ofelia e narbal fontes - o gigante de botas

Upload: gilson-brando

Post on 10-Jul-2015

227 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica

1

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica

Oflia e Narbal Fontes O GIGANTE DE BOTAS Editora tica Srie Vaga-Lume 6 Edio 1979

Ilustraes de capa e miolo: Milton Rodrigues Alves Capa: layout de Ary Almeida Normanha Suplemento de Trabalho: Maria Aparecida SpirandelliObra aprovada pela Equipe Tcnica do Livro e Material Didtico, Proc. n. 1421/75, publicado no Dirio Oficial do Estado de So Paulo de 25/11/75. Ano Internacional da Criana 1979.

2

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica

OBRAS DOS AUTORES: DADOS BIOGRFICOS Na literatura brasileira, h diversos casos de livros escritos em colaborao. O livro escrito a quatro mos pode ser o resultado de uma colaborao to grande que no se distinguem as caractersticas de um ou de outro escritor, ou pode ser uma obra em que fcil ver que trechos pertencem a cada um dos autores. A obra do casal Oflia e Narbal Fontes pertence ao primeiro tipo. Eles escreveram muitos livros dedicados infncia e juventude, num esprito de tal colaborao e entrosamento que, verdadeiramente, o que existe a obra literria de Oflia e Narbal Fontes. Oflia Fontes nasceu em So Paulo, a 21 de agosto de 1902. Diplomou-se professora primria e tcnica de educao no Rio de Janeiro. Escritora, exerceu intensa atividade radiofnica paralelamente sua carreira de literata. Reside no Rio de Janeiro, onde se fixou a muitos anos por fora dos problemas de sade de seu esposo. Narbal Fontes nasceu na cidade de Tiet, So Paulo, a 10 de fevereiro de 1899. Faleceu no Rio de Janeiro a 29 de abril de 1960. Foi mdico, professor primrio, e, sobretudo, escritor. Sua obra, e a de sua esposa tambm, abrange a literatura infantil, a poesia, livros didticos, biografias e contos. Espirito repleto de bondade e simplicidade, sua vida foi um painel de ternura, interesse sincero pelas criaturas, qualidades que transparecem de sua ampla bagagem literria. O Gigante de Botas obteve o 1 Prmio do Concurso de histrias e contos, institudo em 1940 pela Secretaria de Educao e Cultura do Distrito Federal. No Reino do Pau-Brasil Senhor Menino Regina, a Rosa de Maio Romance de So Paulo Rui , o Maior Precisa-se de Um Rei O Gigante de Botas Corao de Ona O Talism de Vidro A Gigantinha A Espingarda de Ouro Aventuras de Um Coco da Bahia Esopo, o Contador de Histrias Novas Histrias de Esopo A Falsa Histria Maravilhosa Esprito do Sol O Micrbio Donaldo Histria do Beb Ler, Escrever e Contar Ilha do Sol Brasileirinho Companheiros Pindorama O Menino dos Olhos Luminosos A Boa Semente A Vida de Santos Dumont O Bicho Sete Cincias O Gnio do Bem Cem Noites Tapuias

3

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica

INDICE I II III IV V VI VII VIII IX Um Sonho de Quarenta Anos A Partida A Primeira Cruz O Roteiro Desconhecido Os Quirixs Os Gois A ndia Marab A Cruz de Anhangera A Cano do Bandeirante 000 000 000 000 000 000 000 000 000

Cu t cheinho de negro, no tem lugar pra vanc!...O cavaleiro se aproximava e as vozes cresciam:

Tumbero bateu no inferno Cuisa-ruim6 foi receb: V-se embora, meu sargento, olel... Tem muita gente aqui dentro, no tem lugar pra vanc...Gargalhadas. E o canto continuava:

Tumbero voltou terra, no sabendo o que faz: De dia assombra os parente, olel...Algum interrompeu o canto, dizendo: - A vem seu Capito Ortiz! O coro cessou chegada do cavaleiro. Os negros, que estavam vontade, descansando longe da vista do feitor, levantaram-se alvoroados: uns agarravam gamelas de canjica, outros peneiravam com agilidade, atirando o arroz pilado para o ar e colhendo-o de novo nas grandes urupemas7. Mas um deles, Jernimo, profundamente distrado, no percebeu a mudana e terminou a cano num tom queixoso e soturno:

