n° 20 - os 50 anos da declaração de março

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Tendo como tema de capa o debate em torno da Declaração Política, de março de 1958, documento do Partido Comunista Brasileiro que colocou para a esquerda, pela primeira vez, a questão do caminho democrático para a conquista do socialismo no Brasil, esta edição enfeixa uma série de questões, sob os mais variados enfoques, que merecem a atenção de nossos crescentes leitores.

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Os 50 anos da Declaração Política

de Março

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Fundação Astrojildo PereiraSDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected] www.fundacaoastrojildo.org.br

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorCaetano E.P. AraújoEditor ExecutivoFrancisco Inácio de AlmeidaEditor Executivo AdjuntoCláudio Vitorino de Aguiar

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Copyright © 2007 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2008.Nº 20, março de 2008200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

2007

Os 50 anos da Declaração Política

de Março

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Sobre a capa

A ilustradora da capa desta edição é Berenice Fernandes Bar-reto (nome artístico Berenic), nascida na cidade do Crato, no interior do Ceará, e que realizou sua primeira exposição de

pintura em 1977, na Bahia. De lá para cá não parou mais. Após 15 anos de residência em Salvador, fixou-se no Rio de Janeiro, onde mantém seu ateliê desde 1981. Artista naïf ou ingênua, autodidata portanto, participou de mais de cem exposições individuais e coleti-vas, no Brasil e também no exterior. Suas obras integram, hoje, acer-vos de museus e galerias importantes, como o Museu Internacional de Arte Naïf e o Museu de Belas Artes, ambos localizados no Rio de Janeiro. Colecionadores particulares do Canadá, da França, do Ja-pão e da Itália possuem trabalhos seus.

Berenic traz na pele o sol quente da sua terra. E estampa no rosto bonito os traços de Iracema, ancestral mítica dos cearenses. Sobre-tudo traz na ponta dos pincéis a criatividade da mulher brasilei-ra. Comprova isso, por exemplo, a exposição que realizou há algum tempo, inteiramente voltada para representação pictórica de lendas indígenas da Amazônia. De uma delicadeza sem fim. Impossível não se encantar com ela. Profusão de flores, árvores, folhas, cores, todo o esplendor da floresta. Há algo de Botticelli, de realmente maravilho-so em sua obra. Se o mestre toscano tivesse conhecido a Amazônia, provavelmente teria pintado uma primavera tropical. Ele teria feito tudo exatamente como Berenic fez.

A artista afirma sempre ter gostado de desenhar. Seu maior di-vertimento, quando criança, era rabiscar as calçadas com giz colo-rido ou usando carvão. Cresceu vendo suas avós fazendo croché e com elas aprendeu a dar os primeiros pontos. Depois, veio o incen-tivo do tio Pedroso, pintor naïf como ela, que, um dia lhe presenteou com tintas, telas e pincéis, para que passasse para a tela os dese-nhos que gostava de fazer. Acima de tudo, descobriu que, nas telas, tinha liberdade para sonhar livremente. Berenic traz o Brasil dentro dos olhos - ou melhor, do coração. “Não há porque beber em outras fontes, se esta me sacia”, costuma dizer. Tem plena consciência de que sua arte surge do inconsciente coletivo do povo brasileiro, sem academicismos de nenhum tipo.

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Conforme escreveu a pesquisadora Mariza Campos da Paz, “seus índios e índias vivem numa natureza idílica, cercados de animais em liberdade, cachoeiras e uma vegetação exuberante. De seu pincel inspirado brotam as amazonas, o boto cor-de-rosa, os mitos indí-genas de criação do mundo, aulas de sabedoria naïf dos primeiros habitantes do Brasil”.

Vale dizer, o Brasil dos tempos primevos. O Brasil dos tempos eternos. O Brasil de Berenic.

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Sumário

I. ApresentaçãoJoão Falcão ....................................................................................................................x

II. Tema de Capa – Os 50 anos da Declaração Política de Março de 1958

Um pouco de história da Declaração de MarçoJoão Falcão ....................................................................................................................x

Notas sobre a “imagem do Brasil” da Declaração de MarçoRaimundo Santos ...........................................................................................................x

Uma “Declaração” para uma nova PolíticaJosé Antonio Segatto ......................................................................................................x

III. Observatório Político

A força das mães negrasSueli Carneiro ................................................................................................................x

Vale: a pérola do minério atirada aos porcosLúcio Flávio Pinto ...........................................................................................................x

A cidade sob a ótica do Poder LocalCléia Schiavo Weyrauch ................................................................................................ x

Captura das Agencias Reguladoras: Um fenômeno multidimensionalPaulo Morais Santa Rosa ............................................................................................... x

IV. Batalha das Idéias

Gramsci, o pensador da democraciaGiuseppe Vacca .............................................................................................................x

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Os desafios da biotecnologia no BrasilElza A.B. Brito da Cunha ............................................................................................... x

Cotas nas universidades e a “racialização” do BrasilLeone Campos de Sousa ................................................................................................ x

V. No Compasso das Reformas

Reforma tributária muito aquém da justiça socialRoberto B. Piscitelli e Evilásio Salvador ......................................................................... x

VI. Ensaio

O Educacionismo: Nossa causa-comumCristovam Buarque ........................................................................................................x

VII. Mundo

As primárias: Escolhendo o “novo” presidente dos EUAWilliam Mello..................................................................................................................x

Israel, 60 anos sem pazMoisés Storch .................................................................................................................x

Bento XVI e a guerra na igrejaLeonardo Boff ................................................................................................................x

VIII – Vida Cultural

Dedo duro: patriota ou canalha?Dejean Magno Pellegrin

IX. Memória

Homenagem a Heloneida StudartLuiz Sergio Henriques .................................................................................................... x

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Testemunho sobre a última cartadaHeloneida Studart ..........................................................................................................x

Abrindo caminhos: mulheres e movimento cabanoMoema Alves ..................................................................................................................x

De Sepúlveda a Zé Paulo (Itinerário simplificado)Humberto Gomes de Barros ........................................................................................... x

X. Resenha

Memória CamponesaGuilherme Moita .............................................................................................................x

Ferreira Gullar: Uma reconciliação com o abismoBianca Tinoco ................................................................................................................x

Hiato de uma vidaMaria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke ..................................................................... x

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I. Apresentação

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Autor

Caetano E. P. AraújoProfessor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB)e consultor legislativo do Senado Federal. [email protected]

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Falta texto*

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II. Tema de capa

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Autores

João FalcãoAdvogado, jornalista e escritor baiano, autor de várias obras

Raimundo SantosAutor de Agraristas Políticos Brasileiros (Fundação Astrojildo Pereira-Nead-IICA, 2007), organizou recentemente o livro de Caio Prado Jr. Dissertações sobre a revolução brasileira (Brasiliense-FAP, 2007).

José Antonio SegattoProfessor Livre Docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Unesp, Faculdade de Ciências e Letras, Campus Araraquara.

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Um pouco de história da Declaração de Março1

João Falcão

Na última reunião plenária, em agosto de 1957, o Comitê Cen-tral decidira preparar um documento analisando os reflexos do XX Congresso do PCUS e da recente luta interna do Partido.

Giocondo Dias foi encarregado de coordenar esse trabalho. Para isso, convocou um grupo do qual participaram Mário Alves, Jacob Goren-der, Armênio Guedes, Dinarco Reis, Orestes Timbaúba e Alberto Pas-sos Guimarães. E, no apartamento deste último, à Rua Carvalho de Mendonça, em Copacabana, passaram a reu nir-se secretamente, de dezembro de 1957 a fevereiro do ano seguinte. Nem mesmo o CC tinha conhecimento dessas reuniões.

Dias não apenas coordenou os trabalhos, mas ainda trouxe novas teses à discussão, incentivando a criatividade e a iniciativa dos talen-tosos participantes da elaboração desse documento que, segundo suas expectativas, deveria refletir as mudanças exigidas pela recente crise desencadeada no seio do movimento comu nista mundial. As profundas divergências deflagradas no âmago do PCB abalaram-lhe a disciplina e a unidade orgânica. Conse qüentemente, sua linha política também estava sofrendo um pro cesso de reformulação. Dias então estimulou o debate aberto e corajoso, e o anfitrião da comissão, o sociólogo Alberto Passos Guimarães, contribuiu expressivamente para a formulação do pensamento renovador que prevaleceu nessa resolução política.2

1 Extraído do livro Giocondo Dias, a vida de um revolucionário, de João Falcão, 1993, Rio de Janeiro, Agir, p. 201 a 208

2 Depoimento de Alberto Passos Guimarães, Rio de Janeiro, fevereiro de 1991. Dias

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II. Tema de capa

Com a presença de Prestes, o Comitê Central foi convo cado para discutir esse documento em março de 1958, no Rio de Janeiro. Um fato inesperado quase provocou a suspensão imediata da reunião. Ao receberem os matutinos do dia, na chácara onde se encontravam reunidos, O Jornal trazia um sen sacional “furo” de reportagem, com a notícia da reunião do Comitê Central do PCB, sem mencionar, en-tretanto, o local. A notícia baseava-se unicamente na ausência dos diretores de A Voz Operária e da Imprensa Popular, respectivamente Mário Alves e Jacob Gorender, das redações daqueles jornais. Daí a dedução, por mera especulação provocativa. Inicialmente in decisos, os comunistas resolveram continuar a reunião.3

Submetida à votação, a Declaração de Março foi aprovada pela maioria. Votaram contra: João Amazonas e Mauricio Gra bois; abstive-ram-se: Sérgio Holmos e Calil Chade.

Giocondo desempenhou um papel decisivo para que o Partido en-contrasse uma saída justa e revolucionária para a grave crise que vivia. Sua atuação como coordenador da co missão que elaborou a De-claração de Março e sua contribuição no terreno das idéias ficaram marcadas na história do PCB. A partir desse momento, a liderança que passou a exercer ao lado de Prestes tornou-se evidente.

Diante da inevitável confrontação entre as facções que se forma-ram no bojo da crise de 56/57, Dias preocupou-se so bretudo com a unidade nas fileiras do Partido. Liderou o gru po dos moderados e, em aliança com Prestes, derrotou o chamado grupo liquidacionista, que seguia Agildo Barata, além do grupo conservador, constittúdo pelo velho núcleo di rigente. Desse modo, o CC pôde aprovar aquele docu-mento básico para a nova linha política que questionava a adotada pelo IV Congresso e sua própria organização, considerada ina dequada à realidade do país.

Dias considerava sepultado o stalinismo e propunha a elabora-ção de um caminho brasileiro para o socialismo, sem importação de modelos. A Declaração de Março mudou o des tino do Partido Comu-nista Brasileiro. Com ela marcava-se uma ruptura radical com toda a política anteriormente adota da. Desmoronava-se a ilusão de que a revolução desabrocharia ao amanhecer, rapidamente, fruto da ação voluntariosa de al guns homens.

ressaltou a importância da colaboração teórica de Alberto Passos Guimarães na elaboração da Declaração de Março num depoi mento ao autor, em 1985.

3 Depoimento de Jacob Gorender, São Paulo, fevereiro de 1991.

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Uma pouco de história da Declaração de Março

“Em 1958, começava-se a compreender que as profundas transfor-mações políticas, econômicas e sociais que a sociedade requeria de há muito seriam fruto de um largo processo de luta, no qual o elemento indispensável é a participação ativa das gran des massas populares sem as quais nada é possível fazer. Da vam-se, também, os primeiros passos no sentido de entender, e aceitar, que a economia brasileira já não era a mesma da década de 30 e que a dominação imperialista, contraditoriamente, tinha possibilitado, a seu modo, o desenvolvimen-to capitalista do país, mesmo que dependente...”4

Moisés Vinhas, suplente do Comitê Central, que ao lado de Jover Telles, Sérgio Holmos, Leivas Otero e Francisco Gomes ha via participa-do de uma primeira reunião encarregada de prepa rar um documento analisando os reflexos do sistema do culto à personalidade dentro do PCB - cujo texto não foi levado em conta -, considera que na trajetória do PCB a Declaração de Mar ço de 1958 permanece como um momento de inflexão, de rup tura qualitativa. Trata-se de um marco na luta para libertar o pensamento político dos comunistas brasileiros das malhas do sectarismo e do dogmatismo... O que permite qualificá-la precisa-mente de “ruptura” é o fato de que ela aceita a tese de coexis tência pacífica a nível internacional, recusa uma leitura catastrófica do ca-pitalismo, admite, ainda que timidamente, que ele se desenvolveu no Brasil e, a partir daí, retoma a questão da democracia e do caminho da revolução brasileira. E afirma ta xativamente que o caminho pacífico é que convém à classe ope rária e provavelmente será esta a única vez em que isto é dito com todas as letras na história do PCB depois da legalidade.5

A Declaração de Março esboça uma nova análise da rea lidade bra-sileira, totalmente distinta daquela do IV Congresso, e formula uma plataforma de luta centrada em política externa independente e de paz, desenvolvimento capitalista indepen dente, reforma agrária, ele-vação do nível de vida do povo e consolidação e ampliação da legalida-de democrática. Ao colo car esta última bandeira em sua programática, o PCB rompia com o golpismo e o sectarismo da sua linha política oficial desde 1948 e se adequava, novamente, à prática do trabalho de massas, visualizando ainda o processo revolucionário para além de moldes insurrecionais. Esta orientação, condenando explicitamente o dogmatismo, possibilitou ao PCB sair refor çado da crise 1956-1957.

4 Entrevista de Giocondo Dias ao Jornal da Bahia, em 30 de setembro de 1983, con-cedida ao jornalista e escritor Emiliano José, co-autor do livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, com Oldac Miranda. São Paulo, Global Editora, 1980.

5 Moisés Vinhas. Ob. cit., p. 181 e 182.

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Notas sobre a “imagem do Brasil” da Declaração de Março

Raimundo Santos

Por bastante tempo a bibliografia especializada cobrou dos co-munistas a ausência de uma teoria da formação social brasi-leira. Essa debilidade seria responsável por vários dos seus

equívocos, sendo os mais criticados deles a política de frente única e a moderação ou, mais propriamente, o pendor dos comunistas à po-lítica institucional (“burguesa”). Debitavam-se à fraqueza teórica as propensões que justamente fizeram do PCB o grupo de esquerda que, afinal de contas, mais contribuiu para formar no país uma cultura política de raiz marxista.

Os comunistas chegaram àquelas duas posturas por necessida-de, quando postos ante tempos difíceis: após o suicídio de Getúlio e, depois de 1964, para não falar no fim da II Guerra, ocasião em que a redemocratização requeria uma convergência com os liberais da UDN daquela época. No entanto, há no PCB mais do que marxismo-leninismo, ou seja, algo além da sua “péssima” teoria, como certa vez disse Hélio Jaguaribe (apud Marçal Brandão, 1992) diferencian-do dessa doutrina a prática de responsabilidade dos comunistas. Encontram-se no interior do PCB lastros intelectuais que o instigam a caminhar rumo a uma política de compromisso democrático; evo-lução, custosa e demorada, que se inicia com a resolução do Comitê Central de março de 1958, hoje celebrada por seus 50 anos.

A Declaração reorienta o PCB a tal ponto que ela própria chama a virada de “nova política”. Que lastro elaborativo se pode divisar na resolução de 1958 além da intuição política? Não há uma teoria da “revolução brasileira” como em Caio Prado Jr. A rigor, têm-se eixos que dão o sentido geral da “nova política”. Com passagens ambíguas (Passos Guimarães, 1960a) – pois também escrito para atender a gru-pos diferenciados –, a Declaração procurou expressar as exigências do clima democrático que se afirmara no país após a posse de JK e refletir os debates sobre o XX Congresso do PCUS no PCB (1956-57); controvérsia esta, como é sabido, precisamente por ela encerrada.

Que proposições-chave compõem esses eixos? Baseiam-se numa “imagem do Brasil” que afasta o PCB do modelo da revolução nacio-

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Notas sobre a “imagem do Brasil” da Declaração de Março

nal-libertadora da III IC? Um tanto dispersos, esses eixos sinalizam rumo à valorização da democracia política; paradoxo esta última, como propôs Bobbio, da “ciência política” marxista (“socialismo sem democracia” ou “democracia só se conhece no capitalismo”).

A Declaração se inicia com os tópicos “O processo de desenvolvi-mento econômico do Brasil” e “A democratização da vida nacional” que antecedem a um outro chamado “Crescem no mundo inteiro as forças da paz, da democracia e do socialismo”. Comumente iniciante da escrita comunista, mesmo deslocada na Declaração, essa passa-gem inscreve o processo brasileiro no quadro internacionalista, do qual recebe estímulo, como veremos. À medida que avançasse no país, a revolução contribuiria para o referido complexo mundial das forças da paz, da democracia e do socialismo.

Aquele começo nos fala do Brasil contemporâneo – do pós-1930 – quando se intensifica a modernização nos quadros de uma “estru-tura atrasada”. Ao modo da argumentação leniniana sobre a revo-lução na periferia capitalista, de imediato o texto diz que, nas duas décadas anteriores a 1958, “foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional que constitui o elemento progressista por ex-celência da economia brasileira”.1 “Inelutável”, continua dizendo a Declaração, esse desenvolvimento capitalista “vem-se realizando num ritmo bastante desigual” e nos anos 1950 ele não havia supe-rado nossas “características” de “país subdesenvolvido”. O avanço capitalista ocorre com a conservação em “vastas áreas” de “relações atrasadas e permanece a dependência diante do imperialismo, par-ticularmente o norte-americano”. Na agricultura, o capitalismo abre caminho lentamente devido à combinação, “em proporção variável”, dos “métodos capitalistas” com o “monopólio da terra” e as “velhas relações semifeudais”.

Nesse ponto há indícios de mais uma remissão a Lênin. Ao acen-tuar o pesado fardo que o país arrastava do passado escravista-colonial, o texto de 1958 distancia o seu “desenvolvimentismo” da “sociologia da modernização” muito influente na época, justamente porque tal estruturação do moderno “à moda prussiana” aponta para a importância da democratização política do país.2

1 Citemos de Lênin apenas este trecho de Duas táticas da social-democracia russa: “Em países como a Rússia, a classe operária sofre não tanto do capitalismo como da insuficiência do desenvolvimento do capitalismo. Por isso a classe operária está ab-solutamente interessada no mais amplo, mais livre e mais rápido desenvolvimento do capitalismo. É absolutamente vantajosa para a classe operária a eliminação de todas as reminiscências do passado que entorpecem o desenvolvimento amplo, livre e rápido do capitalismo” (Lênin, 1905; 1975).

2 “À moda prussiana” é uma expressão de Nelson Werneck Sodré que aparece em

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II. Tema de capa

O documento vê a moderna exploração imperialista como um “pe-sado tributo à nação” que deprime a taxa de acumulação do país e “o ritmo do seu progresso” e influi “no baixo nível de vida da sua popula-ção”. Segue-se esta proposição-chave (“isebiana”, mas ressignificada pelo conceito maoísta da contradição): “À medida que a nação se de-senvolve (autores isebianos falavam da nação contemporânea como “um corpo que cresce”), aguça-se o seu antagonismo com o imperia-lismo norte-americano”. Diz-se ainda que o desenvolvimento nacio-nal se processava “através de contradições, de avanços e recuos, mas é a tendência que abre caminho e se fortalece”. A sustentabilidade das mudanças tem raiz na “contradição principal” (outra noção ma-oísta) entre a nação e o imperialismo norte-americano, dinamizando o país por meio da luta de classes nas mediações de uma sociedade então já complexa. Essa lógica concretiza uma “revolução nacional” que se aprofundaria à medida que a mobilização camponesa antifeu-dal se alargasse seguindo a tensão entre o moderno industrializante e o atraso agrário que acompanhava a formação social.

Com essa “sociologia da modernização” visualiza-se a movimen-tação que ganhava “corpo no país”, tanto nas cidades (naqueles anos crescia o “fato novo” do nacionalismo) quanto no mundo rural, onde se expandia, com os sindicatos fundados pelos comunistas e as Li-gas Camponesas, o movimento pela reforma agrária como nunca se havia visto. A revolução brasileira se concretizava no solo do mundo real. À medida que a mobilização se espalhasse pela sociedade civil (o desenvolvimento da luta de classes como fator de progresso à Lênin), desenhava-se o palco efetivo das operações dos protagonistas postos à frente dos grupos inovadores. Isso se aproveitassem aquele tempo bom para o agir dos revolucionários na cena política, na qual podiam atuar no dia-a-dia com eficácia, caso conhecessem bem a circuns-tância que viviam.

Formação Histórica do Brasil (1962). Referindo-se às tensões entre as “forças pro-dutivas” e as “relações de produção” no mundo rural, Sodré diz: “Elas nos fornecem a caracterização, do Brasil, segundo um estudioso, de um desenvolvimento à moda prussiana, sob a ação e a influência do imperialismo. Avança sem dúvida a pene-tração capitalista, mas os restos feudais vão sendo conservados e o monopólio da terra zelosamente defendido” (idem: 357). Ainda acerca desse tipo de estruturação, em um texto de 1960, Alberto Passos Guimarães já escrevera: “Dois são os cursos ou caminhos possíveis do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro: um, re-volucionário, outro, reformista. (...) O proletariado e as forças mais progressistas da sociedade brasileira devem apoiar as transformações burguesas no campo que resultem na destruição dos laços com o feudalismo, que resultem na destruição das formas pré-capitalistas, e expressem um desenvolvimento democrático apoiado no capitalismo de Estado e na propriedade camponesa.” (Passos Guimarães, 1960b). Neste texto, Passos Guimarães chama o segundo caminho (prussiano) de “reformis-ta” (ver Santos, 2007).

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Uma pouco de história da Declaração de Março

Nesse ponto em que inicia a formulação da “tática” comunista (passando da dimensão do estrutural para a esfera da política), o tex-to sinaliza uma associação que de certo modo ultrapassava o nexo economia-classes-estado do conceito de “formação econômico-social”, nexo com o qual, como se sabe, Lênin demarcava a lógica da revolução rupturista. A Declaração trazia uma outra proposição-chave – uma interface da tese sobre o desenvolvimentismo capitalista (o “elemento por excelência da economia brasileira”): “O desenvolvimento capitalis-ta do país não podia deixar de refletir-se no caráter do Estado brasilei-ro, em seu regime político e na composição do governo”.

Essa seqüência – Estado, regime e governo – lembra leitura de As lutas de classes na Franca de 1848 a 1850 e O Dezoito Brumario de Luiz Bonaparte, nos quais Marx faz suas distinções no tema do poder e da política. Recorde-se que, ao dissertar sobre tal conjuntura con-creta, o clássico mobiliza dimensões analíticas distintas: “classes”, “frações de classes” e “partidos” (expressivos de interesses econômi-cos e culturais). Distingue os tipos de Estado segundo a classe nele hegemônica (capitalista, socialista) das formas estatais (e de regime político) que o Estado capitalista assume conforme se articulem as frações dominantes entre si e em suas relações com os grupos su-balternos. Marx diferencia no Estado capitalista francês, descrito na-queles textos, as formas monárquica, republicana (e “bonapartista”). E também faz referência a configurações de governo considerando as formações partidárias. Em suma, Marx equaciona o tema crucial da correlação entre movimentos do estrutural e conjuntura (a propósito, ver Engels, 1895, 1975; depois, Gramsci, 1932-34; 2007); luta de classes e luta política e assim por diante.

Veja-se agora, no texto de 1958, como a seguinte série de defi-nições conduz a uma idéia de revolução diferenciada do modelo de 1917, não obstante as ambigüidades que lhe traz a doutrina marxis-ta-leninista:

a) Natureza do Estado. Por seu caráter de classes, diz a Decla-ração, o Estado brasileiro representava, então, interesses la-tifundiários, de setores capitalistas ligados ao imperialismo e também interesses da burguesia nacional. Ele exibia “contradi-ções”, “tipos diversos de compromisso de classe” e acordos. Era essa distinção que dava inteligibilidade à disputa dos rumos da política estatal. Para o texto, essas tensões estavam na raiz dos acontecimentos de agosto de 1954 e de novembro de 1955;

b) Regime político. Desde 1930, o regime político brasileiro se de-mocratizava, mas essa trajetória, argumenta-se, “não segue

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II. Tema de capa

o seu curso em linha reta” (Estado Novo, “ofensiva reacioná-ria” de 1947, o “golpe de 1954”). A Declaração também alu-de à democratização no contexto rural: “A democratização do país também influi, menos acentuadamente, nas zonas rurais, onde o despotismo dos grandes senhores de terra é obrigado a ceder terreno, conquanto perdure. Os atentados cometidos pe-los elementos reacionários do aparelho do Estado encontram a resistência cada vez mais eficiente das massas na defesa das liberdades e direitos constitucionais”.

Nesse ponto vem uma terceira proposição definidora: “Mas o pro-cesso de democratização é uma tendência permanente. Por isto, pode superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para dian-te. Vem-se firmando assim, em nosso país, a legalidade democrática que é defendida por amplas e poderosas forças sociais”. Aqui ad-quire grande valor a defesa da Constituição de 1946. Não obstante suas limitações, argumenta a Declaração, essa Constituição refletia o sentido da derrota do nazi-fascismo, sendo sua vigência condição do curso democratizante. Aliás, este constituconalismo já está no último Engels (1891; 1973) e é bem visível no PCI de Toglatti durante o segundo pós-guerra;3 e

c) Sobre configurações governamentais. Nesse tema, os autores da Declaração parecem mobilizar o esquema analítico marxia-no acima aludido tirando proveito diferenciado. Eles realçam o fato de a burguesia ter se situado, à seqüência da Revolução de 1930, dentro do Estado. Esta participação nova influi na “composição do atual governo”, diz o texto de 1958, assim se referindo à presidência de JK: “Em decorrência da coligação de que surgiu, o governo do sr. Juscelino Kubitschek tomou um caráter heterogêneo, com um setor entreguista ao lado de um setor nacionalista burguês”. O compromisso entre essas duas alas abre oportunidade para os revolucionários defenderem o aprofundamento dos “aspectos positivos de caráter nacional e democrático” do governo JK. Com esta leitura o texto atualiza a luta reformista e procurar dar-lhe sentido geral.

3 Em meados de 1950, Elias Chaves Neto dizia que a Constituição de 1946 assegu-rava condições preliminares para que tivesse livre curso um processamento das reivindicações populares de “modo construtivo” (“dentro dos direitos para esse fim estabelecidos em nossa Constituição – o direito de greve, de sindicalizarão, de reu-nião”) (Chaves Neto, 1955). E mais ainda: “Assim como a Revolução Francesa, que no século XIX trouxera enorme progresso ao mundo, aqui a defesa da Constituição é, portanto, o ponto básico de uma política que visa, pela união de todos os brasilei-ros, a resolver os problemas dos quais depende a nossa prosperidade” (Id.).

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Notas sobre a “imagem do Brasil” da Declaração de Março

Ao se desenvolver, continua a Declaração de Março, a pressão por mudanças na configuração do governo suscita a necessidade de se conquistar um governo propriamente “nacionalista e democrático” por ocasião das eleições.4 “Momento alto da luta”, como certa vez as chamou um sociólogo do Rio de Janeiro, as eleições teriam como protagonistas formações duradouras: os partidos (“À medida que se desenvolve o capitalismo no país, os partidos políticos brasileiros adquirem um caráter cada vez mais estável e nacional”, acrescenta a Declaração interessada no sistema partidário).

Ao compreender sua circunstância através dessa visão de Brasil, os comunistas chegavam a ver na democratização da vida nacional, no “ascenso do movimento operário” e no “desenvolvimento da frente única nacionalista e democrática” bases para a concretização da re-volução brasileira por um “caminho pacifico”, ampliado este horizon-te, diziam eles, pela distensão internacional da era Kruchev. Isto é, por uma via de desenvolvimento normal na qual mudanças progres-sivas realizar-se-iam por sucessivos governos daquela frente única. Pelo que se lê em certos pontos do texto, a formação desses governos dar-se-ia por eleições no Estado Democrático de Direito. A rigor, o curso democrático da revolução brasileira é pensado, pelo menos para boa parte do período das transformações graduais “antiimpe-rialistas e antifeudais”.5 Após esse futuro de médio ou mais dilatado prazo, a previsão pecebista decorrente da “imagem do Brasil” aqui resenhada cede o passo para um tempo descrito na tese da hegemo-nia proletária na frente única e na doutrina da transição socialista e assim por diante.

Não é este o lugar para referimo-nos aos cenários que, no tópico “O caminho pacífico da revolução brasileira”, a Declaração desenha para a conjuntura. Em qualquer deles – giro progressista do governo JK, vitória da frente nacionalista e democrática na eleição de 1960 ou uma resistência para “impor e restabelecer” a legalidade democrá-tica, em caso de tentativa de golpe –, os redatores daquele texto asso-ciam o seu cálculo revolucionário, para o tempo, repitamos, mais ou

5 Embora fuja ao escopo destas notas, citemos este trecho: “O objetivo fundamental da participação dos comunistas nas eleições consiste em eleger para os postos executivos e legislativos os candidatos da frente única, que possam fortalecer os setores nacionalistas do Parlamento e do governo. Todo o trabalho eleitoral dos comunistas, seja em âmbito nacional como em estadual e municipal, deve ser considerado à mudança da correlação de forças políticas e a conquista de um governo nacionalista e democrático”.

5 Alberto Passos Guimarães refere-se a esse tempo previsível como sendo um “período intermediário”, “específico da revolução brasileira”, no qual “uma sucessão de go-vernos” poderia empreender reformas progressistas “nos quadros do regime vigente” (capitalista) (Passos Guimarães, 1960a; ver também Santos, 2007).

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II. Tema de capa

menos próximo, à valorização da democracia política, não obstante o marxismo-leninismo. A propósito dessa compreensão da democracia política, quase ao final do seu livro de 1962, Sodré dirá: “A defesa do regime democrático, no processo da Revolução Brasileira, não se prende, assim, ao supersticioso respeito a uma legalidade qualquer, mas na compreensão de que a democracia é o caminho apropriado ao seu desenvolvimento. Não interessa ao nosso povo, evidentemente, uma legalidade qualquer, mas o regime democrático efetivo cujo con-teúdo esteja intimamente ligado ao desenvolvimento de alterações econômicas, políticas e sociais capazes de afetar profundamente o país e corresponder ao avanço das forças produtivas que impõem modificações radicais nas relações de produção”.

Bem depois, na segunda metade dos anos 1970, esse fio será reto-mado. Uma nova ensaística pecebista vem diferenciar nossa moderni-zação da via clássica de revolução burguesa e chamar atenção para o fato de que, aqui, a relação entre economia e política obedece a uma lógica de natureza “muito mais irregular”, podendo-se também imagi-nar a revolução burguesa brasileira como uma “revolução passiva”.

Alguns autores dessa tendência realçam o sentido não-recessivo do regime de 1964, conquanto ele modernizara, de modo conserva-dor, tanto a economia como a própria agropecuária. O dado estraté-gico passa a ser a relação entre o crescimento das forças produtivas nacionais promovido pelos governos militares e a natureza da transi-ção democrática sob impulso das modernizações, mas dependente da ação oportuna dos atores políticos (Vianna, 1983). Essa valorização da redemocratização decorria de uma releitura da modalidade sob a qual o país se industrializara tardiamente por via autoritária sem a classe econômica ter construído uma institucionalidade política adequada (idem). À hora do colapso do regime de 1964, formar-se-ia uma situação na qual a democratização política, cada vez mais em rápido andamento depois da anistia de 1979, não só viria concluir o período ditatorial como também poderia trazer – dizia um outro autor – “conseqüências progressistas de efeito quase revolucionário” (Konder, 1984).

Essa última ensaística significa um outro grande passo no plano da “formulação da política” pecebista contemporânea. Em 1958, a Declaração de Março havia rompido com o viés estagnacionista que até ali marcara a “imagem do Brasil” dos comunistas, passando a associar ao crescimento econômico um processo de complexificação social e a tendência do país rumo à democratização política.6 O novo

6 Enquanto a orientação oficial pecebista atribuía as causas do dogmatismo persis-

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Notas sobre a “imagem do Brasil” da Declaração de Março

registro conceitual de meados dos anos 1970 sugeria que se tivesse uma nova idéia de mudança social bem distanciada do arraigado axioma atraso-miséria-revolução. Daí se tendia a ver o processo mu-dancista como uma gramsciana “guerra de posições”, no dizer de uns; ou, ainda, como preferiam outros autores, a pensá-lo em termos de um processo de transformações duradouras sob forma de um “re-formismo forte” progressivo à medida que a democracia política se enraizasse cada vez mais no país.

Referências Chaves Neto, Elias. Política de União Nacional. Revista Brasiliense n. 1, set./out. 1955.

Engels, F. La crítica al programa de Erfurt (1891). Madri: Anagrama, 1973.

______. “Introducción” a La lucha de clases em Francia de 1850 a 1852 (1895). In: Marx, C., e Engels, F., Obras Escojidas, v. 1, ed. Progreso, Moscou, 1975.

Gramsci, Antonio. Notas sobre Maquiavel, a política e o Estado, Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 3. ed., trad. Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, 2007.

Konder, Leandro, O atraso é tanto que o governo Tancredo Neves terá efeito quase revolucionário. Tribuna da Imprensa, 24 de setembro de 1984.

tente no PCB a traços de formação, Armando Lopes da Cunha apontava noutra direção: “Na base de tal concepção, dizia ele, por ocasião da controvérsia sobre o es-talinismo, está uma outra – também expressamente formulada em nosso Programa (de 1954), a saber: a de que o processo de desenvolvimento do país e a conquista de sua plena independência só serão possíveis após a derrubada do ‘atual’ governo´” (o segundo governo Vargas – RS). (....). Rompendo com a tese da transformação do Brasil em colônia dos Estados Unidos, prosseguia Lopes da Cunha: “Não há mais dúvida de que o país pode se desenvolver e caminha rapidamente para sua indepen-dência nacional sem uma prévia derrubada do ‘atual’ governo, e não há mais dúvida simplesmente porque isto está acontecendo sob nossos olhos. (...). A necessidade de modificarmos nossas concepções programáticas é, portanto, patente, como patente é também que muito se pode avançar no sentido da independência e do progresso bem como da própria modificação do governo nos quadros da atual Constituição... nossa tática sofrerá profundas mudanças e permitirá a reunião de imensas forças dispostas a combater o imperialismo norte-americano e impulsionar o progresso do país.”. Outro ponto novo: “Passamos a ter que apresentar soluções positivas para os problemas brasileiros e deixaremos de criar dificuldades para a unidade ação em prol da independência como por vezes tem ocorrido por estarmos imbuídos das mencionadas idéias programáticas que condicionam a tática estreita, sectária e ex-clusivista” (Lopes da Cunha, 1956).

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II. Tema de capa

Lênin, W. Dos tácticas de la socialdemocracia rusa. In: Lênin, W. Obras Escojidas en doce tomos, v. 2. Moscou: ed. Progreso, 1975.

Lopes da Cunha. Armando. O Programa e o caminho do desenvolvimento do Brasil. Voz Operária, 27 de outubro de 1956.

Marçal Brandão, Gildo. Partido comunista, capitalismo e democracia, São Paulo, USP, 1992. Tese.

Passos Guimarães, Alberto. Uma falsificação e vários erros crassos na questão das etapas. Novos Rumos, Rio de Janeiro, 22 a 28 de julho de 1960a.

______. As três frentes da luta de classes no campo. Novos Rumos, Rio de Janeiro, 22 a 28 de julho de 1960b.

Santos, Raimundo. Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira-Nead-IICA, 2007.

Sodré, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. Brasiliense: São Paulo, 1962.

Viana, Luiz Werneck. O problema da cidadania na hora da transição. Rio de Janeiro: Série IUPERJ, 1983.

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Uma “Declaração” para uma nova Política

José Antonio Segatto

Nos anos 1954/58, o PCB sofrerá uma série de mutações teóri-cas, políticas e organizativas. Essas mutações serão fruto de vários fatores: a) dos acontecimentos políticos da conjuntura

(suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, tentativa golpista de novembro de 1955, além de outros fatos); b) da relativa estabilida-de democrática e da nova dinâmica do desenvolvimento capitalista do governo de Juscelino Kubitscheck; c) dos desdobramentos e do impacto do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (fevereiro de 1956) e d) dos seus próprios problemas orgânicos ou in-ternos acumulados durante vários anos e vindos à tona com grande ênfase depois de 1956.

Os comunistas brasileiros, diante deste conjunto de fatos e fato-res, teriam suas análises e formulações políticas problematizadas ou mesmo postas em xeque e sua coesa e solidificada doutrina marxis-ta leninista fraturada, ainda que parcialmente. Em função disso, o PCB, ao rever e repensar suas concepções e programa, passará por significativas mudanças e começará a elaborar uma política diversa daquele que o orientava nos anos imediatamente anteriores. Assim, neste período, o PCB inicia um processo de renovação e formulação daquela que ficou conhecida e reconhecida, pelo seu núcleo dirigen-te, como uma “nova política”.

A Declaração de Março de 1958 – como ficou conhecida – operou mudanças significativas na política do PCB. Segundo a Declaração:

a) o capitalismo, no Brasil, vinha se desenvolvendo de forma irre-versível, o que constituía um elemento progressista por exce-lência, modificando “sensivelmente a vida econômica e política do país”. Esse desenvolvimento refletia-se no Estado, no re-gime político e na composição do governo, favorecendo a luta pelo progresso e pela democracia. Porém, ao mesmo tempo em que “altera a velha estrutura econômica e cria uma nova e mais avançada” ele “entra em conflito com a exploração imperialista

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II. Tema de capa

e a estrutura tradicional arcaica e em decomposição” (monopó-lio da terra e sobrevivências feudais);

b) era necessário orientar este desenvolvimento num sentido nacional e progressista. Mas, para que isso ocorresse, seria preciso resolver duas contradições fundamentais, às quais a sociedade nacional está submetida na etapa atual: a primei-ra e principal, entre a nação e o imperialismo e seus agente internos; a segunda, entre o desenvolvimento das forças pro-dutivas e as relações de produção semifeudais na agricultura. A contradição entre o proletariado e a burguesia, expressa em várias formas de luta de classes, continuava existente, mas não exigia uma solução imediata e radical na presente etapa. A contradição principal era entre a nação e o imperialismo norte-americano e os entreguistas que o apoiavam e sobre os quais deveria ser desfechado o golpe principal das forças progressis-tas e democráticas;

c) em função disso, definia a revolução brasileira em duas etapas. A primeira e atual seria antiimperialista e antifeudal, nacional e democrática. Ela teria por tarefa levar à completa libertação da dependência ao imperialismo norte-americano, à transfor-mação radical da estrutura agrária, com a liquidação do mo-nopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho, ao desenvolvimento progressista da economia nacional e à demo-cratização radical da vida política;

d) as tarefas desta etapa da revolução brasileira deveriam ser re-alizadas por uma frente única nacionalista e democrática, com base na aliança entre a classe operária, trabalhadores rurais e pequena burguesia urbana, com a burguesia nacional, seto-res de latifundiários que possuem contradições com o imperia-lismo norte-americano e até mesmo grupos burgueses ligados aos monopólios antiimperialistas rivais dos Estados Unidos;

e) por ser heterogênea, a frente única encerraria contradições, mas seu objetivo consistiria em isolar o inimigo principal da nação brasileira e derrotar sua política. Por isso, era preciso ter cautela para evitar que as contradições no seio da frente única se elevas-sem ao nível da contradição principal. Apesar de a burguesia ser uma força revolucionária inconseqüente, vacilante, conciliadora e temerosa da ação independente das massas, os comunistas não “condicionam sua participação na frente única a uma prévia direção do movimento”. A conquista da hegemonia do proletaria-do seria um processo de luta árduo e paulatino;

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Uma “Declaração” para uma nova política

f) a frente única deveria lutar por uma plataforma de soluções po-sitivas: política externa independente, desenvolvimento indepen-dente e progressista da economia nacional, medidas de reforma agrária, elevação do nível de vida do povo, consolidação e amplia-ção das liberdades democráticas. A luta por soluções positivas tenderia a assumir o caráter de luta por um governo nacionalista e democrático, “possível nos quadros do regime vigente”;

g) reconhece a possibilidade e a viabilidade do caminho pacífi-co para a revolução brasileira. Ela deveria ser realizada pela atuação dentro da legalidade democrática e constitucional. O caminho pacífico seria possível devido a diversos fatores: de-mocratização crescente da vida política, ascenso do movimento operário, desenvolvimento da frente única nacionalista e de-mocrática e das mudanças da situação internacional (correla-ção de forças favorável à classe operária e aos movimentos de libertação nacional);

h) seria preciso um grande esforço de “reeducação” dos dirigen-tes e militantes no espírito de uma nova política para que o PCB se depurasse do subjetivismo e do dogmatismo (princi-pais desvios a serem combatidos), mas, sem abandonar e sem se descuidar da correta aplicação dos princípios universais do marxismo-leninismo às originais particularidades concretas do desenvolvimento histórico nacional.

Estavam estabelecidos aí os parâmetros básicos da linha política que – com algumas correções posteriores – iriam orientar a ação do PCB doravante.

O processo de renovação do PCB, expresso no documento de 1958 – que, sem dúvida nenhuma, contém diversas inovações derivadas tanto de formulações próprias como da capacidade de absorção de teses do PCUS e até mesmo do PCI – é realizado e mantido dentro de determinados limites, onde muitos elementos de conservação aca-bam predominando sobre os de mudança. Limites estes demarcados pela manutenção, quase que integral, da cultura política terceiro-internacionalista, sobretudo dos princípios do marxismo-leninismo, que, por sua vez, serviriam para corroborar a natureza revolucioná-ria do partido.

Obrigando-se a levar em consideração o grau fixado para as mu-danças pelo Movimento Comunista Internacional e, mais especifica-mente, pelo PCUS, e fazendo os cálculos (do que e como mudar, de sua abragência e profundidade) pelo pensamento médio dos comunistas (fortemente impregnados pelo dogmatismo), optará por conciliar com

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II. Tema de capa

as velhas concepções e pela acomodação das divergências – a não ser em casos extremos, quando expurga os “renovadores” e isola os “con-servadores” – mantendo a renovação dentro dos estritos “limites” do possível e segundo interesses pragmáticos. O PCB opera, assim, uma importante renovação, mas uma renovação de caráter conservador.

Este caráter conservador da renovação do PCB não deve obscure-cer nem desqualificar, porém, os aspectos inovadores da “nova polí-tica”. É válido lembrar que o PCB foi pioneiro na esquerda brasileira na colocação, utilização, absorção ou mesmo, em alguns casos, for-mulação de teses que posteriormente se tornariam moeda corrente e ganhariam notoriedade. Por exemplo: a verificação de que vinha se constituindo um capitalismo monopolista de Estado no Brasil; o reconhecimento de que o capitalismo (apesar dos entraves), vinha se desenvolvendo no país; a caracterização do Brasil como um país dependente; a identificação do Estado brasileiro como sendo hetero-gêneo, composto por frações e forças diversas e divergentes, que se compunham no poder através do compromisso; a admissão de que o Estado não seria impermeável à ação e aos interesses das classes subalternas e que, inclusive, seria passível de transformação – ain-da nos marcos do regime vigente –, sem que, necessária e obriga-toriamente, se promovesse o seu “assalto”; a constatação de que a democracia (ainda que numa concepção instrumentalista) seria fun-damental aos trabalhadores; etc. É claro que estas teses não são ab-sorvidas de imediato, foram colocadas e utilizadas de forma parcial e restrita, mescladas com análises e projetos pretéritos, elaboradas ainda de forma embrionária, e assim por diante. Muitas não são nem originais, pois já estavam presentes em elaborações de comunistas de outras partes do mundo (como os soviéticos, os italianos). É pre-ciso consignar que as ilações políticas que se fizeram delas não in-validam sua importância. Deve ser lembrado, por fim, que quando apresentadas, nos documentos de 1958/60, foram vistas, pela maio-ria da esquerda, com desconfiança e como sinal de “reformismo”, “re-visionismo”, “pacifismo”, etc, do PCB – anos mais tarde, entretanto, muitas delas foram reelaboradas, sistematizadas e ganhariam até mesmo legitimidade acadêmica.

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III. Observatório Político

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Autores

Sueli CarneiroDoutora em Filosofia da Educação pela USp, escritora e diretora do Geledés -Instituto da Mulher Negra. Este artigo nasceu da pesquisa realizada por ela na década de 80, sob o título “O poder feminino no culto aos orixás”.

Lúcio Flávio PintoEditor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).

Paulo Morais Santa RosaMédico, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – Foi assessor da diretoria da ANVISA e Gerente Geral de Medicamentos é atualmente assessor técnico da Liderança do PPS na Câmara dos Deputados.

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A força das mães negras1

Sueli Carneiro

A luta das mulheres adquiriu diferen tes perfis em nossa história, pois di ferentes também eram as inserções sociais e as origens étnicas de suas protagonistas. Em comum, traziam o desejo

de liberdade. Para as mulheres brancas, foi a luta contra o domínio patriarcal. Para as negras, a luta contra o jugo colonial, a escravidão e o racismo. Dentre as for mas de resistências engendradas pelas mu-lheres negras brasileiras, destaca-se o exemplo das Yalorixás: uma es-tirpe de notá veis lideranças espirituais, como Yya Nassô(século XIX), Tia Ciata (1854-1924), Mãe Ani nha (1869-1938), Mãe Senhora (1900-1967) e Mãe Menininha do Gantois (1894-1986), entre outras.

Essas mulheres traziam para o presente modelos sacralizados de sua ancestralida de, evidenciados na mitologia preservada e na es-trutura religiosa que aqui recriaram. A mitologia africana, apontan-do insistente mente as estratégias mais diversas de insu bordinação, simbólicas ou reais, lhes ofere ceu a possibilidade de criar mecanis-mos de defesa para a sobrevivência e a conservação de seus traços culturais de origem.

O universo mítico, do qual o candomblé é remanescente, se estru-tura, como várias outras mitologias, no princípio da sexuali dade. É da interação dinâmica entre pares de contrários que tudo é gerado. Assim, a Terra (aiyé) e o Céu (órun) expressam, res pectivamente, os princípios arquetípicos Feminino e Masculino. Sua união, que é a ga-rantia da continuidade de tudo, nem sem pre se dá de forma harmo-

1 Com este artigo, incorporamo-nos aos festejos dos 120 anos da Abolição, que trans-corre em maio, quando lançaremos edição especial dos nossos Cadernos de Debates

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III. Observatório Político

niosa. E os confli tos, que são relatados nos mitos, expressam muitas vezes a luta entre os poderes femini no e masculino, em disputa pelo controle do mundo. Essa disputa expressa também o fa to de que, em algumas sociedades africanas, mulheres e homens pertenciam a associa ções demarcadas pelo gênero: Geledé e lalo dé para as mulhe-res e Oró para os homens.

Segundo a antropóloga Terezinha Ber nardo: “lalodê era uma as-sociação feminina cujo nome significa ‘senhora encarregada dos ne-gócios públicos’. Sua dirigente tivera lugar no conselho supremo dos chefes urba nos e era considerada uma alta funcionária do Estado, responsável pelas questões femi ninas, representando, especialmen-te, os in teresses das comerciantes. Enquanto a lalo dê se encarregava da troca de bens materiais, a sociedade Gueledé era uma associação mais próxima da troca de bens simbólicos. Sua visibilidade advinha dos rituais de pro piciação à fecundidade, à fertilidade - as pectos im-portantes do poder especifica mente feminino”. No Brasil, o culto Ge-ledé desapareceu e lalodé tornou-se título de mulheres importantes do candomblé.

A organização social do candomblé procurará recriar as estrutu-ras hierárqui cas das sociedades africanas que a escravi dão destruiu, reorganizar a família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo. Ela permitiu que os “terreiros” se tornas-sem territórios de organização comunitária, de cura aos des tituídos do direito à saúde, de resistência cultural e de negociação com a sociedade abrangente e excludente. Leni Silverstein afirma, a propó-sito do caso baiano, que “a família-de-santo, com mulheres em seus pontos focais, se torna crucial para a perpe tuação de um sistema alternativo de valo res, costumes e culturas”.2

Esse passado de resistência marca pro fundamente o povo-de-santo, em especial suas mulheres. Matriarcas negras que fo ram re-verenciadas no livro A cidade das mu lheres (1932), da antropóloga e pesquisadora norte-americana Ruth Landes. Diz ela que a mulher negra “era, no Brasil, uma influência modernizadora e enobrecedo-ra”. E explica: “Economicamente, tanto na África como durante a escravidão no Brasil, contara con sigo mesma. E isso se combinava com a sua eminência no candomblé para dar um tom matriarcal à vida familiar entre os pobres. Era um desejável equilíbrio para o rude do mínio dos homens em toda a vida latina”.3

2 Leni Silverstein, “Mãe de Todo Mundo: modos de sobrevi vência nas comunidades de candomblé da Bahia”, em Religião e Sociedade, n° 4

3 Ruth Landes, A cidade das mulheres, 2ª ed. Rio de Janei ro, Editora da UFRJ, 2002.

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A força das mães negras

Ruth observou que as mulheres do can domblé jamais se pros-tituíam, mesmo quando pobres, que eram livres no amor, mas não o comercializavam, que eram seres humanos bem desenvolvidos na época em que o feminismo levantava a voz pela pri meira vez no Bra-sil. Suas vidas compõem parcela significativa da história do oprimido deste país e vêm sendo fonte de inspiração para a luta das mulheres negras contempo râneas. A pesquisadora e feminista negraJu rema Werneck compreende suas estratégias como “formas contra-hegemô-nicas de pro dução cultural”. E as vê construindo identi dades com base em recortes territoriais,lingüísticos ou afetivos.

Pela apropriação e atualização desse pa trimônio cultural, as mu-lheres negras vêm conformando organizações inspiradas na mitolo-gia africana e nas histórias de suas antepassadas. Nesse processo de afirmação identitária, buscam, em instituições femini nas da tradição religiosa, nas figuras míticas e nas ancestrais coletivas, os valores e mo delos de insubordinação para confrontar a ordem patriarcal e racista.

Tal processo tem sido objeto da investi gação científica de pes-quisadoras negras contemporâneas, que buscam iluminar as linhas de continuidade entre a tradição e as estratégias de luta atuais. É o caso, por exem plo, do estudo realizado por Angélica Basti, que de-monstra que o processo de rememo ração implica em dois movimen-tos simultâ neos: a lembrança do passado e a produção de um novo sentido no presente. E faz do mi to “uma poderosa ferramenta para a resig nificação da memória coletiva”.

Para a pesquisadora, as organizações fe mininas negras são as novas guardiãs da produção discursiva do grupo. Pois resga tam, re-gistram, arquivam e difundem a his tória das mulheres negras. E lu-tam por essa re-significação como instrumento para a transformação do presente.

Do interior dos mitos, emergem os símbolos que inspiraram e inspiram o protagonismo religioso e político de par celas da popula-ção feminina negra brasi leira e demarcam as especificidades de sua perspectiva. Assim, Oxun, Iansã, Obá, Ewá, Iemanjá, Nanã confor-mam arquéti pos que alargam e complexificam nossa compreensão do feminino. Cada orixá personifica uma linha de força da nature za, um papel na divisão sexual e social do trabalho, um conjunto de características temperamentais e emocionais. A existên cia de ori-xás femininos, masculinos e an dróginos expressa uma compreensão pro funda da própria sexualidade humana. Os indivíduos concretos serão percebidos do ponto de vista de seus caracteres psíqui cos bási-

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III. Observatório Político

cos, de sua ação concreta sobre o real e das múltiplas possibilidades de com binações desses componentes.

Esse sistema de representações, parti cularmente suas mulheres míticas, oferece vivências que a sociedade machista nega.

O conservadorismo cristão, que moldou a moral brasileira pas-sada, impôs às mulhe res a escolha entre os estereótipos da Vir gem Maria e de Maria Madalena. Do ponto de vista patriarcal, esta última só encontra redenção ao abdicar de sua sexualidade. As deusas afri-canas legitimaram a transgres são dessa dicotomia maniqueísta. As deu sas africanas são mães dedicadas e aman tes apaixonadas.

A partir do exemplo de Mãe Menininha de Gantois, Ruth Lande nos mostra o tipo de comportamento que essa visão alternativa de mundo ensejou: “Menininha não se ca sou legalmente [...] pelas mes-mas razões que as outras mães e sacerdotisas não se ca sam. Teria perdido muito. De acordo com as leis daquele país católico e latino, a esposa deve submeter-se inteiramente à autoridade do marido. Quão incompatível é isso com as crenças e a organização do candomblé! Quão inconcebível para a dominadora auto ridade feminina! E tão poderosa é a tendên cia matriarcal, em que as mulheres se sub metem apenas aos deuses, que os homens [...] nada podem fazer além de enfurecer-se, censurar e brigar com as sacerdotisas que amam”.4

Inspiradas nos exemplos dessas precur soras poderosas, as mu-lheres negras, mesti ças e brancas exibem hoje suas saias colori das e vestem ojás e batas brancas engomadas durante as festas. Traba-lham, cantam e dançam noite adentro para seus orixás. En tendem que, apesar de Oxalá ser o grande genitor masculino, ele se curva em adobale (prostração reverencial) diante de Oxum, o poder genitor feminino. Sabem que, embora Oxalá só possa usar a cor branca, ele põe nos cabelos a pena vermelha, o ekodide, em ho menagem ao sangue menstrual, símbolo da fertilidade e da concepção. Então, per-cebem que a dominação masculina não se explica pela natureza infe-rior da mulher, mas pelo reconhecimento de suas potencialidades e pelo temor que isso inspira. Enfim, desco brem que a Virgem Maria e Maria Madalena são forças vivas em seu interior e que não precisam abdicar da sexualidade para atin gir o reino dos céus.

*

4 Idem.

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Vale: a pérola do minério atirada aos porcos

Lúcio Flávio Pinto

1. A Vale nos vale?

O Pará é uma das bases do enriquecimento da Vale do Rio Doce e do seu futuro. Mas não consegue partilhar os benefícios da empresa. Ela cresce cada vez mais, enquanto o Estado segue

em rota oposta. Há como conciliar os dois sentidos ou estamos con-denados a ser um detalhe na grandeza da corporação?

Quando a mina de Carajás começou a produzir, em 1984, cada tonelada de minério valia 15 dólares. Até que a China entrasse vo-razmente no mercado internacional, na passagem do milênio, mo-dificando de forma tão drástica o perfil do setor, o preço do produto nunca fora além de US$ 25. Hoje, o rico minério de Carajás embarca no porto da Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, a US$ 50, mas chega à China a US$ 140. O frete marítimo, de US$ 90, é quase o dobro do valor de produção do minério e do frete terrestre, para transportá-lo pelos quase 900 quilômetros da ferrovia de Carajás.

Sem o “fator chinês”, cuja dimensão nenhum futurológo pôde pre-ver, os 100 milhões de toneladas que a Vale extraiu no ano passado da melhor mina de minério de ferro do planeta (de um total de 300 milhões de toneladas de sua produção) lhe renderiam, numa hipóte-se provável, 2 bilhões de dólares. Mas a empresa faturou em 2007, só em Carajás, como mineradora de ferro, US$ 5 bilhões brutos (sua receita global deve ter superado US$ 32 bilhões). No entanto, quanto arrecadou de frete, através da sua empresa de navegação? Certa-mente mais do que como mineradora. Os números exatos, porém, ninguém conhece. Essa é uma informação que a Vale não gosta de partilhar com a opinião pública.

Mais de 30% da produção de ferro de Carajás vão atualmente para a China. Incluindo o Japão, a Ásia é o destino de quase 60% dessa montanha de minério, transferida entre mares de um conti-nente para outro. Nesse caso, o valor do frete asiático ultrapassa em 10% os US$ 5 bilhões de receita bruta da Vale com a venda do

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III. Observatório Político

minério de Carajás. Parte considerável desse valor entra para os co-fres da ex-estatal, através da sua própria empresa de navegação, que trocou de razão social provavelmente para permanecer à sombra da holding. A outra parcela é paga a terceiros. Admitindo-se, para efeito de raciocínio, que o frete médio para os 40 milhões de toneladas res-tantes da produção de Carajás, destinada principalmente à Europa, represente um terço do custo asiático, o transporte internacional de minério ainda movimentará mais US$ 1,5 bilhão. Conta final dos fretes de Carajás: uns US$ 8 bilhões.

Somadas as duas contas, só o minério de ferro de Carajás repre-sentou, no ano passado, 13 bilhões de dólares. Quanto desse valor ficou para o Estado do Pará? Se forem incluídos na avaliação itens como a massa de salários, a compensação financeira, o royalty e compras locais, a percentagem pode ir a algo próximo de 10%, se tanto. O índice podia crescer significativamente se a Vale pagasse ICMS, do qual foi poupada pela nefanda lei Kandir (por coincidência, entrou em vigor no ano da privatização da CVRD), que desonerou os exportadores de matérias-primas e produtos semi-elaborados. E subiria muito mais se, no estabelecimento de algum equilíbrio entre a empresa e o Estado, fosse considerado como parâmetro o PIB do minério de ferro.

O que a Vale está deixando em território paraense é uma peque-níssima parte da riqueza que o Pará lhe possibilita alcançar. Ainda mais se considerados os outros bens minerais que a empresa já está explorando ou vai começar a explorar (e em escala aceleradamente intensificada) em Carajás: cobre, níquel, ouro e manganês, que, so-mados, em pouco tempo, ultrapassarão o valor da conta do minério de ferro, se forem destinados a mercados de boa receptividade. Con-siderados ainda a bauxita, a alumina e o alumínio, o Pará é o reduto por excelência da diversificação que a Vale busca para sair da depen-dência do minério de ferro, ainda a sua principal mercadoria.

O futuro da Vale tem sua matriz no Pará, mais do que em qualquer outro Estado brasileiro e qualquer das regiões do mundo nas quais a empresa já se fixou (Canadá, Moçambique e Indonésia). Depois de ter adquirido em 2006 a canadense Inco, dona da maior reserva de níquel e segunda maior produtora desse metal, por 19 bilhões de dólares (o maior negócio já feito por uma empresa da América do Sul), a Vale está se propondo um lance de valor mais de quatro vezes superior (entre US$ 80 bilhões e US$ 90 bilhões): a compra da anglo-suíça Xstrata, a sexta maior mineradora do mundo, com pre-sença forte em cobre, níquel e carvão. As jazidas de cobre e níquel de Carajás deverão contribuir bastante para colocar a Vale no topo

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Vale: a pérola do minério atirada aos porcos

do ranking internacional dessas substâncias, em associação com os novos depósitos adquiridos em outros países pela companhia.

Desta vez, ao que parece, a opinião pública está mais atenta do que durante a operação com a Inco. Mas não parece tão bem in-formada para avaliar adequadamente o significado desse negócio. Apesar das declarações tranqüilizadoras do presidente da Vale, Ro-ger Agnelli, sugerindo que sua empresa já tem porte suficiente para encarar um desafio internacional de tal envergadura, deve-se recear pela evolução no grau de desnacionalização da antiga estatal.

A característica original dessa desnacionalização não é a perda do controle formal da empresa, já que, na pior das hipóteses, as ações ordinárias representarão metade do capital total da monstruosa cor-poração que resultaria da simbiose entre a Vale e a Xstrata, com valor de mercado batendo próximo de US$ 200 bilhões. O controle nominal do capital continuaria com o fundo de previdência Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), o Bradesco e o BNDES.

Alívio para os nacionalistas? Só para eles. Um olhar mais rigoroso sobre os papéis evidenciará de imediato que a Mitsui, mesmo sendo uma compradora de minério da Vale, passou por sobre as normas da desestatização e hoje tem seu naco de ações ordinárias, que lhe con-ferem participação nas decisões da empresa. O Bradesco, principal agente da modelagem da venda, em 1997, também transformou em pó as salvaguardas do edital de alienação e hoje é o segundo maior acionista. E o Bradesco, através de sua cria de maior sucesso, Roger Agnelli, fez da criatura sua imagem e semelhança. A Vale está se tornando uma típica paper company dos novos tempos, entidade de marca mais financeira do que econômica, apesar de seus volumosos ativos materiais.

O significado desse novo perfil (de velha conformatura, mas com ênfase original) pode ser aquilatado pelas aventuras do empresário Eike Batista, o alquimista do papel. Ele usa uma fórmula-padrão: junta informações privilegiadas, recruta gente estrategicamente si-tuada, tirando-a de seus empregos com salários vantajosos e par-ticipação na receita, e investe como um bólide em setores de risco — mas de futuro — para aplicar golpes de audácia fantástica. Em um ano criou uma empresa de mineração e a está vendendo à Anglo American por incríveis US$ 5 bilhões, 50% a mais do que o valor de compra (US$ 3,2 bilhões) do controle acionário da CVRD, que hoje vale US$ 140 bilhões.

Se a MMX é pouco mais do que papel (sua única jazida real está no Amapá), por que a Anglo se dispôs a gastar tanto? Provavelmente para conquistar posições no país (ainda) sede da Vale, justamente a

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III. Observatório Político

empresa que a destronou do segundo lugar entre as maiores minera-doras mundiais. Seu foco está na infra-estrutura, que poderá montar com o controle de uma empresa de grande potencial, e na detenção de informações privilegiadas.

A Vale não apenas tem jazidas valiosas no Brasil: possui uma lo-gística sem pararelo em qualquer outro país. Essa rede de transporte e de energia só pôde ser formada graças à sua condição de empresa estatal. Quando foi privatizada, esse fator foi equivocamente consi-derado circunstancial e subavaliado, como todo o processo de priva-tização, uma das chagas abertas no coração dos interesses nacionais pelo governo do príncipe Fernando Henrique Cardoso, nosso tardio déspota esclarecido.

A desnacionalização, camuflada, mas poderosa, vem a reboque dessa teia de engrenagens financeiras, tecida por personagens como Agnelli em gabinetes e bolsas espalhados pelo planeta, sem mui-ta consideração por sedes territoriais e governos nacionais. Quando comprou a Inco, por pressão do governo canadense, a Vale cedeu o poder decisório sobre o níquel, que agora está no Canadá. Apenas transitoriamente? É o que a Vale declara, mas por enquanto não pode oferecer como garantia mais do que palavras. De fato, Carajás passou a ser um elo da engrenagem do níquel comandada a partir do Canadá.

O mesmo, em escala multiplicada, poderá acontecer com a incor-poração da Xstrata, se a compra vier a se consumar. Só que, por seu tamanho, a operação será ainda mais intrincada. Dos 80/90 bilhões de dólares de que precisará, a Vale já tem a garantia de um consór-cio de bancos para US$ 50 bilhões. Espera amealhar US$ 30 bilhões com a troca de ações preferenciais com os acionistas da Xstrata para manter seu endividamento num valor aceitável pelas agências de ris-co (que seria em torno de US$ 35 bilhões, mas deverá estourar esse limite). O restante virá por outras vias (o BNDES de sempre, agora ainda mais disposto, e geração de caixa).

Os jogadores de Wall Street já têm dois terços das ações preferen-ciais, que representam 40% do capital global da Vale (e chegarão a 50% se a transação com a Xstrata for realmente realizada). Ao invés de pulverizar suas ações no Brasil, tornando-se uma empresa do tal capitalismo popular, a Vale será, cada vez mais, um braço das paper company e seus boys de ouro. O que elas querem? Dividendos e mais dividendos, negócios e mais negócios, preços sempre mais elevados, lucros e lucros.

Essa sofreguidão é tanta, ao sabor das selvagens regras do mer-cado financeiro, que cada notícia de compra de empresa pela Vale é

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Vale: a pérola do minério atirada aos porcos

seguida por uma queda das suas ações. É o reflexo da expectativa de redução do pagamento de dividendos, que todo investimento de ex-pressão provoca a curto e médio prazo. Perder posição na classifica-ção de risco afeta a imagem da companhia em Nova York, a principal bolsa de comercialização de seus papéis, onde a Vale foi a empresa estrangeira mais negociada no ano passado.

Se montanhas de commodities continuarão a ser sugadas do Pará no rumo da China insaciável, deixando buracos no ponto de origem, isso é detalhe, ou circunstância. É nisso em que nos estamos a trans-formar — e a reduzir. Não é um destino glorioso, nem justo. Mas o tempo passa e a possibilidade de reverter esse quadro se torna mais remota, inclusive porque os patamares elevados de preços não se manterão, e a crise, mesmo com a poderosa demanda chinesa, está batendo à porta. Quando se for abri-la, ela revelará uma surpresa: o que podia ser uma fonte de riqueza será uma forma de pobreza.

2. A pérola do minério atirada aos porcosA Vale conseguiu reajustar em 65% os preços do minério de fer-

ro que comercializa no mercado internacional, conforme anunciou gloriosamente na quinzena passada. O aumento só foi inferior ao de 2005, que chegou a 71%. Mas para o produto de Carajás o reajuste continuou a ser recorde: os mesmos 71% de três anos atrás. A razão: o minério do Pará, com 65% de hematita pura, é o melhor do mun-do. Por causa dessa qualidade excepcional (realçada ainda mais pelo volume das jazidas, das maiores do planeta), Carajás proporcionará um ingresso extra de 600 milhões de dólares aos cofres da Vale neste ano. A pergunta imediata é: por que só a empresa tira proveito de um atributo físico do minério do Pará? Por que o Estado não pode tirar vantagem de sua própria riqueza?

No momento em que os novos contratos de fornecimento de mi-nério estão sendo fechados, para vigorar no exercício financeiro dos compradores, apenas as grandezas apregoadas pela Vale foram des-tacadas pela imprensa e ecoadas pelo governo. Tudo muito longe do Pará, parecendo estar fora do seu alcance, embora a fantástica mina de Carajás se localize em seu território. Ele é efetivo ponto de partida de todo o processo, mas é como se nada tivesse a ver com os desdobramentos a partir daí. Nunca é o ponto de chegada dos maio-res benefícios, principalmente porque não se esforça para entender a engrenagem que secciona a riqueza natural, circunstancialmente situada em seus limites, do seu uso e controle.

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III. Observatório Político

Mesmo quando parece que, finalmente, alguma nova renda ficará retida no Estado, não é possível soltar foguetes ao simples anúncio da benesse. É o caso da siderúrgica que a Vale prometeu instalar no Pará, por pressão do presidente da República, pressionado, por sua vez, pela governadora do Estado. Desta vez, a metodologia será diferente: ao invés de ir atrás do parceiro de investimento e só depois definir a localização do projeto, a Vale parte da definição locacional à espera de que surja um sócio disposto a entrar no negócio. Parece um caminho mais incerto, principalmente no momento em que ela implanta três outras siderúrgicas (no Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro). Mesmo que saia mais essa usina de placas de aço, o ob-jetivo maior é agregar valor ou consolidar o monopólio ao longo da ferrovia de Carajás, colocando as guseiras no redil?

Carajás é a pérola da coroa da Vale. No íntimo, seus principais executivos devem pensar que essa pérola foi atirada aos porcos, que somos nós. Porcos em sentido figurado, não literal: pessoas incapa-zes de entender o que é dispor de uma pérola dessa qualidade, rara mesmo quando se trata de uma substância mineral abundante em quase toda crosta terrestre, como o minério de ferro.

Os australianos dominavam o mercado mundial e estavam pre-parados para sair na frente de todos os concorrentes no atendimen-to do consumo asiático, em especial da China. No entanto, foram passados para trás. Eles têm a enorme vantagem de estarem muito mais próximos da Ásia do que o Brasil, distante 20 mil quilômetros. Mas quando Eliezer Baptista deslocou o alvo, primeiro para o Japão e, depois, para a China, tinha no colete o teor de pureza da rocha de Carajás, contendo quase o dobro da hematita presente no produto australiano. Os dois terços a mais de distância foram neutralizados e o comprador ganhava em tempo, em energia, em desgaste — em custo, enfim.

Mas agora os australianos estão dispostos a endurecer a compe-tição. Eles tocaram num ponto nevrálgico, que também foi exposto aqui (acho que pela primeira vez em toda a imprensa brasileira) no texto acima, sem provocar o menor comentário das lideranças insti-tucionais do Estado, como se este jornal estivesse tratando das pe-dras de Marte: o frete marítimo de Carajás para a Ásia.

Inteligentemente, a Vale não inclui no reajuste do minério o custo do frete, que é quase o dobro do custo de extração do minério (este, US$ 50 FOB, posto no porto da Madeira, em São Luís do Maranhão; aquele, US$ 90 até a China). O frete é pago pelo comprador, e a Vale faz essa transação através de outra de suas empresas, autônoma, que não entra no seu custo direto, mantida a saudável distância

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Vale: a pérola do minério atirada aos porcos

dos holofotes, postos sempre à disposição do seu presidente, Roger Agnelli. Um reajuste como o que foi conseguido na primeira rodada, com o Japão, a China e a Alemanha, jogaria o frete para um valor insuportável, de mais de US$ 150, minando a competitividade da Vale.

Os australianos, com o apoio de outros concorrentes da minera-dora brasileira, querem que o aumento inclua tudo, até o frete. Por isso manejam valores como 100% e 150%. Os analistas mais apres-sados estranharam que a Vale não esperasse para chegar a preço maior e os japoneses, por sua vez, que falavam em 35%, tenham cedido quase o dobro. A razão é que, se antecipando aos movimentos altistas dos australianos, o vendedor sai ganhando, ao deixar o frete de lado, e o comprador também, por se livrar de uma facada maior.

Nas radiosas notícias espalhadas pela grande imprensa nacional, todos saíram ganhando com a quase quadruplicação do preço do mi-nério de ferro nos últimos cinco anos. As exportações da Vale, se os novos preços forem aplicados a todos os seus contratos, passarão de US$ 20 bilhões. De Carajás sairão quase US$ 9 bilhões só em miné-rio de ferro, a maior parte da produção destinada ao mercado externo (em proporção muito maior do que no Sistema Sul da Vale, que serve o mercado nacional). De cada 10 dólares de saldo da balança comer-cial brasileira previsto para 2008, US$ 2,5 serão fornecidos pela ex-estatal. É feito sem paralelo na história da economia nacional. Dos US$ 10 bilhões líquidos que passarão do caixa da empresa para os cofres do Banco Central, quanto sairá de Carajás? Um quarto, talvez; ou até mais?

E nós, os porcos, aos quais essa pérola foi atirada? Míriam Leitão divulgou em sua coluna cálculo feito pela Vale, com base em dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Siderurgia, segundo os quais o valor do aço aplicado em um carro Gol, da Volkswagen, é de 10% do seu custo, e por isso o reajuste, para o bem de todos e felicidade geral da nação, pouco afetará o consumidor brasileiro. Já o custo com o minério bruto na produção do mesmo carro é de apenas 0,4%. Sai no calor.

Como só ficamos na ponta inicial da linha, da extração e venda do minério, sem avançar sobre a transformação industrial, essa é a parte que nos cabe no latifúndio de faturamento da Vale e do Brasil. É a parte do porco na venda da pérola. Se estamos satisfeitos e não nos interessa nada além, então à lama, companheiros.

(Publicada originariamente no site Gramsci e o Brasil)

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A cidade sob a ótica do Poder Local

Cléia Schiavo Weyrauch

A imagem da cidade democrática está presente no imaginário dos homens, impregnada das idéias de justiça e equanimidade com uma força semelhante a de um arquétipo, que atravessa

os tempos históricos. Autores como São Tomas de Aquino e Campa-nela escreveram sobre a cidade ideal nas obras A cidade de deus e A cidade do sol (nota), e a viram como um lugar de direito a ser atin-gido pelos homens. Henry Lefèbvre (1969) pensou essa cidade como obra de arte, valor de uso, de acesso institucional pleno a todos os habitantes. Implícita nessa proposta está a crítica da cidade valor de troca do capitalismo, em que homens e coisas se transformam em mercadorias.

Do ponto de vista histórico, a cidade nasceu antes da industria-lização, mas apareceu como problema social durante a Revolução Industrial, no século XVIII. Em verdade, a moderna cidade industrial rompeu com o padrão de controle da cidade medieval, onde as ordens religiosas e as paróquias cuidavam dos pobres que circulavam na e entre as cidades. A “harmonia” das cidades apoiava-se, sobretudo, no amparo da Igreja aos pobres, mais nas ordens de pobreza do que nas paróquias urbanas. Na moderna cidade industrial, a pobreza foi substituída pela miséria que afetou a maioria da população, espe-cialmente nas esferas de: saúde, trabalho, habitação e educação; e também na esfera moral. Esse contexto deixou claro a ineficácia dos antigos mecanismos de controle social, e fez surgir uma crise sócio-econômica sem precedentes.

Friedrich Engels, em seu texto A situação das classes trabalha-doras na Inglaterra, registra inúmeros desses problemas na Londres do século XIX. Mas essa denúncia não incorpora um radical pessi-mismo na medida em que o autor apostava tanto na fatalidade da Revolução Social - resultado do atrito inexorável entre capital e tra-balho - quanto na possibilidade do surgimento de novas relações de produção mais favoráveis ao operariado. Em torno desse e de outros desafios expandiram-se as ciências humanas que procuraram expli-car e compreender a nova qualidade de sociedade que então surgia.

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A cidade sob a ótica do Poder Local

Nessa direção, Karl Marx apontou a relação de exploração existente entre a miséria social e a dinâmica do capital.

No século XX, da perspectiva política, consolidavam-se os es-tados-nação, impulsionados pelas doutrinas liberais, enquanto as idéias universalistas, alimentadas pelo anarquismo e o comunismo, entusiasmavam o operariado. Na prática, o problema central da polí-tica era a afirmação da questão nacional contra as “ameaças univer-salistas” dos anarquistas e comunistas.

Para onde iria a sociedade urbana industrial que se consolidou na virada dos séculos XIX – XX , perguntava-se então?

As ciências humanas, na diversidade de suas abordagens teó-ricas, a partir do conceitual básico de cada uma delas, apontavam para diversas direções políticas: o socialismo, a democracia repre-sentativa - ações de transformações com ênfase na dimensão política ou social. A revolução ou a reforma? Por outro lado, as associações e movimentos políticos seguiam a mesma linha de diversidade.

Passados cem anos, na virada dos séculos XX-XXI, muitos dos problemas enfrentados no século XIX se repetem como, por exemplo, o da assimetria social e suas conseqüências. Uma minoria da popu-lação mundial tendo acesso aos bens públicos de primeira qualidade, enquanto a outra parte disputando as sobras dos equipamentos e recursos sociais existentes.

Em tempos de globalização, as relações de produção se interna-cionalizam, multiplicam-se os espaços de poder, enquanto as desi-gualdades se ampliam em escala surpreendente. A concentração de capital torna-se proporcional aos espaços de risco social que apare-cem na sociedade, marcados pelo embrutecimento, a desumanização e a violência. As políticas públicas nacionais de saúde, educação, trabalho etc. não lograram o sucesso esperado, o que fez com que parte da população pobre do país se lançasse nas ruas na luta pela sobrevivência. Com o fim da ditadura militar, os movimentos sociais se fortaleceram e se prepararam institucionalmente para participar, com suas propostas políticas, da Constituinte de 1988. Os movimen-tos dos Sem-Terra, pela Reforma Urbana, Pelos Direitos à Educação e à Saúde, pelo Direito da Mulher e dos Negros etc. inserem-se nessa luta em busca da garantia real de inclusão e igualdade social, civil e política. Assim, a Constituição Cidadã de 1988 nasce impregnada dessas propostas. E mais: procura fortalecer o município como ins-tância de poder local, responsável pela resolução dos seus próprios problemas sociais. É a suposta lógica da descentralização das deci-sões administrativas.Na prática, a teoria é outra

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48 Política Democrática · Nº 20

III. Observatório Político

Os movimentos sociais já vinham desde a década de 1980 pre-gando a necessidade de políticas públicas setoriais, acreditando que a publicação da Constituição atenderia, de forma adequada, às suas demandas políticas.

A cidade e a Revolução Urbana

O final dos anos 1960 deixou evidente o desgaste da Revolução Social como via para a conquista do Socialismo ou da Democracia. Da Itália, as idéias do eurocomunismo de Berlinguer se difundem; da França, o espanhol Manuel Castells e Lefèbvre pregam o espaço urbano como revolucionário, cada um com a sua proposta teórica. Mas, é Lefèbvre que no ano de 1969 publica O Direito à Cidade, obra que irá influenciar os movimentos sociais na luta pela conquista dos direitos civis, políticos e sociais. Com base nesse livro, fortaleceram-se as lutas contra a exclusão em todas as esferas políticas, com a participação de inúmeros autores brasileiros influenciados tanto por Castells como por Lefèbvre, a apostar na força de resistência do es-paço urbano. Esses autores analisam tanto a qualidade da exclusão de populações urbanas desfavorecidas, quanto o seu potencial de resistência. O conceito de uso social da cidade ganha fôlego e são reforçados os argumentos que reivindicam os direitos da população sobre sua cidade.

A questão local

Na década de 1990, as políticas públicas se corporificam, alimen-tadas tanto pelas conquistas formais adquiridas, quanto pelas de-mandas radicais da população. Os direitos gravados na Constituição de 1988 precisam transformar-se em prática; ou seja, reverter-se em conquistas reais da sociedade, transformar-se em bens com acesso ao público.

Na prática, o aumento do desemprego e da violência nas cidades provoca o processo de desintegração social de certas áreas, exigindo por parte das autoridades uma reflexão maior para uma ação efetiva sobre elas. Discutem-se novos modelo de gestão, quer da perspec-tiva da dinâmica financeira, quer da geração de emprego e renda, da educação, da saúde e etc. Essas áreas aqui chamadas “de risco social” - podem ser um município, uma região, ou apenas um bairro - dependendo da ótica adotada e do problema que se quer resolver, de modo geral são áreas passíveis de desintegração social, que preci-sam ser recuperadas a partir de novas ideologias de intervenção. Na

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A cidade sob a ótica do Poder Local

verdade, essas áreas tornam-se um perigo para o Estado, na medida em que passam a definir, para o bem ou para o mal, medidas de sobrevivência; entre outras, a integração ao tráfico de drogas, ou o estímulo a milícias para combatê-lo, além de outras alternativas. A luta pela vida dá lugar a luta pela sobrevida.

Questão social versus questão urbana

O avanço da urbanização contaminou de tal forma o tecido da sociedade que a transformou em urbana: o campo industrializou-se, urbanizou-se, e informatizou-se; nas cidades, foram criadas “áreas metropolitanas”. Na cidade do Rio de Janeiro, a Área Metropolitana foi estabelecida em 1975, ao ser politicamente reorganizado o Estado do Rio de Janeiro. A velha questão social foi substituída pela questão urbana, onde problemas típicos de uma nova sociedade, impregnada de sofisticada tecnologia, ganharam relevo. Nela, novas contradições surgiram, além, é claro, daquela inevitável entre capital e trabalho. O capital avançou sobre o setor negócios e, na ausência de políticas nacionais satisfatórias que resolvessem os problemas essenciais do país, as lideranças locais, aqui entendidas em sua diversidade, to-maram a si a responsabilidade de promovê-lo. Algumas, com visões a curto, médio e longo prazo, dependendo da ideologia do grupo ou instituição em ação.

Modo geral, a expansão desordenada das cidades colaborou para que a atenção da população se voltasse para o mal funcionamen-to dos transporte, do frágil policiamento da cidade, da exigência de quadras de esportes e divertimento, relegando a plano secundário questões, a nosso ver, maiores, como os problemas da educação, de saneamento básico e saúde pública; enfim, de qualidade de vida da população. A questão social foi absorvida pela urbana, sem que a primeira tenha ganho a relevância merecida. Assim, as questões do desemprego e a da qualidade e da regularidade do atendimento social à população, nos seus vários planos, perderam espaço para aquelas relativas ao funcionamento da cidade.

Certos autores fazem coincidir o aparecimento da questão urbana com o fim da sociedade industrial, que, ao invés de celebrar o cida-dão nacional, coloca em pauta as novas identidades urbano-políticas que acabam por definir formas inovadoras de ação político-social. Passa-se a falar sobre a identidade de bairros, de regiões e até de ruas, em um processo fragmentação crescente.

Em resumo, a idéia de cidade vai ganhando contornos inéditos, sob a ótica dessas novas identidades que aparecem; o “local” passa a ser o ponto de partida para se definirem políticas democráticas tam-

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III. Observatório Político

bém inovadoras, que precisam aproximar-se criticamente das ela-boradas nas instâncias legislativas e executivas do Estado. Sãos os diagnósticos e as intervenções da instância local que deverão escla-recer e iluminar a inépcia de políticas nacionais pouco condizentes com os interesses das várias comunidades do país.

Apesar de todas essas transformações, a idéia de cidade ideal não morreu. Ela está presente, sob forma renovada, nos movimentos sociais contemporâneos e nas gestões responsáveis que as novas li-deranças impõem sobre a coisa pública.

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Captura das Agencias Reguladoras: Um fenômeno multidimensional

Paulo Morais Santa Rosa

Nesse ano que comemoramos a maioridade do Código de De-fesa do Consumidor (Lei 80.078/1990) uma reflexão se faz necessária. As agências reguladoras, alegadamente criadas

para a defesa dos direitos do consumidor vêm cumprindo esse papel? A quem elas afinal defendem? Qual o seu papel real na sociedade? Uma das acusações mais comumente feitas às Agencias é da captura delas por parte do setor regulado. Nosso objetivo aqui é propor uma abordagem ligeiramente diferente do tema e propiciar uma releitura do conceito com base na experiência prática.

Para iniciar a discussão o tema da “captura” das agencias pelo “setor regulado” é preciso que se defina claramente o que se chama de captura. Utilizaremos a conceituação original de STIGLER (1971)1 e o desenvolvimento de OLIVEIRA (1998)2 como ponto de partida para o debate. Para esses autores a “captura” trata-se do mecanismo pelo qual as agencias reguladoras tem o seu processo decisório forte-mente influenciado pelos interesses, pontos de vista e ideologias pro-venientes dos agentes regulados. Para OLIVEIRA (1998)3 “Indepen-dentemente de problemas éticos, verificou-se elevada propensão dos “regulados capturarem os reguladores” em virtude de insuficiência de recursos e informação adequada por parte da agência comparativa-mente às empresas privadas e pela identidade de interesses e cultura profissionais entre os técnicos especializados da agência e o segmento regulado. Tal fenômeno estaria associado à assimetria de informação em desfavor do setor público e da natural identidade profissional en-tre os especialistas com função judicante temporária e os segmentos sujeitos a uma determinada jurisdição administrativa. O grau em que o recrutamento e o futuro profissional das autoridades regulatórias se

1 GEORGE J. STIGLER 1971. (With Manuel F. Cohen) Can Regulatory Agencies Pro-tect the Consumer? Washington, D.C.:American Enterprise Institute.

2 OLIVEIRA, G. Defesa da Concorrência em Países em Desenvolvimento: Aspectos da Experiência do Brasil e do Mercosul, Instituto Teotônio Vilela, Brasilia, 1998.

3 OLIVEIRA, G. & PEREIRA NETO, C. M. Regulação e Defesa da Concorrência: Bases Conceituais e Aplicações do Sistema de Competências Complementares. EAESP/FGV/NPP - Núcleo de Pesquisas e Publicações, São Paulo, 1998.

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III. Observatório Político

restringe ao setor regulado constitui variável relevante para a propen-são à captura.” Esse conceito funciona em consonância com as teo-rias microeconômicas de imperfeições do mercado e de economia da informação4 entretanto no ambiente político, notadamente o brasilei-ro, a condução de uma agência reguladora demonstra a existência de tensões outras que pretendemos tratar aqui.

Um dos mais fortes argumentos para a intervenção do Estado nas relações entre os agentes econômicos, no âmbito da teoria eco-nômica, é existência de imperfeições de mercado5. Entre elas a assi-metria de informações é tida como das mais importantes motivações para a ação reguladora do Estado, notadamente no setor saúde. A atuação das agências, por esses pressupostos, se dá dentro da teoria da Economia do Bem Estar6 e subsidiariamente no âmbito da defesa do consumidor.

Outro pressuposto acessório, notadamente no caso do modelo das agencias reguladoras, é que existe a possibilidade de se reunir agentes estatais que dominem um conhecimento técnico, suficiente e independente, que minimizem a falta de informação por parte dos compradores dos bens ofertados pelos agentes regulados. Assim sen-do é necessário que mais dois pré-requisitos sejam realizados para o correto funcionamento do modelo. Primeiro que o Estado seja capaz de competir com o setor privado na atração de profissionais qualifi-cados a fim de esclarecer os compradores sobre os atributos de valor dos produtos, algo que consideramos muito difícil, notadamente em economias periféricas.

Por outro lado, é preciso que se creia na existência de um consen-so técnico independente, numa ciência absolutamente isenta, “acima do bem e do mal”, despida de preconceitos, paradigmas e ideologias. Não cabe aqui uma discussão aprofundada das teorias do conheci-mento, da epistemologia, podemos inclusive aceitar o benefício da dúvida em relação a esse pressuposto, mas de qualquer forma está longe de ser uma unanimidade a possibilidade de se atendê-lo de for-ma eficiente e duradoura. Dentro desse caldo econômico e cultural (lato sensu) o processo de captura seria de certa forma estrutural e

4 STIGLER, GEORGE J. The Process and the Progress of Economics. Nobel Memorial Lecture, 8 December, 1982.

5 Para uma leitura do papel do estado na solução das imperfeições de mercado ver STGLITZ, J.E. Economics of Public Sector, 3rd. Edition WW Norton, NY, 2000.

6 Uma interessante abordagem do papel das agências na produção de melhorias de qualidade de vida, dentro do marco teórico do “Welfare Economics” é discutida em: BOBROW, D.B. & DRYSEK, J.S. Policy Analisis by Design, University of Pittsburg Press, 1987.

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Captura das Agências Reguladoras: Um fenômeno multidimensional

inevitável, daí a explicação de sua alta incidência ou forte propensão a ocorrer.

Antes ainda de entrar no tema da multidimensionalidade do fe-nômeno, gostaríamos de fazer mais uma distinção conceitual, entre captura do agente regulador e da agência reguladora. No primeiro importa fortemente os conceitos relativos a postura técnica do indi-víduo, ideologia, identidade profissional, empregabilidade e remune-ração. Já em relação à captura da Agência Reguladora, do resultado final, seja seu julgamento ou norma produzida7, interferem ainda outros elementos, resultantes da interação de uma multiplicidade de fatores de atração que chamaremos de “processos de captura”.

Dentro dessa teoria passaremos a chamar de “captura” a ten-dência de uma Agência a se afastar de seus critérios “objetivos” de julgamento, sendo atraída para os interesses de um determinado agente que, naquele momento, oferece mais vantagens competitivas ou menores custos de transação. Para iniciar a demonstração das di-versas faces do problema proporemos uma tipologia provisória dessa forma:

Captura pelo Setor Regulado – é a modalidade mais comum e mais aceita, o setor econômico regulado, seja pela superioridade técnica, identidade ideológica, pressão econômica (incluindo a cor-rupção de agentes públicos), obtém com sucesso a prevalência de seus interesses sobre o dos outros agentes. Ainda que considerado o vilão da história, o setor regulado algumas vezes é vitimado pela atuação das agências, que carecem de informações pormenorizadas do setor e portanto acabam por gerar efeitos deletérios sobre a con-corrência, introduzindo novas falhas no mercado. Simultaneamente a precariedade das relações trabalhistas da mão de obra das agên-cias, contratada de forma temporária ou por projetos de organismos internacionais, reduz a independência dos servidores que passam a ver no setor regulado uma perspectiva de trabalho, mesmo porque os salários no setor são de 3 a 8 vezes mais elevados que nas agências.

Captura pelos Consumidores/Defensores – No caso brasileiro a pressão dos consumidores é basicamente exercida pelos órgãos de defesa do consumidor e pelo Ministério Público. Como esses órgãos têm suas demandas, em grande parte, orientadas pelo senso comum (não cientifico), algumas vezes as agências são forçadas a adotar pos-turas contra o conhecimento técnico vigente a fim de se preservar

7 Entres as funções das agências reguladoras se destaca a produção de normas daí terem uma função quase legislativa como ressalta OLIVEIRA, G. & RODAS, J.G. in Direito e Economia da Concorrência, Rio de Janeiro, 2004.

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III. Observatório Político

em relação a esses agentes. A mídia é outro agente que pode atuar dessa forma, criando pressão da opinião pública e alterando o foco de decisão da agência.

Captura pelos Agentes Políticos – Tanto o Governo quanto o Parlamento, no modelo brasileiro, tem forte poder sobre as agências reguladoras. Seja na escolha dos dirigentes, celebração e acompa-nhamento dos Contratos de Gestão, dotação orçamentária ou pela pressão dos grupos de interesse organizados que se valem desses agentes para influenciar em suas decisões. Muito embora em outros países a relação entre as agências e o parlamento seja muito mais estreita do que no Brasil, com audiências constantes dos dirigentes com parlamentares, aqui predomina ação individual do parlamentar em defesa de interesses locais.

Captura Endógena – Vinculada à sobrevivência e preservação do éthos burocrático, numa tentativa de autojustificar sua ação na linha do comportamento passado (tradição). O conservadorismo nas tomadas de decisão pelos agentes reguladores torna-se uma proteção contra ações judiciais ou procedimentos disciplinares, protegendo os servidores e levando a criação de uma “jurisprudência” que muitas vezes se choca com o conhecimento técnico e cientifico de natureza mutável.

Captura do agente regulador versus da agência reguladora – Muito embora seja sutil a diferenciação e identificação final dos dois fenômenos, e que ao final o resultado seja aparentemente o mesmo a que considerar-se a necessidade de diferenciar processos que se im-plantam de forma sistêmica de outros que se localizam em determi-nadas partes. Os processos de captura do regulador em geral estão mais relacionados a problemas ou de natureza cultural ou de depen-dência do futuro profissional do corpo técnico, em geral tendendo a direcionar seu julgamento para o pondo de vista do regulado. Já a captura sistêmica, da agência, tende a ser mais complexo, mediado por elementos políticos, de legitimação, de independência adminis-trativa mas pode também ser fortemente influenciado por elementos de captura de seus técnicos quando o nível de instabilidade das car-reiras técnicas for muito elevado.

Captura e Corrupção – Muito embora tanto a captura quanto a corrupção do agente regulatório tenham o mesmo objetivo, influen-ciar, é vital que se diferencie os dois fenômenos. Primeiro porque as estratégias para minimizá-los são completamente diferentes, depois porque seus resultados do ponto de vista da instituição são igual-mente diferentes. Enquanto a captura reforça os laços institucionais,

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Captura das Agências Reguladoras: Um fenômeno multidimensional

o espírito de corpo e a coesão interna, a corrupção desestrutura equi-pes, fomenta a competição, fragmenta a instituição, literalmente a corrompe. A captura é assunto que deve ser debatido abertamente, do ponto de vista econômico, político, sociológico e legal, corrupção é caso de polícia mas não pode ser relegado ao segundo plano nem varrido para debaixo do tapete. Existem problemas estruturais que facilitam tanto a captura quanto a corrupção, baixa qualificação dos técnicos, baixos salários e alto poder driscrionário são uma combina-ção perfeita para a criação de dificuldades visando a venda de facili-dades. Não acreditamos que a redução da captura venha a eliminar completamente a corrupção mas certamente cria um meio ambiente mais hostil à sua disseminação.

Face ao quadro apresentado é possível concluir que o processo decisório em uma Agência Reguladora, antes de ser objetivo, linear e independente, é resultante de uma sofisticada rede de contradições e disputa de interesses particulares. Analisar essa rede de influências unilateralmente, contrapondo-se os interesses de uma forma mani-queísta, de um lado o bem, público; de outro o mal, privado; além de ideologizar a discussão não contribui para que se trace uma estra-tégia para minimizar as possíveis conseqüências dos múltiplos con-flitos de interesse. O papel arbitral das agências dentro dessa “teia” não é simples, carecemos de instrumentos jurídicos e de comunica-ção entre agentes para viabilizar acordos de forma clara, objetiva e transparente. Uma possibilidade legal para concretizar essa necessi-dade seria a regulamentação do uso de “termos de ajuste de condu-ta” pelas agências, ressalvado o perigo de se elevar muito o grau de discricionariedade e retroalimentar o processo de captura.

Herdeiras da tradição de relativo sucesso em vários países, as agências no Brasil se relacionam com extrema dificuldade com o nos-so Direito, da mesma forma que o convívio com a classe política não esta bem resolvido. Situadas numa fronteira tênue entre a defesa do consumidor e administradora do livre mercado elas parecem não sair de permanente crise de identidade. Não é difícil entender a gê-nese dessa crise, afinal de contas governo após governo a sociedade foi levada a acreditar que elas seriam a Justiça, sem vendas nos olhos, dotadas de objetividade, independência técnica e muito acima do mal. Obviamente nada disso ocorreu e depois de um breve período elas passaram a ser consideradas como a fonte de todos os males. Capturada, incompetente, vendida, inoperante e até assassina8 são

8 Em entrevista à Carta Capital (no. 459 de 29 de agosto de 2007 p. 32-33) o doutor em Direito, Edson Nunes, referindo-se a ANAC e lembrando o acidente com o vôo da TAM em Congonhas concluiu que “as instituições também matam”.

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III. Observatório Político

exemplos de adjetivos utilizados para designar algumas das agências reguladoras.

As Agências Reguladoras, nascidas sob o pretexto de resolver (ou ao menos minimizar) falhas num mercado de concorrência imper-feita, estão longe da perfeição. Entender o seu papel em nossa so-ciedade, as conseqüências e novas imperfeições geradas pela sua presença, são um interessante desafio para os formuladores e im-plementadores de políticas públicas. Fazer com que esse modelo se torne eficiente e democrático é uma tarefa a ser realizada com a atu-ação conjunta de todos os agentes envolvidos, sendo que para isso a ideologia ou a visão paroquial pouco contribuem.

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IV – Batalha das Idéias

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Autores

Giuseppe VaccaPresidente da Fundação Instituto Gramsci, de Roma.

Elza A.B. Brito da CunhaFormada em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, concluiu o curso de mestrado no Departamento de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília – UnB com área de concentração em agronegócios. Este artigo é uma síntese do Capítulo I de sua dissertação

Leone Campos de Sousaxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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Gramsci, o pensador da democracia1

Giuseppe Vacca

A partir da segunda metade dos anos setenta do século passado, os estudiosos que participam da renovação da interpretação do pensamento de Gramsci compartilham a convicção de que

o núcleo dinâmico dos Cadernos esteja nos parágrafos dedicados ao Americanismo, de que a principal categoria analítica introduzida por Gramsci na pesquisa histórica seja o conceito de “revolução passiva”, e de que desta tenha tido origem o desenvolvimento de um pensa-mento original, baseado na teoria da hegemonia.

O pensamento de Gramsci no cárcere chega ao amadurecimento entre 1932 e 1934 e contém uma visão do século XX que antecipa um nexo de problemas hoje tornados ainda mais evidentes. São os problemas da globalização da economia mundial e do seu impacto sobre os sistemas nacionais. A reflexão de Gramsci culmina numa nova idéia da política.

As pesquisas sobre a história do marxismo contida no Caderno 11, sobre a filosofia de Benedetto Croce contida no Caderno 10 e sobre os intelectuais e a política (Cadernos 12 e 13) constituem os capítulos principais da filosofia da práxis. A teoria da hegemonia - definida por Gramsci como “desenvolvimento teórico-prático da filo-sofia da práxis” - compõe-se de uma gnosiologia e de uma analítica,

1 O texto é a parte final do documento “Os estudos gramscianos depois de 1989” que foi apresentado no último dia 7/3/2008 por Giuseppe Vacca ao Conselho Curador da Fundação Instituto Gramsci, de Roma. Ver texto completo em Gramsci e o Brasil (http://www.acessa.com/gramsci/)

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IV. Batalha das Idéias

cujos conceitos recebem a elaboração mais completa nos Cadernos 14, 15 e 16.

A partir da gnosiologia e da analítica da hegemonia germina uma concepção original da constituição dos sujeitos políticos, cujo prin-cipal laboratório é a história da Itália contemporânea (o Caderno 19, mas não só).

O programa de pesquisa dos Cadernos originou-se da reflexão sobre as conseqüências da derrota da revolução socialista na Europa no início dos anos vinte e sobre a mudança da natureza e da função internacional da URSS como desdobramento da “revolução pelo alto” e pelo desencadeamento da “guerra camponesa”. Segundo Gramsci, o fim da aliança entre operários e camponeses, provocado por Stalin, tinha conseqüências de alcance mundial. Com tal ruptura desapare-cia a possibilidade de dar continuidade e orientação socialista ao re-volucionamento das massas, prosseguindo o processo iniciado pela Revolução de Outubro.

O socialismo se territorializava e mudavam as bases sociais do Estado soviético. A URSS staliniana mostra-se, para Gramsci, como uma “forma extrema de governo dos funcionários”, uma forma primi-tiva, econômico-corporativa, de Estado operário, pobre de capacida-de hegemônica e de elementos de plano, globalmente sem capacidade de expansão. Segundo Gramsci, a origem disso estava na interrup-ção da construção de uma “economia média”, baseada numa troca equilibrada entre cidade e campo.

Seu desaparecimento bloqueava a propagação internacional de processos análogos, baseados nacionalmente na aliança entre ope-rários e camponeses. Ruía assim a idéia da revolução mundial, que Gramsci, fiel à lição original dos bolcheviques, entendera como difu-são do industrialismo com base na cooperação entre cidade e campo de modo a romper o antagonismo que caracteriza suas relações na modernidade capitalista.

A investigação das causas da derrota faz Gramsci aprofundar a busca das dinâmicas do desenvolvimento capitalista e concentrar a atenção sobre a forma mais avançada de industrialismo, a de tipo americano, caracterizada pelo taylorismo e pelo fordismo. Em oposi-ção à teoria oficial do movimento comunista, chega a uma diferente periodização e interpretação da era do imperialismo. Segundo Gra-msci, a partir do final do século XIX, o desenvolvimento industrial, que unificara ainda mais o mercado mundial, havia deslocado o cen-tro da “economia mundo” da Europa para os Estados Unidos. Aqui se afirmaram as formas mais avançadas de introdução da racionalidade

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Gramsci, o pensador da democracia

científica nos processos de trabalho e na organização das empre-sas e dos mercados. Este tipo de industrialismo constituía a forma mais racional de desenvolvimento das forças produtivas, continha a tendência à formação de uma “economia programática” e, como tal, merecia ser difundido. Segundo Gramsci, com sua propagação se po-deriam criar as condições para separar industrialismo e capitalismo, fazendo com que as classes trabalhadoras assumissem a direção dos processos de modernização.

Na visão de Gramsci, pois, a contradição principal da era contem-porânea está no contraste entre o cosmopolitismo da vida econômica e o nacionalismo da vida política, baseada ainda nas prerrogativas do Estado-nação. A Primeira Guerra Mundial se originara da incapa-cidade por parte das classes dirigentes de resolver aquele contraste, adequando os espaços da política aos novos espaços da economia. As tentativas de solução nascidas da guerra - a revolução mundial projetada pelos bolcheviques e a criação da Sociedade das Nações projetada por Wilson - faliram rapidamente. A paz de Versalhes res-tabelecera as prerrogativas dos Estados nacionais e inaugurara uma época de nacionalismos exacerbados e de conflitos endêmicos. Se-gundo Gramsci, o contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política, que se reproduz depois da guerra, estava na origem da grande crise de 1929-1931. Sua superação só poderia se verificar favorecendo a difusão do industrialismo de tipo ameri-cano, que, graças à criação da economia dos consumos, indicava o caminho para conjugar desenvolvimento e democracia.

Não há quem não veja quanta distância então separa Gramsci das concepções do movimento comunista dos anos trinta. Sua visão do desenvolvimento econômico recusava as teorias do imperialismo, da “crise geral do capitalismo” e da inevitabilidade da guerra, que constituíam o fundamento analítico do bolchevismo e a justificação histórica da Internacional Comunista. Gramsci considerava que a expansividade do movimento comunista se esgotara rapidamente e, portanto, a direção do processo histórico-mundial voltara às mãos das velhas classes dominantes.

Mas a Grande Guerra havia inaugurado uma época nova: as imen-sas massas camponesas fizeram sua entrada na história; a guerra as inserira nos circuitos da modernidade, dando início a um processo de desenvolvimento irreversível da subjetividade dos povos. Com o esgotamento da onda revolucionária originada da Grande Guerra e da Revolução Russa, a difusão do industrialismo e da modernidade voltaram a ficar sob a direção das velhas classes proprietárias. Deste modo, originara-se uma forma de “revolução passiva”, que dominava

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IV. Batalha das Idéias

a cena mundial. Nela se inseria também a URSS, de modo subalter-no. Mas, em todo caso, para cumprir uma tarefa histórica impror-rogável, as classes dominantes deveriam haver-se com as classes subalternas. Qual era o ponto de interseção de um outro programa, que se propusesse o objetivo de fazer com que as classes populares assumissem a direção do processo?

Segundo Gramsci, o principal evento político originado da mun-dialização da economia era a crise do Estado-nação. O cosmopolitis-mo da economia modifica as características das nações. No século XX — diz Gramsci —, a história é história mundial e só convencio-nalmente se pode escrever a história de um só país, a não ser que se captem suas relações com a história internacional. A despeito da restauração da velha Europa dos Estados nacionais, na seqüência da paz de Versalhes, a nação não mais pode ser restrita ao horizonte da vida estatal. Uma sociedade civil internacional está em formação. As nacionalidades são continuamente remodeladas pela variação das condições internas e internacionais do desenvolvimento. A difusão mundial do industrialismo tem seus epicentros nos mercados nacio-nais; a regulação do crescimento econômico torna-se a função fun-damental dos Estados; a identidade nacional é redefinida pelos des-dobramentos da socialização, isto é, pelas combinações de nação e desenvolvimento. A idéia de nação, pois, dinamiza-se e torna-se plu-ral. Ela varia com base nos projetos de cidadania dos diversos grupos sociais e das classes contrapostas. Em outras palavras, muda com base nas alternativas que se oferecem à internacionalização da vida estatal, nas diversas combinações dos elementos nacionais e inter-nacionais do desenvolvimento que podem se afirmar. Isto impõe uma nova concepção da política.

Cosmopolitismo da economia significa unificação econômica do mundo, ainda que antagônica. Tal unificação gera laços cada vez mais numerosos de interdependência econômica e política. Pela pri-meira vez na história, pode-se conceber uma idéia da política que preveja a subordinação permanente da força ao consenso. É o con-ceito da política como hegemonia, que se contrapõe à concepção tra-dicional da política como potência. A crise do princípio de soberania provoca uma distinção progressiva da política em relação ao Estado, um distanciamento em relação a ele. Para Gramsci, este processo deve ser levado até as últimas conseqüências, entrelaçando o desen-volvimento da democracia dentro dos Estados com a criação da de-mocracia internacional. Para ele, o objetivo se mostra realista, uma vez que a construção da supranacionalidade está na ordem do dia. Assim, ele vê o agrupamento das economias e dos Estados europeus

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Gramsci, o pensador da democracia

como uma possível etapa da construção de uma nova ordem mun-dial, baseada na cooperação entre os povos na interdependência e na reciprocidade.

Gramsci percebe lucidamente que os centros da difusão mundial do industrialismo de tipo americano são os Estados nacionais. Eles constituem o teatro da luta política e de classe. A concepção da po-lítica como hegemonia compreende o desenvolvimento nacional de modo aberto a diferentes alternativas. Com base no industrialismo de tipo americano é possível que se forme “uma nova vontade coletiva a partir de baixo”. Esta decorre das condições em que não só a classe operária, mas toda a sociedade se encontram em face da economia. A idéia de nação que as classes populares devem promover para afir-mar sua hegemonia é a que se propõe contribuir, como nação de produtores, para a “formação de uma economia segundo um plano mundial”.

Portanto, traçando um programa para as classes trabalhadoras italianas, Gramsci lhes indica o objetivo de acolher a herança da tra-dição cosmopolita do nosso povo. É o tema do Caderno 19 (Risorgi-mento), que abre o caminho para a conciliação entre classe e nação e anuncia uma remodulação democrática da nação. Segundo Gramsci, esta é a única idéia que pode guiar os processos de internacionali-zação postos na ordem do dia pelos desenvolvimentos da economia mundial, de modo a sanar as taras de uma história nacional ca-racterizada por bases demasiadamente restritas do desenvolvimento econômico e da hegemonia das classes proprietárias.

A concepção da política como hegemonia relaciona-se assim com o pensamento de Maquiavel, que, para Gramsci, é o primeiro pensa-dor da democracia porque percebe o caráter estruturalmente plural das sociedades modernas: o caráter organizado da cidade e do cam-po, que o surgimento do modo de produção capitalista põe em rela-ção dinâmica entre si, ainda que antagônica, tornando ambos a base do desenvolvimento econômico e do Estado.

O Estado moderno, ao se fundar na unificação do povo-nação, é a única forma política que permite uma troca equilibrada entre cida-de e campo, e, mais em geral, entre todos os interesses organizados que formam o tecido das sociedades modernas. Parece evidente que, ligando-se à concepção da política como hegemonia, a teoria da de-mocracia se ilumina com uma nova luz e assume um caráter realista e concretamente universal.

Reelaborar o marxismo como filosofia da práxis torna-se assim o tema principal do programa de investigação dos Cadernos, com o

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IV. Batalha das Idéias

objetivo de indicar às classes subalternas o caminho para refundar a nação e instituir novas relações entre dirigentes e dirigidos, inte-lectuais e povo. Este é o sentido que Gramsci confere à filosofia da práxis quando, no ponto culminante da sua investigação, define-a como uma “heresia nascida no terreno da religião da liberdade”.

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Os desafios da biotecnologia no Brasil

Elza A.B. Brito da Cunha

Introdução

Os avanços na biotecnologia foram muito rápidos nos paí-ses desenvolvidos nos quais têm sido modificadas dezenas de diferentes espécies vegetais desde 1982, ano em que se

conseguiu transferir, com êxito, o primeiro gene isolado. Em 1992, realizaram-se várias centenas de ensaios com plantas transgênicas na Europa, Estados Unidos, Japão e Austrália.

No discurso proferido na reunião de cúpula Ibero-americana de Ciência e Tecnologia, realizada no dia 6 de outubro de 1992, em Sevilha (Espanha), intitulado “As biotecnologias no início dos anos noventa: êxitos, perspectivas e desafios”, o diretor geral da Organi-zação das Nações Unidas Para Educação, Ciência e Cultura (Unes-co), destacou que os primeiros exemplares de batata, algodão, col-za1, tomate, soja e tabaco transgênicos haviam sido submetidos a experimentos em pequena escala, em ensaios em campo, nos quais foram incorporadas resistências a herbicidas, vírus e insetos, além de outras características desejáveis, em termos de qualidade, que apresentavam interesse comercial (MAYOR, 1992).

Na década de 90, os primeiros organismos geneticamente modifi-cados (OGMs) produtos da moderna biotecnologia com aplicabilidade nos complexos agro-alimentares foram introduzidos no mercado dos países concorrentes.

Breve histórico da biotecnologia no BrasilNo Brasil, desde meados da década de 90, organizações não gover-

namentais (ONGs) se opuseram à adoção de produtos transgênicos destinados ao complexo agro-industrial. Justificaram essa oposição alegando a suposta falta de segurança intrínseca desses produtos e também o predomínio de empresas transnacionais na titularidade de patentes dessas novas tecnologias.

1 A colza é também conhecida no Brasil como canola.

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IV. Batalha das Idéias

Em 05 de novembro de 1998, o Instituto de Defesa do Consu-midor - IDEC, tendo por assistente a associação civil Greenpeace, e por litisconsorte ativo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA (que depois se retirou do fei-to), ajuizou uma Medida Cautelar Inominada contra a União Federal visando impedir o plantio da soja rr2 sem a prévia apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Obtida a liminar, em 1998, as primeiras cultivares de soja rr tiveram seus registros suspensos por determinação judicial e os produtores rurais ficaram impedidos de cultivá-la por sete anos.

Em 1999, ano seguinte ao da ação judicial acima referida, algu-mas organizações não governamentais (ONGs) lançaram a Campa-nha Nacional Por Um Brasil Livre de Transgênicos3 por meio da qual passaram a exigir uma agenda positiva de segurança. A campanha tinha por finalidade abalar a confiança dos consumidores nos resul-tados da ciência em geral e nos organismos geneticamente modifi-cados (OGMs) em particular, com base no princípio da precaução4, marco teórico cujas raízes históricas, fundamentos filosóficos e dou-trina jurídica encontram-se sintetizados no trabalho de COLOMBO, (2004).

A polêmica que se travou na mídia entre representantes dos dois pólos – de um lado os que contestavam e de outro os que defendiam

2 “Um dos produtos agrícolas tolerantes a herbicidas, a soja Roundup Ready (rr) é resistente ao glifosato, um herbicida eficaz em muitos tipos de gramíneas, ervas de folhas largas e ciperáceas. Esses produtos, anteriormente, teriam sido destruídos junto com as ervas-alvo, mas agora podem ser usados como um controle eficaz de ervas. Os produtos agrícolas mais comuns tolerantes às ervas (algodão, milho, soja e canola) são comercializados com nomes como: Milho Liberty Link (LL), resistente à amônia de glufosinato; e o algodão BXN, resistente ao bromoxinil.” Fonte: Departa-mento de Agricultura dos Estados Unidos [U.S. Department of Agriculture].

3 Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária- ANVISA, a Encefalopatia Es-pongiforme Bovina (EEB), mais conhecida como “doença da vaca louca” é uma das formas das Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis (EET). São doenças fatais (WHO, 2001) e caracterizadas por degeneração esponjosa do cérebro. Tais doenças têm um período longo de incubação (de 4 a 5 anos), mas a letalidade ocorre de sema-nas a meses após instalada (WHO, 2001). A EEB, encefalopatia que ataca o gado, é uma das diversas formas de doença neurológica transmissível que afeta diversas es-pécies animais. As ovelhas apresentam uma encefalopatia espongiforme conhecida como “scrapie” e está presente há mais de 200 anos na Grã-Bretanha e outros paí-ses. Várias espécies de mamíferos podem apresentar encefalopatias espongiformes como martas, alces, cervos, mulas e felinos. Em seres humanos, uma das formas de encefalopatia espongiforme transmissível é denominada Doença de Creutzfeldt-Jakob (CJD). Disponível em: <http:// www.anvisa.gov.br>. Acesso: 5 fev. de 2007.

4 Os boletins da Campanha Nacional “Por um Brasil Livre de Transgênicos” encon-tram-se disponíveis no site <http://www.agrisustentavel.com/trans/campanha.htm> (acesso em 28 de fev. de 2007).

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Os desafios da biotecnologia no Brasil

o uso de OGMs, arrastou-se ao longo de alguns anos. Na época vol-taram à tona alguns vestígios do embate que ocorrera na década precedente, acerca do uso do hormônio DES 5 na engorda do gado bovino.

Em meio à campanha foram igualmente evocados os riscos do hormônio bovino - este transgênico, conhecido como BST6, regula-mentado nos EUA, mas proibido na Europa e no Canadá. É certo que os argumentos expendidos sobre o risco à saúde humana pelo BST se arrastam até hoje. Todavia, diante da inexistência de provas irrefutáveis quanto ao dano alegado, esses argumentos vêm sendo interpretados nos países exportadores de leite como meros pretextos para a criação de barreiras não tarifárias à proteção dos mercados locais dos países importadores, o que nada contribui para elucidar no Brasil a nova questão colocada na pauta de discussões.

O episódio da vaca louca7 ocorrido na Europa alguns anos an-tes também municiou os detratores da Ciência de bons argumentos para acirrar os ânimos. Desde abril de 1985 veterinários clínicos dos países pertencentes ao Reino Unido começaram a relatar aos seus serviços de vigilância sanitária de saúde animal que alguns bovinos,

5 A Declaração de Wingspread aborda o Princípio da Precaução da seguinte maneira: “Quando uma atividade representa ameaças de danos ao meio ambiente ou à saúde hu-mana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo se algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidos cientificamente.” Disponível em: http://www.fgaia.org.br/texts/t-precau. Acesso: 10 fev. 2007. Tradução de Lúcia A. Melin).

6 O uso do DES abreviação de dietilestilbestrol, hormônio sintético com forte poder anabolizante para os bovinos, administrado por meio de injeção na orelha para a engorda do gado bovino é proibido no Brasil, foi condenado pela Organização Mun-dial de Saúde em 1974 e abolido nos EUA em 79, depois de trinta anos no mercado desse país. Mas sempre foi possível adquirir o hormônio contrabandeado no Brasil, proveniente da Bolívia ou do Paraguai. Em 1988 a revista Saúde! publicou que sua repórter tinha comprado, sem qualquer restrição, um frasco de Vi-Gain, nome comercial do DES, em uma loja de produtos veterinários em Cuiabá. Em 96, ano em que o Ministério da Agricultura cogitava liberar os anabolizantes, o Instituto de Defesa do Consumidor - IDEC também comprou um frasco de Vi-Gain e o entregou à Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, que promoveu uma audiência pública e convocou o ministro da Agricultura para se explicar.

7 Hormônio Somatotripina Bovina (BST/BGH): conhecido como BST e também como BGH (iniciais de hormônio bovino de crescimento, em inglês); trata-se de uma pro-teína que ocorre na natureza e que passou por um processo de engenharia genética para ser usada como composto sintético para estimular a produção de leite nas vacas. A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável realizará audiência pública, em data a ser definida (a partir de 2007), para discutir a produção e a comer-cialização do hormônio bovino BST. Segundo o autor da proposta, deputado Edson Duarte (PV-BA), o hormônio é um produto transgênico utilizado para aumentar a produção de leite. O deputado ressaltou que, segundo notícias recentes, o Ministério da Agricultura planeja manter no mercado produtos fabricados com a substância, já proibida na Europa e no Canadá, mas ainda liberada nos Estados Unidos.

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IV. Batalha das Idéias

na maior parte vacas com mais de quatro anos de idade, estavam adoecendo de uma doença fatal que apresentava sinais associados a disfunções do sistema nervoso central, abreviadamente (SNC). Eram os casos iniciais de uma epidemia que avançou muito rapidamente. Quando a doença foi descrita pelos pesquisadores em novembro de 1986, ocorriam cerca de oito casos por mês, fato que causou pânico entre os consumidores e grande espaço na mídia em razão de a do-ença ser letal e transmissível aos humanos. No final de outubro de 1987, quando foi relatada na revista da associação dos veterinários britânicos Veterinary Record, a incidência já era de setenta casos por mês. No auge da epidemia, dezembro de 1992 e janeiro de 1993, mais de 3.500 casos ocorriam por mês. Esse fato isolado, ainda que completamente dissociado da biotecnologia, aumentou o rol de argu-mentos de quem se dispunha a questionar os avanços da ciência e a credibilidade das agências oficiais de fiscalização.

As ONGs signatárias da Campanha Por Um Brasil Livre de Trans-gênicos aproveitaram o cenário favorável para propor a adoção, no Brasil, de uma política agrícola apoiada, exclusivamente, na produ-ção de sementes convencionais, em contraposição à adoção de semen-tes transgênicas. Segundo faziam veicular na mídia, o país poderia aumentar seu poder de barganha e obter vantagens comerciais, pelo menos junto aos países europeus nos quais a desconfiança contra os OGMs parecia preeminente. Acenavam com a possibilidade de um prêmio calculado sobre o preço das exportações que poderia vir a ser negociado em troca da garantia de inexistência de mistura de OGMs em meio às commodities e, nesse sentido, propalavam que o Brasil se convertesse em uma ilha de produção agrícola convencional.

As mesmas ONGs que vinham participando da Campanha de-ram o tom que o atual governo acabou por adotar em relação a mui-tas questões importantes como a composição e missão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio constante no projeto de lei que o Poder Executivo remeteu à Câmara dos Deputados em 2004, posteriormente aprovado e convertido na Lei n º 11.105, de 24 de março de 2005 que passou a reger a biossegurança de OGMs no país.

O contraponto no ápice da Campanha veio do Estado do Rio Grande do Sul. Os produtores locais, argumentando que a soja rr era segura tanto que recebera parecer favorável da CTNBio, passaram a cultivá-la em franca desobediência civil à decisão judicial que se encontrava em vigor e tinha abrangência nacional.

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Os desafios da biotecnologia no Brasil

O agronegócioO agronegócio, entendido como a soma da indústria de insumos,

da produção agrícola, e da indústria de primeira e segunda trans-formação, vem sendo responsável, desde 1990, pela geração de par-te expressiva da riqueza do país, como demonstram os indicadores que medem a economia. Tem proporcionado o superávit da balança comercial decorrente das exportações de commodities agrícolas que asseguram o ingresso de riqueza sob a forma de divisas. Além disso, contribui com o aumento da receita da população de baixa renda porque vem garantindo comida barata no mercado interno. Mas, pa-radoxalmente, o setor não goza de prestígio. O crescimento do movi-mento ambientalista e o conseqüente aumento da consciência sobre a necessidade da preservação do meio ambiente levam ao constante questionamento do agronegócio que, frequentemente, aparece em cena como o vilão da história. Além disso, e na esteira da descon-fiança contra o agronegócio, há restrições da sociedade, no Brasil, ao uso de OGMs pelo complexo agro-industrial, quer pelo temor de não serem seguros à saúde humana e animal, quer pela desconfiança de não serem inócuos ao meio ambiente. Diante desse cenário, cabe indagar: Quais são os entraves, no Brasil, à pesquisa e uso de OGMs destinados ao complexo agro-industrial ?

Considerando que no período de dez anos a contar da vigência da Lei n° 8.974, de 05 de janeiro de 1995 que regia a biossegurança de OGMs no país até ser revogada e substituída pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, apenas quatro produtos receberam autorização governamental para a produção, a saber: a soja rr (2006); o algodão rr (2007); e, em 12.02.2008, duas variedades de milho transgênico - sustenta-se que um dos principais entraves com que se defrontam as universidades, institutos de pesquisa e empresas para pesquisarem e disponibilizarem o uso comercial de OGMs destinados ao complexo agro-industrial no país, sejam as exigências da legislação nacional de biossegurança de OGMs.

Justificativa Até o final de 2006, em parte por pressão de setores da socieda-

de civil organizada, o complexo agro-industrial brasileiro não teve acesso, com exceção da soja rr, aos avanços da biotecnologia já dis-poníveis nos países concorrentes. A chamada “moratória branca” al-mejada pelas organizações não governamentais que se opunham ao desenvolvimento da biotecnologia no país foi alcançada quando o

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Greenpeace, em 1998, obteve uma decisão liminar na ação judicial acima mencionada que suspendeu o registro das primeiras cultiva-res de soja rr impedindo os produtores rurais de produzi-las, por sete anos.

A Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos teve e tem por alvo os produtos transgênicos voltados ao complexo agro-industrial. Os fármacos e demais produtos transgênicos não foram e não têm sido alvos da referida Campanha, fato que intriga os observadores e cujas causas talvez mereçam um estudo específico que poderá levar, desconfia-se, a resultados surpreendentes.

Nesse sentido, merecem ser considerados os fatos relacionados à biotecnologia ocorridos no Brasil no período de dez anos a contar de 1996, em face dos efeitos jurídicos da primeira lei de biossegurança de OGMs vigente no país, a Lei n º 8.974, de 1995, que só ocorreram a partir da edição dos decretos que a regulamentaram, em 1996.

Esse período culmina com a sanção com vetos da nova lei de biossegurança de OGMs, a Lei n º 11.105, de 2005, igualmente não auto-aplicável, cujos efeitos jurídicos só ocorreram a partir de 2006, quando da edição do decreto que a regulamentou.

Além disso, outro ponto de corte - este de conteúdo - merece ser explicitado para evitar erros de interpretação. O objeto deste artigo se restringe aos OGMs voltados, exclusivamente, ao complexo agro-industrial encontrando-se fora de seu alcance, portanto, os OGMs destinados à aplicação farmacológica e à biorremediação.

ConclusãoQuando o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) aprovou,

em 12.02.2008 - o plantio e a comercialização no Brasil de duas variedades de milho transgênico, muitos segmentos comemoraram. Mas há de se ter cautela em razão dos critérios nada objetivos exis-tentes na Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05).

Na verdade, o CNBS é formado por 11 Ministros de Estado que, ao contrário do que é divulgado junto à opinião pública, não analisa questões de biossegurança de organismos geneticamente modifica-dos (OGMs) - mesmo porque os Ministros não possuem formação técnica na área.

Na verdade, o referido Conselho analisa os pedidos de licença comercial exclusivamente quando o produto transgênico seja seguro pelo crivo técnico da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança –

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CTNBio, com parecer favorável no sentido de ser inócuo à saúde do homem, dos animais, e do meio ambiente.

Nessa hipótese, o CNBS possui a prerrogativa legal de desempa-tar, na qualidade de árbitro, quando o órgão de regulamentação de qualquer um dos três Ministérios envolvidos (Meio Ambiente, Saúde ou Agricultura) discorde do parecer técnico emitido pela CTNBio e dele recorra ao mencionado Conselho requerendo seja obstada a li-cença, como foi o caso em relação à liberação recente das duas varie-dades transgênicas de milho.

Nesse episódio, é preciso ressaltar que a CTNBio já havia delibe-rado em 2007 sobre a segurança dessas variedades, mas a ANVISA e o IBAMA recorreram do parecer da CTNBio e a liberação das duas variedades de milho passou a depender ainda da decisão do CNBS.

O Brasil é o único país no mundo que reúne 11 Ministros de Es-tado para deliberarem sobre a liberação comercial de uma variedade vegetal (seja de soja, de algodão ou de milho) cujos inúmeros testes realizados ao longo de muitos anos de pesquisa científica em labora-tórios, em contenção (casas de vegetação) e em campo comprovem sua respectiva segurança mediante a submissão dos respectivos resulta-dos ao crivo de cientistas de notório saber, reunidos na CTNBio.

Curiosamente, as tecnologias inseridas nas duas variedades de milho, mesmo consideradas seguras pela CTNBio, receberam no CNBS sete votos favoráveis e quatro contrários - estes dos Ministé-rios que sempre votam contra os OGMs voltados ao complexo agro-industrial. Para os representantes dessas pastas, trata-se de uma questão ideológica, como assinalou o Dr. Marco Antonio Raupp, Pre-sidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC em artigo de sua autoria publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12.02.2008.

Diante do cenário atual, os cientistas brasileiros precisam se conscientizar sobre as características da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) responsável pelos obstáculos no país à pesquisa e ao plantio comercial de OGMs voltados à agricultura, ainda que seguros. Apesar do enorme esforço de parte dos nossos cientistas, a análise histórica dos fatos relacionados com a biotecnologia no Brasil desde que a antiga Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974, de 1995) en-trou em vigor não é alentadora. Decorridos treze anos, muitos fatos ocorreram desde 1995 e acabaram por desembocar na Lei de Bios-segurança vigente que, além de não garantir maior segurança aos OGMs, cria obstáculos ao funcionamento da CTNBio, além de limitar

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IV. Batalha das Idéias

sua competência mediante a criação de um Conselho de Ministros (CNBS).

A estrutura da lei revogada (Lei nº 8.974, de 1995) cujo relator na Câmara dos Deputados foi o saudoso Deputado Sérgio Arouca, diferente da atual, assegurava uma distribuição inteligente de com-petências entre a CTNBio e os órgãos de regulação dos três Ministé-rios envolvidos e tinha por alvo o desenvolvimento da pesquisa e o uso comercial, sem perder o foco sobre a segurança do OGM objeto de sua análise.

A oposição sistemática aos OGMs no Brasil merece uma reflexão mais aprofundada. Cabe indagar se não haverá outros fatores que transcendem essa impressão preliminar e podem estar mascarando, como falsa verdade, a percepção sobre a rejeição da sociedade como um todo, ao uso de OGMs destinados ao complexo agro-industrial.

As ONGs integrantes da campanha “Por Um Brasil Livre de Trans-gênicos” têm atuado com muita competência. Resta saber se elas representam a vontade da sociedade brasileira. Talvez um estudo aprofundado sobre a sua atuação e as suas fontes de financiamento leve a resultados surpreendentes. Assim, se estivermos de acordo que os OGMs voltados ao complexo agro-industrial são amigáveis ao meio ambiente ao contrário dos agrotóxicos que, necessariamente, envenenam o solo e a água, sem falar na contaminação dos próprios trabalhadores que por dever de ofício lidam com eles mas dispõem de pouca ou nenhuma voz em sua defesa, somos forçados a admitir que resta um longo caminho a percorrer. E o primeiro passo é a mo-dificação da Lei de Biossegurança.

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Cotas nas universidades e a “racialização” do Brasil

Leone Campos de Sousa

Este artigo se propõe a refletir acerca da atual polêmica sobre a implantação, no Brasil, de políticas de ação afirmativa basea-das no conceito de raça.

A controvérsia, como se sabe, iniciou-se em 2001, quando o ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, instituiu um siste-ma inédito de reserva de vagas no vestibular para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Nor-te Fluminense (UENF), favorecendo candidatos que se identificassem como “pretos” ou “pardos”. A adoção desse tipo de política pública era, então, uma das principais reivindicações do movimento negro, também considerada por muitos especialistas em questões raciais no Brasil como um importante instrumento no combate à desigualdade socioeconômica. Desde então, a proposta, antes debatida apenas em círculos acadêmicos e pela militância negra, passou a atrair a atenção da mídia e dos políticos, sobretudo devido à realização da Conferência Internacional sobre o Racismo, na África do Sul. O badalado encon-tro, que reuniu organizações anti-racistas e defensoras dos direitos humanos do mundo inteiro, tinha exatamente por objetivo promover e pressionar governantes a adotar medidas “compensatórias” dirigidas às minorias étnicas ou raciais historicamente discriminadas.

Neste contexto, o programa de cotas raciais nas universidades flu-minenses foi recebido com grande euforia na academia brasileira e também por especialistas estrangeiros, passando a ser reproduzido, com algumas alterações, em várias outras universidades públicas do País. Atualmente, das 57 universidades federais brasileiras, 16 já con-tam com métodos próprios de promover a admissão de universitários pretos e pardos. Na rede estadual, com 34 universidades, 18 delas já instituíram cotas para negros e, em alguns casos, também para “índios”.

Mas, se por um lado o programa de cotas raciais agradou a in-telligentsia brasileira, por outro, gerou, de imediato, uma ferrenha oposição de parte da opinião pública, alguns professores, reitores,

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IV. Batalha das Idéias

juristas, artistas e jornalistas. A medida é sistematicamente criti-cada por cidadãos de cores, condições socioeconômicas e visões de mundo diferentes, em artigos, cartas e mensagens eletrônicas veicu-lados na mídia.

Os críticos da política de cotas raciais baseiam-se, predominan-temente, em dois tipos de argumento. Muitos temem que tal política de seleção de alunos venha a piorar ainda mais a qualidade do já tão deteriorado ensino de nível superior no Brasil. Outros insistem que a lei que instituiu tal política é inconstitucional, por contradizer o modelo universal e igualitário de cidadania adotado na Constituição brasileira, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distin-ção de qualquer natureza. Portanto, seriam ilegítimas quaisquer for-mas de tratamento especial prestado pelo Estado a indivíduos com base em sua cor, raça, gênero ou religião.

Os defensores das políticas de ação afirmativa, no entanto, ten-dem a rebater estas críticas, por um lado questionando o critério meritório utilizado no vestibular e, por outro, argumentando que o conceito de raça, mesmo que cientificamente irrelevante, funciona como fator de classificação social, acarretando limitações concre-tas na vida do negro brasileiro. Essas réplicas são quase sempre acompanhadas de dados obtidos em estudos estatísticos dedicados a provar a importância da variável “raça” na compreensão da desi-gualdade social no País. Muitos acadêmicos também se apóiam em teorias multiculturalistas, que difundem a valorização da diferença e diversidade de raça, etnia, gênero ou cultura para justificar políticas públicas diferenciadas, visando atender as demandas e carências de cada um desses segmentos sociais.

Há também entusiastas do programa de cotas raciais em uni-versidades que criticam o seu poder limitado de promover igualdade social entre brancos e negros. Este é o caso do senador pedetista Cristóvam Buarque que, em recente artigo publicado em O GLO-BO, aponta para o fato de que tal política só beneficia negros com ensino médio, ou seja, uma minoria entre a população negra. Para o ex-ministro da Educação do Governo Lula, “a verdadeira abolição [do preconceito racial] está em fazer com que a escola dos pobres, a maior parte negra, tenha a mesma qualidade da escola dos ricos, a quase totalidade branca”.

E finalmente existem aqueles que insinuam que a resistência à política de ação afirmativa é expressão do medo que a sociedade (branca) tem de perder seus privilégios, ou mesmo do seu racismo, antes camuflado. Tal pensamento baseia-se em teses de acadêmicos e militantes negros a respeito de uma “política racial”, que teria sido

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Cotas nas universidades e a “racialização” do Brasil

implantada no Brasil desde a Era Vargas, cujo objetivo foi doutrinar o povo brasileiro a acreditar na irrelevância da raça como fator de de-sigualdade social. Seria desta forma, afirmam estes autores, que as elites (brancas) vêm mantendo pacificamente o seu domínio sobre a sociedade brasileira, constituída, em sua maioria, por não-brancos.

Porém, uma análise dos textos que alimentam essa instigante polêmica revela que a grande maioria dos críticos à política de cotas não só é plenamente consciente do problema da discriminação racial no Brasil, como também defende a atuação do Estado no combate a tal problema, principalmente investindo na melhoria das condições de vida da população pobre, que inclui um grande número de ne-gros. Tal proposição ganhou expressão no “Manifesto contra Cotas”, documento endossado por intelectuais “dissidentes” e apresentado ao Congresso Nacional em 30 de junho de 2006. De acordo com seus signatários, “a verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos”.

Quase todos os que se opõem às políticas de cotas expressam, mesmo que implicitamente, o temor de que o Brasil se racialize, de-senvolvendo identidades baseadas na cor da pele. Eles acreditam que, ao invés de combater o racismo, essas políticas possam vir a re-forçar os estereótipos negativos com relação aos beneficiados e gerar conflitos raciais desconhecidos no Brasil.

Esses temores não são de forma alguma infundados. A política de cotas raciais foi idealizada não apenas como instrumento de as-censão social da população negra, mas também como estratégia de construção de uma “consciência racial” entre os seus beneficiários, considerada pelo movimento negro como um requisito básico para a quebra da “hegemonia branca” no Brasil. Ou seja, os programas de ação afirmativa, justificados como meio de reduzir o racismo, têm também por meta construir a figura do “afro-brasileiro”, que teria cultura, valores e interesses diferenciados e até mesmo antagônicos aos dos demais componentes da nação brasileira.

Neste sentido, partilho da apreensão com esse tipo de plataforma política, baseada no ressentimento e na fragmentação social, expli-citada claramente neste trecho do referido manifesto: “Se [as cotas e o Estatuto da Igualdade Racial] forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela ‘raça’. A história já condenou dolorosamente estas tentativas”.

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V – No compasso das reformas

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Autores

Roberto B. Piscitelli e Evilásio SalvadorEconomistas, professores da UnB

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No Compasso das ReformasReforma tributária muito aquém da justiça social

Roberto B. Piscitelli e Evilásio Salvador

O governo enviou ao Congresso Nacional a proposta de refor-ma tributária consubstanciada no âmbito de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), com objetivo precípuo de fun-

dir tributos, unificar legislações e, com isso, amenizar a guerra fiscal entre os estados. Isso tudo se relaciona ao atendimento dos princípios da eficiência e da neutralidade em matéria de tributação. Portanto, o debate sobre a reforma tributária não está pautado pelos princípios da eqüidade, da capacidade contributiva, da progressividade, da busca de justiça fiscal e social, priorizando a redistribuição da renda.

As tributações da renda e do patrimônio nunca ocuparam lugar de destaque na agenda nacional e nos projetos de reformas tributá-rias após a Constituição de 1988. Assim, seria mais do que oportuno a recuperação dos princípios constitucionais basilares da justiça fis-cal (eqüidade, capacidade contributiva e progressividade). A tributa-ção é um dos melhores instrumentos de erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem objetivos essen-ciais da República esculpidos na Carta Magna.

A PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, apoiado pela tributação da renda e do patrimônio e pela maior seletividade da tributação indireta ou mais ênfase no critério da essencialidade do consumo de bens e serviços.

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V. No Compasso das Reformas

Os principais pontos da reforma tributária são: a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de quatro tributos federais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social–Cofins, Contribuição para o Programa de Integração Social–PIS, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, inciden-te sobre a importação e a comercialização de combustíveis–Cide e Salário-educação); b) a incorporação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídi-cas (IRPJ); c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para a Previdência Social, a ser realizada nos anos subseqüentes à reforma, por meio do envio de projeto de lei no prazo de até 90 dias da promulgação da PEC; d) a unificação das legislações do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), por meio de lei (única) nacional e não mais por 27 leis de cada unidade da Federa-ção, e adoção (parcial) do critério de destino, e não mais da origem; e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER), para com-pensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte de estados; f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação na aplicação de recursos no bojo de uma política de desenvolvimento regional.

O principal objetivo declarado da reforma é a simplificação da legis-lação tributária, seja por meio da unificação das legislações do ICMS, seja pela extinção de tributos, trazendo maior racionalidade econômi-ca e reduzindo as obrigações acessórias das empresas com custos de apuração e recolhimento de tributos. Além disso, a cobrança do ICMS preponderantemente no estado de destino das mercadorias deverá eli-minar ou, pelo menos, reduzir a intensidade da guerra fiscal.

A criação do IVA-F vai também reduzir a cumulatividade do sis-tema tributário. Hoje a Cide-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição para o PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto, isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA tributaria apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição, podendo o valor do tributo ser definido pela diferença entre o preço de venda do produto e seu custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Em ambos os modelos, o tributo é repassado ao preço de venda do bem e do serviço, sendo efetivamente pago, portanto, na maioria das vezes, pelo consumidor final.

Nesse sentido, em que pese importantes avanços para as empre-sas, com a racionalização e simplificação do recolhimento tributário, que deverá resultar no aumento da eficiência econômica e da pro-dutividade, a PEC não modifica a estrutura regressiva do sistema

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Reforma tributária muito aquém da justiça social

tributário brasileiro. O que ocorre é a alteração da regulação dos tributos indiretos, do regime cumulativo para a incidência sobre o valor adicionado. Porém, não se pode esquecer que a principal marca do sistema tributário brasileiro é a sua enorme regressividade, que permanece sem alterações substanciais na proposta de reforma.

Para compreender a regressividade e a progressividade é neces-sário avaliar as bases de incidência econômica, que são: a renda, a propriedade, a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços. Conforme a base de incidência, os tributos são considerados diretos ou indiretos. Os tributos diretos incidem sobre a renda e o patrimônio, porque, em tese, não são passíveis de transferência para terceiros. Esses são considerados impostos mais adequados para estabelecer a progressividade. Os indiretos incidem sobre a produção e o consumo de bens e serviços, sendo passíveis de transferência para terceiros, em outras palavras, para os preços dos produtos adquiridos pelos consu-midores. Eles é que acabam pagando de fato o tributo, mediado pelo contribuinte legal: empresário produtor ou vendedor.

Como o consumo é proporcionalmente decrescente em relação ao aumento da renda, são os contribuintes de menor poder aquisitivo que pagam relativamente mais tributos indiretos. No Brasil, a popu-lação de baixa renda — que é muito numerosa — suporta elevada tributação indireta, pois mais da metade da arrecadação tributária do país advém de impostos cobrados sobre o consumo, o que não é alterado pela proposta de reforma tributária ora apresentada.

Outra implicação sumamente importante da reforma tributária — e quase ausente do debate — diz respeito ao financiamento da Segu-ridade Social, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da educa-ção básica (Aalário-educação). Os três mais importantes tributos que financiam a seguridade social no Brasil serão modificados. A Cofins, a CSLL e o PIS serão extintos, e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, por meio de legislação específi-ca, após as mudanças constitucionais.

Para a Seguridade Social passam a ser destinados 38,8% do pro-duto da arrecadação dos impostos sobre a renda (IR), produtos in-dustrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente à proporção entre a arrecada-ção da Cofins e da CSLL e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, Cofins , PIS, Cide, Salário-educação e IPI.

Essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da Seguridade Social inscrita no artigo 195 da Consti-tuição de 1988, que ampliou a abrangência do financiamento da pre-

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V. No Compasso das Reformas

vidência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo, a receita, o faturamento e lucro (além de outras bases). A partir da reforma, restará inscrita no art. 195 da CF, como base de financiamento da Seguridade Social, a contribuição sobre a folha de salários, além da contribuição do trabalhador para a previdência social e da receita de concursos e prognósticos (pois a CPMF também foi extinta).

A contribuição sobre folha de pagamento, como já foi dito, deverá ser reduzida ao longo dos próximos anos. Portanto, a idéia de orça-mento de seguridade social com a diversificação das fontes de finan-ciamento estará praticamente sepultada; iremos retroagir à situação anterior à da CF. Com isso, também haverá perda da exclusividade de recursos para a Seguridade Social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo dessa partilha de recursos do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

Apesar da insignificante arrecadação dos impostos que têm incidência sobre o patrimônio, que responderam, por exemplo, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado em tributos, a pro-posta de reforma tributária silenciou sobre o assunto. Convém lem-brar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil detêm algo em torno de 40% do PIB brasileiro.

O Brasil deve buscar um modelo tributário que, além de assegurar a sustentação do Estado, priorize os direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.. A reforma tributária de-veria começar pela reafirmação de diversos princípios tributários já estabelecidos na Constituição brasileira e que, nos últimos anos, não vêm sendo observados. Nesse sentido, o pilar do sistema tributário deve ser o Imposto de Renda, pois é o mais importante dos impostos diretos, capaz de garantir o caráter pessoal e a gradação da incidên-cia, de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, além de uma moderada expansão da tributação sobre o patrimônio.

O sistema tributário não pode continuar concedendo tratamento privilegiado à renda do capital. Todos os rendimentos de pessoa fí-sica deveriam ser obrigatoriamente incluídos na tabela progressiva do IR, que precisa ser ampliada em números de faixas e alíquotas. Não é possível continuar a fazer redistribuição entre os mesmos, ou seja, os trabalhadores em geral e, particularmente, os assalariados, onde se concentra a maior parte da arrecadação do IR das pessoas físicas. A política tributária há de ser, antes de tudo, um instrumen-to de distribuição de renda, e também indutora do desenvolvimento econômico e social do país.

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Autores

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Cristovam Buarque

1. “Vai, Carlos, ser gauche na vida“Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse:

Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Metaforicamente: seja diferente; não se conforme com o jeito do mundo, fique indignado diante das injusti-ças; não aceite a dominação de uma nação sobre outra, reaja à divisão dos povos entre aristocracia e plebe, senhores e escravos, incluídos e excluídos; escolha sempre o lado dos pobres; não aceite opressão, au-toritarismo; encontre um sonho e lute por ele. Seja de esquerda.

A cada dia, o anjo faz essa recomendação a homens e mulheres, especialmente jovens, em algum momento de suas vidas. Fala pela voz dos pais ou de amigos, por meio de livros, de um filme ou uma peça de teatro. Às vezes, fala diretamente pela realidade chocante das injustiças, das maldades, das repressões. Há muitas maneiras pelas quais o “anjo torto” incentiva uma pessoa a ser gauche na vida: ser de esquerda.

Mas nem todos recebem esse sopro. A maior parte prefere se acomodar, assistir calado o mundo passar ao redor. Outros não se acomodam e participam, mas do lado conservador, para evitar as mudanças na estrutura social. Poucos recebem o sopro mágico de adotar uma causa, se engajar na luta social pela transformação do mundo em direção a um projeto utópico 1 e fazer uma revolução.

1 Neste texto, o termo “utopia” é usado no sentido de objetivo último alcançável, não no sentido usual de impossível, inalcançável, inexistente.

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Antes de Drummond, ser de esquerda era lutar pela Independên-cia, pela Abolição da Escravatura, pela República. Depois, a luta era por desenvolvimento econômico, industrialização, reforma agrária, salário mínimo, direitos essenciais do trabalhador. 2

Mais adiante, ser de esquerda era lutar pelas “reformas de base” que o país esperava há séculos, contra os privilégios, o latifúndio improdutivo, a cátedra vitalícia nas universidades, pelo socialismo. Pouco depois, uma ditadura se implantou e ser esquerda incluiu principalmente a luta pela democracia, exigindo novas formas de or-ganização e novos métodos de luta, legais ou clandestinos, por meios pacíficos ou armados. Em vez de matar o sentimento de esquerda, a ditadura o fortaleceu.

Havia diferentes siglas-partidárias, mas um só partido-causa: a soberania, a democracia, o estado regulando o funcionamento social, o socialismo, sob alguma das diferentes formas em voga no mundo. As bandeiras eram muitas: anistia, constituinte, direito de livre orga-nização partidária e sindical, liberdade de imprensa, fim da censura, eleição direta para presidente, mas a causa era a democracia, asso-ciada à soberania e à justiça social.

2. O fracasso da vitóriaA democracia foi conquistada, todas as bandeiras políticas fo-

ram realizadas. Mas a primeira eleição direta trouxe uma surpresa: o governante eleito iniciou reformas pela direita, para a integração econômica do Brasil no mundo global, e foi levado à cassação por de-núncias de corrupção. A esquerda, vitoriosa na política contra os mi-litares, ficou perplexa com as propostas sociais e o comportamento

2 A característica de uma sociedade sempre dividida deixou nossa esquerda sempre atrasada em relação à história do mundo. Quando a França fez sua revolução, nós começávamos a pensar em deixar de ser colônia; quando outros países latino-ameri-canos viraram repúblicas, escolhemos uma monarquia; em vez de um Simon Bolívar como presidente, escolhemos o filho da metrópole como imperador; quando aconte-cia a Comuna de Paris, estávamos aprovando a Lei do Ventre Livre; quando criamos o Ministério da Educação, já fazia mais de 50 anos que os países europeus tinham feito a universalização da educação de base. Nossa esquerda nunca percebeu que nossa maior exploração, submissão, desigualdade – a grande contradição – está na maneira com que as elites negaram educação ao povo. A esquerda continuou vendo o Brasil de cabeça para baixo, conforme os modismos importados marxistas, ou não: via a falta de educação como resultado da negação da terra aos camponeses pelos latifundiários, em vez de ver a exclusão social dos pobres, camponeses ou não, como conseqüência do latifúndio intelectual da minoria privilegiada. Não percebeu que a saída seria garantir o acesso universal à educação de qualidade equivalente, independente da classe social do aluno.

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ético do governo civil. A perplexidade aumentou quando, logo depois, no exterior, o socialismo ruiu e o neoliberalismo global se afirmou. A esquerda parecia morta, porque sem bandeiras: a democracia ficou conservadora, a soberania diluída, o estado privatizado, o mercado virou regra da eficiência do sistema social e econômico.

Mas o futuro não indica um mundo utópico adiante. Ao contrário, a perspectiva é de catástrofe: a crise ecológica, a violência urbana, a corrupção generalizada, a migração em massa, a vulnerabilida-de das nações, o desemprego estrutural, a desigualdade crescente se transformando em apartação. A realidade continua mostrando a necessidade de alternativas para o rumo da história, mudanças na estrutura e nas prioridades sociais e econômicas.

Felizmente, alguns resistiram oferecendo-se ao país como alter-nativa de esquerda, mesmo sem clareza de um projeto de nação. Com o PSDB, a esquerda social-democrata chegou ao poder em 1994, com uma ampla aliança à sua direita, deixando uma oposição à sua es-querda. O PT, mesmo sem projeto nacional, transformou-se no guar-da-chuva das reivindicações das classes trabalhadoras.

Em 2002, uma aliança de siglas de esquerda, sob a liderança de Lula, chegou ao poder. Essa vitória significou um avanço importante da esquerda, pelo simbolismo da política: a eleição de um presidente vindo da esquerda, um operário com origem nas camadas mais pobres da população, nem rico, nem doutor, nem conservador. Ainda mais quando seu governo consegue administrar o país com liberdade, sem crises profundas, com democracia, estabilidade monetária e cresci-mento econômico sem necessidade de controles estatais na política ou na economia. Melhor do que presidentes anteriores, mas não diferente deles, no que diz respeito aos rumos do Brasil para o futuro. Sem vigor transformador. Um governo competente, mas conservador.

Amarrada pela realidade da globalização, do neoliberalismo, da ra-pidez do avanço técnico e do fracasso do socialismo real, era claro que a esquerda não poderia fazer mudanças na estrutura da economia. A esquerda que venceu em 2002 teve o bom senso de entender os limites impostos pela realidade do século XXI e a responsabilidade de não de-sarticular o sistema econômico em marcha, mas não soube apresentar um objetivo utópico de acordo com os novos tempos. Incapaz de reali-zar as antigas propostas de mudar a economia – pela distribuição do patrimônio privado, estatização, planejamento estatal, autoritarismo –, não trouxe uma proposta emancipadora para o povo, libertária para a sociedade, soberana para a nação. Ficou acomodada, apegada ao poder, trocou a utopia pela generosidade, ignorando os compromissos revolucionários com a transformação social.

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A educação seria a única causa capaz de fazer a revolução; úni-co espaço possível para executar um projeto de transformação social. Mas a via escolhida foi manter a economia sem fazer qualquer mu-dança na estrutura social: nenhuma reforma estrutural: agrária, edu-cacional, na saúde, no sistema tributário, na estrutura política. Para assegurar a governabilidade, o presidente Lula e os demais partidos de esquerda preferiram a aliança com a direita apegada ao puro e sim-ples fisiologismo, ampliando programas de assistência social iniciados nos governos anteriores. Um governo conservador mais generoso com as massas pobres3, sem ideologia, sem proposta transformadora.

Como o MDB em 1985 e o PSDB em 1995, os partidos de esquer-da ganharam a eleição de 2002, mas, uma vez no governo, perde-ram a causa, transformam-se em Siglas. O governo e os cargos dos filiados tornaram-se o propósito da política, não o instrumento da transformação social. A militância combativa, honesta, idealista e programática aceitou a idéia de que a sigla está acima da causa, foi enquadrada pela direção pragmática, acomodou-se, compactuou – às vezes descaradamente – com a corrupção.

Quando partidos revolucionários chegam ao poder sem um pro-jeto de transformação social, o partido torna-se mais importante que a revolução, cria privilégios para seus militantes, transforma-os em filiados e em quadros do aparelho estatal. A luta de classes se trans-forma em disputa por cargos entre as tendências; a ânsia por medi-das transformadoras é substituída pelo vício do emprego público. O objetivo deixa de ser a causa e passa a ser a função gratificada ou o mandato eletivo, que se tornam finalidades, não mais meios revolu-cionários. O partido perde a preocupação com a transformação social e com o longo prazo, torna-se prisioneiro do presente, da reeleição e da manutenção dos cargos, a qualquer preço, inclusive com o uso do marketing para iludir ao povo 4.

3 De certa maneira, a governabilidade conservadora, sem impacto transformador, lembra os programas do tipo “Aliança para o Progresso” dos anos 1960, pelos quais o governo dos EUA se propunha a ajudar os pobres latino-americanos, acomodan-do-os, aliviando as tentações apresentadas pelos movimentos de esquerda.

4 Por causa disso, os “anos Lula” não serão reconhecidos como um período de ebuli-ção intelectual, como foram os anos anteriores a 1930, os “anos JK”, o período mi-litar, sobretudo como oposição ao regime e ao modelo. Neste começo de século XXI, à perplexidade da crise ideológica mundial se junta a acomodação dos intelectuais da esquerda, sem a coragem intelectual de criticarem o rumo tomado pelo governo Lula. Em vez de fazerem a crítica conseqüente para forçar um avanço, se calam e deixam as críticas para os intelectuais da direita; que tampouco ajudam no debate, porque o governo faz o que os conservadores sempre defenderam. Por isso, limitam-se a criticar, sobretudo a corrupção, sem realizar um embate ideológico. Sobre o silêncio passivo dos intelectuais de esquerda, ver, do autor, o livro Sou Insensato,

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No Brasil, em nome da governança, as práticas políticas se ajus-taram aos velhos estilos da elite: a corrupção passou a ser tolerada, justificada, por vezes defendida como natural, “parte do jogo”; a de-sigualdade foi aceita; o imobilismo social foi ampliado; a apropriação do aparelho do Estado foi mantida; o coronelismo foi nacionalizado; o compadrismo foi partidarizado. Ainda mais grave, houve um brutal retrocesso na consciência política da sociedade: os movimentos so-ciais se acomodaram; os sindicatos se anularam, as lideranças polí-ticas foram cooptadas e as vanguardas estudantis transformadas em louvadores; os intelectuais optaram pelo silêncio reverencial 5. O povo foi convencido de que não há mais razão para lutar, basta manter no governo os que garantem pequenas transferências de renda; ou como se fosse suficiente a concessão de pequenas rendas para pobres de-pendentes, em vez da qualidade de vida para um povo emancipado.

Uma conseqüência do conservadorismo da esquerda no governo foi o retrocesso na consciência da população e da militância. Antes, a população tinha o sonho de um mundo melhor, agora a esquerda se contenta com a garantia de uma renda adicional de R$ 2 a R$ 3 por dia para cada família, e com um salário mínimo ligeiramente maior para os trabalhadores.

Apresentam como grande avanço social o aumento no número dos recebem auxílios, em vez de comemorar o número emancipado graças às políticas públicas. Antes, a esquerda lutava pela emancipa-ção. Agora, comemora como grande vitória as minúsculas reduções na distância entre as rendas do topo e da base, da mesma pirâmide de privilégios e necessidades; mesmo que tudo o mais indique uma ampliação da desigualdade na qualidade de vida, no nível de educa-ção, nos benéficos da saúde, moradia, segurança, especialmente na esperança de vida, cada vez mais desigual.

Antes, havia a rebeldia, agora há a acomodação satisfeita, alarde-ando como grande vitória os irrisórios avanços na renda mínima da população 6. Lula conseguiu convencer os militantes e o povo de que a revolução é um conceito aposentado, a emancipação é secundária, a igualdade é uma proposta vazia, os sonhos são impossíveis e des-

editora Garamond, Rio de Janeiro, 2007.5 5 De forma enfática, Frei Beto expõe essa mutação ideológica em artigo, publicado

no jornal Correio Braziliense em 20/10/2007, sob o título “Como Endireitar um Esquerdista”.

6 Melhor exemplo dessa acomodação se vê entre os militantes das tendências que se considera-vam de esquerda e que nos anos 1990 criticavam a Bolsa-Escola como transferência de renda compensatória, apesar do seu impacto educacional; mas que agora aceitam e comemoram como grande avanço o assistencialismo puro da Bolsa Família, sem o papel emancipador da educação.

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necessários. Bastam pequenas ajudas aos pobres, não será preciso buscar o fim do apartheid social. Basta que a economia cresça e o Estado transfira pequenas rendas para os pobres.

O gesto mais conservador do governo Lula foi à descaracteriza-ção dos partidos de esquerda, especialmente o PT, que era a grande esperança de transformação da sociedade brasileira. Esses partidos, logo no início do governo, puseram de lado seu compromisso com a ética. Assumiram que não eram diferentes dos outros partidos quan-to ao caráter, defenderam-se das acusações de corrupção com o ar-gumento de que os outros são igualmente corruptos. Abandonaram os sonhos, e aceitaram com naturalidade o fato de seus ícones, ao deixarem os cargos, se transformassem em lobistas de grandes em-presas nacionais e internacionais.

O discurso de Lula na presidência mostra que essa prática che-gou ao governo; ele fala para cada grupo, não para o Brasil. Ele mos-tra os benefícios criados para cada segmento, não para o país. Sem construir um projeto nacional, apenas promoveu a acomodação en-tre diversos segmentos da sociedade, o que não tem durabilidade estratégica, e trará um custo crescente sobre as finanças públicas, com o risco de criar escassez de infra-estrutura e serviços públicos ou trazer de volta a inflação.

A esquerda precisa romper com a absurda idéia de que o objetivo da utopia está nas mãos do Estado, como proprietário e como gestor, especialmente da economia. É preciso separar os conceitos do públi-co e do estatal. Na fase soviética, o interesse público era visto como propriedade e gestão estatais. As reformas atuais na China mantêm a propriedade do Estado, mas promovem a gestão privada; em um novo tempo, o que vai definir o interesse público é o beneficiário do produto. Nem a propriedade nem a gestão precisarão estar nas mãos do Estado.

Talvez pela dificuldade em vencer seus preconceitos consolidados historicamente, a maioria simplesmente se ajustou à realidade, sem qualquer compromisso de mudar a estrutura social, sem criticar as injustiças que continuam existindo, sem perceber as novas formas de exploração, as causas da desigualdade crescente, sem explicitar os riscos de desequilíbrio ecológico e relegando a necessidade de de-senvolvimento sustentável. Sobretudo, sem oferecer objetivos eman-cipadores e imobilizando o povo.7

7 Um exemplo desse retrocesso foi o efeito devastador sobre a consciência da impor-tância da educação na população pobre, quando a Bolsa-Escola foi substituída pela Bolsa Família. Com a Bolsa-Escola, pela primeira vez na história do Brasil, os pobres

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Uma das maiores provas disso é um slogan atualmente em voga nos quadros do PT e de outros partidos de esquerda, que vem cir-culando na Internet: “para o Brasil, já está bom demais” o governo Lula. Matricular 97% das crianças de 7 a 14 anos de idade, mesmo que apenas pela merenda, e sem saber ler até o final da quarta-série, “já está bom demais para o Brasil”. O aumento do PIB, mesmo sem distribuição, “já está bom demais para o Brasil”. Manter a economia funcionando, assegurando a Bolsa Família, “já está bom demais para o Brasil”. Enquanto pensar assim, a esquerda não estará boa demais para o Brasil. Será constituída de conservadores acomodados, torce-dores de sigla, e não de militantes de causa.

No início do governo Lula, o MEC iniciou a implantação ou apre-sentou os projetos de lei que permitiriam dar o salto rumo a uma revolução na educação brasileira 8. Mas os projetos foram suspensos ou perderam o vigor transformador, o radicalismo necessário, foram

passaram a sentir que tinham direito e até obrigação de procurar a educação dos filhos como caminho para emancipar-se da pobreza. Todo mês, quando recebiam seus benefícios, pensavam na escola como caminho para sair da pobreza, igualar-se aos ricos; agora, pensam que o benefício é uma ajuda à pobreza e, se saírem dela, perderão o benefício.

8 Entre outros, vale a pena lembrar: criação e implantação do Programa Brasil Alfabe-tizado; criação do PAE – Programa de Apoio ao Estudante do Ensino Superior, desti-nado à concessão de bolsas ao mesmo tempo em que os beneficiados seriam alfabe-tizadores de adultos; Instituição da Política Nacional do Livro; criação do Conselho Nacional de Gestão das Políticas de Educação Básica com a finalidade de promover a articulação e facilitar o regime de colaboração entre a União, os Estados e os Mu-nicípios, um passo para a Federalização da Educação de Brasil; implantação inicial do Programa da Escola Básica Ideal, para instalação nacional do horário integral como objetivo; apresentação da PEC do Projeto FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica; criação do Programa de Certificação Federal do Professor Municipal e Estadual; início da Instalação da Escola Interativa, infor-matizando e integrando as escolas brasileiras em rede; projeto de lei para alterar a lei 9.424, permitindo que a modalidade de Educação de Jovens e Adultos do Ensino Fundamental seja contemplada com recursos do FUNDEF, promovendo o direito à educação a 2,7 milhões de alunos; projeto de lei para estabelecer piso salarial para os educadores públicos que cumprem jornada de trabalho de 40 horas semanais e possuem habilitação em nível médio ou superior; projeto de lei para Criar a UNAB – Universidade Aberta do Brasil (posteriormente apresentada como INEAD – Instituto Nacional de educação Aberta e a Distância Darcy Ribeiro), para ampliar e democra-tizar as oportunidades de acesso à educação superior em instituições públicas, com a utilização de técnicas de Educação a Distância; Projeto de lei para criar um fundo de investimento para financiar o Programa de incentivo à conclusão da Educação Básica – Poupança-Escola, que prevê o depósito de benefício financeiro em nome do aluno que concluir, com aproveitamento, os níveis de ensino fundamental e médio; projeto de decreto-lei para garantir vaga em rede pública de ensino, a toda criança no momento em que completar quatro anos de idade; projeto de decreto-lei para estabelecer a obrigatoriedade do Ensino Médio.

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acomodados como continuidade do velho ritmo arrastado, tradicio-nalmente levados adiante pela elite política brasileira.

Um exemplo é o fim da Secretaria para a Erradicação do Analfa-betismo e a transformação do Brasil Alfabetizado, que previa abolir o analfabetismo em quatro anos, em um programa de simples alfabeti-zação, como já temos há séculos.

3. Para continuar esquerdaA globalização abriu as fronteiras nacionais e uniu os ricos do

mundo; transformou a desigualdade social em exclusão; substituiu os operários por operadores; incorporou e cooptou os assalariados qualificados entre os beneficiados do sistema; anulou ou corrom-peu os tradicionais partidos de esquerda; acomodou os sindicatos de trabalhadores; consolidou a distância social entre os que dispõem de qualificação e os que não têm educação; desequilibrou o meio ambiente, deixando-o em situação de colapso; mostrou a impossibi-lidade do consumo para todos e substituiu a utopia da igualdade de renda pela igualdade de oportunidade entre classes e entre gerações; colocou o problema da ética, do emprego e da estabilidade monetária como objetivos progressistas; adotou o capital-conhecimento como o vetor do progresso econômico. O sistema financeiro seqüestrou o mundo inteiro, transformando-o em um cassino global, onde poucos ganham muito e quase todos perdem.

O mundo caminha para duas catástrofes (i) o desequilíbrio ecoló-gico já provoca o aquecimento global ameaçando o habitat da espécie humana; (ii) a desigualdade já anuncia o risco de ruptura da espécie, quebrando o sentimento de semelhança entre os seres humanos. A humanidade e cada nação nunca foram tão desiguais e tão divididas, entre classes e entre gerações. O Brasil é um dos exemplos mais ní-tidos dessa trágica evolução.

Nunca foram tão necessários sonhos utópicos e gestos revolucio-nários. Mas o século XXI está exigindo uma nova definição para so-nhos, e novas estratégias para as forças que defendem as mudanças de rumo.

Grandes mudanças devem ocorrer em relação aos sonhos e pro-pósitos desenhados pela esquerda a partir do século XIX: (i) assumir um forte compromisso com a liberdade; (ii) retirar os conceitos e ob-jetivos utópicos do mundo da economia e levá-los para o espaço so-cial, especialmente para a educação; (iii) entender que o conceito de igualdade plena de renda e de consumo não se justifica em um tempo

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no qual a economia e a mente humana se orientam pelo consumis-mo; (iv) diferenciar os conceitos de público e de estatal, respeitando o interesse privado, mas dando primazia ao interesse público; (v) levar em conta o longo prazo; (vi) perceber os riscos de uma hecatombe ecológica; (vii) redesenhar a utopia e seus caminhos revolucionários, combinando os sonhos da igualdade com os valores do humanismo e com os compromissos de equilíbrio ecológico 9.

O pensamento de esquerda, sobretudo depois de Marx, concen-trou os estudos e propostas da revolução dentro da economia. A edu-cação era apenas parte da superestrutura, e um simples instrumento para a reprodução da mão-de-obra, no proletariado e na burguesia. Isso o impedia de ver a educação como elemento de emancipação. Esta só viria da economia, com o poder e a propriedade dos meios de produção nas mãos do proletariado. Era uma análise válida para seu tempo. Isso mudou radicalmente, e o momento exige um novo enfoque. A propriedade do conhecimento, via educação, passou a ser um vetor emancipador.

O novo objetivo utópico consiste em assegurar a mesma chance para todos. Dentro da democracia com liberdade individual, garantir a cada ser humano igualdade no acesso aos instrumentos neces-sários para o pleno desenvolvimento de seu talento, conforme sua persistência e vocação, e para disporem do patrimônio natural a que têm direito como parte da humanidade, de modo que as próximas gerações recebam uma natureza com equilíbrio ecológico. Isso exige: a) uma educação de qualidade para todos, que assegure a mesma chance entre classes e transforme o Brasil em centro produtor do capital-conhecimento; b) um modelo de desenvolvimento sustentável que assegure a mesma chance entre gerações; c) um sistema social e econômico eficiente, que assegure dinamismo econômico e cultural, e estabilidade social e política, como base para a revolução na edu-cação e no equilíbrio ecológico.

Ser de esquerda hoje é lutar para: (i) derrubar o muro da de-sigualdade social, fazendo a revolução pela educação, construindo uma forte infra-estrutura científica e tecnológica; (ii) derrubar o muro do atraso do Brasil em relação aos países ricos, com a construção

9 O Programa Etanol é um exemplo da diferença entre o governo conservador atual e uma proposta educacionista. O governo vê o etanol e os demais bicombustíveis como uma oportunidade natural, a ser liberada pelo mercado. À esquerda edu-cacionista considera bem-vinda esta alternativa, mas desde que de acordo com o interesse público e de longo prazo: com respeito às reservas florestais, fauna e flora, e tratada dentro de um arcabouço social que beneficie o público, não apenas o inte-resse privado.

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de uma forte infra-estrutura científica e tecnológica. (iii) derrubar o muro da desigualdade entre gerações, alcançando um compromisso ecológico que assegure sustentabilidade ao modelo econômico para as próximas gerações; (iv) e construir a base da eficiência no sistema social, econômico, político e jurídico.

O radicalismo político de hoje corresponde à proposta e à luta para criar no Brasil: a) a dupla igualdade educacional: a mesma qua-lidade na educação, independentemente da renda da família e da cidade onde mora a criança, e a igualdade das escolas brasileiras, comparável à qualidade dos países mais avançados do mundo; b) um eficiente sistema de desenvolvimento científico e tecnológico a partir da refundação da universidade brasileira e da implantação de grandes e eficientes centros de criação cientifica e tecnológica, em cooperação permanente do setor público com o setor privado; c) um sistema econômico brasileiro que respeite as exigências da susten-tabilidade ecológica; d) uma revolução na eficiência (i) dos serviços sociais - saúde, moradia, água, esgoto e (ii) da gestão pública e priva-da; (iii) o fortalecimento da infra-estrutura econômica; (iv) a redução da carga fiscal; (v) a garantia de estabilidade da moeda; (vi) o fun-cionamento democrático das regras e das leis políticas e jurídicas. e) Um programa emergencial para enfrentar as três crises imediatas: (i) desemprego e exclusão, (ii) corrupção e impunidade, (iii) violência e insegurança.

4. Um Programa EducacionistaEmbora utópicos, esses objetivos finais só serão viáveis em pelo

menos 15 anos, o que está dentro da disponibilidade de recursos na realidade brasileira atual. Temos um sistema democrático consolida-do, embora imperfeito; estabilidade monetária, ainda que vulnerável; uma renda bruta nacional superior a R$ 2 trilhões por ano, com poten-cial produtivo em todos os setores; uma massa crítica de profissionais; um sistema de arrecadação fiscal próximo a R$ 1 trilhão. O ponto de partida para a revolução educacionista tem custo não superior a 1% da receita do setor público, ao redor de 0,3% da renda bruta nacio-nal. A revolução educacionista, ao longo de 15-20 anos, pode seguir a estratégia de implantação de cidades-pólo, com escolas em horário integral, com professores bem remunerados, preparados e dedicados, com equipamentos modernos, para todos os seus alunos 10.

10 Os detalhes da realização dessa revolução na educação podem ser encontrados no texto do autor A Revolução na Educação, publicado pelo Senado Federal, ou no site www.cristovam.com.br.

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A ideologia educacionista é capaz de captar o imaginário de al-guns, capazes de olhar o longo prazo, mas o “anjo torto” não chega a todos, é restrito a poucos, sua idéia utópica não avança na cons-ciência da população. Além de adeptos, é preciso conquistar o apoio de eleitores. Para tanto, é necessário um programa consistente, que ofereça a viabilidade dos objetivos e também a solução dos proble-mas imediatos.

Sem uma revolução na educação, o Brasil caminha para o au-mento da violência, mas com a violência de hoje fica difícil ir à escola; sem educação a população tem dificuldade em conseguir moradia, mas é difícil ter escola sem endereço e moradia; a educação traz saú-de, mas a falta de saúde, água e esgoto tira as crianças da escola; o crescimento econômico continuado virá com a revolução científica e tecnológica induzida pela revolução na educação, mas sem uma eco-nomia ativa não haverá recursos para levar adiante toda a dimensão da revolução na educação. Assim, a revolução não pode apenas pro-meter e esperar, tem de propor e contar com as soluções dos proble-mas imediatos da sociedade brasileira.

Por isso, é preciso que o programa educacionista apresente propostas para enfrentar os problemas imediatos: tanto porque eles entravam as medidas educacionais, quanto porque a população não quer nem pode esperar apenas pelas distantes soluções revolucio-nárias. É assim que o programa educacionista deve oferecer enca-minhamentos para o crescimento econômico, a moradia, a saúde, o emprego, a infra-estrutura, a violência, a corrupção e cada problema do momento. O emprego, principalmente, exige uma preocupação es-pecial do educacionista. Não basta dinamizar a economia, é preciso ter o emprego como meta.

Não basta a meta de crescimento e inflação, é preciso ter metas de emprego, seja pela via formal, seja pelas diversas formas de em-preendedorismo. Essa é uma mudança na forma como se tem visto o desenvolvimento econômico nos últimos 50 anos, quando se busca-va pleno emprego, proteção social e planejamento, sem preocupação com o equilíbrio monetário; e depois da recente contra-reforma ne-oliberal, quando os três primeiros objetivos foram abandonados, e a atenção concentrou-se no equilíbrio monetário. Agora, é hora de um novo tempo, no qual a revolução educacional seria o meio, sem aban-donar o equilíbrio monetário, mas dando importância ao emprego, à proteção social e, também, ao equilíbrio ecológico.

A proposta da Revolução Educacionista tem de vir acompanhada de um programa imediato de governo.

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5. A consciência da esquerdaO maior desafio daqueles que ainda sonham com uma revolução

é criar uma consciência revolucionária: convencer os pobres de que é possível seus filhos terem uma escola equivalente à dos ricos e con-vencer os ricos de que essa equivalência é necessária.

Os pobres não acreditam que é possível e os ricos não acham que é preciso assegurar igualdade na educação de todas as crianças. Os primeiros não percebem que esse é o caminho da emancipação; os outros não entendem que, no século XXI, o Brasil será um país edu-cado ou um país fracassado, e temem que uma revolução na educa-ção quebre o privilégio transmitido de geração para geração até seus filhos, protegidos da concorrência com os filhos das massas. Estes, sem educação, ficam sem instrumento para disputarem o futuro com a mesma chance 11.

E todos devem ser convencidos da necessidade de aceitar os sa-crifícios necessários no consumo de hoje para salvar a natureza de amanhã. Ficam todos, no máximo, no discurso ecológico, no medo do futuro, mas sem vontade de reduzir o nível da demanda supér-flua, nem de aumentar o preço dos produtos e dos recursos naturais utilizados. É preciso convencer a população de que o crescimento econômico e os padrões de consumo devem ser compatíveis com o equilíbrio ecológico.

Mas no caso do Brasil, é difícil convencer as corporações da ne-cessidade de construir um sistema comum sem os privilégios espe-ciais de cada grupo; quebrar as fronteiras das múltiplas repúblicas em que se divide a república brasileira, cada uma delas preocupada somente com o imediatismo e o corporativismo, ignorando a nação, o povo inteiro e o longo prazo.

É essa divisão do país em grupos sem solidariedade nacional que torna os recursos disponíveis insuficientes para levar adiante a revo-lução de que o Brasil precisa, porque nenhum grupo quer abrir mão dos privilégios de que já dispõe; e os outros não querem abrir mão da

11 O futebol é um exemplo de como a mesma chance rompe com os privilégios de classe e favorece os que têm talento, independentemente da classe social, e termina bene-ficiando a maioria. No começo, o futebol era uma atividade dos ricos, privilegiados. Mas a bola sempre foi igualmente redonda para todas as classes; nas primeiras idades não se necessita de professor, as regras são as mesmas. Os mais talentosos se distinguem pelo próprio potencial. Como a imensa maioria é de pobres, a mesma chance leva mais pobres ao topo da carreira das grandes equipes e das seleções. Na educação, as escolas são diferentes, melhores para os ricos, deixando os pobres para trás. É preciso fazer com a escola o que o Brasil tem feito com o futebol: torná-las igualmente redondas.

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O educacionismo: Nossa causa-comum

possibilidade de se beneficiarem dos privilégios de que ainda não dis-põem. Só a revolução na educação – escola igual para todos – vai uni-ficar a dividida população brasileira, transformando-a em um povo. Mas para que essa revolução ocorra, será necessário um movimento que primeiro unifique eleitoralmente a vontade, para depois fazer a integração social por meio da educação. Essa unificação eleitoral é o papel dos educacionistas.

Para esse convencimento, será necessário derrubar o muro da omissão, a acomodação e o reacionarismo: seja por ter aceito o fim dos sonhos, perdido a Causa e se submetido a uma sigla por como-dismo – achando que o partido é uma finalidade e não um meio para mudar o país e o mundo –, seja por não ver que a realidade exige no-vas formas de apresentar e defender os sonhos revolucionários.

Nossa tarefa mais imediata é convencer os militantes ansiosos, descontentes, apáticos, mas ainda não corrompidos - pelo conser-vadorismo ou pelos cargos - de que vale a pena lutar por uma causa. De que essa causa existe e de que o desafio é ampliar a consciência nacional para a necessidade e a urgência dessa revolução possível: pela educação e pela ecologia, garantindo a mesma chance entre classes e entre gerações. A segunda tarefa é despertar mesmo os mais egoístas individualistas, para que percebam que não há futuro para ninguém sozinho.

6. Nossa causa: EducacionismoPor isso, a conscientização inicial é redescobrir o sentimento de

interesse nacional, acima de qualquer interesse de grupo, corpora-ção, segmento. A esquerda do século XXI tem de ser a esquerda da nação brasileira dentro da globalização, não a esquerda defensora das reivindicações de segmentos, nem tampouco a esquerda do na-cionalismo isolacionista dos anos 50.

Felizmente, ainda é tempo. A acomodação vai aos poucos se transformando em reacionarismo dos que se apegam ao curto prazo do poder sem sonhos, mas a realidade desperta a indignação daque-les que insistem na manutenção de objetivos que mudem a estrutura social. E essa indignação se transformará na chama do sonho revo-lucionário. Quando isso ocorrer, uma causa voltará a ser comum e se apresentará como alternativa de poder.

A proposta de utopia socialista sonhava com um mundo onde cada um “trabalharia de acordo com sua capacidade e ganharia de acordo com suas necessidades”. O socialismo no século XX errou ao

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VI. Ensaio

não perceber que, no século XIX, qualquer um tinha o emprego con-forme sua capacidade natural, sem necessidade de formação, e errou ainda mais ao não perceber que as necessidades já não eram limi-tadas, decorriam de uma ânsia consumista ilimitada. Daí o recurso, nos países socialistas, da ditadura para reprimir as aspirações con-sumistas das classes médias.

No século XXI, a capacidade de cada um depende diretamente da formação do trabalhador, cada vez mais complexa e sofisticada, e as necessidades de cada um são cada vez maiores. No século XIX, o ope-rário tinha emprego sempre que houvesse crescimento econômico que criasse vagas em grande número. No século XXI, o crescimento cria poucas vagas, que sobram se o trabalhador não for qualificado. Porque para ter emprego, o operário precisa se transformar em operador.

Uma das bases do socialismo, sobretudo no século XIX, era a promessa da superação da desigualdade entre trabalho intelectual e trabalho manual, por meio de uma revolução que colocaria o poder nas mãos do proletariado; não considerava a possibilidade, no século XXI, de elevar todos ao trabalho intelectual por meio da educação universal de qualidade. Até que o mais simples trabalho de limpeza do chão da fábrica fosse feito por equipamentos mecânicos operados por um trabalhador qualificado. Da mesma forma, não se previa, no pensamento marxista do século XIX, a quebra da vinculação absolu-ta entre administração e propriedade do capital. Até que mesmo ne-gócios de porte médio passassem sua administração para executivos qualificados, e não para os herdeiros do capital.

A revolução de hoje está em assegurar o pleno desenvolvimento da capacidade de cada um, e permitir-lhe ser remunerado de acordo com essa capacidade, permitindo um consumo diferenciado. O “so-cialismo” no século XXI deve assegurar a todos a igualdade no acesso à qualificação, permitir que todos tenham a mesma oportunidade educacional. Com isso, a liberdade permitirá desigualdade no consu-mo, acima da linha da exclusão social e abaixo da linha do equilíbrio ecológico: sem que ninguém consuma menos do que o necessário para sair da pobreza, e ninguém consuma mais do que o equilíbrio ecológico permita. No espaço entre o necessário-social e o possível-ecológico, a liberdade convive com a desigualdade.

Depois do fracasso de todos os “ismos” que baseavam a utopia nos sistemas econômicos nacionais, o educacionismo baseia a cons-trução da utopia civilizatória na revolução educacional que assegure a mesma oportunidade de formação para todos. Essa é uma visão compatível com os novos tempos, nos quais a globalização substitui

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O educacionismo: Nossa causa-comum

as economias nacionais e o capital-conhecimento e as informações substituem o capital-máquina como os vetores do progresso; tempos nos quais o computador substitui a máquina a vapor, e a escola substitui a fábrica. Tempos em que os operários se transformam em operadores e a luta de classes é substituída pelo choque de interes-ses entre os que têm e os que não têm formação profissional e educa-cional, o que divide a sociedade entre os incluídos e os excluídos da modernidade, separados por um sistema de apartheid social, a apar-tação, por causa da desigualdade abismal no acesso à educação.

Depois de um século de frustrações com as revoluções prisionei-ras das economias nacionais, que utilizaram o poder do Estado para criar novas classes burocráticas por meio do desenvolvimentismo ou do socialismo, e no início de um novo século no qual o mundo se divide internacionalmente entre um Primeiro-Mundo-Internacional-dos-Ricos, seja qual for o país onde se vive, e um Arquipélago-Social-de-Pobres espalhados no Planeta - o gulag neoliberal - o ponto de partida da utopia é derrubar a Cortina de Ouro que separa incluídos e excluídos dentro de cada país, quebrar a apartação e integrar a to-dos, dando-lhes a mesma chance. O crescimento econômico não será capaz, e a revolução social tradicional pela economia e pelo controle do estado não será possível. O caminho é a educação.

Isso, obviamente, não significará o coroamento do projeto civili-zatório. É um passo revolucionário, mas apenas um primeiro passo. O futuro distante pode ser apenas sugerido como idéia, não como proposta: no lugar da sonhada e fracassada igualdade na renda e no consumo com o sacrifício da liberdade, proposta nos séculos XIX e XX, agora a utopia sonhada pode ser a humanidade livre e integrada globalmente. Uma humanidade conectada, que dispõe dos equipa-mentos e das bases culturais para o grande diálogo mundial que os diversos meios de comunicação já permitem. Hoje, o papel da nossa causa é dar uma pequena contribuição: fazer com que os brasileiros estejam todos integrados, e com a mesma chance de participar.

7. Nosso “partido” Educacionistas, uni-vos!A política brasileira está dividida em um grande número de si-

glas, nenhuma com uma causa, com os militantes transformados em filiados. A causa educacionista tem militantes filiados em todas as siglas, como foi o partido abolicionista no século XIX. Em nenhum momento foi preciso criar uma sigla partidária para unificar os abo-licionistas. Naquele tempo, em todas as siglas havia abolicionistas lutando pela abolição com base no abolicionismo.

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VI. Ensaio

O mesmo vale para o educacionismo. Não há necessidade de uma sigla para abrigar os que defendem a utopia educacionista da mesma chance: revolução na educação e reorientação em direção a um de-senvolvimento sustentável. Eles estão espalhados em diversas siglas, faltando apenas um gesto aglutinador representado pela proposta comum: a Escola Igual.

Além disso, no século XXI, a organização partidária burocrati-zada e a mobilização física dos militantes não é o único caminho da ação política. A revolução da mesma chance deve usar os novos métodos de rede como instrumento de aglutinação, mobilização e or-ganização. Em rede virtual é possível organizar, agitar e mobilizar o pensamento e a ação de milhões de educacionistas, milhares de nú-cleos educacionistas unidos pelo educacionismo e mobilizados pela revolução educacional.

Esta é nossa proposta: um partido de causa, não de sigla, unindo os educacionistas em torno do educacionismo, por participação pre-sencial ou em rede virtual, lutando por uma sociedade que assegure a mesma chance entre classes e entre gerações. No lugar de “proletá-rios do mundo, uni-vos!”, o grito deve ser “educacionistas do Brasil, uni-vos!”.

*

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VII – Mundo

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Autores

William MelloPhD em Ciência Política e Estudos Históricos pela New School for Social Research, atualmente é professor de Trabalho e Política no Programa de Estudos Trabalhistas da Indiana University.

Moisés StorchCoordenador dos Amigos Brasileiros do Paz Agora – www.pazagora.org

Leonardo BoffTeólogo da Libertação e escritor. Em 1985, foi condenado pelo então cardeal Joseph Ratzinger ao “silêncio obsequioso”

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As primárias: Escolhendo o “novo” presidente dos EUA

William Mello

As primárias em andamento nos Estados Unidos para a esco-lha dos candidatos para as próximas eleições presidenciais ocorrem em um momento importante da vida política, em que

as questões políticas nacionais e internacionais convergiram para uma espécie de interesse incomum e uma excitação política entre os eleitores. O processo em curso para escolha dos candidatos está condicionado, em grande parte, por uma recessão econômica con-siderável, a Guerra infindável no Iraque, e uma pletora de questões sócio-políticas, cuja conseqüência é um assalto à sociedade ameri-cana pelos interesses corporativos; questões tais como o comércio internacional, desemprego, moradia, educação e saúde; todos figu-ram de maneira proeminente no debate presidencial à medida que os candidatos se deslocam de um estado para outro na busca dos delegados para as próximas convenções nacionais partidárias.

No entanto, na história política americana, a participação nas primárias (e mesmo nas eleições propriamente ditas) tende a crescer quando o eleitorado vai às urnas motivado por interesses cruciais, o desejo de mudança do curso corrente no país. A mudança política, no entanto, se é que ela vá ocorrer, também depende, em grande parte, não só de quem será eleito, mas sob que condições a eleição ocorre e o processo de escolha que leva à eleição geral. Para compre-ender melhor a centralidade das primárias, é importante entender inicialmente (mesmo que resumidamente) alguns elementos básicos

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VII. Mundo

do processo bem como funcionam as eleições no sistema político americano.

Primárias: quem decide?Um dos elementos básicos que dá maior importância ao processo

das primárias é o fato da estrutura política Americana ser um siste-ma bipartidário, isto é, embora existam outros partidos politicos ape-nas dois partidos possuem condições reais de eleger o Presidente e dominar o Congresso. Neste sentido as opções político-eleitorais são limitadas e exige que a maioria das questões políticas, para ganhar expressão e validade que garanta uma resposta do candidato deve ad-quirir um apoio significativo entre uma parcela ampla e diversificada dos eleitores.1 As primárias são um reflexo de um processo eleitoral complicado e fragmentado onde a maioria das decisões e leis que rege a eleição é decidida pelos Estados, isto é, o processo eleitoral é decidi-do em grande medida, por uma comissão eleitoral estadual, nomeada pelos governadores. O processo primário, e por fim, quem consegue mover as eleições nacionais ainda é um pouco mais complexo já que elas são eleições nacionais que armam os partidos políticos, mas não são institucionais no sentido de que seus resultados não definem as estruturas de decisão política, neste caso, quem será o próximo pre-sidente. O uso do sistema de primárias nem sempre foi parte da es-trutura política e só foi introduzido durante a “era progressista”. Nem todos os estados utilizam as primárias, alguns utilizam as primárias, outros realizam encontros e, outras ainda, convenções, ou uma com-binação qualquer destes três; ao longo do tempo a participação nas primárias tem níveis distintos de participação dos eleitores, o que não é exatamente uma diferença nominal, mas afere quanto o partido está mobilizado numa determinada região, influindo de muitas maneiras sobre quem será o vencedor.2 Particularmente no caso da eleição pre-

1 Utilizo o termo “público eleitor” porque o voto não é obrigatório e pode variar muito de uma eleição para outra. Enquanto houve um crescimento acentuado na parti-cipação dos eleitores, a tendência em toda parte foi de declínio na participação de eleitores. Neste sentido, candidatos e partidos tendem a endereçar tais questões que atendem setores da população que possuem uma tendência histórica para votar em eleições, o voto é normalmente maior entre aqueles com maior renda e maior escolaridade. Por exemplo, em 1996, apenas 49% dos eleitores “elegíveis” compare-ceram à eleição presidencial (o mais baixo em setenta anos) em 2004, somente após campanhas maciças para registro de novos eleitores tanto pelos democratas como pelos republicanos e no Partido Democrata a participação de eleitores subiu para aproximadamente 59%.

2 De acordo com a Comissão Eleitoral Federal dos EEUU: “Estabelecendo a data para a primária presidencial, e determinando o tipo de primária presidencial escolhida,

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As primárias: Escolhendo o “novo” presidente dos EUA

sidencial, as primárias são indiretas, isto é, elas escolhem delegados que vão num determinado momento posterior, durante o ano, partici-par da convenção nacional.

Uma das maiores diferenças no modo como as primárias mudam de um Estado para outro é que em alguns Estados ocorrem “primá-rias abertas”, neste caso, os eleitores não precisam ser previamente filiados a um dos dois partidos, no dia da eleição o eleitor decide em qual primária ele quer participar. Isto torna possível um partido influir no resultado do processo de primárias do opositor, ao mobilizar os seus eleitores para participar nas primárias do partido opositor, com a esperança de que um candidato menos viável seja escolhido. Embo-ra esta prática seja limitada (poucos Estados utilizam este método), numa disputa acirrada, como é o caso atual no Partido Democrata, isto pode ter um impacto significativo sobre quem será o candidato do partido. Isto parece ser o caso da candidatura de Barak Obama, que está granjeando crescente apoio entre eleitores tradicionalmente re-publicanos. No entanto, na maioria dos Estados, os partidos praticam uma “primária fechada” onde apenas eleitores com filiação partidária registrada podem participar da eleição primária.

Outro aspecto importante para o processo de primárias é a com-posição dos delegados que vão eventualmente escolher os candidatos partidários, que também variam entre os partidos Democrata e Re-publicano. Enquanto o processo no Partido Republicano é um mero avanço numérico de acumulação de delegados estaduais, baseado no resultado das primárias, no Partido Democrata, a existência dos “su-per delegados” pode modificar o resultado numa disputa acirrada, com um deslocamento considerável na lealdade ao candidato. A existência dos “super delegados” no Partido Democrata é por si, uma medida que só foi introduzida na estrutura partidária em 1980, depois que Ronald Reagan foi alçado ao poder. Na eleição presidencial seguinte de 1984, Walter Mondale derrotou Gary Hart para a nomeação Democrata com o apoio dos “super delegados.” 3 Conhecidas como as Regras 9A, como Godfrey Hodgson aponta, “há certamente uns 800 deles”… e compre-endem aproximadamente um quinto dos delegados da convenção na-cional “48 membros do senado, 221 membros da Câmara Federal,

varia de um Estado para outro. Isto se deve a diferenças nos Estatutos Estadu-ais, constituições partidárias regras partidárias e regimentos, legislação político-partidárias, e planos de seleção de delegados. Em alguns estados um caucus e/ou convenção podem ocorrer no lugar de uma eleição primária presidencial. Outros estados podem utilizar uma combinação de reuniões e primárias para seleção de delegados.”

3 Hodgson, Godfrey “Superdelegates” and the US Election, in openDemocracy, criada em 25/02/2008 em www.opendemocracy.net.

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VII. Mundo

31 governadores Democratas, 21 “líderes eminentes”, 398 membros do Comitê Nacional Democrata e 75 “delegados adicionais” (ainda a serem decididos)”4 Em princípio estes delegados não são obrigados a votar num candidato particular e desde que a disputa entre os dois candidatos democratas continue apertada eles estão sendo crescente-mente procurados depois pelas duas campanhas. O número total de “super delegados” adiciona à já complexa equação política onde, “... uma nova primária, cujo tamanho é da ordem de duas Califórnias, veio à baila”5. Um escorregão final no processo de primárias do Par-tido Democrata se deve ao fato dos delegados da Flórida e Michigan para a convenção nacional terem sido desqualificados por desafiar as instruções da liderança partidária nacional decidindo mudar as datas das primárias dos seus estados devido a questões regionais. Embora todos os candidatos tenham concordado em não realizar campanha nestes estados durante as primárias, o nome de Obama não apareceu na cédula. Mesmo que se consiga um compromisso entre a liderança nacional e estadual do Partido Democrata, será preciso incluir Obama ao refazer as primárias nestes estados, de maneira que os resulta-dos anteriores não constituem uma tendência favorável para nenhum candidato. Já que a competição entre Hilary e Obama é acirrada isto poderá ter um impacto no resultado final.

Democratas e RepublicanosO que diferencia este processo de primárias das anteriores em

anos recentes é a participação maciça de eleitores tanto entre De-mocratas como entre Republicanos, apesar das razões serem dife-rentes. Um número recorde de eleitores se apresentou para votar e um número recorde se registrou em Ohio, Texas e Arizona, onde a questão da imigração, do desemprego e da inflação mobiliza amplos setores da população. De muitas maneiras as primárias constituem uma plataforma onde as tendências em contenda dentro dos parti-dos desafiam e rivalizam pelo controle político do partido e mobilizam apoios com base em sua agenda política. A candidatura presidencial republicana foi decidida com antecedência; o Senador John MaCain conseguiu o número de votos necessários. Progressivamente os ou-tros candidatos que participaram da disputa foram desistindo à me-dida que suas possibilidades de ganhar a indicação partidária foram se tornando remotas. Neste sentido, quando os delegados chegarem

4 Ibid.5 Ibid. Entre os estados, a Califórnia é uma das maiores em tamanho e número of

delegados para a convenção nacional.

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As primárias: Escolhendo o “novo” presidente dos EUA

à próxima convenção partidária haverá pouca dúvida e a convenção funcionará basicamente como um referendo do que foi decidido nas disputas estaduais. O que parece ser uma excentricidade, é o can-didato republicano remanescente, ex governador do Arkansas, Mike Huckabee continuar a desafiar McCain, embora numericamente seja impossível a sua indicação. Isto é um modo intrínseco particular de exercer um papel de alta disputa política; mais do que uma expec-tativa de vencer a indicação partidária, a permanência de Huckabee na disputa reflete o grande descontentamento dos setores da direita cristã no Partido Republicano que consideram McCain pouco com-prometido com questões morais tais como o aborto. Desta maneira, continuando nas primárias, Huckabee é capaz de granjear apoio e em última análise pode enfraquecer a campanha do candidato repu-blicano para a presidência; mesmo que a convenção indique McCain a campanha de Huckabee pode mobilizar os eleitores da direita cristã para permanecer em casa no dia das eleições ou dar seu apoio ao candidato democrata.

Para os democratas, com a disputa acirrada entre Hilary Clinton e Barak Obama o processo não é menos simples, sobretudo quando tudo se reduz a: apresentar um candidato viável que possa ganhar a presidência dos EEUU. Dadas as múltiplas questões, e grupos que compõem o núcleo de eleitores nos dois partidos, mas em particular entre os democratas, para ter êxito numa campanha para a eleição primária, significa mover-se para o centro do espectro político, ao mesmo tempo em que é preciso responder às demandas imediatas de cada região do país de diversas maneiras. Por exemplo, ao realizar campanha em Ohio, uma região com uma classe operária industrial forte no Meio-Oeste, ambos os candidatos focalizaram o crescente desemprego, a falta de serviços de saúde e o impacto do NAFTA e mais recentemente as iniciativas de livre comércio que vem provo-cando perda de empregos. Um dos problemas essenciais na campa-nha de ambas as candidaturas democratas, no entanto, em que eles acentuam a retórica, atendendo à preocupação popular, na tentativa de tornar-se o candidato da “mudança”, porém há pouco em termos de propostas concretas para as questões que preocupam o núcleo de eleitores em termos de serviço de saúde universal, o fim da guerra no Iraque e uma virada na recessão econômica; um processo que levou milhares de pessoas à perda de seus empregos e casas à medida que a execução de hipotecas bancárias continua aumentando. Para ter uma idéia clara do duplo discurso tautológico, apesar dos dois can-didatos se declararem críticos do atual pântano militar americano no Iraque, eles não têm propostas concretas para terminar a Guerra, e Obama chegou a afirmar que ele aprofundaria o envolvimento militar

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dos EEUU no Afeganistão e invadiria o Paquistão numa tentativa de atrair o apoio dos setores conservadores do Partido Democrata e re-publicanos descontentes com McCain.

O futuro da Guerra no Iraque está afetando as eleições primá-rias de muitas maneiras e vai certamente afetar a eleição presiden-cial nos próximos meses. De acordo com os resultados de uma pes-quisa da Associated Press-Ipso realizada em fevereiro a maioria dos americanos vêem o fim da guerra como parte essencial de qualquer possibilidade de retomada econômica.6 Com um custo humano de cerca de 4000 soldados americanos mortos desde o seu início e um número incalculável de vidas civis, o custo econômico da guerra está beirando 1 trilhão de dólares sem uma solução à vista, apesar de ga-rantias de que a recente “reinvestida” da presença militar americana está tendo efeitos “positivos”. Mas a guerra também está cobrando sua taxa do candidato republicano. Se durante as primárias McCain procurou apresentar-se ao eleitorado partidário como uma imagem especular da administração em curso, (com algumas exceções na política fiscal), esperando vencer os membros centrais do Partido Re-publicano, em uma eleição que rapidamente foi definida pela opinião “qualquer um menos Bush” esta estratégia poderia causar danos na eleição geral. De forma crescente, se o presidente continuar a fazer afirmações públicas, tais como uma feita numa conferência de im-prensa no dia 28 de fevereiro de 2008 negando que os EEUU estejam no meio de uma recessão econômica, as chances do candidato repu-blicano crescem menos.

Democratas, a Esquerda, e Política ProgressistaEm anos recentes as relações entre a esquerda e as forças pro-

gressistas têm sido continuamente tensionadas pelos deslocamentos contínuos do Partido Democrata para o centro do espectro político e o seu abandono de muitas políticas sociais historicamente defendi-das.7 No passado, muitas eleições foram perdidas pelo fato dos candi-dates democratas terem se distanciado da agenda progressista como meio de atrair o apoio dos colarinhos azuis Democratas conservado-res, também conhecidos como “Democratas de Reagan”. A Esquer-da, definida em termos muito amplos, ganha sua expressão política maior através dos múltiplos movimentos de justiça social, sindical e ambientalistas que pressionam os centros de poder. Nas eleições

6 Veja Common Dreams, 25/02/2008.7 É importante observar que durante o primeiro mandato de Bill Clinton, ele firmou o

NAFTA por lei e promoveu o processo de reformas no bem-estar social

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As primárias: Escolhendo o “novo” presidente dos EUA

primárias em curso, a à esquerda e as forças políticas progressistas entraram na disputa divididas entre Obama, Edwards e Clinton. Um dos setores mais expressivos da política progressista com ligações históricas com o Partido Democrata, o movimento operário e sindi-cal, apareceu particularmente dividido com importantes sindicatos apoiando Edwards (que depois desistiu), Obama e Hilary, que con-tinua tendo o apoio da Federação dos Professores Americanos, (um sindicato especialmente influente). Após Edwards ter desistido das primárias, o apoio a Obama continuou a crescer entre organizações de trabalhadores tais como os caminhoneiros bem como tradicionais ativistas políticos vinculados aos movimentos de direitos civis, como o congressista John Lewis, um Democrata da Geórgia, que inicial-mente havia apoiado Hilary e recentemente passou a apoiar Obama, após os resultados da primária no seu distrito terem evidenciado uma maioria esmagadora a favor do Senador de Illinois. Isto foi um revés significativo para a campanha de Clinton, já que no começo das primárias ela foi capaz de granjear um apoio significativo entre os eleitores negros. Ainda mais, enquanto o apoio de Obama continua-va crescendo entre os afro-americanos e a esquerda, seu reconheci-mento e declarações de que sua candidatura indica o fim da política racial nos EEUU, deixa certos setores da esquerda aborrecidos; eles enxergam nas declarações do candidato uma negação subliminar de que as injustiças sociais continuaria a afligir muitas comunidades minoritárias através do país como resultado das políticas sociais ne-oliberais e que o ataque às políticas afirmativas vai continuar. Mais significativo é o relativo silêncio dos dois candidatos democratas com relação aos direitos trabalhistas que vêm sendo atacados através da flexibilização e precarização ao longo dos anos.

Não obstante o crescimento do status de Obama a estrela de Rock, à medida que as primárias dos democratas vão chegando ao fim, é igualmente importante notar os crescentes ataques que os candida-tes perpetram um contra o outro, e estes aumentam a cada primária o que pode causar danos permanentes à possibilidade de mobilização do Partido Democrata para a eleição geral. Para a esquerda, qualquer um dos dois candidatos democratas indicado no fim do processo de primárias, tornar-se-á “o candidato”, não há outra alternativa. Para a esquerda e as forças políticas progressista mais importante que o candidato é a necessidade de organizar mecanismos que possam as-segurar que qualquer que seja o eleito, seja alguém responsável, algo que não tem ocorrido por muito tempo na política americana. Por um lado há ainda na esquerda aqueles que não vêem diferença entre os dois partidos, seja democrata ou republicano, eles estão sofrendo de miopia política, entretanto, do outro lado, no passado recente, uma

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VII. Mundo

parcela significativa da esquerda e das forças progressistas substi-tuiu movimentos políticos reivindicatórios, e colocou em seu lugar e suas esperanças apostando numa vitória do Partido Democrata, que também é uma perspectiva estreita. Enquanto ambos os candidatos buscam retratar a si mesmos como os candidates da “mudança”, o que é claro é que os interesses corporativos vão continuar defi-nindo a agenda dos dois partidos e encontrar aliados dispostos nos dois candidatos à custa da classe trabalhadora que vem assistindo a uma queda severa na proteção social, nos salários e nos padrões de moradia. Dadas as grandes contribuições financeiras recebidas das corporações pelos dois partidos e candidatos os quais continuarão recebendo depois do encerramento das primárias, parece muito per-tinente o velho adágio “aquele que paga o músico escolhe a canção”.

Com certeza o Partido Democrata está prestes a realizar uma con-tribuição significativa à história política americana com a possibili-dade de uma mulher ou um afro-americano se tornarem o primeiro presidente não branco masculino a ocupar a presidência; mas será isto suficiente? Será a raça ou o gênero do candidato uma garantia para uma mudança política? Apesar de toda a publicidade mediática e independentemente de quem ganhar as eleições primárias, a elei-ção não será um proverbial “passeio no parque” para os democratas e muito provavelmente haverá um deslocamento significativo no dis-curso democrata e no desempenho em políticas sociais. Se a história política recente dos EEUU nos ensinou algo, é que os candidatos democratas desafiados pela direita se aproximam da política conser-vadora. Comentando a recente “Obama-mania” que vem dominando muitos debates políticos americanos, o historiador, Howard Zinn, escreveu recentemente, “Lembremos que mesmo quando existe um candidato “melhor” (sim, Roosevelt é candidato melhor que Hoover, qualquer um é melhor que George Bush) esta diferença não signifi-cará nada a menos que o poder das pessoas por si se afirme de modo que o ocupante da Casa Branca creia que é perigoso ignorá-lo.” 8

*

8 Zinn, Howard. “Election Madness” em The Progressive, Publicado no Domingo, 24 de Fevereiro, 2005, distribuído por Common Dreams.

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Israel, 60 anos sem paz

Moisés Storch

De geração em geração, desde que foram expulsos da Terra de Israel há dois milênios, judeus em todo o mundo repetem em suas orações a frase: “No ano que vem em Jerusalém”. Estas

palavras tiveram, por muito tempo, uma conotação mais simbólica do que concreta. Representavam a esperança da vinda do esperado Messias que lhes traria a redenção e os levaria à Terra Santa.

Dispersos pelo planeta, foram se incorporando às sociedades lo-cais. Mas, ao preservar tradições diferenciadas e valores religiosos, tiveram uma trajetória incomum de sofrimentos. Foi assim que a In-quisição Católica expulsou no final do século XV todos os judeus da Espanha e Portugal, permitindo apenas a permanência daqueles que se convertessem ao catolicismo. Esses ‘cristãos-novos’ compuseram boa parte da população do Brasil em formação. Os outros foram lite-ralmente queimados vivos nas fogueiras da ‘Santa Inquisição’ por se recusarem a abdicar de sua fé, ou tiveram que fugir.

O preconceito anti-judaico (conhecido como anti-semitismo) mani-festou-se e continua ocorrendo, sem delimitação de tempo e espaço. Nas sociedades muçulmanas, de forma geral, a prática do judaísmo era tolerada, mas os judeus eram considerados como uma categoria inferior com direitos limitados. No Império Czarista, foram freqüentes os ataques (pogroms) de cossacos, massacrando aldeias inteiras de judeus. Na Europa Ocidental do século XIX, vários judeus se desta-caram na onda iluminista de evolução cultural e científica, e foram antagonizados na proporção de seu destaque. Participaram - como ideólogos ou proletários - na linha de frente da Revolução Russa. Mas, a partir da ascensão de Stalin, foram sistematicamente perseguidos.

Na I Guerra Mundial, havia soldados judeus nos dois lados do front. Já na II, o eixo nazista elegeu como seu principal inimigo os judeus. Para ser assim identificado, o indivíduo não precisava ter a fé judaica, nem mesmo se considerar judeu. Bastava algum traço de ascendência ‘genética’, para ser rotulado com uma Estrela de Davi amarela que o condenava à morte. Seis milhões de pessoas - metade de todos os judeus do mundo na época - foram assassinadas.

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VII. Mundo

Pêndulo colonialAo final da II Guerra, os ingleses - que em 1918 haviam tomado

do Império Otomano o poder colonial sobre a Palestina – não con-seguiam mais impor sua autoridade aos dois milhões de árabes e judeus que a habitavam. Os confrontos entre os movimentos de li-bertação nacional concorrentes, o judeu (sionista) e o árabe atingiam seu clímax.

O império britânico exercera uma política pendular – privilegiando ora judeus, ora árabes. Em 1917, uma semana após a tomada do Pa-lácio de Inverno pelos bolcheviques, a Declaração Balfour oficializou a “simpatia britânica às aspirações sionistas”, afirmando-se “favorá-vel ao estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional para o povo judeu”. Mas já em 1922, imigrados 25 mil judeus após a Declaração Balfour, o “Churchill White Paper” desmembrou a Transjordânia do Mandato da Palestina e afirmou que “a imigração não poderia exce-der a capacidade econômica do país para absorver novas chegadas”.

Um massacre dizimou a antiga comunidade judaica de Hebron em 1929. Kibutzim (comunidades rurais socialistas) tinham que manter guarda dia e noite. Em 1935, os árabes iniciaram uma greve geral contra a imigração judaica. Ataques armados se multiplicaram contra judeus e ingleses. O sentimento anti-judaico era potenciali-zado por líderes carismáticos como o Mufti de Jerusalém, Haj Amin Al-Husseini, que mais tarde se aliaria a Hitler.

Uma proposta inglesa de partilha (a “Peel Comission”) foi por eles rejeitada, e a violência prosseguiu até 1939. Nesse ano foi publicado o “MacDonald White Paper”. Abandonando a idéia da partilha, os ingle-ses proibiram toda imigração judia, vedaram-lhes a compra de terras na maior parte da Palestina e propuseram a criação de um Estado Palestino binacional governado por árabes e judeus segundo o número de habitantes (os judeus compunham à época 25% da população).

Fim do domínio britânico, URSS e EUA Ao final da II Guerra Mundial, reveladas as terríveis dimensões do Ho-

locausto, havia um consenso mundial pela criação de um Estado judeu.

A Inglaterra foi culpada, indiretamente, pela morte de centenas de milhares de judeus europeus, ao fechar uma saída vital para es-capar do inferno nazista. Na Palestina, sua presença era combatida

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Israel, 60 anos sem paz

por árabes e judeus. Entregou a questão à Organização das Nações Unidas, já na sua primeira Assembléia Geral.

Em 29/11/1947, a II Assembléia Geral da ONU aprovou por maio-ria de 2/3 a Resolução 181, partilhando o Mandato da Palestina em dois Estados soberanos, um judeu e um árabe. Dois Estados para dois povos. Foi assim endossado pela comunidade internacional mundial-mente o ideal sionista: construir na Palestina um país que pudesse servir de refúgio seguro para os judeus. Atendendo ao mesmo tempo as reivindicações nacionais árabes através de concessões mútuas.

Entre os 33 votos favoráveis, Brasil incluído, estavam as duas su-perpotências emergentes da nova ordem mundial, EUA e URSS. Foi uma das raras vezes em que ambas se posicionariam do mesmo lado na ONU.

Segundo Avi Davis, “na visão de Stalin, a criação de um Estado judeu moderno teria maior possibilidade de deter a influência do Oci-dente do que um regime árabe retrógrado... Ao fim da II Guerra Mun-dial, os soviéticos haviam ficado sem nenhuma área de influência no Oriente Médio. As grandes reservas de petróleo da Arábia Saudita e do Iraque estavam sob controle de empresas petrolíferas americanas e inglesas. Stalin não tinha nenhum amor pelos judeus, mas perce-beu na formação socialista da liderança sionista uma oportunidade única para fincar o pé da URSS na região...”.

Após a derrota do Eixo, a URSS passou a atacar a política britâni-ca de impedir a imigração para a Palestina dos judeus sobreviventes do genocídio nazista, que se amontoavam na Europa em campos de refugiados. O bloco soviético seria o principal fornecedor de armas ao novo exército israelense.

Enquanto isto, Truman não via como estratégica a criação de um Estado judeu fraco e dependente do Ocidente. Para a máquina in-dustrial americana de pós-guerra, sedenta de combustível, os países árabes grandes produtores de petróleo eram o aliado preferencial.

Mas, por outro lado, o presidente norte-americano antevia uma grande injustiça para os judeus da Palestina e os sobreviventes do Holocausto, caso não fosse criado o Estado judeu. Somente às vés-peras da votação, após a Liga Árabe declarar que enviaria tropas de seus países para a fronteira palestina, os Estados Unidos se defini-ram a favor da resolução.

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VII. Mundo

A solução, liberdade, integração econômica e oposição árabe

A Resolução 181, da ONU, recebeu o título de ”Plano de Partilha Com União Econômica”. A divisão do antigo Mandato Britânico da Palestina considerava a distribuição demográfica das comunidades árabes e judias. E a utopia de uma intensa cooperação entre elas.

A porção a leste do rio Jordão, equivalente a 76% do Mandato Britânico da Palestina, já havia sido en-tregue em 1922 ao clã ára-be-hachemita, formando o reino da Transjordânia. Pela partilha aprovada pela ONU em 29/11/1947, os judeus, então apenas um terço da população, receberiam o equivalente a 55% (em azul ao lado) da Palestina Oci-dental. Este favorecimento, no entanto, é apenas apa-rente. Na verdade, mais de 75% das terras reservadas ao Estado judeu consistiam do árido deserto do Neguev. O restante se compunha de uma estreita faixa litorânea entre Tel Aviv e Haifa e parte da Galiléia.

A cidade de Jafa (colada a Tel-Aviv) ficaria como um enclave sobe-rano árabe embutido no Estado Judeu, enquanto Jerusalém, incrus-tada no Estado Árabe, teria o status especial de “corpus separatum”, administrado pela ONU. Lá seria sediada a “União Econômica da Palestina”.

Previam-se dispositivos para preservar a liberdade de trânsito e visita entre os dois Estados e Jerusalém. Garantiam-se em cada uma dessas áreas o acesso a locais sagrados e a proteção dos direitos e liberdades de religiões, minorias e gêneros. O ensino de línguas e tradições culturais das respectivas minorias seria livre, em estabele-cimentos educacionais próprios.

A resolução 181 estipulava, já em seu título, a união econômica entre os dois futuros Estados, descendo a detalhes como moeda úni-ca, taxas alfandegárias comuns e livre-comércio entre eles. Se esta

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Israel, 60 anos sem paz

concepção era, no mínimo, ousada para a época, o traçado das fron-teiras pressupunha uma intensa cooperação pacífica entre judeus e árabes inimaginável naquele clima:

Cada um dos dois Estados se comporia de três sub-regiões não-contíguas, ligadas entre si por estreitas passagens cuja travessia só seria possível num clima de completa paz.

Atendendo à urgência do momento, determinava-se ainda o levan-tamento imediato das restrições britânicas à imigração de judeus.

Enquanto a liderança da comunidade judia na Palestina (ishuv) aceitava o plano, os seis países da recém-criada Liga Árabe (Egito, Iraque, Líbano, Arábia Saudita, Síria e Iemen) rejeitaram a resolu-ção, no que foram acompanhados apenas por Cuba, Grécia e Índia e os países muçulmanos, Afeganistão, Paquistão, Irã e Turquia. Entre as abstenções, destaque-se a do Reino Unido.

Os árabes palestinos, em vez de se organizar em instituições polí-ticas para estabelecer um Estado independente – como o ishuv – fica-ram à mercê de um clima ideológico que pregava abortar o nascimen-to do Estado judeu. Bernard Lewis observa que já “em 17/12/1947, o Conselho da Liga Árabe anunciou que iria impedir pela força a partilha proposta da Palestina...”

Independência de Israel e a Naqba dos palestinos Em 14/05/1948, o Reino Unido renunciou ao Mandato da Pa-

lestina, retirando suas tropas. No mesmo dia, em meio a uma onda de violência entre as comunidades árabe e judia, foi proclamada a Declaração de Independência do Estado de Israel, considerada como o principal marco do sionismo político. Nela se lê:

“... O Estado de Israel será aberto à imigração de judeus de todos os países de sua dispersão; promoverá o desenvolvimento do país em benefício de todos os seus habitantes; será baseado nos preceitos de liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus; defenderá total igualdade social e política para todos os seus cidadãos, sem dis-tinção de raça, credo ou sexo; garantirá total liberdade de consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e inviolabilidade dos templos e lugares sagrados de todas as religiões; e se dedicará aos princípios da Carta das Nações Unidas.”

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VII. Mundo

“... Em meio a uma brutal agressão, instamos ainda aos habitantes árabes do Estado de Israel para que retornem aos caminhos da paz e façam sua parte no desenvolvimento do Estado, com total e igual cidadania e a devida representação em seus órgãos e instituições - provisórios ou permanentes”.

“... Oferecemos paz e boa-vizinhança a todos os Estados vizinhos e seus povos, e os convidamos a cooperar com a nação independente hebraica para o bem comum de todos...”.

A resposta oficial veio no dia seguinte. O secretário-geral da Liga Árabe, Abdul Pasha, anunciou a intenção de deflagrar “uma guerra de extermínio e um inesquecível massacre do qual se falará como dos massacres mongóis e das Cruzadas...”.

O nascente Estado judeu foi imediatamente atacado por exércitos regulares dos países árabes vizinhos. O incipiente Exército de Defesa de Israel conseguiu conter os ataques. Após meses de combates san-grentos, repeliu a invasão e ampliou suas fronteiras.

O choque entre os dois movimentos nacionais, competindo pela mesma pequena terra, é alimentado pelo que Uri Avnery chama de ‘Duelo de Traumas’. “Os judeus trazem consigo o velho trauma da perseguição dos judeus na Europa - massacres, expulsões em mas-sa, a Inquisição, pogroms e o Holocausto...”. A defesa contra ataques árabes era sentida como a batalha pela sobrevivência de alguém que por pouco acaba de escapar de ser assassinado.

Pelos árabes-palestinos, os imigrantes judeus eram percebidos como novos colonizadores. A memória coletiva é de uma secular opressão colonial, desde o Império Otomano até o Império Britânico, repleta de insultos e humilhações. Contrastando com os gloriosos dias dos califas árabes, cujo domínio ultrapassara o Oriente Médio e o norte da África, alcançando toda a Península Ibérica.

A vitória de Israel em 1948 significou o que os palestinos chamam de “Naqba” (Catástrofe). Conforme Avnery, “a guerra iniciada pelos árabes após o plano de partilha foi inevitavelmente uma ‘guerra étni-ca’, onde cada lado buscava conquistar tanta terra quanto possível e remover a população do outro lado...”.

Ao final da guerra, não havia sobrado um judeu das milenares comunidades da Cidade Velha de Jerusalém e Hebron, e nenhum kibutznik do bloco Etzion. Mas os israelenses podiam afinal comemo-rar sua independência.

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Israel, 60 anos sem paz

Para os árabes da Palestina, o resultado foi uma tragédia na-cional: tiveram sufocados qualquer anseio por autodeterminação. O restante do território que a ONU lhes havia destinado foi tomado pelo Egito e a Jordânia...

A “Naqba” foi também uma catástrofe humanitária para 750 mil palestinos, deslocados pela guerra para acampamentos de refugia-dos nos países vizinhos. Boa parte deles e seus descendentes são até hoje mantidos por fundos da ONU, em condições miseráveis, sem quaisquer direitos de cidadania.

Judeus em número semelhante seriam expulsos de paises ára-bes, onde tinham vivido por várias gerações. Foram acolhidos em Israel e outras comunidades judaicas. Muitos fugiram para o Brasil, despojados de seus bens e cidadania, e se tornaram cidadãos brasi-leiros. Mas aos refugiados de nenhum dos lados foi permitida a volta ao antigo lar ou concedida qualquer compensação.

Socialismo, globalização e nacionalismo palestinoAs principais lideranças de Israel em seu nascimento eram da cor-

rente sionista-socialista. Criaram um modelo inovador, onde os maio-res bancos, indústrias e empreiteiras eram de propriedade do Estado ou da Histadrut, confederação dos sindicatos de trabalhadores.

Desenvolveu-se uma rede de transportes coletivos por todo o ter-ritório, onde os ônibus pertenciam a uma cooperativa dos motoris-tas. Os kibutzim – fazendas auto-geridas com propriedade coletiva dos meios de produção e divisão por igual do rendimento entre seus membros, independentemente de função ou qualificação – fizeram de uma terra infértil um grande exportador de frutas e flores. A Kupat Cholim, instituto de previdência e saúde, assegurava serviços de alta qualidade a todos os cidadãos.

Por vários anos, Israel figurou entre os países ocidentais com me-lhor distribuição de renda, ao lado dos escandinavos.

Não mais. A globalização e uma série de governos de direita fo-ram minando a estrutura econômica igualitária. As grandes empre-sas foram privatizadas e recursos públicos foram progressivamente desviados de programas de bem-estar social para investimentos na colonização dos territórios conquistados em 1967.

Hoje, Israel tem cerca de 1/3 de sua população abaixo da linha de pobreza. Há anciãos sobreviventes do Holocausto que não tem o

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VII. Mundo

básico para viver, enquanto se gastam milhões em infra-estrutura para assentamentos na Cisjordânia.

Não houve, durante o domínio egípcio e jordaniano sobre parte da Palestina, qualquer iniciativa de organização de instituições políticas que visassem a soberania dos próprios palestinos naqueles territó-rios. Os árabes palestinos se viam antes de tudo como “membros da grande nação árabe”.

A identidade nacional árabe-palestina foi se forjando no exílio, em função da sua trajetória de sofrimento como povo destituído da terra. Por uma trágica ironia da História, um fenômeno idêntico ao que havia gerado a identidade nacional judia, o sionismo.

O nacionalismo palestino desenvolveu-se de fato após a Guerra dos Seis Dias. Com a tomada por Israel dos territórios de Gaza e Cisjordânia, seus habitantes deixaram de ser governados por “ir-mãos árabes” (Egito e Jordânia). Seriam agora controlados por uma sociedade estranha, com outra língua, outros costumes, outra re-ligião. Se antes nem se dizia que viviam em “territórios ocupados”, agora o ocupado tinha uma “cara” diferente do ocupante, o que ace-lerou a definição de uma identidade nacional específica na luta pela independência.

Exército de defesa ou ocupação?Por mais de 30 anos, existiu um absoluto e unânime repúdio à

existência de Israel pelo mundo árabe. Prevalecia em todo o Oriente Médio o nacionalismo pan-árabe, que tinha como principal denomi-nador comum a rejeição à existência em seu meio de um país sobe-rano judeu.

Israel nasceu e se desenvolveu cercado de inimigos. Desde sua fundação, boa parte de seus recursos econômicos e humanos teve que ser canalizada para sua defesa. Além da Guerra pela Indepen-dência, sofreu ataques militares maciços de seus vizinhos, que che-gavam a ameaçar sua sobrevivência, em 1967 e 1973, além de ser fustigado por constantes atentados terroristas.

A ameaça física sempre foi real, e particularmente sensível para um povo que acabava de sobreviver a um genocídio. O Exército de Defesa de Israel (Tsahal), um autêntico exército popular, é a institui-ção mais respeitada do país. A imagem do jovem soldado israelense passou a representar a transição de um povo humilhado e massacra-do para um povo corajoso que sabe se defender.

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Israel, 60 anos sem paz

Esta imagem começou a mudar após a euforia da vitória na Guer-ra dos Seis Dias. Os jovens passaram a ser designados para apoiar a ocupação dos territórios de Gaza e Cisjordânia. Imagine-se a auto-estima de alguém que passa os dias dificultando a passagem de seres humanos de sua própria casa para o trabalho, correndo o risco de ser apedrejado ou baleado. Sujeito a agressões dos próprios colonos que recebe a missão de defender. O número de casos de suicídio é significativo. Muitos se drogam ou saem do país ao final do serviço militar obrigatório.

A ocupação está destruindo as bases morais da sociedade israelense.

Racha a frente da rejeiçãoO bloqueio árabe começou a ruir em 1979 com o tratado de paz

de Israel com o Egito. Em 1994, a paz entre Israel e Jordânia inaugu-rou uma nova era de relações diplomáticas e econômicas. Iniciaram-se em Oslo conversações secretas entre representantes de Israel e da OLP, que culminaram em setembro de 1993 no reconhecimento mútuo dos direitos nacionais dos dois povos.

Em 2002, a Arábia Saudita apresentou um plano de paz - apro-vado pela Liga Árabe e recentemente ratificado - propondo a norma-lização de relações de todos os países árabes com Israel em troca da devolução das terras ocupadas em 1967 e uma solução acordada para os refugiados palestinos.

Do lado de Israel, apesar de sucessivos governos de direita que promoveram a expansão de colônias nos territórios ocupados, for-mou-se um verdadeiro consenso nacional de que deve ser criado um Estado Palestino independente naqueles territórios, e deixou de ser tabu a divisão de Jerusalém para sediar as capitais dos dois países.

Hoje temos um primeiro-ministro em Israel e um presidente na Autoridade Palestina, eleitos ambos com a plataforma de implemen-tar uma solução de Dois Estados. Israel desmantelou as colônias e retirou as tropas de Gaza. Entretanto, a frágil coalizão de governo is-raelense, desgastada pelo fiasco na última guerra no Líbano, depen-de de concessões a partidos retrógrados, o que a vem imobilizando para qualquer avanço significativo. O presidente da AP, por sua vez - sem nada para apresentar ao seu povo como retribuição à sua dis-posição para a paz - perdeu o controle de toda a Faixa de Gaza para um grupo islâmico que tem por princípio destruir Israel.

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VII. Mundo

O grande perigo para a paz é o progressivo deslocamento do con-flito do eixo nacional-secular para o do fanatismo religioso, que se acelerou com a ascensão do Hamas em Gaza e também se traduz nas pressões de sionistas-religiosos radicais. Entre fanáticos é pratica-mente impossível o entendimento.

Esta mudança é parte de uma ameaçadora onda global de cres-cimento do poder e agressividade de correntes obscurantistas islâ-micas que rejeitam valores como democracia e direitos humanos. Do Talibã (Afeganistão), à Irmandade Muçulmana (Egito e Jordânia). Do Hizbolá (Líbano) ao Irã, que desenvolve a bomba atômica ao mes-mo tempo em que sustenta grupos terroristas e prega abertamente a destruição de Israel.

A tendência só poderá ser revertido pela melhoria das condições de vida de populações despossuídas e pelo fortalecimento de lideran-ças progressistas e moderadas.

Nenhuma oportunidade de diálogo pode ser desperdiçada, inde-pendente dos esforços dos extremistas que sempre tentarão sabotar o processo de paz.

A comunidade internacional deve investir no fomento desse pro-cesso e na viabilização econômica de um Estado Palestino indepen-dente ao lado de Israel.

Que sionismo?Há quem diga que o sionismo, enquanto movimento de libertação

nacional do povo judeu, se esgotou no momento da criação do Estado de Israel.

O principal objetivo da ideologia sionista, o de ‘assegurar um lar nacional que sirva de refúgio seguro para todos os judeus’ está, po-rém, ainda longe de se realizar: Israel é hoje, paradoxalmente, o lu-gar onde é mais provável um indivíduo ter sua vida ameaçada pela sua própria condição de judeu.

As bases libertárias e humanistas que inspiraram a criação de Israel estão abaladas pelo controle de milhões de palestinos privados de direitos civis.

Israel, enquanto Estado democrático com maioria judaica, só pode sobreviver com o fim da ocupação e a criação de um país que garanta auto-determinação e dignidade humana aos árabes palesti-nos, na Faixa de Gaza e Cisjordânia.

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Israel, 60 anos sem paz

Os radicais defensores da “Grande Israel” bíblica - do Mediterrâ-neo ao Jordão - arvoram-se de serem os autênticos representantes do sionismo. Na verdade, o estão matando.

Assim como os extremistas que pregam “varrer a entidade sionis-ta” e eliminar os judeus de toda a “Palestina Histórica” mandatária, eles precisam ter seu radicalismo silenciado pela voz dos milhões que reconhecem reciprocamente os anseios nacionais de judeus e árabes na Terra de Israel/Palestina.

Israel canta em seu Hino Nacional: “... Ainda não perdemos nossa esperança de dois milênios – sermos um povo livre em nosso país, na Terra de Sion, Jerusalém”.

Os palestinos têm um anseio semelhante, inclusive quanto a Je-rusalém. Igualmente legítimo.

A solução para uma paz justa e duradoura já foi concebida há mais de 60 anos: Dois estados para dois povos. Para chegar lá é pre-ciso buscar incansavelmente o diálogo.

Não percamos a esperança!

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Bento XVI e a guerra na igreja

Leonardo Boff

As guerras não existem apenas no mundo. Dentro da igreja há também uma guerra de baixa intensidade. Ela faz muitas víti-mas, com os instrumentos adequados da guerra religiosa, es-

condidos sob palavras, não raro, piedosas e espirituais. Só para dar um exemplo pessoal: quando fui condenado pelo então cardeal Joseph Ratzinger em 1985 por causa do meu livro “Igreja: carisma e poder”, foi-me imposto o que ele denominou de “silêncio obsequioso”.

Esse eufemismo implicava muita violência: deposição de cátedra, remoção de editor religioso da Vozes, da redação da Revista Eclesi-ástica Brasileira, proibição severa de falar, dar entrevistas, escrever e publicar sobre qualquer assunto. Objetivamente “obsequioso” não possui nada de obsequioso.

O mesmo ocorreu com o teólogo da libertação Jon Sobrino, de El Salvador, condenado em fevereiro do ano passado. Recebeu ape-nas uma “notificação”. Esta inocente palavra, “notificatio”, esconde violência porque ele não pode mais falar, nem dar aulas, conceder entrevistas e acompanhar qualquer trabalho pastoral. O vitimado por uma condenação é “moralmente” morto, pois vem colocado sob suspeita geral, tolhido, isolado e psicologicamente submetido a gra-ves transtornos, o que levou a alguns a terem neuroses e a um deles, famoso, perseguido por idéias de suicídio.

Nós fomos, no mínimo, caçados e anulados, pois um teólogo pos-sui apenas como instrumento de trabalho a palavra escrita e falada. E estas lhe foram seqüestradas, coisa que conhecemos das ditaduras militares.

O que foi escrito acima parece irrelevante, pois é algo pessoal, mas não deixa de ser ilustrativo da guerra religiosa vigente dentro da Igreja. Nela o então cardeal Ratzinger era general. Hoje como papa é o comandante em chefe. Qual é este embate? É importante referi-lo para entender palavras e advertências do papa e a partir de que mo-delo de teologia e de Igreja constrói o seu discurso.

Dito de uma forma simplificadora, mas real: há na igreja duas op-ções claramente opostas, o que não impede que, na prática, possam

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Bento XVI e a guerra na igreja

se entrelaçar. Face ao mundo, à cultura e à sociedade há a atitude de confronto ou de diálogo.

A partir da Reforma no século 16 predominou na Igreja Católica romana a atitude de confronto: primeiro com as Igrejas protestantes (evangélicas) e depois com a modernidade.

Face à Reforma houve excomunhões, e face à modernidade, aná-temas e condenações de coisas que nos parecem até risíveis: contra a ciência, a democracia, os direitos humanos, a industrialização. A Igreja se havia transformado numa fortaleza contra as vagas de refor-mismo, secularismo, modernismo e relativismo. Missão da igreja, se-gundo esse modelo do confronto, é testemunhar as verdades eternas, anunciar a Cristo como o único Redentor da humanidade e a Igreja sua única e exclusiva mediadora, fora da qual não há salvação.

Em seu documento de 2000, Dominus Jesus, o cardeal Ratzinger reafirma tal visão com a máxima clareza e laivos de fundamentalis-mo. Tudo é centralizado no Cristo. Esta atitude belicosa predominou até os anos 60 do século passado quando foi eleito um papa ancião, quase desconhecido, mas cheio de coração e bom senso, João 23. Seu propósito era passar do anátema ao diálogo. Quis escancarar as portas e janelas da Igreja para arejá-la. Considerava blasfêmia contra o Espírito Santo imaginar que os modernos só pensam erros e praticam o mal.

Há bondade no mundo, como há maldade na Igreja. Importa é dialogar, intercambiar e aprender um do outro. A Igreja que evan-geliza deve ela mesma ser evangelizada por tudo aquilo que de bom, honesto, verdadeiro e sagrado puder ser identificado na história hu-mana.

Deus mesmo chega sempre antes do missionário, pois o Espírito Criador sopra onde quiser e está sempre presente nas buscas hu-manas suscitando bondade, justiça, compaixão e amor em todos. A figura do Espírito ganha centralidade.

Fruto da opção pelo diálogo foi o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), que representou um acerto de contas com a Reforma pelo ecumenis-mo e com a modernidade pelo mútuo reconhecimento e pela colabo-ração em vista de algo maior que a própria Igreja, uma humanidade mais dignificada e uma Terra mais cuidada.

Este “aggiornamento” trouxe grande vitalidade em toda a Igreja, especialmente na América Latina, que criou espaço para aquilo que se chamou de Igreja da base ou da libertação e da Teologia da Liber-tação. Mas acirrou também as frentes.

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VII. Mundo

Grupos conservadores, especialmente incrustados na burocracia do Vaticano, conseguiram se articular e organizaram um movimento de restauração, de volta à grande tradição.

Este grupo foi enormemente reforçado sob João Paulo 2º, que vinha da resistência polonesa ao marxismo. Chamou como braço di-reito e principal conselheiro, seu amigo, o teólogo Joseph Ratzin-ger, elevando-o diretamente ao cardinalato e fazendo-o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, a ex-Inquisição. Aí se processou de forma sistemática, vinda de cima, uma verdadeira Contra-Refor-ma Católica.

O próprio cardeal Ratzinger no seu conhecido “Rapporto sulla fede”, de 1985, um verdadeiro balanço da fé, dizia claramen-te: “A restauração que propiciamos busca um novo equilíbrio de-pois dos exageros e de uma abertura indiscriminada ao mundo”. Ele elaborou teologicamente a opção pelo confronto a partir de sua formação de base, o agostinismo, sobre o qual fez duas teses mi-nuciosamente trabalhadas. Notoriamente Santo Agostinho opera um dualismo na visão do mundo e da Igreja. Por um lado, está a cidade de Deus e, por outro, a cidade dos homens, por uma parte, a nature-za decaída, e, por outra, a graça sobrenatural.

O Adão decaído não pode redimir-se por si mesmo, seja pelo tra-balho religioso e ético (heresia do pelagianismo) seja por seu empe-nho social e cultural. Precisa do Redentor. Ele se continua e se faz presente pela Igreja, sem a qual nada ganha altura sobrenatural e se salva.

Em razão desta chave de leitura, o papa Bento 16 se confronta com a modernidade, vendo nela a arrogância do homem buscando sua emancipação por próprias forças. Por mais valores que ela possa apresentar, não são suficientes, pois não alcançam o nível sobrena-tural, único caráter realmente emancipador. Nela vê mais que tudo secularismo, materialismo e relativismo. Essa é também sua dificul-dade com a Teologia da Libertação. A libertação social, econômica e política que pretendemos, segundo ele, não é verdadeira libertação, porque não passa pela mediação do sobrenatural.

Para concluir, se o atual papa tivesse assumido uma teologia do Espírito, coisa ausente em sua produção teológica, teria uma leitura menos pessimista da modernidade. No atual momento se dá o for-te embate entre essas duas opções. A Igreja latino-americana pende mais pela opção do diálogo. Esta é mais adequada à cultura brasileira que não é fundamentalista nem dogmática, mas profundamente rela-cional e dialogal com todas as correntes espirituais.

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Bento XVI e a guerra na igreja

Somos naturalmente sincréticos na convicção de que em todos os caminhos espirituais há bondade para além dos desvios e que, definitivamente, tudo acaba em Deus.

Não parece ser esta a opção de Bento 16: seus discursos enfa-tizam a construção da Igreja em sua forte identidade para que seu testemunho seja vigoroso e possa levar valores perenes a um mundo carente deles, como se viu claramente em seu discurso aos bispos brasileiros na catedral de São Paulo.

Essa Igreja é necessariamente de poucos, coisa reafirmada pelo teólogo Ratzin-ger em muitas de suas obras. Mas esses poucos devem ser santos, zelosos e compro-metidos com a missão de orientar e conduzir os muitos, sem se deixar contaminar por eles e pelo mundo.

Ocorre que esses poucos nem sempre são bons. Haja vista os padres pedófilos. Por isso, a Igreja precisa renunciar a certa arrogância, ser mais humilde e confiar que o Espírito e o Cristo cósmico dirijam seus passos e os da humanidade por cami-nhos com sentido e vida.

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VIII. Vida Cultural

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Autores

Dejean Magno PellegrinCrítico de cinema

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Dedo duro: patriota ou canalha?

Dejean Magno Pellegrin

No dia 21 de março de 1951, às 10h35min, na sala 226 do ve-tusto edifício da Câmara dos Representantes, no Capitólio, em Washington, EUA, o comitê sobre as atividades antiamericanas

(House Committes on Un-American Activities – H.U.A.C.) iniciava sua sessão sob a presidência do representante do Estado da Georgia, John S. Wood. A ordem do dia: as atividades subversivas na indústria do espetáculo. A primeira testemunha do sr. Wood era o ator Larry Parks, cuja interpretação do papel principal no filme “Sonhos Dourados” (The Jolson Story – 1946), realizado por Alfred E. Green (1889-1960), tinha lhe proporcionado um sucesso imediato e, provavelmente, esse com-parecimento na H.U.A.C., que justicava sua presença.

Nessa mesma manhã, no Tribunal Federal de Foley Square, em Manhattan, o governo ameriano encerrava o processo de Lulius e Ethel Rosenberg e de Norton Sobell, acusados de espionagem em tempo de guerra em prol do antigo aliado dos Estados Unidos, a União Soviética. O testemunho mais pesado para os acusados tinha sido o do próprio irmão de Ethel, David Greenglass. Outro grande caso de espionagem do final dos anos 40 também chegava ao fim, e Alger Hiss, de 46 anos, velho funcionário do Departamento de Estado, acusado de falso testemunho por ter negado a entrega de documen-tos confidenciais aos russos, preparava-se para ir para a prisão por cinco anos. Seu acusador, sem ser de sua família, não deixou de se vangloriar de ser um de seus amigos. É bem verdade que Whittaker Chambers não ia demorar em escrever “Witness” (Testemunha), um dos livros de maior vendagem na época, no qual ele esforçava-se em

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fazer a apologia do deletor, ao mesmo tempo patriota, profeta e cam-peão da moralidade pública.

Em Hollywood, as audiências na comissão parlamentar tinham começado em 1947. Dez testemunhas recalcitrantes – que seriam chamadas de os “Des Resistentes” ou os “Dez de Hollywood” – tinham sido indiciados por “ultraje” ao Congresso americanom, após terem recusado responder à famosa pergunta que reinava naquela época: você ainda é ou você foi membro do Partido Comunista? Essas au-diências, interrompidades até o momento em que os dez acusados, tendo utilizado todos os procedimentos de apelação, tinham sido condenados a penas de até um ano de prisão, deviam recomeçar com Parks como primeira testemunha.

Poder-se-ia acreditar que na primavera de 1951 todos as ins-tâncias do governo federal estadunidense teriam feito causa comum para empreender a batalha contra os elementos suspeitos de subver-são, porém, seria esquercer as diferenças fundamentais existentes entre os três poderes. Por outro aldo, o que quer que se possa pen-sar, os processos Hiss e Rosenberg foram julgados conforme a lei e por tribunais que, ao menos, previam certas medidas de proteção. As testemunhas do governo dos EUA, inclusive Greenglass e Chambers, foram submetidas a um contra-interrogatório; além do mais – eles bem que teriam dito a verdade – o testemunho capital que deram no Congresso não comportava algum valor jurídico. Efetivamente, o Congresso não pôde pronunciar culpabilidades, a Constituição ame-ricana, em conformidade com a cláusula do “Bill of Attainder”, proí-be formalmente toda incursão legislativa nesse domínio. Todavia, as testemunhas dos comitês têm muito menos direitos do que os acusa-dos dos processos penais. E como a H.U.A.C. não iria demorar muito em revelá-lo, acontece que esses comitês parlamentares conecem por antecipação as respostas às perguntas que fazem. Se Larry Parks ha-via sido convocado, não era para dar informações suscetíveis de levar a uma condenação ou a uma absolvição, porém, muito mais para ter um papel simbólico numa moralidade surrealista.

Parks reconheceu livremente diante da H.U.A.C. que tinha en-trado no Partido Comunista Americano em 1941, com a idade de 25 anos, porque era o partido político “mais liberal”, e que deixou-o em 1945 por “fato de interesse”. Contrariamente aos “Dez de Hollywood”, não teve nenhuma dificuldade para entar nos detalhes de suas ati-vidades políticas, mas teve escrúpulos em dar os nomes dos que ti-nham militado com ele. “Eu prereriria, se o senhor me permitir, não dar nomes... não é da maneira americana”, acrescentou. “A justiça americana não pode forçar um homem a fazer isso”.

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O presidente Wood disse-lhe que não tinha “a intenção de insistir nesse ponto, a menos que outros membros do comitê o desejam”. O congressista Francis E. Walter, do Estado da Pensilvânia, estava de acordo com esse ponto. “Para que serve essa enquete que nos dá nomes de pessoas que nós conhecemos? É realmente indispensável que tenhamos todos os nomes já que temos conosco uma testemu-nha que poderia nos ajudar em saber o que desejamos?... Não é mais importante conseguirmos conhecer toda a extensão das atividades e a real natureza do objetivo desejado por essa organização, do que nos vermos com uma interminável lista de nomes de fanáticos e de cretinos, de fedelhos e de políticos comunistas emperdenidos?... Na medida emq ue temos uma testemunha com boa vontade e desejosa em cooperar ao que se parece como sendo nosso objetivo, estimo que o resto é perfeitamente secundário”.

Quando da sessão da tarde, Parks advogou sua causa no comi-tê: “Não me coloquem no caso de te que escolher entre ultrajar esse comitê e ir para a prisão ou me cobrir literalmente de lama ao me transformar em delator. Para quê que isso serviria?”. Mas seu dis-curso não teve nenhum efeito. O comitê reuniu-se a partas fechadas, e dois dias mais tarde a imprensa sabia pela ????? que Parks havia cedido e dado nomes. Ao aceitar falar dele, afirmava o comitê, tinha perdido o direito de recusar falar dos outros. Sem dúvida que o co-mitê poderia muito bem ter aceito o pedido de Parks, se não fosse por preocupação de justiça, pelo menos por simples decência, mas não fez nada. “O único teste de credibilidade de uma testemunha, explicou mais tarde o congressista Donald L. Jackson, da Califórnia, é o grau que ele aceita colaborar com o comitê ao fornecer o máximo de detalhes, não apenas sobre os lugares de suas atividades, mas, também, sobre os nomes daqueles que militaram como ele no Partido Comunista”.

No entanto, é de se notar que essa questão da “credibilidade” não resiste nem um pouco à realidade dos fatos: nem Jackson nem nenhuma outra pessoa contestou, seriamente, a afirmação de Walter segundo a qual a H.U.A.C. já tinha as provas que afirmava tentar ob-ter. Em vez disso, o comitê funcionava como uma espécie de comitê de vigilância de prisioneiros condicionais, cujo papel consistia em detemrinar se esses “criminosos” estavam realmente arrependidos de sua má conduta. De simples meio, a denúncia tinha se tornado um fim em si.

A partir desse dia, todos os que foram convocados para teste-munhar no comitê foram advertidos poer seus advogados que só ti-nham três soluções: ou invocar a Primeira Emenda que garantia a

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liberdade de expressão e de reunião, e correr o risco como os “Dez de Hollywood”, de serem presos por desacato ao Congresso America-no; ou, então, invocar a Quinta Emenda que permite a testemunha não responder se seu testemunho pode fazer com que seja acusado, e perder seu emprego (Howard da Silva e a atriz Gole Sondergaard, que testemunharam naquele dia depois de Parks, recusaram respon-der ao comitê, alegando a Quinta Emenda, e foram imediatamente despedidos e colocados numa lista negra); ou, ainda, colaborar com o comitê e fornecer nomes a fim de conservar seu emprego (como fez Etarling Hayden (1916-1986), primeira testemunha a ter dado nomes). Os princípios da década estavam, a partir de agora, estabe-lecidos.

No fundo, é bastante provável que um grande número de ameri-canos não teria renegado a famosa declaração de E. M. Forster: “Se eu tivesse que escolher entre trair meu país e trair um amigo, espero que eu teria a coragem de trair meu país”.

Esse denunciador, tal como era representado pela maioria dos americanos dos anos 50, Hollywood tinha contribuído de modo nada neglijável em fixar a sua imagem. Abrindo a tradição, “O Delator (The Informer) realizado por John Ford em 1935, baseado no romance de Liam O’Flahertty, traçava um retrato surpreendente do Judas mo-derno, interpretado plor Victor McLaglen (1883-1959). Num fundo de brumas e de conspirações irlandesas, o filme é a história de um homem, que, por vinte libras, vende seu melhor amigo, um líder re-volucionário que deixa seu esconderijo para ver uma última vez sua mãe tuberculosa. Julgado pelas forças rebeldes, o delator é conde-nado como princípio destruidor de todo idealismo, “sinal evidente da peste”, “inimigo público”, colocando em perigo “a vida de centenas de homens que lutam por suas idéias”. Ser degenerado ao mesmo tempo que flagelo social, ele tinha agora conquistado seu lugar na mitologia hollywoodiana. Assim é que nas cenas passadas na prisão, assim como o guarda sádico ou o “Doc”, o médico alcoólatra, ia-se encontrar o eterno personagem do delator que acaba por receber o castigo que merece. Em “Brutalidade” (Brute Force – 1947), dirigido por Jules Dassin, que devia mais tarde ser incluído numa lista negra, um prisioneiro resume a opinião corrente ao dizer a Hume Cronyn, o ignóbil da prisão, que quer forçá-lo a delatar: “Chefe, eu sou talvez um ladrão, mas não um delator”.

Ora, a despeito de todas nossas resistências culturais em ter o papel de Judas, durante as enquetes parlamentares feitas após o comparecimento de Larry Parks na H.U.A.C., pouco mais ou menos um terço das testemunhas que efetivamente depuseram sobre a su-

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bersão no mundo do espetáculo, concordaram em dar nos, em se “cobrir de lama”, em colaborar com o comitê e, aparentemente, em trair deus amigos.

O meu conceito inicial é de que a maioria desses delatores sabia, qualquer que fosse o grau, que cometiam uma infâmia, que esses homens e essas mulheres teriam infinitamente preferido, se tives-sem a possibilidade (a maioria dentre eles esperara ser convocada para se decidir a falar, e não colaborar com os esbirros do comitê sobre as atividades antiamericanas, ds subcomissão permanente de enquetes do senador McCarthy ou da comissão sobre a segurança internacional de que nenhum se mostrou particularmente cuidadoso em administrar seus direitos ou sua reputação, nem de servir aos interesses públicos; que eles partilhavam a aversão com a qual os Estados Unidos, a cultura americana e toda a tradição judaico-cristã consideram o delator, e sentiam a mesma repugnância em se tornar “entregadores”, “dedos-duros” ou “delatores”.

Longe de pensar, como James Burnham, William P. Buckley e alguns outros consevadores dos anos 50, que esses comitês, essas comissões de enquetes, serviços, no final das contas, a uma bela e nobre causa, eles acharam o contrário – certo ou errado – que aos que eles pediam para denunciar, assim como eles mesmos e como Parks, tinham aderido ao Partido Comunista por motivos de ordem puramente social, em uma época em que se tinha tornado um dever de lutar dentro do país contra o racismo e a depressão e, no exterior, contra o fascismo, e que se existia espiões soviéticos, o que duvida-vam bastante, eles agiam fora do aparelho do Partido; se bem que tenham apoiado a experiência soviética e acreditado, como Lincoln Steffens, que ela representava o futuro e que isso “funcionava”, eles não deixavam por isso de ser americanos patriotas; que jamais se en-tregaram a políticas crimisosas ou verdadeiramente subversivas;e , acima de tudo, que a H.U.A.C. estava arruinando vidas sem nenhum benefício para os Estados Unidos.

Houve, naturalmente, testemunhas que se apresentaram diante das comissões de enquetes parlamentares, sem que lhes tenham pe-dido, e que não falaram pouco, sem falar dos que receberam dinhei-ro por suas informações. Alguns desses delatores acreditavam, sem dúvida, que a subversão que denunciavam compensava largamente a vergonha de se tornarem denunciadores. No entanto, nenhuma dessas considerações, tão bem fundadas que fossem, não parecem se aplicar no caso de Lorry Parks ou dos que vieram depois dele. Em princípio, o Congresso americano possui apenas dois motivos para convocar testemunhas: informar-se em função das necessidades da

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legislação e exercer seu papel de cão de guarda com respeito ao exe-cutivo. Ainda que essas comissões antisubversão teriam realmente procurado obter informações num objetivo legislativo (o que mani-festamente não era o caso), é bastante evidente que esse pedido de nomes infligido como uma prova conciliava-se mal com tão louváveis intenções. Larry Parks não tinha de maneira alguma ligação com o governo, do mesmo modo que a H.U.A.C. Não fazia o verdadeiro pa-pel de “vigilância”. O objetivo dessas audiências, sem que houvesse processo, era claramente punitivo, enquanto que os outros de defe-sa garantidos pelos tribunais oficiais eram totalmente inexistentes: não havia nem contra-interrogatório, nem juiz, nem júri, nem júri imparcial, nem nenhuma das regras que proibiam os depoimentos por ouvir dizer, boatos ou declarações de outrem. E, evidentemente, esses bodes expiatórios escolhidos na indústria do espetáculo não tinham cometido algum crime: “insurgir-se contra” nessas condições só podia prejudicar inocentes.

No entanto a H.U.A.C., quanto a ela, não podia se mostrar desin-teressada da indústria cinematográfica. Por uma testemunha vinda do meio operário, científico, militar ou educativo, uma boa dezena pertencia a esse maravilhoso mundo do “show biz”. Sem dúvida que o Comitê aproveitou a ocasião da publicidade sensacional graças às pessoas que interrogava. Por outro lado, ao jogar todas suas espe-ranças no mundo do espetáculo, o Partido Comunista Americano conquistou uma parte substancial, e Hollywood então representava para a H.U.A.C. um terreno da caça de escol. Ela ia atacar as vedetes mais em voga, e todas essas pessoas que faziam os Estados Unidos sonhar.

Os delatores de Hollywood foram a caça de predileção dos in-quisidores parlamentares, sendo importante fazer a pergunta para saber por que eles foram tão numerosos e qual o alcance de suas confissões. De banal, o caso deles, ao contrário, mostra-se do mais alto interesse quando nos perguntamos sobre as condições nos quais pessoas honestas podem ser levadas a cometer atos que sabem ser, inconscientemente ou não, repreensíveis, num sistema político que tende a encorajar os indivíduos a transgredir seu próprio sistema de valores, num regime democrático que exige de seus cidadãos que traiam seus compatriotas.

Suponhamos que ele tenha dito a verdade no processo de Alger Hiss, Whittaker Chambrs efetivamente ajudou a desmascarar um complô que visava subtrair segredos de Estado. Suponhamos que ele tenha dito a verdade no processo dos Rosemberg. David Greenglass, de fato, contribuiu para que espiões fossem levados às barras do Tri-

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bunal de Justiça. Se bem que a atmosfera de guerra fria, reinando no final dos anos 40 e no início dos 50, tivesse tornada a imparcialidade desses processos um pouco problemático, as instâncias diante das quais depuseram, ou seja, as cortes de justiça estavam, efetivamente, habilitadas a fazer um julgamento. Mas suponhamos que tenha dito a verdade, Larry Parks apenas conseguiu que fosse colocado numa lista negra, ele e gente como ele, que tinham se inscrito no Partido Comunista somente porque lhes parecia ser o partido mais liberal. Esses atores, realizadores, roteiristas e publicistas não tinham, de maneira nenhuma, algum meio de roubar segredos atômicos, ne-nhuma possibilidade de subtilizar material militar nos depósitos e nenhuma oportunidade de “envenenar” jovens cérebres nas salas de aula. Alguns irão retorquir que o pessoal de Hollywood dispunha de um local de eleição para produzir e difundir propaganda comunista para o povo americano, mas como as audiências parlamentares não tardariam em mostrar o caráter coletivo do trabalho efetuado nos estúdios hollywoodianos e nas redes radiofônicos proibia toda ten-tativa individual de “agit-prop”, e em todos os casos o produto final, difundido nos cinemas, na televisão ou no rádio, não podia se furtar ao exame nem à crítica.

Menos que um livro de história, a caça às bruxas nos Estados Unidos é uma história, policial e moral. Sempre tentando compreen-der o papel do delator hollywoodiano, no contexto da guerra fria – e pelo que podemos chamar de Princípio do Delator: a delação erigida como prova de virtude –, de procurar as razões de sua atitude, de suas resistências e de seus compromissos, podemos nos interrogar sobre a política de um Estado que encoraja seus cidadãos à delação, sobre as práticas de instituições, de organizações e de associações sindicais, profissionais ou benévolas, que resolvem, como foi o caso para um grande número delas, em sapar de valores que elas próprias tinham se dado por missão defendê-las. Do mesmo modo, seria in-teressante saber o que os traidores de ontem pensam, hoje, de sua traição, quais conseqüências tiveram seu ato naqueles que denun-ciaram, sobre a comunidade e sobre eles próprios. Depois de tantos anos de revolta e de indignação, temos o direito de perguntar qual o bem que resultou disso tudo, e por que o drama devia, no entanto, sobreviver, sob outras formas, a seus protagonistas de antigamente. A todas essas perguntas, deveríamos procurar, encontrar e dar uma resposta, esperando assim tirar algumas lições desse abominável episódio de delação e de traição à americana.

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Autores

Luiz Sergio HenriquesEditor do site www.gramsci.org

Heloneida Studartxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Moema AlvesHistoriadora formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Humberto Gomes de BarrosMinistro e atual vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, é membro da Academia Alagoana de Letras, sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e autor de diversas obras jurídicas e literárias

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Homenagem a Heloneida Studart

Luiz Sergio Henriques1

Os lutadores saem na frente / caem na frente / porque aqui é a arena / do futuro, / e eles sabem / que cada gesto pode / mudar o mundo, / como o beijo de uma mãe / no rosto do filho, / como a palavra solidária / ou a forma de escrever / sobre uma estrela.

Um dia / quando os muros despencarem / haverá nas palavras / algo desse passado / no sorriso de um menino amado / na fibra das calça-das / nas marinas de dezembro / que acolhem lutadores / como uma mulher que conheci. (Francisco Orban)

A morte de Heloneida Studart, em 3 de dezembro, desfalca irre-mediavelmente as fileiras dos veteranos combatentes da frente democrática contra a ditadura, uma frente que, entre as dife-

rentes forças de esquerda, foi defendida incansavelmente pelo velho PCB, o seu partido de origem. Mais do que tudo, Heloneida foi uma legítima representante da cultura política que protagonizou esta es-tratégia de frente, um fato crucial da moderna política brasileira, mas ainda hoje tão mal compreendido tanto em seu sentido históri-co quanto em suas projeções essenciais.

Feminista histórica, Heloneida participou da fundação, em 1975, do Centro da Mulher Brasileira e escreveu um best-seller que impri-miu sua marca em muitas gerações: Mulher, objeto de cama e mesa, com quase 300 mil exemplares vendidos. Romancista de valor, dei-

1 Editor do site www.gramsci.org

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xou, entre outros títulos, O pardal é um pássaro azul, O estandarte da agonia (inspirado na saga trágica de Zuzu Angel) e O torturador em romaria, que compõem uma densa “Trilogia da tortura”.

Na política, a partir de 1978, Heloneida obteve sucessivos mandatos como deputada estadual no Rio de Janeiro, primeiro pelo MDB (dada a clandestinidade do PCB), depois pelo PT, partido ao qual se filiou em 1990. Têm a sua assinatura importantes leis em defesa da dignidade da mulher, como, por exemplo, a que garante, no estado do Rio, a realiza-ção gratuita do teste de DNA para as mães de baixa renda.

O último trabalho publicado por Heloneida foi a biografia políti-ca e intelectual do dirigente comunista Luiz Inácio Maranhão Filho, homem da paz e do diálogo entre cristãos e marxistas - como se dizia em plena atmosfera criada pelo Concílio Vaticano II e pela “abertu-ra” de alguns partidos comunistas, em particular o italiano -, e que foi trucidado na vaga repressiva que se abateu, em meados dos anos 1970, sobre o grupo dirigente e vários militantes do partidão. Muito significativamente, o livro se chama Luiz, o santo ateu, e foi publicado em 2006 pela editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.No dicionário Mulheres do Brasil, organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, Heloneida Studart vem incluída entre as 100 mu-lheres mais importantes de toda a história do nosso país.

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Testemunho sobre a última cartada2

Heloneida Studart

O professor e escritor Edmundo Moniz não concordava com José Gomes Talarico, que em conferência no Memorial J.K. e em entrevis-ta à imprensa atribui a Carlos Lacerda a iniciativa da organização da Frente Ampla. Diz Edmundo Moniz:

A inspiração da Frente ampla, pacto entre os diversos partidos e as mais contraditórias forças políticas para derrotar o poder militar, par-tiu das esquerdas e Luiz Ignácio Maranhão Filho teve papel decisivo nessa aglutinação.

Entre essas esquerdas estariam, além de Luiz Maranhão, Ênio Sil-veira, Valério Konder, Osny Pereira pelo PCB, os veteranos trotskis-tas Mário Pedrosa e Edmundo Moniz. Renato Archer concorda com José Gomes Talarico e atribui a Lacerda a iniciativa da Frente ampla. É possível que todos tenham razão e a idéia de reunir homens diver-gentes e partidos antagônicos para derrotar a ditadura tenha surgido paralelamente à direita (com Lacerda) e à esquerda (com os socialis-tas dos mais diferentes matizes). Da minha parte, recordo o dia, em 1966, em que Luiz Maranhão levou à minha casa uma revista Veja e mostrou, nas páginas amarelas, uma entrevista do general Golbery do Couto e silva. E comentou: “Olha aí. O general Golbery diz com todas as palavras que só uma coisa o governo revolucionário não pode admitir: a formação de uma frente política contra ele”. Pediu um cafezinho e comentou: “É por esse caminho que temos de andar. Formar uma frente, mas bem ampla, quem sabe até com a liderança do Lacerda, entre outras”.

Era duro ouvir falar na liderança do Lacerda. Todos os progressis-tas se lembravam de que fora um dos grandes inspiradores e impul-sionadores do movimento de 1964 – que pela primeira vez tinha mili-

2 No livro Luiz, o santo ateu, Heloneida Studart incluiu o seu texto “Frente Ampla – Úl-tima Cartada”, no qual nos relata as atividades do dirigente do PCB Luiz Maranhão ao redor da articulação que procurava reunir as três grandes lideranças para der-rotar a ditadura de 1964. Reproduzimo-lo sob o titulo “Testemunho sobre a ultima cartada” como homenagem a essa grande escritora e política nascida no Ceará.

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tarizado o poder em nosso país e instalado a repressão, a tortura e o medo no meio do povo. Lembrei a Luiz Ignácio Maranhão Filho que, já em 1963, Lacerda tinha dado uma entrevista ao Los Angeles Time, defendendo a atuação das Forças Armadas para depor o Presidente da República. Durante todo o ano de 1963, enquanto fazendeiros se armavam e a Confederação Nacional de Agricultura e Sociedade ru-ral Brasileira pregavam abertamente o golpe, Lacerda afirmava aos quatro ventos que eram as Ligas Camponesas e os Sindicatos Rurais que se armavam para impor a socialização do Brasil. Carlos Lacerda tinha sido o guru, o inspirador, o porta-bandeira do golpe de 64. E por acaso, Luiz estava esquecido de que no dia 31 de março, policiais a mando de Lacerda, tinham invadido a sede da Federação Nacio-nal dos Estivadores e prendido Osvaldo Pacheco, secretário-geral da CGT, o líder ferroviário Demistóclides Batista e o comandante Mello Bastos? Se estava esquecido, perguntasse à família de Batistinha, já que ele e Mello Bastos, no exílio, não podiam testemunhar nada. Luiz Maranhão, com paciência franciscana, sorriu e me disse que ele tam-bém não tinha admiração incondicional por Juscelino Kubitschek, um dos políticos que deviam ser baluarte da Frente Ampla.

Juscelino é aquela criatura dedicada à fantasia. Já em 1937, quando foi nomeado prefeito de Belo Horizonte, ele garantiu que ia construir um lago para barco à vela em plena capital. Isso numa cidade com oito meses de salários dos funcionários em atraso! Quatro homens que o ouviram e eram admirados por ele aderiam imediatamente a esse projeto quixotesco: o Niemeyer, o Portinari, o Burle Marx e o escultor Alfredo Ceschiatti. Pampulha surgiu daí. Da mania de grandeza e da paixão pela beleza de Juscelino. Eu sei o que você vai dizer. Que ele nunca peitou, como deveria, os militares que queriam impedir a sua posse. Depois do episódio de 11 de novembro, quando Lott puxou a es-pada e obrigou todo mundo a aceitar o resultado das urnas, J. K. sem-pre maneirou com os golpistas. Eu sei disso tudo. Mas veja, o Jusceli-no tinha paixão pelo desenvolvimento do país. O grande interesse dele era esse: realizar seu plano de metas, modernizar o Brasil. Não tinha mentalidade para tratar de demolir seus adversários. O Juscelino era assim. Quando instalou a indústria automobilística, estava de olho na expansão da nossa siderurgia. O Renato Archer é testemunha. Está aí outro mérito do Juscelino: ele sabia descobrir grandes homens. Ele descobriu o Renato Archer em 1948, lá no Maranhão, como chefe de gabinete, o Renato era quase um menino, mas o J. K. notou logo o pi-que e o talento do Archer! O Juscelino sabia se enturmar. No começo do seu governo, como presidente, sabe em quem ele buscou apoio? No dr. Ulisses Guimarães, que já era, naquela época político hábil e sério. E prestigiou também o José Jofilly, o Vieira de Melo, o Nestor Jost. Juscelino era um descobridor de vocações. E você até pode dizer que

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Testemunho sobre a última cartada

ele era um entreguista, abriu o Brasil ao capital estrangeiro, às mul-tinacionais. Mas ninguém pode negar o que J.K. fez para desenvolver este país. Veja a Belém-Brasília. Parecia uma loucura a construção dessa estrada, na época. Os técnicos todos eram contra. O diretor do DNER, dr. Régis Bittencourt, era contra. Queria que a estrada passas-se por dentro do Maranhão até Belém. Mas ir pro amazonas parecia doideira. Só o Juscelino insistia. Não ouvia argumento nenhum: as chuvas eternas, os lodaçais, a floresta indevassável. Ele queria pene-trar na Amazônia. E como, no Brasil, cada presidente é um rei, mesmo um homem ameno como Juscelino, os técnicos acabaram fazendo a vontade dele, a contragosto. E hoje, por causa da utopia de Juscelino, temos a Amazônia acessível, Carajás acessível, temos estradas condu-zindo à bauxita, temos usinas de alumínio na área. Eu acho que Jus-celino é um homem querido pelos brasileiros, e tem todas as condições de ter um grande papel nessa Frente Ampla. Ah, eu sei da história de que ele votou no general Castelo Branco, para ser o primeiro ditador, depois do golpe. Votou e pagou caro. Voltou até porque acreditava nos compromissos de Castelo Branco de que realizaria eleições e mante-ria a Constituição de 1946. O velho Amaral Peixoto, que anda por aí, estava nessa reunião na casa do deputado Joaquim Ramos, em que o Castelo Branco deu a palavra a Juscelino de que ia convocar as elei-ções. Traiu tudo. Juscelino errou, votando nele, eu sei, mas acredito que Juscelino era e é um democrata, com toda a condição para ter um grande papel nessa Frente Ampla. Mais talvez do que João Goulart e Brizola. Eu sei que você admira Jango, acha que ele encaminhou as reformas de base, a grande bandeira de todos os progressistas, de todo o povo organizado, na década de 1960. Mas Jango, fique saben-do, também conciliou demais com os reacionários. Esteve como um pêndulo: entre nós e eles. Muitas vezes apareceu em público, conde-nando os extremistas de direita e de esquerda. Certa vez, em Marília, no interior de São Paulo, fez um discurso nitidamente anticomunista e disse que, como presidente da República, ia proibir o Congresso de solidariedade a Cuba. Não, o Jango também vacilou muito. Só aderiu totalmente às bandeiras reformistas e às teses progressistas, quando estava inteiramente abandonado por todos os reacionários. Mas, meus companheiros, os comunistas, também cometeram equívocos demais. Não dissuadiram Jango de suas fantasias continuistas. Pelo contrário. Vários dirigentes o encorajaram nessa idéia antidemocrática. Portan-to, não se pode dizer que essa Frente Ampla, é a costura dos puros com os pecadores. Nada disso. E depois, não nos resta outra porta de saída. É por aí, pelo entendimento entre a velha UDN, o velho PSD, o PTB, nós e os trabalhistas, que se vai erodir a ditadura.

Luiz Maranhão nunca falava em “derrubar a ditadura”. Falava em derrotar, implodir, esgarçar, erodir. “Para a rutura, não temos forças”, dizia.

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IX. Memória

Todas as quintas-feiras, ele costumava ir à minha casa para con-versas. E quando não ia, nos encontrávamos na Praça Arco-verde e ele me narrava as marchas da formação da Frente Ampla, enquanto saboreava um picolé de coco (“O mundo do meu sonho é aquele em que cada homem possa comer um picolé de coco, numa praça, sem medo de perseguição e sem que o peso do picolé lhe pese no bolso”). Ali, Luiz me contou que vários militares cassados em 1964 já es-tavam incorporados ao movimento da Frente Ampla: os brigadeiros Francisco Teixeira, Ricardo Nicoll, os generais Tácito de Freitas e Nelson Werneck Sodré, o incansável coronel Kardec Lemme.

“Difícil mesmo está sendo convencer os trabalhistas. Já aciona-mos até aquele jornalista, o Hermano Alves. A reação deles é de má-goa e indignação”.

Fiquei sabendo, por Luiz, que Doutel de Andrade e Wilson Fadul tinham ido ao encontro de Jango, no Uruguai, para convencê-lo da importância da Frente Ampla. A primeira reação foi desanimadora. Menos para Luiz, que tinha a vocação da esperança. Até fez brinca-deira: “O Jango resiste até que lancemos em cima dele aquele vulcão humano que é o Talarico Gomes”. Já estava assinado o pacto entre Lacerda e Juscelino em Lisboa, quando José Talarico Gomes foi ao encontro de João Goulart no Uruguai, levando o apelo para que ele recebesse Lacerda. É o próprio José Talarico Gomes quem conta: que Getúlio, em 1950, resolvera esquecer agravos sofridos; e Carlos La-cerda, ao pedir audiência, ao bater à porta do presidente que ajudara a depor, estava fazendo seus julgamentos injustos e realizando, na prática, uma autocrítica pública. Jango acabou concordando. José Gomes Talarico telegrafou para o Rio de Janeiro às mulheres de Re-nato Archer e do brigadeiro Francisco Teixeira. Reiterava o convite para o casamento que se realizaria naquele fim de semana. Era a senha para avisar que Jango receberia Lacerda.

Luiz Maranhão soube por José Talarico Gomes que o encontro em Montevidéu foi resopritoso, quase cordial. “O José Talarico teste-munhou esse encontro. E também Ivo Magalhães, Cláudio Braga e o ex-ministro Amauri Silva”.

Durante alguns dias Luiz Ignácio Maranhão Filho andou ocupado com as notícias de que o professor Darci Ribeiro tinha recusado a ir ao encontro e que Brizola se colocava contra a Frente Ampla.

“Eu me admiro muito do professor Darci Ribeiro, um homem com aquele talento, se deixar influenciar pelas razões personalistas do Brizola”.

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Testemunho sobre a última cartada

Luiz nunca me contou que dois homens ajudaram a convencer Jango a assinar o documento da Frente Ampla com Juscelino e Car-los Lacerda: Tancredo Neves e Magalhães Pinto. Quem afirma isso é o José Talarico Gomes. Ele revela que Tancredo enviou mensagem a Jango nesse sentido e Magalhães Pinto (seu inimigo político e co-autor do golpe de 64) expressou a opinião de que só a união dos três maiores líderes civis do Brasil podia mudar a situação política brasileira. Minas Gerais, em peso, se articularia para apoiar a Frente Ampla, pois “não era isso aí que nós queríamos”.

Luiz Maranhão não contou com a pronta reação do poder mili-tar à formação da Frente. Não era só o general Golbery que via essa Frente – um grande bloco de políticos de origem e formação diferen-tes, querendo redemocratizar o Brasil como um acontecimento in-tolerável. Os órgãos de segurança entraram em ação. O ministro da Justiça, Gama e Silva, lançou-se ao combate, com todas as armas do arbítrio. E José Talarico Gomes nos conta como Juscelino foi posto sob prisão domiciliar e continuamente humilhado. Lacerda ficou sob vigilância permanente. O Governo brasileiro enviou representações ao Governo do Uruguai pra que cerceasse os movimentos de João Goulart. Renato Archer teve cada um dos seus passos seguidos. O Brigadeiro Francisco Teixeira foi preso. Edmundo Monis teve sua casa invadida e sua magnífica biblioteca depredada e precisou se asilar na embaixada do México, de onde partiria para a Argélia e à França. Ênio Silveira foi para a cadeia e sua Editora Civilização Bra-sileira foi dinamitada, José Talarico Gomes, a quem Luiz Maranhão chamava “vulcão humano”, afundou nos calabouços do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro. Em todos eles, enfrentou torturas que não lhe apagaram, nem a chama nem a larva. Com ascensão da Junta Militar e o AI-5, a Frente Ampla morreu. Mas para Luiz Ignácio Maranhão Filho nunca foi sepultada. “Sem a formação da mais am-pla frente democrática, não resgataremos o país da ditadura”, dizia, um mês antes da sua prisão e morte.

Era uma profecia. E no dia da vitória de Tancredo Neves, no Co-légio Eleitoral em Brasília, achei que ele podia ser um daqueles que subiam a rampa, conduzindo uma bandeira infinita e trêmula, a bandeira que anunciava a Democracia. Era o dia da vitória do con-ceito da Ampla Frente Democrática, como o único capaz de derrotar a Ditadura. Muitos choravam de alegria. No recinto destinado aos jornalistas, fazendo a cobertura para a Rádio Tupi, chorei também, mas não só de alegria. De saudade.

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Abrindo caminhos: mulheres e movimento cabano

Moema Alves

Ao lançarmos um olhar sobre o século XIX, verificamos um grande número de reivindicações, lutas e mudanças em seu persurso. Partindo desse entendimento, podemos dizer que as

expectativas acerca da participação feminina em momentos de crise geraram novas formas de pensamento e contribuíram para criar re-lações socias diferentes. Não se pode pensar nas mulheres enquanto seres alheios ao processo social e político de seu tempo. E não pode-mos dizer tampouco que elas deixaram de colaborar com a manuten-ção da ordem. Na verdade, o processo de tomada de consciência dos direitos femininos foi longo e é preciso reconhecer que durante muito tempo as mulheres foram importantes veículos para a perpetuação de concepções equivocadas que se formaram sobre elas. Ou seja, submissão existiu, falta de reconhecimento e negação de seus direi-tos também existiram - mas ao mesmo tempo havia espaços para ati-tudes e ações de corte mais libertário. Mesmo seguindo um processo lento – e que ainda não pode ser dado como encerrado –, as mulheres conquistaram muitos espaços e devemos muito disso ao caminho aberto pelas pioneiras do século XVIII, por exemplo.

Poderíamos exemplificar isso com o exame do contexto político da Província do Grão-Pará à época da eclosão de um dos movimentos com maior participação popular do período: a Cabanagem (1835-1840). Dele participaram lavradores, índios, negros, mestiços, pescadores, ourives, criadores de gado e isso de Belém até o Oiapoque, atingindo a região fronteiriça com as Guianas e o Peru e a Colômbia atuais. Durante pouco mais de um ano, três representantes dos cabanos as-sumiram o poder na Província e, mesmo depois das forças legais terem retomado a capital, o interior do Pará continuou em guerra por mais quatro anos, sendo favorecido também pelo caráter peculiar de seu espaço geográfico. Como se sabe, esse não só era (e é) muito grande, como repleto de florestas de mata densa, rios e furos, possibilitando maior mobilidade ao nativo, conhecedor de sua natureza. Dentre as reivindicações cabanas, poderíamos alinhar a luta contra a estrutura carcomida de poder, que desde o período colonial se encontrava nas

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Abrindo caminhos: mulheres em movimento cabano

mãos de portugueses, os quais ocupavam os principais cargos admi-nistrativos e militares. Naturalmente, grupos de índios e caboclos se empenhavam pelo reconhecimento de seus direitos, o mesmo ocor-rendo com o escravos negro em luta pela sua liberdade.

Mas..., onde entram as mulheres nisso tudo? No fundo, havia mo-tivos para que elas apoiassem tanto os cabanos como seus poderosos adversários. Muitas apoiavam os cabanos por serem negras escravas em busca de liberdade ou por terem sofrido algum tipo de violência por parte de oficiais legalistas. Outras o fizeram por terem perdido seus maridos, pais e/ou filhos, voltando-se então contra as forças le-gais. Mulheres que, por necessidade ou lealdade aos seus familiares, os acompanhavam; e outras ainda que aderiam ao movimento por pertencerem às classes exploradas, buscando melhores condições de vida. Ao mesmo tempo, o oposto também acontecia, ou seja, muitas mulheres também optaram por apoiar a legalidade por serem espo-sas, mães e/ou filhas de oficiais. Havia aquelas que tinham perdido familiares próximos nas batalhas ou, ainda, que gozavam de certos privilégios e se sentiam ameaçadas pelo movimento cabano. É preci-so observar também que algumas mulheres sofreram violências por parte dos cabanos e que muitas negras escravas deixaram de aderir à revolta por medo ou até mesmo fidelidade aos seus senhores. Por vezes essas motivações coexistiam de forma combinada

Há histórias bem significativas a respeito de mulheres que se en-volveram – ou acabaram envolvidas – no movimento cabano. Duas dessas histórias são particularmente interessantes. A primeira delas nos chega através do relato do Cônego Francisco Bernardino de Sou-za, que, em 1873, publica suas “Lembranças e curiosidades do Vale do Amazonas”. Uma dessas lembranças é sobre a índia Carlota. Em agosto de 1838, ela acompanhava uma expedição contra os cabanos fortificados em algum ponto do rio Mamurú. Mas a expedição seria surpreendida por esses cabanos que, segundo o Cônego Bernardino de Souza, lograram exterminá-la completamente. Desse ataque caba-no escaparia somente a índia em questão. Mesmo ferida em diversas partes do corpo e no crânio, ela conseguiu pular no rio, ocultando-se em uma de suas margens. A índia Carlota esperou então o dia raiar e seguiu viagem pelo mato. Oito dias depois ela chegou a Lages, localidade situada às margens do rio Amazonas. Recuperou-se dos ferimentos e chegou a dar a luz mais tarde a uma criança.

O relato do Cônego não esconde sua aversão aos cabanos, mas independentemente disso ele estampa uma trágica e intrigante situ-ação. Não sabemos, é verdade, o que fazia a índia em uma expedição legalista. Estaria servindo aos oficiais? Por que foi atacada tão vio-

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IX. Memória

lentamente pelos cabanos? Terá ela lutado ou sido somente atacada? E mais: sentimos certa curiosidade em obter um relato semelhante sobre mulheres cabanas eventualmente surpreendidas em situação de resistência.

O segundo caso, bem diverso deste primeiro, nos é apresentado pela professora Eliana Ramos, em artigo publicado no livro Faces da História da Amazônia. Em setembro de 1835, época em que a cidade estava sob poder cabano, D. Bárbara Prestes, viúva do 1º Tenente da Armada Alexandre Rodrigues, ingressou a bordo da Fragata Campista para libertar o líder cabano Francisco Pedro Vinagre. Um documen-to informa que D. Bárbara teria se refugiado na Fragata porque se encarregara de entregar uma determinada quantia em ouro e prata como forma de premiar quem facilitasse a fuga de Francisco Vinagre. Interessante isso: a situação de D. Bárbara, mulher, viúva de oficial, acabou facilitando sua ação até aquele momento. O próprio juízo que se fazia da mulher naquele período e sua exclusão da vida política acabaram servindo de disfarce para a situação. D. Bárbara teve imen-sa coragem, pois a quantia era alta e ela era a responsável por ela. O preso em questão era um importante líder cabano e entrar em uma Fragata que servia de prisão não é algo simples e agradável de se fa-zer. Sua missão fracassou, D. Bárbara foi flagrada e por isso ficamos sabendo de seu gesto aventuroso. Seja como for, uma coisa é certa: é impossível deixar de reconhecer sua força e determinação.

O instigante nesses dois casos é que a concepção que a priori estabelecemos de quem seriam sujeitos cabanos e imperiais é to-talmente embaralhada pelos fatos. Seria muito mais fácil imaginar, de um lado, uma índia cabana, lutando para ter seus direitos reco-nhecidos e, de outro, uma viúva de militar pedindo proteção para as forças legais. É comum encontrarmos casos desse tipo na docu-mentação histórica. Mas o que ocorre é justamente o contrário. Não deixa de ser surpreendente, contudo. A índia acompanha a expedi-ção que pretende capturar os cabanos. Por quê? Não se sabe. Já a viúva do tenente se arriscou em uma importante missão a favor do movimento rebelde. Mas o que a motivou? O que fez com que essa mulher apoiasse, ou melhor, se envolvesse diretamente com a Caba-nagem? Tampouco se sabe. No entanto, esses relatos demonstram o quanto é delicado identificar determinado grupo como a favor ou contra um movimento e como por vezes nos deixamos influenciar pe-los estereótipos acerca da figura feminina. Origem social nem sempre se confunde com consciência social. Embora o caso de D. Bárbara não possa ser usado para generalizar a ação das mulheres como um todo, não se pode deixar de levá-lo em consideração juntamente com

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Abrindo caminhos: mulheres em movimento cabano

tantos outros casos de mulheres que aderiram aos mais diversos mo-vimentos que eclodiam no país durante aquele período.

A história da Cabanagem revela que por serem consideradas mais frágeis e indefesas ou por, nos períodos das lutas, estarem freqüente-mente sem a presença masculina em casa as mulheres eram também alvos de raptos e vitimas de ameaças. Alguns exemplos das violên-cias sofridas pelas mulheres podem ser lidos nas chamadas relações nominais de rebeldes presos ou em outros tipos de documentação existentes no Arquivo Público do Pará. A documentação mescla inva-sões a propriedades particulares, ofensas à moralidade, abusos se-xuais e até assassinatos. Diga-se de passagem, os relatos de abusos e agressões contra mulheres são válidos tanto para senhoras quanto para suas escravas. As mulheres eram vítimas de violências tanto físicas quanto psicológicas. Sua moral, sua familia, seus bens esta-vam ameaçados por conta da revolta. Sejam pobres ou ricas, brancas ou negras, essas violências eram sentidas por todas. Melhor dizendo, esse estado de constante ameaça era sentido por todas as camadas e todos os gêneros. Não há exceções. São os reflexos de uma guerra.

Naturalmente, havia também as agressões causadas pelas tro-pas legais. Essas são mais difíceis de serem relatadas, uma vez que as cabanas não tinham o mesmo direito de voz que as imperiais. As cabanas eram consideradas revoltosas, agitadoras da ordem, não podiam recorrer à força repressora, muito menos para dar queixa dos próprios oficiais legais. Essas mulheres são em grande parte de extração pobre, discriminadas por sua condição social – e conse-qüentemente classificadas “de cor” –, não tendo as mesmas chan-ces que as mulheres das classes mais abastadas. Embora ambas tenham que assumir o papel de chefes de família, as situações que as envolvem são diversas. A mulher de extração pobre precisará se expor mais. As órfãs serão mandadas para asilos e até terão instru-ção, mas ao completarem 18 anos terão problemas se não contraírem matrimônio, pois em muitos casos não terão para onde ir. Ao passo que, por mais dificuldades que passasse uma família de posses que porventura perdesse seu chefe, suas meninas teriam sempre mais oportunidades de instrução, casamento e suporte familiar, tão fun-damental a qualquer pessoa.

Embora tenham sido vítimas tanto do julgamento de uma so-ciedade atenta à manutenção da ordem e da moral quanto de uma guerra que punha em xeque essa ordem, também não podemos dei-xar de ver as mulheres como sujeitos históricos posicionados em determinado contexto, agindo para perpetuar valores como a honra, por exemplo. Percebemos que a mulher encontrava meios de partici-

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IX. Memória

par da vida pública. Durante a Cabanagem, temos o exemplo de D. Luiza Clara, esposa do terceiro presidente cabano Eduardo Angelim. Alguns relatos nos dizem que ela teria tido forte influência sobre seu marido, inclusive sobre as decisões políticas tomadas por ele. Ou seja, mesmo que indiretamente, as mulheres desse período começa-ram a trilhar campos que iam se moldando à medida que os modelos de comportamento também se (re)estabeleciam.

Não podemos dizer que as atividades realizadas pelas mulhe-res que atuaram a favor da Cabanagem tinham caráter revolucio-nário no tocante à sua condição, pois estavam reproduzindo e refor-çando naquele espaço os comportamentos de abnegação e atividades comumente relegadas ao seu gênero. Ao se envolver no movimento, sua luta possuía um caráter mais amplo. Almejavam liberdade, me-lhores condições de vida, mas não estava em jogo o debate sobre seus direitos enquanto mulheres – mesmo porque estamos tratando de uma realidade do século XIX. Na Cabanagem, assim como nos demais movimentos do período e de conteúdo semelhante , não havia lugar para reivindicações de gênero, uma luta que só viria luta a ser travada muito tempo depois.

De maneira geral, esses movimentos sociais se caracterizaram pela disputa política, muitas vezes armada, implicando a conquista da liberdade. Contudo, no século XIX temos um processo de redi-mensionamento do papel da mulher na sociedade. Um papel ainda bem geral, sem dúvida. As reivindicações de corte mais específico, estas, ficariam para o século seguinte. Mas já havia sido dado um primeiro e importante passo.

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De Sepúlveda a Zé Paulo(Itinerário simplificado)

Humberto Gomes de Barros3

Começo dos anos sessenta: Célio Silva, então chefe da Procura-doria Fiscal do Distrito Federal entrega-me um processo admi-nistrativo, solicitando parecer. No propósito de facilitar meu

trabalho de principiante, Célio – grande advogado e imenso coração – entregou-me cópia de trabalho, elaborado por um ex-integrante da Procuradoria-Geral. Disse-me, na oportunidade:

– A questão tem a ver com a natureza jurídica do Distrito Federal. Este trabalho do Pertence enfrentou muito bem o tema. Vai auxiliá-lo muito.

O trabalho encantou-me. Então apaixonado pela geometria eucli-diana, entusiasmei-me com a segurança e coerência da argumenta-ção. Cada tese sustentada pelo autor era tratada como um teorema, demonstrado passo a passo. A sensível erudição transparecia do tex-to, sem a tradicional arrogância acadêmica. Tudo isso, sem compro-metimento do estilo claro e gostoso.

Alguns dias depois, ao entregar o parecer, indaguei a Célio:

– Esse Pertence é parente daquele que foi diretor da UNE?

– É ele mesmo.

Surpreso, engatei nova pergunta:

– Qual é a idade dele?

– Mais ou menos a sua; uns vinte seis ou vinte e sete anos.

Entre incrédulo e admirado, fiquei curioso para conhecer o autor do trabalho. Já o havia visto de longe, em assembléias estudantis. Nunca, entretanto, me aproximara dele. Boa pinta, bom orador, apa-rentando afetada distração, cercado de articuladores, ele sempre me inspirou um certo distanciamento. Pau de arara, recém-chegado ao

3 Ministro e atual vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, é membro da Aca-demia Alagoana de Letras, sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Fede-ral e autor de diversas obras jurídicas e literárias

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IX. Memória

Rio de Janeiro, eu não conseguia superar a timidez. Limitava-me a integrar a massa de manobra. Enxergava a cúpula da União dos Estudantes, como uma espécie de nobreza, conjunto de pessoas ilu-minadas, capazes de enxergar nosso futuro socialista.

Em minha peregrinação diária ao Fórum, acostumei-me a vê-lo, atuando na promotoria, circulando pelo corredor (havia um só corre-dor. A primeira instância de Brasília cabia inteirinha no sexto andar do Bloco Seis, na Esplanada dos Ministérios). Encontrava-o, tam-bém, nos balcões dos Cartórios, na Sala do Tribunal de Justiça (o TJ ocupava do quinto andar). Via-o, às vezes, conversando com algum juiz, nas salas de audiência (naquele tempo, os juízes despachavam de portas abertas, nas salas de audiências e conversavam informal-mente com os advogados mais importantes).

Eu, recém-chegado do Rio de Janeiro, estava acostumado com juízes arrogantes e mal-humorados. Não ousava aproximar-me. Du-rante muito tempo, nossos encontros não passavam de um cumpri-mento lacônico e formal, acompanhado de um sorriso contido. José Paulo Sepúlveda Pertence era um monstro sagrado. Encolhido em minha timidez, passava ao largo.

Os colegas que, aos poucos, fui conhecendo, guardavam por ele, unânime admiração intelectual. A grande maioria olhava-o com al-gumas reservas:

– Esse tal Sepúlveda é inteligente, mas é muito besta. Nunca vi ninguém mais posudo.

Outros, que o conheciam mais de perto, afastavam a antipatia. A restrição deles era de outra natureza:

– O Pertence é até boa praça. Perde-se pelo excesso de teoria.

Havia uma corrente pequena, mas irada, a dizer:

– O Sepúlveda?! Aquilo é um comunista! Põe toda a inteligência a serviço do Partido.

– Carlos Odorico Vieira Martins, seu colega, na Faculdade de Mi-nas Gerais o enxergava sob outro enfoque:

– O Zé Paulo é ótima pessoa; só é um tanto distraído.

Percebi então, que José Paulo Sepúlveda Pertence constituía uma trindade: era Sepúlveda, para os desafetos; Pertence, para os simpa-tizantes; os amigos mais próximos, enxergavam nele, simplesmente, “o Zé Paulo”.

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De Sepúlveda a Zé Paulo (Intinerário simplificado)

Quando eu me referia ao trabalho que Célio Silva me empres-tara, ouvia do interlocutor observações variadas. Os sepulvedianos diziam: “é um tratado de pedanteria”. Para os Pertencistas o ensaio apesar de brilhante era “exageradamente Kelseniano.” Já os zepau-lianos consideravam o trabalho, “um primor”.

Diante de tais opiniões, eu ficava atônito. O modo com que Perten-ce me tratava, embora reservado, não traduzia arrogância. De outra parte, o ensaio sobre o Distrito Federal não parecia ter sido escrito por um adepto do Marxismo – então uma verdadeira religião. De fato, nele havia um compromisso com o Estado de Direito e, sobretudo, com a democracia. Não se podia negar que o autor se inspirara em Kelsen. No entanto, a linha de argumentação observava profundo senso crítico e compromisso com a interpretação teleológica.

Em 1967, às vésperas de completar cinco anos de inscrição no quadro de advogados, comecei a interessar-me pela Ordem dos Ad-vogados. Francisco Ferreira de Castro, meu colega de Procuradoria e Presidente do Conselho Seccional, costumava discutir comigo alguns problemas dos advogados.

Convocadas as eleições para a sucessão de Ferreira, recebi sur-preendente votação e passei a integrar o Conselho. Com menos de trinta anos, tornei-me o benjamim do colegiado. Tornei-me, assim, colega de Sepúlveda Pertence. Percebi, em pouco tempo, que Sepúl-veda não existia como adjetivo: a arrogância que se atribuía a este nome era simples e pura timidez. Tampouco, era correta a conotação emprestada ao nome Pertence: meu colega de Conselho não era um teórico; pelo contrário, suas intervenções eram sempre marcadas por admirável senso prático. Correto era o composto “Sepúlveda Perten-ce” – mistura que traduzia um sujeito brilhante e erudito, mas prag-mático e solidário. Socialista ele era; comunista, jamais: seu senso crítico o impedia de atrelar-se aos dogmas marxistas.

Aproximei-me de Sepúlveda Pertence. Não me tornei seu amigo. Nossa timidez mútua impedia que isso acontecesse. Gostava, entre-tanto, de seu papo bem-humorado; ele parecia apreciar minha irre-verência.

Um dia, o Ministério Público solicitou ao Conselho a indicação de advogado para integrar banca examinadora, em concurso de provas, para a investidura de novos integrantes da carreira. Mal o Presidente Antônio Carlos Osório expôs o assunto, ouviu-se uma voz: “indico o Conselheiro Humberto Gomes de Barros. A indicação vingou. Fui escolhido, por unanimidade. Terminada a sessão – ainda perplexo – dirigi-me a Pertence, em tom de sincera blague: “que brincadeira!

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IX. Memória

Você não conhece minha ignorância?”. A resposta veio curta e ime-diata: “Não brinco com essas coisas”. Conhecendo o espírito público de meu interlocutor, considerei essa frase o maior elogio que jamais recebi.

Apesar dessa manifestação, não me considerei integrante do rol dos amigos de Sepúlveda Pertence (Minha timidez alagoana impedia que isso ocorresse). Isso apenas aconteceu numa terça-feira: voltan-do para casa, dei uma carona a meu colega, também morador da Asa-Sul. No meio da viagem, meio desajeitado, ele indagou, com al-gum sotaque mineiro: “qu’é que você vai fazer esta noite?” Diante de minha resposta, dizendo que nada programara, ele prosseguiu: “En-tão, apareça lá em casa. A partir de hoje, já posso ser nomeado Mi-nistro do Supremo”. Naquela época, tal possibilidade era plenamente absurda: Inimigo atuante do regime militar, Pertence agitou-a em tom de ironia. O convite, entretanto, operou a metamorfose: trans-formou-me em amigo de José Paulo Sepúlveda Pertence. Fez mais: credenciou-me a tratá-lo como Zé Paulo.

Zé Paulo! – que às virtudes de Sepúlveda e de Pertence, acrescen-ta a de ser um genial boêmio, espirituoso, bem-humorado, capaz de dissertar sobre qualquer assunto, sem ser chato; incapaz de usar a expressão periculum in mora, fora dos tribunais. Tímido como ele só – mas quanta coragem cívica!

No dia 21 de novembro de 2007, esse fato completou trinta e cin-co anos.

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X. Resenha

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Autores

Guilherme MoitaDoutorando do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ).

Bianca TinocoJornalista e pesquisadora de arte

Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter BurkeXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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Memória Camponesa

Guilherme Moita

Acaba de ser lançado pela editora da Universidade Rural do Rio de Janeiro e a Mauad, o livro Memórias da Luta pela Terra na Baixada Fluminense, de Bráulio Rodrigues da Silva, prepara-

do pela professora Leonilde Medeiros. À frente do Núcleo da Memória Camponesa, esta pesquisadora desenvolve um projeto que tem como objetivo resgatar a memória das lutas camponesas ocorridas em vá-rias épocas e em diferentes pontos do país.

Esse livro está inserido numa série de seminários realizados pelo Núcleo nos quais veteranos líderes camponeses e mediadores atu-antes nas lutas rurais são as fontes do conhecimento da história brasileira. Tais seminários estão sendo editados em DVD para que possam servir aos interessados em estudar as mobilizações campo-nesas no mundo rural brasileiro, particularmente na segunda meta-de do século XX.

O livro recolhe o relato de uma personagem das mais ativas nas lutas por terra na Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro. A narrativa de Bráulio Rodrigues da Silva parte do trabalho de cons-cientização e luta pelos direitos dos grupos agrários, desde os idos dos anos 1940 indo até o tempo mais contemporâneo da vigência da democracia política e da valorização da agricultura familiar como protagonista estratégico da reformulação do nosso campo.

Chamou-nos a atenção na leitura das memórias de Bráulio os traços das mediações exercidas pela esquerda brasileira e nos lem-bramos da visão de José de Souza Martins sobre o tema, sintetizada

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X. Resenha

na sua expressão “o camponês no projeto dos outros”.1 Nesse sen-tido, são passagens bem interessantes o momento em que Bráulio explica os seus motivos para romper com o Partido Comunista Bra-sileiro (PCB), após a divisão que culminou no surgimento do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Também pode ser citada sua recusa em partir para a guerrilha do Araguaia, por considerar que não po-deria haver revolução sem o envolvimento direto dos trabalhadores locais. Assim como sua crítica aos militantes que desejavam mais chamar a atenção para si do que realmente “fazer a revolução”, como no caso da Bolívia, o que teria levado à morte de Che Guevara. Nes-ses exemplos, notamos a preocupação do narrador em considerar a realidade espaço-temporal de cada situação ao elaborar “estratégias” de ação e não importar modelos de revolução.

Em trabalhos como esses, temos a valorização da memória como meio para recuperar o passado de lutas daquilo que José de Souza Martins chamou de “caminhada no chão da noite”, usando esta ex-pressão para dar título a um dos seus livros, de 1989.

Fica evidente no relato de Bráulio Rodrigues as diferentes formas de mediação dos movimentos camponeses ao longo do século XX. No seu longo percurso, o militante Bráulio Rodrigues da Silva viveu tanto a mediação pela política do PCB quanto à mediação pelo social exercida pelos grupos ligados à Igreja.2 A personagem narra sua presença ativa nos movimentos camponeses e sindicais da se-gunda metade do século XX, passando pela formação da CPT e pelo trabalho na Secretaria de Assuntos Fundiários, no governo de Morei-ra Franco, até a sua participação como secretário na Cooperativa dos Pequenos Produtores dos Agricultores Familiares de Magé.

Esperamos novas iniciativas da professora Leonilde Medeiros e que o Núcleo de Memória Camponesa siga com seus trabalhos de preservação e organização de acervos, especialmente como este de resgate das trajetórias de lideranças importantes nas mobilizações rurais do Brasil no século XX.

1 Este é o titulo de um tópico do famoso ensaio do sociólogo da USP “Os Camponeses e a Política no Brasil” que dá nome ao livro Os Camponeses e a Política no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1981.

2 Em sua apresentação ao volume, Raimundo Santos distingue na trajetória de Bráu-lio “signos” dos dois estilos de mediação camponesa, a primeira mais gravitante no pré-64; a segunda, nos anos posteriores à criação da Comissão Pastoral da Ter-ra (CPT), em 1975. Ver Raimundo Santos, Agraristas Políticos Brasileiros, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira-NEAD-IICA, 2007.

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Memória camponesa

Sobre a Obra: Memórias da Luta pela Terra na Baixada Fluminen-se, de Bráulio Rodrigues da Silva, organização, apresentação e notas de Leonilde Medeiros, Seropédica, EDUR (Editora da Universidade Rural do Rio de Janeiro) e Rio de Janeiro: Mauad, 2008, 99p.

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Ferreira Gullar: Uma reconciliação com o abismo

Bianca Tinoco

Ferreira Gullar, no fim dos anos 50, era um poeta de poucas pa-lavras. Obras como Noite, Lembra e Pássaro eram compostas apenas do título, incrustado ora em um encaixe de madeira,

ora em uma caixa, ora em uma dobradura de papel. Mais do que o folhear de páginas, ele demandava de seus leitores o abrir e des-dobrar de objetos - ou a interatividade, décadas antes da internet. Econômico em versos, foi o autor do caudaloso “Manifesto neocon-creto”, no Suplemento Cultural do Jornal do Brasil, de 22 de março de 1959, documento que inaugurou um dos momentos mais ricos da produção artística no país. Tornou-se uma espécie de profeta, adiantando conceitos incorporados por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Mas, a partir de 1961, Gullar rejeitou suas criações da época, julgando ter chegado ao limite da arte. Enquanto artistas o citavam, ele os confrontava. Mas a maturidade suavizou tal vee-mência. Em Experiência neoconcreta, o poeta revê o período, quase 50 anos depois.

Uma caixa inspirada nos trabalhos visuais de Gullar traz os li-vros-poema Fruta, Osso e Faina, e o catálogo da I Exposição Neo-concreta, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em março de 1959, em fac-símile. O conteúdo principal da publicação é o livro em si, com o relato “Momento-limite da arte” e uma coletânea dos artigos dele que balizaram o movimento, em português e inglês. Há fotos inéditas dos poemas espaciais de Gullar - apenas quatro deles realizados em 1959, para a mostra no MAM. Oito passaram do projeto para o objeto somente há três anos, por iniciativa do Itaú Cultural, para a exposição Tudo é Brasil no Paço Imperial. Foi o tra-balho sobre estes últimos que moveu Gullar a escrever as memórias daquele tempo.

A relação de amor e repúdio travada por Gullar com a arte neo-concreta começou em 1951, quando o poeta, aos 21 anos, mudou-se para o Rio e conheceu o também crítico Mário Pedrosa. Revisor e re-dator, conheceu na redação da revista Manchete o escultor Amílcar de Castro e o jornalista Jânio de Freitas, que o chamaram em 1956

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Ferreira Gullar: Uma reconciliação com o abismo

para assumir a página de artes do Suplemento Cultural do Jornal do Brasil (SDJB), precursor dos cadernos de cultura nacionais.

O contato com Pedrosa e a abstração geométrica levaram Gullar a publicar, em 1954, A luta corporal, um sopro de novidade para a po-esia brasileira, graças a seu projeto editorial e de composição. O livro chamou atenção do grupo paulista Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro. A proximidade deu início a uma parceria de Gullar com os paulistanos, e culminou na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956.

A ruptura com o concretismo Na passagem pelo no Museu de Arte Moderna carioca, entretan-

to, a exposição gerou a separação dos grupos concretistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Por ocasião da inauguração, Waldemar Cordeiro enviou para o SDJB o artigo “Da psicologia da composição à matemática da composição”, no qual pregava uma radicalização racionalista da experiência concreta. Discordando da posição, Gullar redigiu e publicou ao lado o artigo-resposta “Poesia concreta: expe-riência fenomenológica”. Assim, rompeu com o movimento e aliou-se de vez ao Grupo Frente, do Rio, formado por Pedrosa, Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, Amílcar de Castro e Frans Weissman, entre outros.

Sem regras rígidas, o Frente ofereceu a Gullar o impulso para experimentações mais ousadas. Em 1958, ele desenvolveu o Livro-poema, no qual o leitor era estimulado a vasculhar a parte de trás das páginas até formar a obra. “Nasceu, deste modo, um novo livro em que a forma das páginas é parte do poema, de sua estrutura visu-al e semântica, e em que o passar das páginas é condição necessária para que ele se constitua e se realize enquanto expressão”, afirma.

A experiência impulsionou Gullar a criar o Poema-objeto e o Po-ema enterrado - este montado no subsolo da casa de César Oiticica, pai de Hélio, e o primeiro a tomar um ambiente, em um prenúncio das instalações de Oiticica nos anos 60. Tomando a participação do espectador e a intuição artística como premissas, Gullar escreveu e seus companheiros assinaram o “Manifesto neoconcreto”, lançado durante a I Exposição Neoconcreta no MAM do Rio.

Ao Manifesto, seguiram-se os artigos “Diálogo sobre o não-objeto” (1959), “Teoria do não-objeto” (1960), “O lugar da obra” e “O tempo e a obra” (1961), publicados à época no SDJB e agora incluídos no livro. O conceito de não-objeto foi criado por Gullar para negar a re-

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X. Resenha

presentação, defender o abandono dos suportes tradicionais de arte, requisitar o diálogo da obra com o espaço e o envolvimento físico do espectador no trabalho de arte.

Em O tempo e a obra, Gullar deparou-se com a idéia que o afas-tou do grupo carioca: a de que “a própria noção de arte deveria ser abolida, já que o não-objeto não pretende inserir-se na cultura nem quer permanecer, durar: o que dele restará será apenas a casca ma-terial já que, enquanto significação, será absorvido na elaboração e reelaboração incessante de nossa experiências sensíveis”. O crítico deu-se conta de que destampava a caixa de Pandora: na poesia, sua perspectiva era de abandono da própria palavra. Tais idéias, pres-sentia, levariam à destruição da arte.

Assustado, Gullar abandonou os neoconcretos: primeiro timida-mente, em 1961, quando dirigiu a Fundação Cultural, em Brasília, a convite do então presidente Jânio Quadros; depois assumidamente, em 1962, quando passou a presidir o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Era a confirmação de uma nova fase de sua carreira, ligada à ação política (causa do exílio de 1971 até 1977). Em livros como Cultura posta em questão (1964) e Vanguarda e subdesenvolvimento (1969), o crítico enfocou a relação entre pro-dução artística e ideologia no Brasil, taxando de alienados os artistas que não discutiam a política abertamente. Posição que mais tarde admitiu equivocada, como deixa claro em Experiência neoconcreta.

Durante quatro décadas, a teoria formulada por Gullar sobre-viveu como fundamental para a pesquisa artística, a despeito das posteriores idéias defendidas por ele. No livro, Gullar ainda afirma que a produção de Oiticica e Clark “ultrapassou as fronteiras da arte” e tornou-se outra coisa pela ênfase no sensorial, mas admite a importância das descobertas deles e de suas próprias. Faz as pazes com um passado visionário, o qual ele mesmo custou a compreender plenamente. Trata-se certamente de um gesto de maturidade, inesti-mável como depoimento para a história da arte recente no Brasil.

Sobre a obra: Experiência neoconcreta, de Ferreira Gullar, Cosac Naify, São Paulo, 162 pg.

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Hiato de uma vida

Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke

Dada a importância de Gilberto Freyre na história intelectual do Brasil, ele certamente merece uma biografia extensa que acompanhe o desenvolvimento de seu pensamento, colocan-

do seus muitos livros e artigos em seus contextos culturais.

O livro de Enrique Larreta e Guillermo Giucci [“Gilberto Freyre - Uma Biografia Cultural”, tradução de Josely Vianna Baptista, ed. Civilização Brasileira, 714 págs., R$ 80] propõe-se a fazer exatamen-te isso, mas se restringindo ao período 1900-1936. Os autores rei-vindicam a novidade de seu ambicioso empreendimento referindo-se ao “exame preciso da documentação histórica” a fim de corrigir uma falha nos estudos freyrianos, marcados, como dizem, por “um hiato entre o conhecimento de fontes primárias sobre Gilberto Freyre e a acumulação de comentários baseados em leituras secundárias”.

Infelizmente o livro não é tão inovador quanto os autores preten-dem. Diferentemente de vários estudos recentes como, por exemplo, os de Ricardo Benzaquem, Ronaldo Vainfas, Marcos Chor Maio, An-tonio Dimas, Simone Meucci e Jeffrey Needell, ele não oferece ao lei-tor nem novas interpretações do trabalho de Freyre nem a apresen-tação e discussão de novos documentos importantes. É, ao contrário, essencialmente um trabalho de síntese.

Ora, trabalhos de síntese são obviamente indispensáveis, e tão mais bem-vindos quanto escritos de modo acessível e fluente como este. No entanto, mesmo como um trabalho de síntese, a nova bio-grafia está aberta a sérias críticas, duas em especial: utiliza acritica-mente muitas de suas fontes e reconhece insuficientemente o traba-lho de outros estudiosos de Freyre. Os dois autores contam a história do jovem Freyre (em detalhes nem sempre significativos) baseando-se amplamente nas palavras do próprio biografado, um autor que falava muito de si mesmo e que, como tantas figuras ilustres, esteve muito envolvido na sua auto-apresentação.

Textos de Freyre - desde o conhecido “diário” “Tempo Morto” [Glo-bal], que é uma autobiografia em forma de diário, até os menos co-nhecidos, como um longo manuscrito autobiográfico, a ser publicado proximamente também pela Global- são citados e amplamente pa-

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X. Resenha

rafraseados, fazendo com que grande parte dos capítulos iniciais da biografia seja um pastiche do rico material autobiográfico que Freyre deixou.

Apesar de Larreta e Giucci estarem aparentemente conscientes da propensão de Freyre para o que eles chamam de “automistifica-ção” ou “auto-estilização” e de se referirem em nota ao caráter pro-blemático de “Tempo Morto” como fonte histórica, eles desconside-ram suas próprias advertências, lendo literalmente como narrativa de vida o que não passa, muitas vezes, de “ficções da memória”, ou seja, palavras de um homem maduro, de prosa brilhante e convin-cente, revivendo sua juventude.

Como resultado, vemos opiniões de Freyre sendo apresentadas como fatos consagrados, enganos serem perpetuados e recordações idealizadas pela nostalgia sendo tomadas como documentação de re-alidades vividas. Para só mencionar dois exemplos, seu amigo Bilden não “afogou-se no álcool” e Oscar Wilde não era “considerado vulgar” na Oxford que Freyre conheceu, como é afirmado.

Com um sistema de notas nada convencional, para não dizer to-talmente falho, que confunde o leitor, ao invés de esclarecê-lo, o livro lhe dá a entender que esses são “fatos” pesquisados pelos autores, quando são, na verdade, opiniões de Freyre. É ele que escreve em “Tempo Morto” que em Oxford “quase não se fala de Oscar Wilde. É considerado vulgar”.

Já o modo como os autores tratam de seus muitos predecessores no estudo de Gilberto Freyre levanta outras sérias questões sobre procedimento intelectual. Muitas vezes eles resumem interpretações de outros estudiosos sem dar as devidas referências no texto ou em notas, de tal modo que leitores incautos ou desinformados provavel-mente lhes darão crédito por descobertas e interpretações que não são originalmente suas. Mas, muito mais importante do que isso, tal procedimento representa uma grande descortesia para com o leitor e um empobrecimento lamentável do diálogo intelectual.

Para citar um único exemplo, em três ocasiões eles discutem o diálogo de Freyre com autores espanhóis, como Angel Ganivet, sem fazer nenhuma referência ao livro de Elide Rugai Bastos, “Gilberto Freyre e o Pensamento Hispânico” [Edusc], que trata magistralmen-te do mesmo assunto. A parte mais valiosa e original do livro não é tanto a biografia, mas os comentários de textos de Freyre e de seus contemporâneos, incluindo a discussão dos primeiros críticos de “Casa-Grande e Senzala” [ed. Global], apesar de que aqui novamente

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Hiato de uma vida

os autores devem mais do que admitem ao seu predecessor Edson Nery da Fonseca.

A biografia é interrompida em 1936 e é afirmado que a partir dessa época a obra de Freyre seria “sobretudo a ampliação e o desen-volvimento das idéias e intuições anteriores”. Para quem acredita, no entanto, que uma biografia tem de dar espaço para as transforma-ções, o fluxo e as contingências da vida -e resistir ao impulso de es-truturar a vida de alguém muito cedo e redutoramente num padrão de explicação- resta muito a ser feito.

No nosso entender, um grande desafio é agora reconstruir, anali-sar e interpretar as atividades e o pensamento de Freyre entre 1936 e 1987, quando ele se tornou um ídolo, ou uma “instituição nacional”, como dizem os autores, e, tal como um monumento coberto de grafi-te, passou a ser venerado por uns e execrado por outros.

Sobre a obra: Gilberto Freyre - Uma biografia cultural, de Enrique Larreta e Guillermo Giucci, tradução de Josely Vianna Baptista, ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 714 págs.