra, e teima em se colocar junto ao presente. O passado, na verdade, nos trás ao presente, nos ajuda a entender o presente.

Por isso, depois de 34 anos, ele (o Vlado) continua vivendo na nossa memória, e continuará com mais razão, na medida em que esse Instituto for dando os seus frutos.

Que seus amigos diretos, e seus amigos indiretos, como eu, sai-bam fazer prevalecer em nosso país padrões de desempenho que, in-felizmente, ainda são escassos entre nós: a tolerância e o respeito na convivência política, o respeito intransigente aos direitos humanos individuais, a clareza e a coerência nas propostas e, sobretudo, entre as propostas e as ações práticas, o mínimo de caráter na militância política e social, uma visão de médio e longo prazo para o nosso país, que mire as suas particularidades e seus grandes interesses – por-que o país tem interesses que são os interesses da sociedade, e hoje essa consideração parece até subversiva. Que privilegiem não apenas grandes performances nos discursos, na comunicação, mas também que as práticas não teimem em contradizer ponto por ponto aquilo que se prega, aquilo que se diz, aquilo que se alardeia.

Para este Instituto, desejo toda a sorte do mundo. Porque a sorte do Instituto fará bem a todos nós. E quero me colocar à disposição como governador de São Paulo e, mais adiante, quando eu não for mais o governador, para que o Instituto se fortaleça e cumpra o papel que a sua família, que os seus amigos definiram.

Conte comigo, Clarice. E contem todos os amigos diretos do Vladimir e indiretos, meus colegas.

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Permanência de Augusto Pontes1 (1935-2009)

Dimas Macedo

No princípio era o verbo. E o verbo, encarnado, fez-se justo. E o verbo, soberano, se chamava Augusto e de seus ramos, imponentes, se ergueram as Pontes. E as fontes do saber, em

Augusto, se tornaram densas. Imensas as suas simetrias com o seu prenome, posto que Francisco antecedia Augusto e posto que Augus-to precedia a Pontes.

E Augusto Pontes, para todo o sempre, em rendas de opala, tinha a fala mansa e o olhar agudo. E era quase-surdo, o nosso persona-gem, para as vilanias. Se queria a dúvida e a pluralidade do conheci-mento. E o seu argumento, quase-que socrático ou paripatético, se fazia ascético, em tudo; e em quase-nada era viperino.

Augusto era divino num ponto: aquilo que o ligava ao próximo, em grau de amizade. E a felicidade, para ele, consistia nisto: a vida, enquanto sinergia, é o que pensamos, posto que o mundo, feito nor-ma pura, é expressão da arte.

Em parte, era um grego; e na outra parte, o rapaz latino era um andarilho irresignado. E mais do que amado, com o passar do tempo, se tornou um mito. E meio sem soberba tinha a alma acesa de hilaridades.

Era polifônico e mais do que irônico o nosso grande Augusto. E sempre dava susto, na filosofia, com suas estocadas. E não con-descendia, em quase-nada ou tudo, com a ignorância. Ou quando se fingia, em grau de sonolência, quando conversava.

1 Augusto Pontes: formado em Jornalismo na UnB, onde foi professor de Comunicação, foi se-cretário de Cultura do Ceará (Governo Ciro Gomes), publicitário, editor na Rede Globo, guru de várias gerações, incentivando cabeças para a música, literatura, jornalismo e artes plásticas. Esteve nos bastidores dos movimentos culturais que sacudiram Fortaleza, dos anos 1960 a 1990, idealizando festivais, gravação de discos, edição de livros, poeta parceiro de Ednardo, Fagner e Rodger Rogério. Foi militante e dirigente estadual do PCB, nos anos 1960/70, estando ligado ao Centro Popular de Cultura, da UNE, no período anterior ao golpe de 1964, sendo preso e sofrido perseguições.

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X. Memória

Inventou, na mocidade, a Massafeira Livre e a Scala máxima da publicidade. E era a claridade, como marqueteiro, em coisas da política.

Vivia qual um Buda. E era franciscano e professor de música e de filosofia, posto que bebia na contracultura a sua sapiência.

Em grau de consciência e de coisas da ciência ou da literatura, tudo ele sabia. E não se permitia, o soberano augusto, viver sem liberdade.

Era largo o seu peito, tal como um protesto armado contra tudo. Fez-se um grande escudo, em terras de Iracema, do socialismo e da linguagem pura, mas a certa altura fixou um ponto e se tornou o novo Príncipe da Cultura.

As ruas, no entanto, e o ágora da cidade mais o acolhiam: os bares, os clubes de conversas e as casas de ensaio.

E no mês de maio, de 2009, fez-se a overdose em noite que cho-via. E deu-se a hecatombe, no dia em que seu nome, de morte se encantava, posto que pairava, sobre Fortaleza, uma nuvem densa, posto que imensa, para o todo sempre, foi a sua perda.

E mais do que acesas resultaram as chamas do conhecimento. E posto que o momento, mais do que augusto, é belo e sacrossanto, que se erga um brinde, em grau de melodia, à sua memória. E que se faça um corte, ressalvando a morte de Augusto Pontes: a) qual a mais solene; b) qual a mais perene de todas as vidas.

Sociedade dos Poetas Vivos, Fortaleza-CE, 29/05/2009.

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Escritores combatentes: o Congresso de Escritores de 19451

Ana Amélia de M. Cavalcanti de Melo

Em janeiro de 1945, seria realizado em São Paulo o I Con-gresso Brasileiro de Escritores, organizado pela Associação Brasileira de Escritores. A relevância do encontro no âmbito

do processo de redemocratização tem sido apontada seja em estudos referentes à história do PCB ou sobre a trajetória de alguns inte-lectuais brasileiros. No entanto pouco tem sido pesquisado sobre a organização da associação que convoca este e outros Congressos de Escritores que se realizarão seguidamente e que serão palco de in-tensas disputas.

O Congresso reuniria delegados de diversos estados brasileiros. Podem ser citadas a modo de exemplo algumas representações im-portantes como Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Holanda de Alagoas, do Ceará estaria presente Raquel de Queiroz, Raimundo Magalhães e Herman Lima. O Distrito Federal, teria sua represen-tação composta de vinte membros tais como Affonso Arinos, Apa-rício Torely, Augusto Frederico Schmidt, José Lins do Rego, Moacir Wernneck de Castro, Manuel Bandeira, Sergio Buarque de Holanda etc. Do Estado do Rio com Astrojildo Pereira, de São Paulo com Caio Prado, Antonio Candido, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e várias delegações estrangeiras da França, Suíça, Inglaterra, Rússia, Áus-tria, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Grécia, Estados Unidos, Canadá, República Dominicana, Paraguai, Panamá e México.2

A abertura faz-se oficialmente com o discurso do presidente da sessão de São Paulo, Sérgio Milliet no qual afirma as sérias dificul-dades da realização do encontro, não apenas pelas comuns questões financeiras, mas pelo desinteresse da categoria. O discurso, no entanto, faz apelo as responsabilidades do escritor frente ao mundo. No mesmo sentido é pronunciado o discurso de Aníbal Machado,

1 Texto apresentado no XXVIII Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Ameri-canos – Lasa2009 / Repensar as desigualdades, 11-14 de junho 2009, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC/RJ).

2 Anais do I Congresso Brasileiro de Escritores. São Paulo: Imp. Graf. da Revista dos Tribunais, 1945.

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X. Memória

presidente do diretório nacional da Associação Brasileira de Es-critores (ABDE), enfatizando o papel do escritor na vida nacional. O destaque dos dois principais discursos torna claro o propósito do congresso. Entretanto o direcionamento político do evento não se faz sem tensões e resulta da hegemonia de certas forças que interessa aqui estudar.

A ABDE, esta associação de classe, se por um lado seria fundada com o objetivo de refletir sobre temas específicos do ofício de escritor, entretanto ao se propor no Congresso de 1945 uma pauta de dis-cussões em torno da democratização da cultura e liberdade criativa coloca-se como espaço de discussão da política nacional. A própria atuação dos intelectuais nesta década será fortemente marcada pelo resgate da questão da liberdade como essencial na vida política. Este será o tema que, segundo Berenice Cavalcante, dará sentido as pa-lavras formuladas nesse momento.3 Os intelectuais que se reuniriam no Congresso de 1945 percebem-se como portadores de um papel na sociedade que se relaciona à ação pública, ao mundo da política.

Segundo as declarações de Jorge Amado, presidente da delega-ção baiana da ABDE e um dos vice-presidentes do Congresso, ele fora chamado pelo PCB para desempenhar a “tarefa” de ajudar na organização do conclave. Os delegados da Bahia eram Homero Pi-res, Odorico Tavares, Dias da Costa, Alberto Passos Guimarães, Ja-mes Amado, Edson Carneiro, Jacinta Passos, Vasconcelos Maia etc. Segundo o escritor baiano duas correntes se debatiam no plenário: os democratas e os comunistas. O grupo dos democratas era com-posto por liberais, democratas cristãos e sociais democratas além de comunistas não alinhados como Caio Prado Jr., Mario Schen-berg e obedeciam “à batuta” de Carlos Lacerda que havia rompido com o PCB em 1942.4

O momento era de absoluta necessidade de definição no cam-po ideológico. Esta atmosfera tem na literatura o melhor exemplo. A atualização formal que se fizera nos anos 20, fora, na década de 30, inteiramente absorvida. O anticonvencionalismo tornara-se não mais uma transgressão, mas um direito amplamente praticado e muito bem recebido.5 O momento era o de revolver o conteúdo, atualizá-lo no sentido de uma crítica social feroz.

3 CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a democratização da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Eduff, 1986.

4 AMADO, J. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1993.5 A afirmação é feita por Antonio Candido, “A Revolução de 1930 e a cultura”, Novos Estudos

Cebrap, São Paulo, v. 2, 4, p. 27-36, abril 1984, p. 30.

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Os escritores além da Torre de MarfimA fundação da ABDE é sintomática dessa postura dos escritores.

Além disso, a entrada do Brasil na guerra nesse mesmo ano criava um grande apelo nacional de mobilização dos ânimos no combate ao facismo. Esta seria também a postura dos comunistas brasileiros seguindo a orientação internacional. A luta democrática, vencida a guerra, continuava a ser uma bandeira defendida pelos intelectuais brasileiros organizados em torno da ABDE. A realização do I Congresso de Escritores no Teatro Municipal de São Paulo seria marcante como um dos eventos políticos mais importantes do período. O Congresso é encerrado com a leitura e aclamação de uma declaração em defesa da liberdade e da democratização da cultura.

Entretanto, apesar do consenso em torno de questões mais gerais, a politização da ABDE gerava certas tensões e conflitos. Para alguns a Associação deveria manter seu caráter de uma entidade meramente de escritores. Nessa perspectiva é criada a UTI (União dos Trabalhadores Intelectuais) com o sentido de aliviar a ABDE das demandas políticas. Astrojildo Pereira seria seu presidente provisoriamente.

Destes escritores o exemplo de Graciliano Ramos é bastante sig-nificativo da tensão existente neste momento em torno da função do intelectual na vida política brasileira e das tensões que se estabele-cem no interior da ABDE. Na biografia de Graciliano os anos 40 são assinalados por uma participação na política de caráter muito mais acentuado do que fora até então e com um grau de repercussão na-cional que ele nunca conhecera. A homenagem realizada no Rio de Janeiro, em 1942, pelo aniversário de seus 50 anos, com a participa-ção de inúmeros intelectuais, políticos e escritores, confirmaria sua consagração. Graciliano tornara-se um homem público cuja opinião e inserção em atos políticos era importante. A compreensão que teria dessa sua nova situação continuaria sendo marcada pela discrição absoluta. No processo de ebulição democrática que se iniciava no país, Graciliano integrar-se-ia às campanhas pela anistia aos presos políticos e pela convocação da constituinte.6 Seria nesse fluxo de acontecimentos políticos do ano de 1945 que Graciliano se tornaria membro do Partido Comunista Brasileiro.

Dentro do PCB o escritor mantinha-se fiel às diretrizes internas, considerando que, um indivíduo, ao filiar-se a qualquer partido, tacita-mente estava de acordo com o que fosse estabelecido.7 À afirmação feita pela filha do escritor deve-se acrescentar, no entanto, outras

6 RAMOS, Clara, Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 166.7 Ibid., p. 169.

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X. Memória

circunstância de sua vida. O próprio conflito que teria com as lide-ranças do PCB, quando inicia a elaboração das Memórias do Cárce-re, indica que o grau de aceitação parece não ter sido total. Preva-lecia a necessidade de independência que não via na filiação dever de obediência.

A experiência da cadeia certamente redefiniriam a visão política do escritor, acentuando um conflito interior entre a necessidade de atuar na política do país, a participação na construção dos rumos da sociedade brasileira e o sentimento de ceticismo e dúvida perma-nente que lhe subtraía a vontade de atuar efetivamente. Diria em Memórias do Cárcere:

Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. Desculpava-me a ideia de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento.

Realmente não me envolvera em nenhum barulho, limitara-me a conversas e escritas inofensivas, e imaginara ficar nisso. A con-vicção da própria insuficiência nos leva a essas abstenções; um mínimo de honestidade nos afasta de empresas que não podemos realizar direito.8

À parte as atividades do partido, o escritor seria um dos mais ativos participantes da ABDE. Graciliano não pudera participar do Congresso de 1945, mas acompanhava e integraria suas atividades.

Com o PCB novamente na ilegalidade em 1947, seus membros buscariam outras formas de inserção política no país. A ABDE seria uma dos órgão preferidos, uma vez que dela participavam diversos escritores que pertenciam ao partido, além de ser ela uma organiza-ção caracterizada por uma atuação importante na política nacional. No segundo semestre de 1947 seria realizado o II Congresso dos es-critores e este seria o momento de dar maior ênfase à atuação dos comunistas na associação. A questão fundamental, apresentada no congresso pelos escritores comunistas, entre eles Jorge Amado, seria a da aprovação de uma moção contra o fechamento do PCB e contra a caça aos seus parlamentares. Ao querer priorizar essa moção, alguns dos membros da Associação opuseram-se. A contenda que se esta-beleceria revelava, na verdade, um outro conflito que se desenvolvia dentro do partido. Por um lado havia a necessidade de atuação dos comunistas, postos na ilegalidade, a partir de outras vias que não a

8 Memórias do Cárcere. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. p. 36.

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Escritores combatentes: o Congresso de escritores de 1945

partidária; por outro existiam divergências entre os membros do par-tido com relação ao dogmatismo. A estes conflitos somava-se ainda o desagrado dos não comunistas frente à transformação da ABDE em órgão de representação do PCB. Graciliano, apesar de discordar do estreito sectarismo que em muitos casos se impunha, sobretudo nas questões literárias, apoiaria os comunistas.9

Dentro desse quadro, a participação dos comunistas na ABDE, sobretudo o interesse do partido em dirigi-la, seriam vistos com de-sagrado pelos outros membros da associação. Graciliano Ramos, em 1947, durante o II Congresso, seria consultado sobre a possibilidade de assumir a Presidência da associação uma vez que seu anterior presidente, Guilherme Figueiredo, havia renunciado por divergên-cias ideológicas com o PCB. Graciliano recusaria o convite.

Apesar de todas as divergências com relação à política cultural do PCB, Graciliano manter-se-ia em suas fileiras e chegaria, por duas ve-zes, nos anos 51 e 52, a presidir a ABDE, já definitivamente controlada pelo PCB. Seria precisamente como representante dessa instituição que o escritor seria convidado à URSS para os festejos de 1º de maio.

Durante a realização do Congresso em 1945 a expectativa difun-dida na imprensa era do papel dos intelectuais na condução da so-ciedade. Falava-se na missão dos escritores reunidos no Congres-so.10 De acordo com Werneck Sodré, em suas memórias, a ditadura já incapaz de impedir a realização do evento, impediria a divulgação na imprensa das declarações finais.11

Não obstante, o evento se transforma em um acontecimento polí-tico marcante assinalando o início do processo de redemocratização. Os intelectuais assumem à cena política trazendo à tona uma das teses em debate: “O apolitismo dos intelectuais”, de Osório Borba.

No parecer lido por Astrojildo Pereira afirma-se: “A tese em apreço examina os aspectos mais expressivos de tão debatido problema da posição dos intelectuais em face das questões de ordem política, e com razão afirma que o chamado ‘apoliticismo’ dos intelectuais “é apenas uma posição conformista, fuga a um dever elementar de cidadania”.12

9 MORAES, Dênis, O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olym-pio, 1993, p. 248.

10 Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1945.11 SODRÉ, Nelson Wernneck. Memórias de um escritor. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira,

1970, p. 335.12 Anais. Op. cit. p. 145.

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X. Memória

Referências LEME, MARIO (org.). Plataforma da Nova geração. Porto Alegre: Ed. Livraria Globo, 1945.

HALLEWELL. Carlos Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1985.

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XI. Vida Cultural

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Autores

Aldrin Moura de Figueiredo Professor e pesquisador da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia

Moema de Bacelar AlvesHistoriadora. Pesquisadora vinculada Grupo de Pesquisa em História da Arte na Ama-zônia e ao Fórum Landi da Universidade Federal do Pará

Aline Maria de Carvalho PagottoMestranda na Unesp, campus Franca.

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Arte, poesia e abolição no Grão-Pará

Aldrin Moura de FigueiredoMoema de Bacelar Alves

O s primeiros historiadores da arte na Amazônia procuraram fir-mar o ano de 1888 como o principal marco das origens da “história” da arte no extremo norte do Brasil. Estavam em jogo

os valores da liberdade e da abolição assim como os significados da crença republicana, cultivados, em larga medida, a partir da década de 1890.1 A literatura, no entanto, precedeu as artes visuais quan-do o tema foi a luta pela liberdade e o engajamento no movimento abolicionista na Amazônia. Nesta atividade, seria difícil encontrar concorrente para Luiz Demétrio Juvenal Tavares (1850-1907). Para-ense de Cametá, veio para Belém, ainda moço, estudar no Seminário de Santo Antônio a fim de seguir a carreira sacerdotal. Sua ativida-de política e a vocação literária, no entanto, parecem tê-lo desviado da missão. Ainda no seminário, mostrava sua veia nacionalista: era 1870, ano em que publicou no Liberal do Pará, na sessão “A pedidos”, um poema exaltando a vitória do Brasil na Guerra do Pa-raguai.2 Dois anos depois, após saber a notícia da morte do pai, saía do seminário para trabalhar como professor de francês. Os tem-pos eram difíceis e o poeta revelava-se descrente, inclusive em seus

1 BRAGA, Theodoro “A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto histórico dos últimos trinta annos”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém 7: 149-159, 1934.

2 SALLES, Vicente. “Luiz Demétrio Juvenal Tavares: cronologia”. In: TAVARES, Juvenal. Serões da Mãe Preta: contos populares para crianças. 2. ed. Belém: Secult, 1990 [1897], p.14. Sobre este contexto paraense ver BEZERRA NETO, José Maia. “Nos bastidores da guerra: fugas escra-vas e fugitivos na época da Guerra do Paraguai (Grão-Pará: 1864-1870)”. História e Perspectivas. n. 20/21, 1999, p. 85-104.

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XI. Vida Cultural

versos. O ano seguinte, 1873, prenuncia a grande virada em sua vida, com uma série de acontecimentos-chave para o campo literário paraense. Neste ano, sai o seu primeiro livro – Pirilampos, reunindo poemas antigos que evocam a sua descrença e revolta com as “coi-sas da vida”. Também ingressa definitivamente no jornalismo como redator do jornal A Tribuna, periódico que ficou famoso por exercer uma postura nacionalista extremada e, cuja primeira façanha, foi ter refletido e divulgado no Pará as ideias da I Internacional Socialista. Não tardou para que Tavares se declarasse neste mesmo ano “livre pensador”, começando sua carreira como um vigoroso polemista.

Viveu entre Belém e Cametá nos anos de 1875 e 1881, ano em que ingressou na redação do Diário de Notícias. É a partir daí que começou a aparecer o pseudônimo que vai torná-lo famoso – Mephis-topheles, com o qual o jornalista passa a assinar muitos artigos que vão da crítica ao humor, da polêmica à reflexão política. O passado como “tribuno” refletiu-se bastante em seu decidido engajamen-to nas campanhas abolicionista e republicana. No ano seguinte, contudo, ele não estaria mais no Diário e, João Campbell, seu ex-patrão, o atacaria no periódico A Troça. Juvenal Tavares passa então a editar sua própria gazetilha, chamada O Papagaio, de-monstrando sua qualidade de falador, em alusão e homenagem ao célebre panfletário maranhense Vicente Ferreira Lavor Papagaio, que ganhou fama no contexto da Cabanagem.3 Quase imediata-mente, o jornal, publicado semanalmente, foi considerado à época “como o mais espirituoso jornal caricato que tem aparecido nesta cidade, quer no texto, quer nas gravuras”.4 Em 1885, ingressou na redação de A Província do Pará, onde permaneceu pouco menos de um ano. Retornou ao Diário de Notícias em 1886 e na redação do jornal ocorreu o feliz encontro com o jovem Antônio de Pádua Carvalho (1860-1889), uma relação que daria muitos bons frutos e provocaria a maledicência opositora, com uma acusação pública do relacionamento homossexual entre os literatos.

No período entre 1886 e 1889 – ano de morte de Pádua Carva-lho –, a convivência dos dois jornalistas imprimiu uma face impor-tante ao Diário de Notícias. O jornal continuou politicamente com-bativo, o que não impediu que as facetas poéticas dos redatores viessem à tona. Note-se que as preocupações sociais apresentadas

3 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Páginas antigas: uma introdução à leitura dos jornais paraen-ses, 1822-1922”. Margens. V. 2, n. 3, 2005, p. 245-266.

4 Até hoje não foi possível localizar um único exemplar desse jornal. O Papagaio, periódico semanal, teve o seu primeiro número lançado em 10 de agosto de 1882. Cf. BIBLIOTECA PúBLICA DO PARá, Jornais paraoaras: catálogo. Belém: Secult, 1985, p. 89.

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por ambos, em seus discursos abolicionistas, irão se revestir num profundo interesse por tudo que era “popular”. Esse termo, sacrali-zado na imprensa e na literatura, foi uma constante nesses intelec-tuais. Defender a causa popular também era registrar seus costumes e suas tradições. Em 1888, dedica “aos proletários do Pará” o livro de poemas A viola de Joana, contando a história de uma escrava que vive a experiência da libertação. Numa nota ao leitor acrescenta: “A minha heroína é uma ficção; mas uma ficção que exprime a maior realidade de nossa sociedade; porque não finge, senão o que real-mente existe”.5 Nos jornais da cidade, seus poemas tornam-se hinos recitados em saraus comemorativos da libertação dos escravos, en-tremeados de símbolos sobre a infâmia do cativeiro, da luminosidade dos novos tempos e dos ideais republicanos de fraternidade:

Ao romper de nova aurora

Jaz por terra pra sempre a escravatura!

Ergueu-se altiva e bela a Liberdade!

Ao romper de celeste claridade,

Rasgou-se o véu da nossa noite escura!

Pujante e alegre a geração futura

Levanta-se nos braços da Igualdade!

E ao doce amplexo da Fraternidade,

Hinos ressoam !... Novo sol fulgura!...

Abaixo para sempre o preconceito

Que aviltou longo tempo a pátria amada,

Fazendo-se de nós um mau conceito!

Essa raça que foi tão desgraçada,

Erguendo-se do vil, infame leito.

Vem-nos trazer a luz d’uma alvorada!66

5 TAVARES, Juvenal. A viola de Joana. Pará: Typ. do Diário de Notícias, 1888.6 TAVARES, Luiz D. Juvenal. Versos: antigos e modernos. Belém: Typ. de A. F. da Costa,

1889, p. 25.

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Proclamada a República, Juvenal Tavares foi nomeado Secretário Interino da Instrução Pública, mas continuou escrevendo para o jor-nal e publicando livros – agora com vivo interesse de formar futuros cidadãos para a jovem República. Com isso realizou uma empreitada ambiciosa para a época, buscar nas histórias narradas nas antigas senzalas o fundo moral para a literatura infantil que deveria ser en-sinada nas escolas primárias paraenses. Foi assim que em 1890, publicou dois outros livros fundamentais: A vida na roça: contos e scenas de costumes paraenses e Serões da mãe preta: contos popula-res para crianças. Juvenal diz que pretendeu com este livro “copiar com verdade os ‘contos da mãe preta’”, chamando nossa atenção ao sentido político que esse tipo de literatura tomava, ao seu tempo, para esses autores engajados nos movimentos operários e populares. Lançando os olhos para o presente, o que chama a atenção em toda essa história é que a atividade do folclorista, atualmente considera-da por muitos como anacrônica e despolitizada, surgiu aqui a partir de um movimento político com pretensões revolucionárias. Vicente Salles resume os elos entre a perspectiva folclórica e socialista na obra do literato: “Juvenal Tavares é recordado como poeta, mas em-bora tenha produzido alguns poemas, a lira não foi o seu forte”. Mais adiante completa: “O polemista vigoroso, o jornalista destemido, o socialista que se inspirou em Proudhon, Louis Blanqui e Rochefort, são qualidades, ou defeitos talvez intocáveis. Homem cheio de con-tradições, mas de uma energia intelectual indiscutível”.7

Esse vigor revolucionário, está claro, já se fazia sentir na década de 1880 quando Juvenal Tavares criara enorme expectativa em relação às lutas pela liberdade dos negros. Sua vasta obra poética descreve a incompatibilidade da escravidão com novo projeto de nação pretendido pelos republicanos para o Brasil. Libertar os escravos era, mais do que qualquer outra coisa, um passo decisivo em direção à civilização mo-derna. Em Belém, a abolição foi comemorada com “repiques festivos de todas as igrejas e bastas girândolas de foguetes”, os fortes do Castelo e da Barra “saudaram a notícia com salva de 21 tiros”,8 bandas de músi-ca tocaram o hino nacional. A conhecida Liga Redentora dos Escravos fez uma enorme passeata popular à frente do Palácio dos Governado-res, para ouvir as palavras do presidente da Província Joaquim José de Assis. Pela noite, com exceção da salva de tiros, os festejos se repetiram. Tornados invisíveis no meio do “povo”, os ex-escravos não receberam maiores comentários da imprensa. A exceção ficou por conta dos poetas e seus versos com ambição de chegar à cesta

7 SALLES, Vicente “Apresentação”. In: J. Tavares, Op. cit., p. 8.8 Diário de Notícias. 13 de maio de 1888, p. 1.

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da cozinheira e à oficina do sapateiro. A redenção dos escravos era havida então com dádiva da Princesa Regente. Jornais abolicionistas eram capazes de equacionar a luta contra a escravidão e as ideias do racismo científico que então se alastrava pelas instituições médicas e jurídicas.9 Pretender a liberdade dos escravos jamais seria defen-der a igualdade racial. O mundo senhorial e da casa-grande seria, por seu turno, o principal alvo dos poetas.

A um escravocrata

Enorme como voz de tempestade,

Valente como o vendaval raivoso,

Ouço um bramir gigante e ruidoso,

Ouço um tropel a encher a imensidade!

Estronda no sertão e na cidade.

O vozear de um povo generoso...

Mísero escravo, afoga-te no gozo!

Brilhou, enfim, o sol da liberdade!

A ti, ó vil senhor, hoje o que resta ?

O que te resta, ó pífia criatura,

Que passavas a vida, rindo, em festa?

Toma da enxada e cava a terra dura;

Come o pão com suor da tua testa;

Infeliz, acabou-se a escravatura!10

9 MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. “O que a mulata tem a ver com a Senhora Aparecida? Discursos sobre cor, raça e gênero no Brasil (na virada do século XIX e do XX)”. Humanitas. v. 20, n. 1/2, 2005, p. 7-27 e FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Negro em terra de índio: matrizes intelectuais das teorias racistas na Amazônia do século XIX. In: CAMPOS; Cleise et al (Orgs.). Políticas públicas de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sirius; UERJ, 2007, p. 131-145.

10 TAVARES, Luiz D. Juvenal. Versos: antigos e modernos. Belém: Typ. de A. F. da Costa, 1889, p. 27.

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XI. Vida Cultural

Posteriormente lançados no volume Versos: antigos e modernos, em 1889, os poemas de Juvenal Tavares resumem parte importante de uma aresta do abolicionismo paraense que sonhou em ver a revo-lução socialista e libertária no entremeio da abolição da escravidão. Difícil solução. O sonho de liberdade do poeta ruiria pouco tempo de-pois com a própria decepção com os destinos da República brasileira, acusada despótica e conservadora, por ele mesmo. Mas a liberdade começara a ser construída, isso não havia como se mudar.

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O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão

Aline Maria de Carvalho Pagotto

Sermos nós mesmos sempre é chegar a ser esse outro que somos e que trazemos escondido no nosso interior, mais do que tudo como promes-sa ou possibilidade de ser.1

O ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998) partici-pou de uma geração de escritores latino-americanos que se dedicou a questões clássicas, como a modernidade, a identi-

dade coletiva das sociedades da América Latina, os modelos de orde-namento social, os complexos vínculos com os países desenvolvidos e o consequente futuro de suas regiões. Ele nasceu e morreu na Cida-de do México, formou-se em Direito pela Universidade Autônoma do México (Unam) com especialização em literatura mexicana, estaduni-dense, parisiense e japonesa. Ao longo de sua trajetória, empenhou-se pela divulgação da cultura no país e, para tanto, acompanhou a história mexicana, em seu âmbito cultural, político e social, a partir da fundação de grandes revistas, tais como a Barandal (1933), Cuar-denos del Valle del México (1933), Taller (1938-1941), Plural (1971-1976) e Vuelta (1976-1993).

Autor de obras críticas insubstituíveis e previamente conhecidas por seu amplo foco analítico (arte, poesia, crítica, política, história e filosofia), firmou-se como a persona literária mais influente, re-conhecida e controvertida do século XX. Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1990, consagrou-se no grupo dos melhores litera-tos latino-americanos. Octavio Paz também recebeu outros prêmios, como o Cervantes (1981), o Aléxis de Tocqueville (1984), o Prínci-pe das Astúrias (1993) e a Grã-Cruz da Legião de Honra da França (1994). Um reconhecimento obtido pela autoria de obras célebres, como O Labirinto da Solidão (1951), Filhos do Barro (1974), O Ogro Filantrópico: história e política (1979) e Templo Nublado (1984). Assim como, por suas grandes obras poéticas, tais quais Pedra do Sol

1 Paz, Octávio. O Labirinto da Solidão e post-scriptum. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992, p. 155.

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(1957), Salamandra (1962), Filhos do Ar (1979) e A Chama Dupla: amor e erotismo (1993).

Definido por muito estudiosos como um intelectual de duplo ofí-cio, devido a sua veia poética e crítica, propôs, na maioria de seus ensaios, uma rediscussão da modernidade mexicana. Octavio Paz buscava incitar novas e profícuas problematizações para esse antigo debate latino-americano e assim conduzir o país a um verdadeiro pro-cesso de modernização. Exatamente por não conceber esse mesmo processo como um desenvolvimento unicamente político-econômico, mas também sociocultural. É importante lembrar que o intelectual estava escrevendo de um México em forte choque social entre estru-turas pré-modernas e modernas, em meio a um processo de moder-nização truncado e que buscou uma mentalidade moderna inspirada nos modelos de desenvolvimento normalmente europeu e/ou norte-americano. Além dessas importantes análises políticas e culturais, a partir da poesia concedeu e decifrou novos signos ao mundo.

Paz, acima de qualquer outra função,2 foi primeiramente um po-eta. A brumosa poética, que o envolveu, influenciou na formulação de conceitos e no desenvolvimento de temas para os ensaios, fazendo com que não concedesse a devida atenção à clareza e à lógica de uma argumentação científica. E, ao procurar entremear esses dois mundos distintos num só ofício (o da poesia e o do ensaio crítico), produziu com grande complexidade conceitos rotativos e heterogêneos;3 com base nos filhos mais turbulentos do Velho Mundo moderno, como Tocqueville, Constant, Montesquieu, Marx, Nietzsche e Ortega y Gasset. Segundo Celso Lafer, Paz “buscou redescobrir a figura do mundo na dispersão dos fragmentos. Os signos estariam em rotação em razão do senso de incongruência entre o criar e o viver na civili-zação contemporânea”.4

O primeiro ensaio crítico intitulado O Labirinto da Solidão (1950) se firmou como importante análise da formação sociocultural me-xicana. A obra ensaística foi influenciada por conceitos freudianos, especialmente no que se refere à cultura e aos conflitos humanos (neurose, angústia, busca de equilíbrio etc.). Da mesma forma que,

2 Octávio Paz exerceu vários cargos ao longo de sua vida. Foi poeta, escritor, diplomata, professor de Universidades e editor-chefe de revistas.

3 A heterogeneidade nas obras do autor é costumeiramente debatida por estudiosos, assim como o jogo dos contrários que utiliza como recurso linguístico para assinalar as labirínticas construções históricas, sociais, políticas e culturais. Exemplo: a tradição e o moderno; o eu e o outro; a vida e a morte; o mito e a História.

4 LAFER, Celso. Sua palavra se ajusta à criação e à crítica. Jornal da Poesia, São Paulo, 1998. Domingo, 26 de Abril.

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O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão

pelo clássico ensaio de Samuel Ramos intitulado “El perfil del hombre y la cultura en México” (1934) envolto pela ânsia em traçar uma iden-tidade e uma filosofia mexicanas. Há, não obstante, na obra, uma sondagem sobre a clausura mexicana – país fechado ao mundo e a si mesmo – e também sobre os instrumentos que o mexicano utilizaria para tal fim: as máscaras.

Como afirma Octávio Paz em post-scriptum,

O labirinto da solidão foi um exercício da imaginação crítica: uma vi-são e simultaneamente uma revisão. Uma coisa muito diferente de um ensaio de filosofia do mexicano ou da procura do nosso pretenso ser. O mexicano não é uma essência e sim uma história. Nem ontolo-gia nem psicologia. O que me intrigava (e intriga ainda) era menos ‘’o caráter nacional’’ que aquilo que este caráter esconde: o que está por trás da máscara.5

É importante esclarecer que, como asserção introdutória, no en-saio a crítica não é preestabelecida, com um julgamento ou um obje-tivo, mas solidificada juntamente com a reflexão proposta pela obra.6 O próprio ensaio literário é difícil de ser classificado, já que não se-gue um método, por ser aberto e exploratório, permitindo o enfoque multidisciplinar dos temas. Ao contrário do discurso científico, no interior do ensaio um conceito se desenvolve concomitantemente à penetração da subjetividade, seja ela crítica, reflexiva, analítica etc. No caso de O Labirinto da Solidão o posicionamento de preceitos po-éticos obedece às ideias barrocas, concedendo espaço à polifonia e à imersão no panteísmo. Encalça-se de uma postura reflexiva, ora a desvendar mitos, ora a analisar a transcendência de ideias nos pro-cessos sociais.

Sendo assim, na referida obra, o autor buscou, embora de for-ma marginal,7 restabelecer a consciência de um México que, do seu ponto de vista, teria sido sepultado vivo, com seus anseios, juí-zos e impulsos. Para restabelecê-la, segundo Paz, seria necessário uma revelação existencial – uma epifania – semelhante àquela que se dá durante a adolescência. O adolescente, como no mito grego de Narciso, se encanta pela imagem refletida e busca compreendê-la. E, tombado às margens de sua consciência, indaga-se sobre o refle-tido rosto disforme devido à incerteza das águas. Deslumbrando pela

5 PAZ, Octávio. Op. Cit., (p. 195)6 Tal gênero foi criado por Michel Eyquem de Montaigne e posteriormente teorizado por Georg

Lukács e Theodor Adorno.7 À margem das normas éticas.

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infinitude de possibilidades do ser, encontra o eu e o outro. Junto ao deslumbramento das riquezas oferecidas por um mundo recém-percebido, se dá o introvertimento voltado ao autoconhecimento. Por isso, afirma em O Labirinto da Solidão,

Em algum momento, nossa existência se revela como intransferível e preciosa. Quase sempre esta revelação se situa na adolescência. A des-coberta de nós mesmos se manifesta como um saber que estamos sós; entre o mundo e nós surge uma impalpável e transparente muralha: a da nossa consciência. (...) Aos povos em transe de crescimento ocorre alguma coisa parecida. Seu ser se manifesta como interrogação: o que somos e como realizaremos isto que somos?8

Octavio Paz buscou, em verdade, fazer o début mexicano. Afinal, a adolescência corresponde ao abandono da juventude e o início da vida matura. O intelectual como se imbuído pelo desejo de apresentar o país às nações desenvolvidas e consideradas modelo em seu processo de modernização, assemelha o país à imagem de um adolescente, com seus conflitos internos, introspecções, soberba, em pleno processo de construção de sua individualidade. Ou ainda, relata um México com características típicas da transição eufórica da juventude. Ainda as-sim, apresentá-lo enquanto adolescente garantia a notificação de que a sociedade mexicana estaria em meio a um processo de transição, como o da adolescência, caminhando da pré-modernidade para a modernidade. Uma forma também de declarar um México que aban-donou a adolescência e está rumando à maturidade.

Nota-se nas quatro primeiras partes do ensaio, respectivamente “O pachuco e outros extremos”, “Máscaras mexicanas”, “Todos os Santos, Dia de Finados” e “Os filhos da Malinche”, a análise pro-funda do ser mexicano e de sua mexicanidade. Nas últimas quatro partes, respectivamente “Conquista e Colônia”, “Da Independência à Revolução”, “A inteligência” mexicana” e “Nossos dias”, há o desen-cadeamento histórico que produziu esse mesmo ser. Enfim, para o autor, ultrapassar essa etapa significaria tomar consciência de si, restabelecer-se, mas também perceber-se só. Já que um dos princi-pais signos da maturação seria também a percepção da solidão. Por esta razão, afirma que,

A solidão, o sentir-se só e saber-se só, desligado do mundo e alheio a si mesmo, separado de si, não é característica exclusiva do mexicano. Todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos; e mais: todos os homens estão sós. Viver é nos separarmos do que

8 PAZ, Octávio. Op. cit., p. 13.

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fomos para adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é a profundeza última da condição humana. O homem é o único ser que se sente só e o único que busca o outro.9

A visão de um México Jovem fundamenta-se na ideia das socieda-des latino-americanas como não sendo modernas. Num lado oposto a elas, erguem-se os EUA, exemplo de modernidade. Como afirma Xavier Rodriguez Ledesma,10 a explicação paciana do ser mexica-no envolve-se da atitude, posicionamento e distanciamento, que o próprio mexicano toma perante o moderno. As principais diferenças entre mexicanos e norte-americanos não se restringiriam ao desen-volvimento econômico, mas seria notável em razão da conformação histórica do México. É importante afirmar que, segundo Paz, essa adolescência, da qual o México deveria fugir, teria se iniciado somen-te com a Revolução Mexicana (1910-1917) e, por ela, teria aprendido a se contemplar e a traçar sua singularidade. Por isso afirma,

Não quero dizer que o mexicano seja crítico por natureza, mas sim que atravessa uma etapa reflexiva. É natural que, depois da fase explosiva da Revolução, o mexicano se recolha para dentro de si mesmo e, por um momento, se contemple. As perguntas que nós fazemos agora pro-vavelmente serão incompreensíveis dentro de cinquenta anos.11

A ausência da modernidade, para o autor, constituiria reflexo de uma aguda carência de espírito, além de também significar falta de consciência em si, ambos fatores que podem levar a uma sensibilida-de semelhante a de um pêndulo, sem razão, oscilando com violência e sem compasso.12 Segundo Paz, somente um grupo representaria esse estado de espírito, o grupo de adolescentes mexicanos chamado de pachucos, presente na primeira parte da obra.

O grupo los pachucos viveram no sul dos EUA, no fim da déca-da de 1940, e se singularizaram por sua vestimenta e linguagem. Segundo Octavio Paz, o grupo não reivindicou uma nacionalidade, não afirmou nada de concreto, além da vontade de não ser como aqueles que o rodeavam. Não pretendia retornar às tradições, muito menos se enquadrar aos moldes norte-americanos de vida. O pachuco

9 PAZ, Octavio. Op. cit. p. 175. 10 RODRIGUEZ, X. Ledesma. El concepto de Modernidad en Octavio Paz. Colima: Revista de

estudios sobre las culturas contemporáneas. Diciembre, año/v. V, n. 10. Universidad de Colima, México. p. 127-142.

11 Idem, p. 15. 12 Idem, p. 16-29.

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negava a si mesmo e, por toda a impulsividade juvenil, se contradizia. A primeira e principal delas, seria o próprio nome, que corresponde à filiação incerta.13 A partir disso, salientou-se ainda mais as diferen-ças entre norte-americanos e mexicanos, provocando o aumento das opressões aos latinos em Los Angeles. Ao rejeitar a sociedade norte-americana, enalteceram-na, fazendo da sua própria causa, inautên-tica e superficial.

Na obra ensaística, Octavio Paz passa do grupo adolescente – pachucos – ao mexicano adulto. Ao sobrevoar a construção social mexicana, aponta um ser de arisca solidão. Ao mesmo tempo, sensí-vel, hermético, espinhoso e cortês. O el macho é enclausurado em si mesmo e, por isso, prejudicado em seu ideal de hombridade. Assim, receia o meio que o cerca e, contra qualquer abertura de seu “eu”, marca inconfundível de fraqueza e traição, desenvolveu um mecanis-mo individual de fechamento. Ao duvidar da genuinidade dos senti-mentos alheios, em defesa, o macho dissimula; disfarça seus senti-mentos. Uma reação, para o autor, cujo reflexo teria sido a história e o caráter da sociedade, pois a dureza e a hostilidade do ambiente os obrigou a se fechar ao externo.14 Já a mulher, estigmatizada por sua abertura, ferida incurável, se firmou como o espelho da von-tade masculina. A mexicana seria escassa de vontades, seu corpo somente dormiria hipnótico. Esperava e desdenhava, muito embora se opusesse a certo hieratismo. Um sinal, para o autor, de que a dissimulação ultrapassa a questão de gênero e que esteve fincada na estrutura mexicana. Ou melhor, a dissimulação seria a essência do caráter mexicano, um caminho alternativo à autenticidade.15

As máscaras foram construídas e utilizadas por todos os momentos. Neste caso, o mexicano teria sido somente sentido – verdadeiramente – em uma única ocasião: a festa. Estas, quase sempre religiosas, revelariam o verdadeiro ser mexicano. Afinal, como em uma revolta, a festa dis-solveria a sociedade e derrubaria as máscaras. Todos conviveriam. A festa, tal qual afirma o autor, seria a experiência da desordem.16 E também o portal entre o mundo terreno e o espiritual. Celebrá-la em tempo mítico reajustaria a realidade. Ou mais, realizaria a abstenção terrena; desordenaria para ordenar. Por esta razão, afirma,

O mexicano, ser áspero, fechado em si mesmo, de repente explode, abre o peito e se exibe, com certa complacência e detendo-se nos meandros vergonhosos ou terríveis de sua intimidade. Não somos

13 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 17. 14 Idem, p. 31.15 Idem, p. 41.16 Idem, p. 49.

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francos, mas nossa sinceridade pode chegar a extremos que horro-rizariam um europeu. A maneira explosiva ou dramática, às vezes, como nos despimos e nos entregamos, quase inermes, revela que alguma coisa nos asfixia ou nos coíbe. Alguma coisa nos proíbe de ser. E porque não nos atrevemos ou não podemos encarar nosso ser, recorremos à festa.17

A festa ao mexicano fixar-se-ia atrelada à religiosidade, tal qual a vida manter-se-ia conectada à morte. Esta, segundo o autor, seria o espelho refletor das gesticulações vãs da vida.18 Por esta razão, se a morte careceu de algum sentido, a vida também o necessitou. Do mes-mo modo, a morte deve corresponder dignamente à vida que se foi, caso contrário a vida habitada seria de outrem. Para o antigo asteca, também há a oposição entre vida e morte, porém essa mesma vida se prolonga na morte. E, nesse sentido, a morte não seria o fim natural, mas o início de um novo ciclo. A lógica se modificou somente com o advento do catolicismo. A ideia de salvação, antes coletiva, tornar-se-ia pessoal. O indivíduo tornou-se primordial ao cristão, posto que o mun-do encontrar-se-ia perdido de antemão. A redenção, por sua vez, tornar-se-ia também pessoal e não mais coletiva como antes.

Na análise estabelecida pela obra, percebe-se a descrição de uma sociedade mexicana, cuja crença esteve arraigada, desde os astecas até 1950. Segundo Paz, essa forte crença possibilitou muitos dos processos históricos. Como exemplo, a fé na traição dos deuses e a consequente conquista espanhola. A crença numa traição divina teria provocado o suicídio asteca e gerado as possibilidades para o avanço colonizador. Contudo, a crença na libertação dos despojos es-panhóis pela Independência da Colônia, seria digna de desafetação.19 Mais razoável, seria assumir a gestação de uma Chingada – mãe violentada por um pai agressivo e usurpador. Os próprios festejos da independência também confirmariam tal filiação. Segundo Paz, a independência viria somente com a Revolução Mexicana. Afinal, após a independência, o mexicano, entorpecido pelo ser espanhol, teria ajudado a firmar uma oligarquia espanhola no poder. A Revolu-ção, que teria sido germinada no solo do país, teria derrubado suas máscaras, possibilitando a libertação mexicana. Por isso, afirma que “da Conquista à Revolução, a História mexicana seria uma busca

17 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 51. 18 Idem, p. 53. 19 Idem, p. 55.

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incessante por si mesma, todavia, a História da Revolução adiante seria de introspecção rumo à modernidade”.20

Enfim, no ensaio O Labirinto da Solidão”, Octavio Paz buscou in-troduzir o mexicano, como também o latino-americano, na História mundial, considerando sua realidade e mentalidade. Para realizar tal objetivo, Octavio Paz caminhou até o âmago do ser mexicano e, de-pois, utilizou-se da História, muito embora não tenha sido historia-dor, para coser o indivíduo mexicano a seu país. Por isso, retrata um México adolescente rumo à fase adulta; caminhando em direção à modernidade. Já que, teria sido sepultado vivo e, neste caso, recupe-rá-lo implicaria em fazê-lo tomar consciência de si, tal qual um jovem durante a adolescência. Retomá-lo também significaria harmonizar o mexicano e sua História. A visão de um México Jovem fundamenta-se na ideia de que as sociedades latino-americanas não seriam moder-nas. No extremo oposto, erguer-se-ia a sociedade norte-americana, como exemplo de modernidade. Octavio Paz procurou instigar refle-xões que, antes de uma filosofia do ser mexicano, revelassem aquilo que o caráter nacional esconderia. Muito embora tenha construído conceitos complexos e rotativos, seus poemas e ensaios possuem um link constante com a atualidade, pois dão vazão para que discussões atuais brotem com o decorrer da leitura. Noutras palavras, é sempre enriquecedor discutir o ensaismo de Octavio Paz. Os mais variados temas por ele debatidos encontram-se ainda hoje em questão, posto que surgem na cena política e social das transformações históricas.

Referências AGUIAR, M. Alice. Um diálogo com O Labirinto da Solidão e Post-Scrip-tum de Octavio Paz.

LAFER, Celso. Sua palavra se ajusta à criação e à crítica. São Paulo, 1998. Encontra no site: http://www.jornaldepoesia.jor.br/opaz02c.html

PAZ, Octavio. El Laberinto de la Soledad. México: Siglo XXI, 1951.

______. O Labirinto da Solidão e Post-Scriptum. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992, p. 155.

RODRIGUEZ, X. Ledesma. El concepto de Modernidad en Octavio Paz. Colima: Revista de estudios sobre las culturas contemporáneas. Diciembre, año/vol. V, número 10. Universidad de Colima, México, p. 127-142.

20 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 29.

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Autores

Tiago Eloy ZaidanMestrando do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador do Grupo de Pesquisa Comulti – Ufal/ COS/ CNPq. [email protected].

Rudrigo Rafael Souza e SilvaGraduando em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de iniciação científica CNPq do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Sociais e Polí-ticas Sociais. [email protected].

Uelinton Farias Alves Jornalista e escritor

Marco Antônio F. de MatosMestre em Teoria e Crítica Literária pela PUC-SP, orientador educacional do Colégio Guilherme Dumont Villares, em São Paulo.

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Introdução à afirmação dos direitos humanos em dois livros

Tiago Eloy Zaidan com colaboração de Rudrigo Rafael Souza e Silva

Em 2008, comemoraram-se os 60 anos da Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos, importante marco universalizador que coroou a militância dos direitos humanos do pós-Segun-

da Guerra Mundial. Contudo, a marcha dos direitos humanos na lida por sua afirmação é bem anterior a saliente seção da Assem-bleia Geral das Nações Unidas realizada em 10 de dezembro de 1948. Trata-se, a bem da verdade, de uma labuta que ultrapassou séculos, modos de produções divergentes e que se banhou de sangue em di-versos momentos revolucionários.

As obrasLançado em 2006, o livro Direitos humanos, de autoria do histo-

riador Marco Mondaini, apresenta-se oportunamente como um per-tinente almanaque que reúne 50 escritos, de diversas datas e na-tureza, selecionados por terem cumprido um importante papel na afirmação dos direitos humanos em sua jornada mundial, ao longo da história moderna e contemporânea. Dentre tais escritos estão, ora por meio de trechos, ora por meio de transcrições integrais, hinos, discursos, encíclicas da Igreja Católica, e obras relevantes de gran-des vultos do pensamento social universal, como Rousseau, Locke, Montesquieu, Stuart Mill e Marx, dentre outros. Constam, também, cartas de direito, como algumas constituições do século XX (mexicana,

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chinesa, soviética e cubana), que apontam para a incorporação dos direitos exigidos e reivindicados pela classe trabalhadora, através de lutas sociais.

O sucesso da obra, que pode, em parte, ser atribuído ao amplo espectro de leitores a qual se destina, em função de seu texto leve e didático, acabou rendendo um segundo livro, publicado em 2008, durante as comemorações relativas ao sexagenário da declaração de 1948 e aos 20 anos da Constituição vigente no Brasil. Trata-se do volume Direitos Humanos no Brasil que, assim como a obra original, tem em vista o mapeamento do processo de formação da cultura dos direitos humanos, desta feita, no Brasil contemporâneo, mais pre-cisamente de 1930 a 2002. Aqui, o autor cita 33 textos comentados e contextualizados de modo a apresentarem-se cronologicamente, seguindo a mesma dinâmica de fazer um apanhado de textos, docu-mentos, manifestos e positivações que atestem a presença de uma consciência cidadã em nosso país. O autor reforça a importância de alguns intelectuais cuja contribuição para compreender a sociedade brasileira se avulta consideravelmente quando nos deparamos com a re-configuração dos diversos elementos patrimonialistas presentes em nossa história (da mais recente a mais remota). São emblemas destes “intérpretes do Brasil”: Sérgio Buarque de Holanda, Raymun-do Faoro, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Dentre os documen-tos destacados, um recebe especial atenção do historiador. A Consti-tuição Federal de 1988.

Marco Mondaini é mestre em história econômica pela Universi-dade de São Paulo (USP), doutor em serviço social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É ain-da coautor de História da cidadania (2003) e História das guerras (2006), ambos pela editora Contexto, dentre outras publicações. Sua militância intelectual em defesa da afirmação dos direitos humanos, já reconhecida nacionalmente, vem pautando sua carreira acadêmi-ca. Defesa esta justificada por teses como a que atribui “... o nível de civilidade alcançado por uma sociedade – e seu progressivo distan-ciamento da barbárie...” à “... capacidade que esta tem de fazer com que os seus concidadãos sejam protegidos pelo generoso guarda-chuva dos direitos humanos” (MONDAINI, 2008, p.12).

Mesmo reconhecendo retrocessos pontuais, alguns já superados – como o Estado de terror implantado pelo golpe de 1964 no Brasil – e outros anacrônicos – como a marginalização das classes subal-ternas brasileiras –, Mondaini, em seu Direitos humanos e Direitos humanos no Brasil, continua a revelar-se um intelectual otimista,

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característica claramente perceptível também em outras obras e artigos de sua autoria. Otimista com os avanços obtidos a duras penas por meio de incansáveis lutas dos movimentos sociais – mes-mo aquelas pouco percebidas ou mesmo questionadas – mas que, de alguma forma, contribuíram para uma lenta, porém caminhan-te, construção de uma cultura ou percepção, ainda que apenas simbólica, de valorização dos direitos humanos ao longo de três grandes ciclos.

Os ciclos de afirmaçãoO primeiro ciclo de afirmação dos direitos humanos na história

mundial ocorre, ao longo dos séculos XVII e XVIII, com o paulatino advento de um novo modo de produção hegemônico, o capitalismo, em superação ao feudalismo, e com a ascensão de uma nova classe social: a burguesia. Pode-se dizer que sua origem remonta a Inglater-ra, Estados Unidos e França. Em seu bojo está a luta pelo reconheci-mento dos direitos civis e políticos, possibilitando, para um segundo momento, a ampliação do relevo inicial, para contemplar direitos no sentido das liberdades coletivas e, principalmente, da igualdade po-lítica, com a labuta pelo sufrágio universal.

Já o segundo ciclo de afirmação dos direitos humanos foi forte-mente influenciado pela luta entre as classes burguesa – a esta altura passando a assumir um papel reacionário – e a trabalhadora. Nesse período o pensamento socialista e as ações inspiradas por este, pos-suindo em sua essência a crítica, a lógica da produção e reprodução da desigualdade no capitalismo, passa a vincular-se intensamente com as lutas em defesa dos direitos humanos.

Por fim, o terceiro ciclo da afirmação dos direitos humanos no mundo é marcado por uma luta dupla: em defesa da efetiva realiza-ção de direitos já conquistados em momentos anteriores, mas ainda não estendido a todos na prática, e da ampliação do hall de direitos, com a inclusão de novas demandas a somarem-se com as conquistas já obtidas.

No cenário brasileiro, abordado na obra Direitos Humanos no Brasil contemporâneo, é peculiar uma inversão que não deve ser ignorada. Nada que necessariamente esteja ligada à nomenclatura até então utilizada, mas sim à dinâmica clássica, segundo Mar-shall, de constituição dos direitos e seu corolário. A ascensão dos direitos humanos em âmbito nacional se inicia no “Brasil con-temporâneo” (a partir da década de 30) e é marcada pela garantia

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dos direitos sociais numa sociedade na qual nem as liberdades individuais nem a esfera pública se encontravam amadurecidas. Isso veio reforçar uma correlação de forças favorável à manuten-ção do poder nas mãos da hegemonia dominante. Vislumbrar uma ruptura com esse panorama só foi possível, contraditoriamente, no volver histórico de um momento caracterizado pela forte ne-gação dos direitos civis e políticos, a saber, o período ditatorial (1964 – 1985). Nesse instante, surge no país uma agenda política coletiva de lutas sociais que buscam pôr em xeque os alicerces do autoritarismo vigente no país. O movimento de redemocratização do Brasil, apesar de entrecortado pela chegada do neoliberalismo, deve ser considerado ponto de partida da socialização do poder e de uma revolução processual.

Entretanto, a despeito de tal asseveração (não linear – é sempre bom frisar), não são poucos aqueles que fazem oposição aos direitos humanos, ou, quando não, encaram-nos com relativa desconfian-ça. Neste bojo, como bem cita Mondaini (2008, p. 12) em seu Direi-tos Humanos, estão: os neoliberais, que os veem como um fardo a atrapalhar os seus objetivos de lucro racional, via livre-mercado e os militantes marxistas ortodoxos, que os vêem como mera colcha mal-retalhada com vistas a, apenas, encobrir as estruturas e lutas de classes na contraditória sociedade capitalista. Como se não bas-tassem tais concepções contrafeitas, há, ainda, a generalizada e or-dinária visão que rotula os direitos humanos como mero instrumento de defesa de “bandidos”.

De fato, não deixa de ser curioso como a militância a favor dos direitos humanos possa causar tanta repugnância e suspeita, sen-timentos que não são exclusividade do século XXI. Ao longo da evolução de sua afirmação no mundo os direitos humanos sempre enfrentaram algum tipo de aversão. Em sua jornada, de avanços e retrocessos, o que mudou foram os seus opositores: representan-tes da nobreza e do clero, durante o regime feudal, colonizadores europeus, no advento da modernidade, e até mesmo um ex-aliado importante, a burguesia, com o avanço da sociedade capitalista e a sua posterior consolidação. No século XX, já eram tantos os seus opositores, de vários segmentos ideológicos distintos, que se tornou uma missão inglória atribuir-lhes o crédito devido.

A despeito de tanto aferro, para o professor e historiador Marco Mondaini, os direitos humanos possuem um sentido universal, “... antes de mais nada, porque passou a tratar a totalidade dos seres humanos vivos com base em critérios igualitários...” (2008, p. 12), percepção esta, complementada pela tradição que prega o tratamento

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dos desiguais de maneira desigual. Explica-se: para aqueles indiví-duos inferiorizados no interior das relações sociais faz-se imperativo um tratamento legal distinto, com vistas a alçar-lhe a condição de par dos demais indivíduos. Somente assim a igualdade puramente formal passaria a ter cabimento.

Até chegar à sua terceira geração, situada nos dias de hoje, – onde é inerente a forte influência, em seu seio, das tradições li-beral, democrática e socialista – os direitos humanos encararam uma batalha gradual e não linear de apresentação de demandas e de contínua ameaça de perda de direitos. Atualmente, em meio aos esforços por engendrar os chamados “direitos dos povos” – uma das principais demandas deste terceiro ciclo – encontra-se o paciente desafio do diálogo. Diálogo este a ser empreendido por seus militantes, necessário para dirimir percepções negativas e para aproximar potenciais aliados, ainda esquivos, na luta pela afirmação dos direitos humanos.

O grande desafio em nosso país é o de desatar os nós de uma estrutura social onde os interesses privados (econômicos) se sobre-põem a uma cultura política consoante com a vontade pública e com as necessidades das classes e grupos historicamente excluídos do processo de distribuição da riqueza socialmente produzida. Tornar consciente esse processo se faz premente a qualquer aspiração de transformação social.

Do que até aqui fora expresso, pode-se extrair a intenção de continuidade do legado – ainda in constructo – do autor que, lan-çando mão da mediação teórica, porém abdicando de qualquer resquício de academicismo, procura dar profusão ao debate so-bre a temática percebida como estratégia de transformação dos paradigmas de desumanidade de nossa sociedade. Sendo assim, o diferencial do pensador em questão e a relevância das obras aqui sintetizadas estão na tentativa de evidenciar o significado da práxis política na contemporaneidade, pautada na constituição de uma nova cultura, alicerçada na construção contínua de uma consciência ética universal. Tal hegemonia situa-se no vértice das conquistas dos diversos sujeitos sociais e do pensamento político-filosófico voltado para a expansão do desenvolvimento histórico dos direitos dos humanos. Destarte, constrói, por meio da objeti-vação orgânica de sua intelectualidade, seu vínculo com a filosofia da práxis gramsciana que tem como aspiração:

Uma “reforma intelectual e moral” que não pode estar desvinculada dos ideais de “reforma econômica”, pois a hegemonia é ético-política

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mas também econômica. Só assim será edificado um bloco histórico alternativo, isto é, uma outra “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura)”.1

Sobre as obras: MONDAINI, Marco. Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Contexto/Unesco, 2008, 192p.; Direitos Humanos no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesco, 2009, 144p.

1 MONDAINI, Marco. A filosofia da práxis sobe ao sótão. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=281> . Acesso em 05 de jan. 2009.

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Saga de Zumbi dos Palmares revivida

Uelinton Farias Alves

Depois da publicação de Memorial dos Palmares, o historiador Ivan Alves Filho vem sendo considerado um típico especia-lista sobre história do passado, na mesma acepção que o

seu livro, lançado 20 anos após a sua primeira concepção na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, de Paris, e recomendado pelo Centre National de Recherche Scientifique entre as obras considera-das “outils de recherche” – ou instrumento de pesquisa da instituição – é, no gênero, o trabalho mais atualizado sobre a saga de Zumbi dos Palmares, equiparando-se em concepção e qualidade, às obras referenciais, sobre o período, que são O quilombo dos Palmares, de Édison Carneiro, Rebeliões da Senzala, de Clóvis Moura, e Palmares: a guerra dos escravos, de Décio Freitas – todas, sem exceção, pionei-ras no que se referem aos estudos sobre conflitos raciais iniciados no Brasil Colônia.

Com Memorial dos Palmares, no entanto, Ivan Alves Filho inaugu-ra uma nova fase dos estudos coloniais brasileiros, a partir da tópica dos estudos que tem, como pano de fundo, não apenas a natureza política dos movimentos guerrilheiros, mas a natureza histórica e social dos mesmos, carregada na observação de que, a grande reação gerada em Palmares, vem de encontro a uma forte ação bélica do re-gime colonialista, sob o comando do império português.

No seu livro, é importante observar, a fidedignidade pela busca histórica de documentos, em fontes primárias, sobretudo nos arqui-vos europeus, como o da Torre do Tombo, fortalece a ideia de que Palmares foi o maior quilombo já surgido no Brasil, não só em ta-manho populacional (chegou a reunir aproximadamente 30 mil pes-soas), mas também em longevidade, já que teria resistido por mais de 120 anos, pois nascido por volta de 1596, em 1716 ainda foram registrados cerca de “8 ataques palmarinos”, o que, sem sombra de dúvida, nos induz a pensar que o quilombo não se extingue com a morte de Zumbi, em 20 de novembro de 1695, tese defendida por uma grande parcela da historiografia.

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XII. Resenha

O historiador Ivan Alves Filho não só põe em xeque essa tese, como, melhor do que isso, descreve minuciosamente os ataques des-feridos pelas forças policiais do governo de Pernambuco, bem como retrata o temor das autoridades ante a fuga em massa dos negros, a ilógica invasão e permanência holandesa na região, o envenenamen-to de Ganga Zumba, depois do acordo com as forças legalistas, e a traição que resultou no assassinato do líder supremo dos Palmares.

Lido e apreciado pelo velho Barbosa Lima Sobrinho, Memorial dos Palmares retrata um Brasil antes do Brasil – na verdade, um país cujo território era terra de ninguém, comandada por homens ganan-ciosos pela riqueza, mas entregue à sorte de Domingos Jorge Velho, figura emblemática e sanguinária que, segundo nos parece, ainda aterroriza nossas esquinas, na ótica da nova política social do Estado brasileiro, sob o pretexto de garantia da ordem e de uma paz cada vez mais longínquas.

Ivan Alves Filho, a propósito, põe a nu toda a história desenvolvida por mais de um século nas regiões entre os estados de Pernambuco e Alagoas. Pontualmente, o historiador supera-se ao transformar o seu livro Memorial dos Palmares num documento de referência para os estudos acadêmicos ou paraacadêmicos do século do Descobrimen-to, século imbricado na história e ao mesmo tempo demarcador de fronteiras geográficas, pontificadas por uma economia cobiçada pelos agentes de governos coloniais internos e externos, o que, sem dúvida, resulta em elementos gerador de conflitos, celeiro das muitas guerri-lhas intestinas, a maior parte delas, contra os negros de palmerinos.

É notório observar que, 20 anos depois da concepção original do seu trabalho, o livro reeditado agora por Ivan Alves Filho continue a nos produzir surpresas agradáveis, por se inseri na moderna cober-tura dos fatos que, mesmos depois de tantos séculos, ainda desperta em nós emoção e curiosidades histórico-literárias.

Investigador experiente, autor de diversas obras referenciais de historiografia e jornalismo investigativo, Ivan Alves Filho poderia dis-pensar maiores apresentações, mas é impossível não fazê-lo, dada a sua trajetória como escritor e pesquisador, autor, entre outros da biografia Giocondo Dias: uma vida na clandestinidade (Mauad, 1997), Brasil, 500 anos em documentos, o delicioso Cozinha brasileira (com recheio de história) (Revan, 2000), e Tudo é política, cuja autoria di-vide com o professor Nelson Werneck Sodré, além de dezenas de ar-tigos e ensaios sobre os primórdios do Brasil do início de nosso de-senvolvimento como nação.

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Saga de Zumbi dos Palmares revivida

Agora, em Memorial dos Palmares, revivemos, com aprazível in-teresse, o desenrolar da história do maior quilombo já surgido entre nós, através do relato, da sagacidade, da pena ágil e da análise percuciente de Ivan Alves Filho.

É, sem dúvida, um livro robusto, importante, pelo seu conteúdo e pelo seu alcance para o resgate da nossa história e conhecimento de nossa juventude. Trabalho profundo, pode se dizer, de passagem, mas que nos dá fôlego para ir até o final de suas páginas.

Sobre a obra: Ivan Alves Filho. Memorial dos Palmares. Brasilia: FAP, 2009, 200p.

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Pandemônio da memória em Chico Buarque

Marco Antônio F. de Matos

A publicação do último romance de Chico Buarque, Leite derra-mado, provocou na crítica literária nacional uma instigante polêmica sobre o valor artístico da narrativa e, também, so-

bre o alcance das influências machadianas que nela estariam pre-sentes. A meu ver, tal discussão, embora aponte para questões reais do universo ficcional do autor, não poderá nos levar a compreender o sentido literário do romance em análise.

Depois do visível amadurecimento literário de Chico, constata-do nas páginas de Budapeste, quando o tema da identidade indi-vidual de um ser humano na sociedade mercantilizada de hoje foi trabalhado com grande sensibilidade narrativa, a crítica e o público leitor aguardavam com ansiedade a publicação do novo livro. Tal expectativa, porém, foi mal conduzida já a partir das primeiras aná-lises que se fizeram a respeito do romance, seja daqueles que, como Carlos Graieb (Veja, 05.04.2009), consideram que Chico pretende fazer um “panorama sociológico” dos últimos cem anos da história brasileira, seja daqueles que, como Roberto Schwarz (Folha de S. Paulo, 28.03.2009), dirigem o olhar para o objeto estético-literário produzido pelo autor a partir de condicionantes históricos e sociais, porém nem sempre destacando a originalidade da solução literária encontrada por Chico.

Há nessas análises, contudo, muitos aspectos positivos que nos ajudam a situar melhor a compreensão do romance. A obra de Chico é ficção literária, e tal caráter é alcançado reunindo ao mesmo tempo vários elementos distintos (sociais e literários), entre eles aspectos da história brasileira e temas caros a Machado de Assis, como o ciúme doentio, expressão do egoísmo de classe do narrador.

De que nos fala Chico? O livro narra na primeira pessoa a vida de um representante da elite brasileira, Eulálio Montenegro D’Assumpção (assim mesmo, com p, para diferenciar-se de um Assunção qualquer), que, de seu leito de morte num hospital infes-tado de baratas, conta-nos a história da decadência de sua família

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Pandemônio da memória em Chico Buarque

tradicional. Seus parentes mais distantes vieram ao país com a Corte de Portugal em 1808; seu avô foi comerciante de escravos à época de D. Pedro II; o pai, senador da República, barão do tráfico de escra-vos e autor de um plano macabro para devolver os negros à África, comerciou com armas de maneira ilegal, atividade que legou ao filho. O narrador vive a decadência dos setores burgueses atingidos pela crise de 1929. A narrativa se estende até o golpe militar de 1964, quando seu neto, “comunista da linha chinesa”, é morto nos porões da ditadura. Para fechar o ciclo da ruína, seu tataraneto é preso como traficante de drogas.

Eulálio casa-se com Matilde, mulatinha rejeitada pela própria fa-mília que a adotara. A mãe de Eulálio se opõe ao casamento que, no entanto, se realiza. Matilde submete-se a todos os caprichos do mari-do até o dia em que desaparece, deixando a filha, Maria Eulália, ain-da no período de amamentação. Antes de fugir, Eulálio a surpreende no banheiro derramando na pia o leite negado à filha; daí, o título do romance, que, segundo Schwarz, pode também ser interpretado como uma metáfora do leite derramado de nosso país, ainda imerso nas desigualdades e nas contradições sociais geradas e alimentadas por todo o período histórico abordado por Chico Buarque.

O panorama histórico é o pano de fundo da história pessoal do personagem. Nascido a 16 de junho de 1907, o protagonista é parte integrante da burguesia brasileira que já nasceu colada ao imperia-lismo estrangeiro (basta pensar em suas relações comerciais com o arrogante engenheiro francês Dubosc) e sempre cresceu impulsiona-da por valores vindos de fora. Por meio das memórias de Eulálio, a burguesia brasileira (ou parte dela, a que não se adaptou aos novos tempos do capitalismo) se desnuda diante de nossos olhos e mostra todo o seu cortejo de misérias: Eulálio é liberal, mas vive à margem da lei e beneficia-se de relações escusas com o Estado; a mãe cultiva modos europeus (só conversa com os filhos à mesa em francês), mas é defensora da escravidão.

Essa situação de convivência entre pretensos valores liberais e uma existência mergulhada no preconceito, no racismo e na aver-são às classes populares1 é justamente o cerne da personalida-de de Eulálio. Sua tragédia acontece a partir de tais limites: o relacionamento fracassado com Matilde caracteriza-se por sua incapacidade de superar a ideia de posse: a esposa é vista desde

1 Roberto Schwarz já analisou, em trabalhos anteriores, o caráter dualista e contraditório assumido no Brasil pela importação do liberalismo europeu por uma burguesia comprometida com o atraso e com a escravidão.

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XII. Resenha

o início (quando se casam, ela tem 16 anos) como propriedade de Eulálio, não apenas no sentido sexual, mas também no senti-do existencial. Ele resolve se ela irá à fazenda ou à praia com os franceses; ele decide se ela irá à festa na Embaixada ou não. Ele a trata de cima para baixo, incomoda-se por Matilde não falar bem o francês, por assobiar e por gostar do maxixe, ritmo dos negros importado da África. Seu elitismo aflora continuamente ao longo do relato em trechos nos quais se revela o desprezo do personagem pelas pessoas que estão à sua volta. No hospital, ele chega a dizer: Hoje sou da escória igual a vocês, e, antes que me internassem, morava com minha filha de favor numa casa de um só cômodo, nos cafundós.

Toda essa história nos é narrada no estilo que Chico Buarque pratica desde seu primeiro livro, Estorvo, no qual, como disse Graieb, “o prosaico se mistura a efetivos achados poéticos”. O que dá consis-tência ao memorialismo de Chico é a técnica da confusão premedi-tada e organizada pelo narrador. O romance é permeado pela ambi-guidade, pela “vaga lembrança” e pela superposição de vários relatos sobre o mesmo fato. O narrador nos alerta: a memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de achar todas as coisas.

É principalmente com o desaparecimento de Matilde que a narrativa concretiza esse seu método primoroso: trata-se de um memorialismo singular no qual a evocação dos fatos associa-se a lampejos poéticos e a imagens de forte conteúdo lírico. Esse desa-parecimento é contado de várias maneiras diferentes: fugiu com um amante, morreu num acidente automobilístico, foi internada num sanatório, suicidou-se... Qual é a versão verdadeira? Não sa-bemos e não é objetivo do romance esclarecer tal situação. O eixo narrativo articula-se ao redor desta ambiguidade, e tal articulação é que o organiza como ficção.

Em termos psicológicos, tal confusão justifica-se pela memória frágil de um ancião de 100 anos. Em termos literários, trata-se de uma escolha certeira de um escritor maduro e consequente. É opor-tuno registrar que até mesmo os interlocutores de Eulálio são cam-biantes, alternam-se a cada instante: às vezes, ele fala para uma das enfermeiras; outras, para a filha, Maria Eulália; em alguns trechos, conversa com o leitor, com sua mãe ou mesmo com o pai já falecido, vítima de sua prepotência ao envolver-se com uma mulher casada.

Outro aspecto interessante da forma literária encontrada por Chi-co para sustentar seu romance foi destacado, ainda que, a meu ver,

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incorretamente, por Eduardo Gianetti (FSP, 28/03/2009) em seu co-mentário sobre Leite derramado: o uso da primeira pessoa confessio-nal. Para esse autor, Chico serve-se desse “recurso exigente”, todavia não consegue realizá-lo com vigor, pois seus personagens são meras sombras com os quais não se consegue criar empatia. Ora, a narra-tiva na primeira pessoa ao estilo confessional caracteriza-se por um paradoxo: ao mesmo tempo que dá vida ao narrador, e, no caso de Chico, também ao período histórico abarcado, coloca em segundo plano as outras figuras da trama narrativa. Trata-se não de uma falha, mas do preço pago pelo autor para levar a cabo sua experiên-cia estética particular. Para superar tal limitação, seria necessário erguer um edifício narrativo mais amplo, ao estilo de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, o que, evidentemente, não era a intenção de Chico Buarque.

Com Leite derramado, Chico repete, em outro contexto, a bem-sucedida experiência de Budapeste. Desta vez, servindo-se da am-biguidade como ponto central do discurso narrativo. E afirma-se no quadro literário brasileiro não como o panfletário “de esquerda” no qual muitos querem transformá-lo, mas no romancista criativo e re-alista que põe a nu diante de seus leitores, de forma artística e ex-tremamente irônica, as mazelas da sociedade brasileira atual. Tanto quanto o Bentinho de Machado, o Eulálio de Chico ergue-se diante de todos não apenas como o marido ciumento e agressivo, e sim como o representante típico de uma elite que ainda domina nosso país, alheia aos ventos da democracia e temerosa das reivindicações dos de baixo.

Sobre a obra: Chico Buarque de Holanda. Leite derramado. São Pau-lo: Companhia das Letras, 2009. 195p.

Fonte: Site Gramsci e o Brasil.

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