I UM SONHO DE QUARENTA ANOSNo primeiro dia de julho de 1722, um cavaleiro moo, chapelo batido na testa, gibo de couro, bandoleira, cinto de ona, espada e botas altas, chegava fazenda do Anhangera, em Parnaba1. Ao atingir o milharal, sofreou as rdeas do alazo e parou. Poucos passos sua frente, surgiram trs cabeas de ndios carijs2, entre as folhas de milho. Cumprimentaram, espantados, o cavaleiro, dizendo ao mesmo tempo: - Ian caruca!3 O cavaleiro ps-se a rir da cara de surpresa dos bugres, respondendo-lhes ao boa tarde: Ian caruca! E rumou na direo do monjolo. De mistura com o martelar dos piles e o escacho da gua, ouvia agora perfeitamente vozes de escravos, cantando:

De noite arrasta corrente int o dia manhec...O cavaleiro parou escutando. Os escravos voltaram a cabea para o lado dele, fingindo admirao e o cumprimentaram: - Suns Cristo!8 - Suns Cristo! - Suns Cristo, seu capito! O Capito Ortiz sorriu compassivamente, derreou o corpo na sela e respondeu ao cumprimento descobrindo-se: - Seja louvado... Cobriu-se de novo e perguntou: 4

Tumbero4 bateu no cu, So Pedro foi receb: V-se embora, seu muzungo5, olel...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica - O Anhangera est em casa? E os negros, solcitos, fazendo coro: - Est em casa, sim sinh. O Capito Ortiz endireitou-se na sela e rumou para a casa da fazenda, dando as costas ao monjolo. Ia pensando na inutilidade das violncias do feitor Ramires. Ali estava a prova: longe da vista do chicote, os carijs roubavam espigas no milharal e os negros folgavam no monjolo, cantando canes contra os feitores desumanos! Assim que ele desapareceu no pequeno atalho, recomeou o vozerio dos negros. Houve risadas de desafogo. Um deles aproximouse do cantor distrado e deu a entender que ele havia perdido o juzo: - Voc est leso9, Jeromo? A gargalhada se tornou geral. Mas Jernimo no se deu por achado: - Uai! Por que?! - Ento voc no viu seu capito cheg? - Vi, sim. Mas eu conheo seu Capito Ortiz. Ele no mau que nem o feitor. Tem bom corao, deixa negro cant... Uma negra de carapinha branca defendeu Jernimo: - Que que vocs esto caoando? Meu filho est no seu juzo perfeito. Seu Capito Ortiz bom mesmo. Deus permita que ele se case com nh Belinha pra botar pra fora esse feitor cuisa-ruim... Deus permita!... - Sossegue, me Felcia. Eles j esto prometidos, explicou Graciosa, mucama das filhas do Anhangera, que enchia o alguidar 10 na bica do monjolo. Vou j l em cima avisar nh Belinha que seu amor chegou. E Graciosa saiu, equilibrando na cabea o alguidar cheio de gua. Enquanto isto se passava, na camarinha11 das moas da casagrande, as seis filhas do Anhangera, reunidas em torno da roca, fiavam e teciam em silncio. Uma tristeza indefinida oprimia aquelas criaturas to jovens que a mais velha no teria mais que vinte anos!... S a caula, que tinha uns sete, estava despreocupada e foi ela quem rompeu o silncio: 5 - Cruzes! Parece que morreu gente nesta casa! - Fique quieta, Iai! No diga bobagens, ralhou a penltima, com ares de autoridade, apesar de no ter mais que oito anos. - Voc no me manda, Leonor. Falo porque posso. Se vocs perderam a lngua eu no perdi. S no falo se Belinha no quiser: depois que Joaninha se casou, quem me manda ela! Belinha parecia no ouvir. Inclinava o lindo rosto para o trabalho, mostrando as grossas tranas cruzadas no alto da cabea. Por fim, suspirou. Joaninha resolveu brincar com a irm: - Se eu fosse taper... acompanhava esse suspiro. Para quem foi, Belinha? Belinha no respondeu. Leonor, porm, pretendeu adivinhar: - Eu sei para quem foi... Mas Iai no quis ficar atrs: - Voc no sabe. Quem sabe sou eu! Leonor aborreceu-se: - Pois diga ento, sabida! Para quem foi o suspiro dela? - Pra ningum, afirmou Iai, com a cara mais brejeira deste mundo. Para os peixinhos do mar... para as nuvens do cu... Joaninha atalhou a discusso que estava comeando: - Silncio, meninas! Eu sou a mais velha, eu que sei para quem foi... Leonor, Iai, Escolstica e Rosa perguntaram ao mesmo tempo: - Pra quem? Ento Joaninha respondeu devagar, fazendo corar Belinha: - Para o senhor Capito Joo Leite da Silva Ortiz!... Nesse momento, entrou Graciosa, trazendo um copo de gua numa bandeja de prata, e foi logo dizendo: - Falai no mau... Belinha ergueu alvoroadamente e perguntou: - Capito Ortiz? - Ele mesmo, sinhazinha. Est na varanda, esperando o sinh

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Anhangera. Vou levando gua que ele pediu. Est com uma sede!... respondeu, arregalando os olhos. Risos das moas. Belinha ordenou: - Deixe ver a bandeja que eu levo, Graciosa. Tomou a bandeja das mos da mucama e foi saindo da camarinha. Joaninha tentou dissuadi-la: - No faa isso,Belinha! Se pai vir voc na varanda vai ralhar e me vai ficar muito aborrecida!... Graciosa, porm, interveio a favor de Belinha: - Deixe, sinh Joaninha. Eles j esto prometidos. Sinh Anhangera tem muita confiana no Capito Ortiz. Pois eles so scios... E depois, a pobre vai levar muito tempo sem ver o seu prometido. A bandeira j est armada... Belinha foi andando muito compenetrada, cabea erguida e olhos fitos na bandeja, sob o olhar espantado das irms. No momento, Joaninha no achou mais o que dizer. Mas, logo depois, voltando-se para a mucama, comentou: - Que esperteza, dona Graciosa! Como que soube de todas essas coisas que eu ainda no sei? A mucama ficou toda envergonhada: - No me chame de dona, sinh Joaninha, que at pecado! Quem sou eu, para ser camada de dona? Uma pobre escrava... E a mucama suspirou. - No disfarce, Graciosa, e me diga como que soube essas coisas que eram segredo para mim? - Segredo pra sinh? Cruz, credo! Ento seu Capito Incio, companheiro de seu Capito Ortiz, no lhe contou nada? Ah! Ser que os maridos de hoje em dia fazem segredo com suas mulheres? Pois olhe, sinhazinha: sinh seu pai no assim. Hoje de manh escutei a conversa dele com sinh Joana. por isso que eu sei. - Ah! Ento voc andou encostando o ouvido nas fechaduras? - No diga isso, sinhazinha. No pense to mal da gente! Sinhazinha no sabe que ouvido de negro que nem coador de ch? E qual o branco que toma ch sem coador? por isso que negro sabe tudo sem precisar andar escutando atrs das portas. essa a 6 minha vantagem, sinhazinha... A mucama terminou com um trejeito to engraado que as moas desandaram a rir e Joaninha no teve modo de censur-la. Continuaram depois a trabalhar e a conversar animadamente. O ambiente j no era o mesmo. Reinava alegria. Por artes da esperta mucama, todas ficaram sabendo que o pai prometera ao Capito Oriz a mo de Belinha. E isso era um verdadeiro acontecimento!... belinha, ao sair do aposento, atravessou um corredor, passou elo oratrio de Nossa Senhora da Boa Viagem, ajoelhou-se com a bandeja nas mos, rezou um momento. Depois, levantou-se, continuou por uma saleta cheia de cabeas de animais pelas paredes, e entrou devagarinho na varanda, por trs do Capito Ortiz. Este estava sentado num Canap12 de couro tranado e observava apreensivo uma pele de ona estendida no cho. A moa ensaiou falar juntinho dele, mas ficou tolhida. Afinal venceu o acanhamento e murmurou num sopro: - Olhe a gua... O Capito levantou-se num sobressalto, voltando-se para ela. - Perdoe-me, dona... eu pensei... Isabel sorriu encabulada, baixou a cabea e, de olhos erguidos para o moo, conseguiu falar: - Pensou que era uma ona, no? Capito Ortiz emendou: - Se fosse ona no me assombraria... - Ento acha que sou pior do que ona? - No diga isso, dona Isabel! - Quem dona Isabel? Eu sou Belinha... O Capito emudeceu embaraado. Mas logo criou flego e psse a falar impetuosamente: - Belinha! Seu pai concedeu-me sua mo. A partida da bandeira est marcada para depois de amanh. E eu no quero partir sem uma palavra sua!... A noiva estremeceu e o copo entornou-se. Ortiz quis acudir, segurando a bandeja, mas era tarde: a gua derramara-se pelo cho. Belinha endireitou o copo e, muito corada e com voz quase sumida,

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica falou: - Desculpe! O copo estava cheio demais, como o meu corao. Vou ench-lo de novo... - No, Belinha, muito obrigado. No haveria gua no mundo que matasse minha sede como as palavras que escutei agora. Empenhei a vida nesta bandeira para as minas dos Martrios. Vou partir com uma coragem nova, que a sua palavra me deu... Ouviu-se, nesse instante, uma cano dolente que vinha da camarinha das moas: - Bons olhos o vejam, Capito Ortiz! At que enfim temos, em mo, a licena de El-Rei para partir! O Capito Ortiz apertou efusivamente a mo do Anhangera e disse: - Muito obrigado, senhor Bartolomeu. At que enfim vencemos as manobras de Sebastio do Rego, junto ao senhor governador!... - Ainda no, meu amigo. Esse nosso provedor-mor dos quintos reais um velhaco de muita ronha13... capaz de vender a alma por uma oitava de ouro. Toda cautela pouca... Tenha mo nos seus homens que os meus sero vigiados por meu feitor de confiana. Uma sombra passou pelo rosto de Ortiz: ele tinha uma vaga desconfiana do feitor Nuno Ramires, mas no achou maneira para transmiti-la ao Anhangera. Por isso limitou-se a dizer: - Meus homens esto a postos, sob o olhar vigilante de Antnio Indai, o mameluco. J comprei as fazendas secas14, a munio de armas e de boca e tudo o mais que precisamos. O mestre-fundidor 15 Manuel Cabea j est provido de almocafres16 e bateias17. S me falta receber sua palavra. Anhangera, satisfeito e orgulhoso, bateu no ombro do futuro genro, dizendo: - Minha palavra partir, rumo entre norte e oeste. Havemos de achar o mesmo caminho que trilhei com meu pai, quando tinha doze anos! Havemos de chegar s minas dos Martrios! Havemos de encher de ouro as nossas arcas vazias... Ah! Capito Ortiz! Este meu sonho que j dura quarenta anos! Mas agora havemos de realiz-lo!... - E ao realiz-lo, Vossa Merc conquistar mais um trato18 imenso de serto para aumento da repblica19 e para grandeza da Ptria, afirmou Ortiz solenemente. - Eu somente, no, senhor Capito. Vossa Merc e nossos parentes e amigos tambm: o mano Simo Bueno, meu cunhado Manuel Peres Calhamares, meu sobrinho Antnio Ferraz de Arajo e outros, que se associaram a esta jornada. - Concordo, mas sem lisonja de minha parte, posso asseverar que a Vossa Merc pertence a glria maior, desde a iniciativa at o estmulo de todos, porque Vossa Merc o cabo da tropa, o guia e o olhar da bandeira. Sem a segurana que nos d a sua direo, 7

Quem casa com bandeirante, no sabe bem o que faz: Seu amor caminha adiante, seu corao fica atrs!... Ai... Seu amor caminha adiante, Seu corao fica atrs!...Capito Ortiz ouvia com um sorriso triste; lgrimas brilhavam nos olhos de Belinha. Quando a cano terminou, ela disfarou a emoo dizendo: - Aquilo brincadeira de Joaninha. O capito Ortiz ponderou: - Ela tambm deve estar muito apreensiva: o Capito Incio Pais vai tambm... Ouviram-se passos de algum subindo a escada da varanda. Belinha abaixou-se rapidamente e, equilibrando a bandeja na mo esquerda, puxou com a direita a pele de ona sobre a mancha de gua no cho. Depois, ergueu-se e disse, em voz sussurrada: - Rezarei pelo senhor Capito! - Reze por ns, Belinha, respondeu o moo, no mesmo tom. Ela esgueirou-se elos fundos, ao tempo em que o vulto de Anhangera surgia na varanda, pela porta da frente. Era uma vigorosa figura de bandeirante. Teria pouco mais de cinquenta anos, alto, espadado, barba cerrada, boca voluntariosa, expresso de energia indomvel. Estendeu a mo ao Capito Ortiz, com um sorriso acolhedor:

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica ningum se aventuraria a tamanha empresa. As minas dos Martrios tm desafiado a audcia de muitos sertanistas20 e potentados de arcos21... - Pois ento chegou a minha vez, Capito Ortiz: ou descobriremos as minas ou ficarei por l... Estou apostado 22 com Deus, concluiu Anhangera com os olhos ardentes de f, estendendo a mo ao Capito Ortiz. E os dois sertanistas, emocionados, apertaram-se as mos silenciosamente. Findo o sagrado ofcio e terminada a beno, o padre fez o sinal-da-cruz e disse com voz pausada e grave: - Que seja bem sucedida esta diligncia23, de que resultar no s utilidade de El-Rei, pelo aumento da fazenda real24, mas a Deus Nosso Senhor, pela propagao da f. E sigam todos em graa, tenham venturoso sucesso e achem a Deus propcio em toda jornada. Repicaram os sinos, troaram escopetas25 e todos se levantaram. Comearam, no mesmo instante, as despedidas. Uma indescritvel emoo tomara conta do povo. O Anhangera, em primeiro plano. Dirigiu-se a D. Rodrigo Csar de Menezes e cumprimentou-o gravemente: - Estamos de partida, senhor governador, e s me resta assegurar a Vossa Merc que hei de cumprir o prometido. O governador estendeu-lhe a mo cordialmente: - Feliz jornada, senhor Bartolomeu Bueno da Silva. Da parte de El-Rei eu vos prometo, na volta, todas as honras e mercs e favores. As mes despediram-se dos filhos com recomendaes carinhosas e ingnuas. D. Joana de Gusmo abraou, comovida, Bueninho, o filho mais velho. Mas quando chegou a vez de Baltazar, ela no se conteve. Apertava o rapazinho contra o peito e no o deixava, chorando angustiosamente. Baltazar, emocionado mas orgulhoso de seu gibo de armas26, procurava anim-la: - Me, coragem que breve estaremos de volta! Mas D. Joana, com seus cuidados extremos, lembrava amis isto e mais aquilo e s se separou do filho quando Anhangera se avizinhou dos dois: - Ora D. Joana, vosmec est amaricando27 o nosso filho! Aos doze anos eu j furava serto com meu pai. E Baltazar j fez quinze! Foi quando Francisco, que se aproximara e ouviras as palavras do Anhangera, pediu ao pai com a alma nos olhos: - Senhor pai, eu quero ir tambm... - Desta vez ainda no, Francisco, respondeu o Anhangera, acariciando o rosto do caula. A fazenda precisa de um homem. Vosmec fica tomando conta dela. O menino consolou-se depressa com a nova responsabilidade 8

II A PARTIDA3 de Julho. Madrugada brumosa na cidade de S. Paulo. Quase apagado na cerrao, todo um povo se ajoelhara defronte da igreja. O padre estava terminando a missa camal no altar improvisado. Nisto, um vulto destacou-se da massa ajoelhada e caminhou empunhando uma bandeira: era Anhangera. Prximo ao altar, ajoelhou-se de novo. O povo rezava agora em voz alta, acompanhando a longa orao final do sacerdote. Havia um tom de lamento na voz das mulheres e de sombria determinao na voz dos homens. Por fim, a manh clareou, esbatendo a neblina e iluminando os rostos. Distinguiam-se, claramente, as figuras do governador D. Rodrigo Csar de Menezes e de sertanistas barbudos de todos os feitios, brancos e mamelucos. Em fila, ainda ajoelhadas, a esposa de Anhangera, dona Joana de Gusmo, e suas filhas; Dona Maria Pires, sua cunhada e me de Antnio Ferraz de Arajo; Catarina Pedroso, mulher de Simo Bueno, afora inmeras mulheres, ricas e modestas, que tinham vindo assistir partida dos parentes. Ao lado de Anhangera, seus filhos Bartolomeu, de vinte e um ano, Baltazar, de quinze, e Francisco, de onze; seu cunhado e scio Manuel Peres Calhamares, seu genro Capito Incio Pais e seu futuro genro Capito Ortiz.

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica que lhe confiara o pai. Um menino de sua idade dirigindo uma fazenda! Era de causar inveja ao primo Antoninho Lemos e ao primo Guilherme Pedroso, que eram mais velhos que ele... D. Joana se recomps o mais que pode de sua fraqueza de me e despediu-se do marido, com dignidade e emoo: - Deus vos assista e vos traga, seu Bartolomeu. Eu ficarei cuidando dos filhos e rezando por vs... Enquanto isso, aproveitando-se da despedida dos pais, Belinha, ao lado da igreja, por trs de uma pilha de bruacas28, entregava uma cruz ao Capito Ortiz: - Est benta, senhor capito, disse, forando um sorriso. O moo beijou a cruz em silncio e pendurou-a ao pescoo. E, sentindo que os minutos eram poucos, se disseram, ento, as palavras de ternura que no podiam mais conter. O instante era dramtico e vencia as barreiras mais fortes... Joaninha, a pouca distncia, despedia-se do marido Capito Incio Dias Pais, mas no tirava os olhos da irm, receosa de que ela fosse vista por algum estranho. - Olhe para mim, Joaninha, implorou o marido, baixinho. Joaninha abraou-se fortemente ao Capito Incio e ento no queria mais deix-lo. Quando o casal se separou, os noivos tambm j se haviam separado. O Capito Ortiz se afastara para providenciar a ordem da partida. O momento, porm, era grave, e todos o aproveitavam de acordo com seus sentimentos e interesses. Por trs da Igreja, confabulavam dois homens. Um deles, de maneiras afidalgadas, casaco fino de belbute29, peitilho branco, punhos de renda, sapatos de fivela, olhos manhosos e fala macia. Era Sebastio do Rego: - Pois no se esquea, seu Ramires, do plano combinado! De suas habilidades depender o nosso sucesso. Os vinte administrados30 que D. Rodrigo ofereceu bandeira foram arranjados por mim. O Alferes Peixoto fcil de ser levado, com todos os seus homens. preciso embaar31 o velho. Na hora oportuna, tome conta da bandeira ou, se lhe parecer mais conveniente, substitua o ouro das bruacas... pensou um momento e continuou: Porque esse ouro tem de ser nosso! Vosmec s no faz isso se no quiser. O velho confia tudo a vosmec... Posso contar? 9 Nuno Ramires, barba raspada, bigodes finos e retorcidos, cabeleira oleosa, vista baixa, bateu o rebenque32 na bota e prometeu: - No tenha dvida, senhor Sebastio do Rego. As bruacas de ouro viro na frente para ns. As de pedra viro atrs, com eles... A estas palavras os dois puseram-se a rir ruidosamente. Mas interromperam o riso, de sbito, porque o Capito Ortiz passou, fulminando-os com um olhar de desconfiana e desprezo. E se apartaram imediatamente, receosos de que ele tivesse ouvido alguma coisa... Uma trompa de chifre soou, anunciando a partida. O burburinho do povo recrudesceu. Os chefes montaram a cavalo. Debaixo de uma velha figueira, prxima igreja, as despedidas dos bandeirantes humildes parecia que no acabava mais. Me Felcia benzia o filho Jernimo, que estava ajoelhado a seus ps, rodeado de companheiros contritos e confiantes na fora daquela orao. Benzia-o, invocando todos os santos de sua devoo para proteg-lo: - So Benedito e So Sebastio, So Cosme e So Damio, Santo Onofre e Santo Espiridio, So Jorge e So Pantaleo, livrai meu filho Jeromo (olha em torno), e todos os seus companheiros, dos bugres, dos raios, das enchentes, das bexigas, das cimbras, das carneiradas33, dos bichos de peonha e dos bichos carniceiros34, das traies... Nesse momento da beno, chegou Nuno Ramires por trs e, dando um pontap em Jernimo, gritou, furioso: - V cuidar das bruacas, moleque mandrio! Seguiu-se um silncio de estupor. Me Felcia esbugalhou os olhos, apavorada. Formou-se um claro35 ao redor de Ramires, enquanto Jernimo se encaminhava para a pilha de bruacas. Mas o Capito Ortiz, que assistira cena estpida, chamou pelo pobre escravo: - Jernimo! Deixe as bruacas e venha aqui ajeitar os almocafres nas mulas cargueiras! - Perdo, cavalheiro, atalhou Nuno Ramires com um vinco de sarcasmo no rosto. Ele est cumprindo uma ordem minha! - Pois Vossa Merc que mande um administrado do senhor Sebastio do rego cumprir essa ordem...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica O feitor estremeceu de dio, percebendo a aluso aos bugres de confiana do seu ilustre cmplice. