murânio e o gigante
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Ele ia seguindo para onde o ônibus ia, porque quando se está dentro de um ônibus é assim, você segue um caminho determinado pela cidade, pelo tempo todo em que aquela
cidade é percorrida de uma certa maneira, pelo fluxo interminável de coisas e pessoas que necessita de vias
principais, auxiliares, curvas e convenções para circular. Isso fez com que se lembrasse de uma carta do I-Ching: “nada é imóvel no acontecer dos fatos”, o que lhe dava o
justo direito de pensar que quem escreveu isso não conhecia nem nunca precisara da linha 46, que com
certeza deixaria os fatos imóveis ali na saída do Cantagalo ou pelo menos no Largo da Batalha.
Mas gostava das viagens de ônibus sobretudo porque todo o caos que compõe a cidade fica exposto quando se está
dentro de um deles. O que vaza para dentro das janelas do ônibus é a cidade, acontecendo, inclusive fazendo ônibus irem e virem o dia todo, conduzido por sujeitos que vêm e vão, o dia todo, mesmo quando você está puto ou seu time
perdeu ou você dormiu vendo um filme, tem alguém tocando um ônibus, indo e vindo pra algum lugar. A cidade e os ônibus se retroalimentam todos os dias, de pessoas. Já os donos de empresas de ônibus se alimentam de vitela e
tiramisú porque estão à frente de um negócio que se alimenta de pessoas: as mastiga, consome e cospe em
leitos, para que despertem no dia seguinte e sejam mastigados novamente.
E ocorreu-lhe o sono, troço egoísta, vontade dominante que se impõe sobre as pálpebras e retira-lhe a aderência de qualquer coisa que necessite dos olhos abertos e olhantes;
preferiu adormecer recostando a cabeça do que ser maltratado pelo sono, como aqueles que sonham ser Jardel no Porto, e seguem a viagem toda desferindo cabeçadas no
vazio.
Eram os últimos dias antes da eleição presidencial do segundo turno: azuis e vermelhos em disputa já conhecida
desde os tempos da redemocratização. Agora talvez tivéssemos um azul mais lustroso, mais cheio de si e
também de pior qualidade, que descascasse à toa, dessas tintas vagabundas que no mostruário são ótimas mas na sua casa uma droga. Os vermelhos seguiam vermelhos, embora talvez houvesse algum desbotamento, muitas
divisões, talvez uns querendo ser mais vermelhos que o outro, como se formassem um zigurate cromático em que cada círculo é mais vermelho que o anterior, ao passo que
diminuem em seu raio a cada piso.
E então seguia sonhando nesse contexto das cores e suas escalas e via a si mesmo do tamanho dos prédios todos que se debruçam sobre a bela praia de Icaraí com suas
varandas todas. Ele andava e via as coberturas todas pela linha dos olhos, e cada passo deixava quase um quarteirão
inteiro pra trás; não sabe como, mas sabia muito bem o que aconteceria e de fato aconteceu: os prédios lhe
dirigiam a palavra. Era um sonho e os prédios falavam, e falavam com ele. Prédios falam também fora dos sonhos,
mas são tantas vozes embaralhadas, sons que são reclamações, canções de chuveiro, dívidas, gemidos, amor, irritações, um ‘merda’ que se segue à pregos no andar de
cima, é tanto caos e tão pouca comunicação que pensamos ser mudos os prédios quando passamos em frente a eles. E são. Sempre aquelas caras de concreto pintadas e cheia de olhos de vidro que dilatam e contraem de acordo com a
luz do sol, desordenadamente.
Mas no sonho falavam e além disso se apresentavam antes de falar. Um deles era o Murânio e logo se percebia que tinha topete, era dos mais debruçados, quase a barriga
roçando na areia, se tivesse barriga. Viu o sujeito andando gigante e o interpelou: “Alto lá. Não ia falar nada, mas
com essa barba e com essas cores, só pode ser um vermelho. Que horror”. E o gigante não só riu como
respondeu debochado que a barba lhe ficaria boa também na cara, senhor Murânio, e por que é que vermelho pra
cada um de nós dois pode significar tanta coisa diferente? Murânio era folgado nas respostas porque pra ele o mundo era muito simples: quem se esforça na vida, consegue os
milhões necessários pra viver dentro do ventre de Murânio. Quem não consegue tem vontade fraca,
inclinação pra boa vida e depende do Estado pra ser malandro: daí ser vermelho. Pra ser azul o negócio é
diferente, precisa de etiqueta e recibo em tudo: no carro, na roupa, no teto. E fechou dizendo que se está ruim, a
democracia está aí pra mudar o que quiser mudar.
O gigante retrucou com gosto, corrigiu-se, limpou uma frase, ajeitou, afiou, coisa que na cabeça de Murânio era
ser menor, era falar mal, era atestado de vermelhismo, algo como uma doença.
“É que a vida é complicada, Murânio. Tem muito mais disputa do que igualdade. E quem faz o jogo não faz pra todo mundo, faz pros seus. Pra que o jogo sempre seja favorável aos que estão no seu ventre, Murânio. Como
ganhar em um jogo cujas regras são feitas pelos que estão aí no seu ventre?”
Murânio aprumou-se em seu queixo de prédio de luxo, colocou-se superior, “você sabe quantos milhões valem
cada uma das minhas cavidades?” e quis encerrar o assunto dizendo que “somos azuis porque é uma forma de não perdermos a cor, de não perdermos nada, que perder não está em nossos planos. Somos azuis se nos tratamos
nos melhores hospitais, desde que os melhores sejam aqueles pelos quais pagamos. O mesmo vale pra educação,
somos azuis porque nossos azuizinhos entram em faculdades federais, estaduais, depois de estudarem nos melhores cursos preparatórios que nosso dinheiro pode
pagar. Se os vermelhos querem Estado pra ter autonomia, o que é que nós, azuis, ganhamos com isso? Perdemos
espaço, prestígio, nossa atribuição de valores fica bagunçada. Quanto menor o Estado, melhor pra nós. É
tudo tão simples, seu besta, basta que o mercado fique sem amarras e que nenhum aventureiro se meta a dar
autonomia a pobre ou a vermelho, porque temos uma boa dúzia de revistas, emissoras de tevê e gralhas reprodutoras
que levam nosso discurso adiante porque miram sonhadoras nossas varandas, encantadas por algo que
jamais terão. E acho bom você sumir daqui, seu merdinha, falando grosso comigo, veja só, some senão te arrebento, te piso e você, você sabe como é sumir, não sabe? Eu não
sei, seu merdinha”
O gigante achou graça de ver tanta suficiência acomodada dentro de tanto medo, um pavor mal-disfarçado que
encontrava expressão em uma agressividade que escapava como filete de um poço gigante e bem profundo de ódio de classe. E disse: “Murânio, tu está fraco. Tu reluz no
entardecer, nesses teus olhos de vidro, mas não tem janela que brilhe mais que os olhos de um vivente. E tem tanto
vivente que deixou de ser bicho pra ser gente, tanto Fabiano aí pela vida, tão forte em autonomia, que isso te enche de pavor. E isso não tem volta não, Murânio. Estou
falando dessa gente que não quer viver em silêncio no teu ventre, mas que quer cantar aí pela rua, quer viajar com os filhos, comprar o que precisar e o que achar bonito e que está cada vez mais com diploma na mão. Murânio, teu
problema é que tu é muito caro nos milhões mas não vale um preá, não vale meia graça pra quem tem sido feliz longe do teu ventre, pelo menos nos últimos dez anos.
Murânio, o Brasil está mudando e você não pode impedir isso”
Murânio primeiro contraiu e depois abriu-se em um espasmo violento de concreto, gritou tanta poeira grossa e entulho, chorou tanto vidro partido que não acabava mais
que quase dava pena, e tudo tremia, tremia tanto que o gigante tremeu também e quem estava do lado olhou e riu, meio de lado. Estava no ônibus, parado no terminal João
Goulart, o gigante acordou. O trocador falou pra ele “ponto final, barbudo”.
E cortou caminho ali pelo Bay Market, muito melhor, num segundo já alcançava as barcas, ia pro Gragoatá, tudo ali
pertinho. Andava com gosto.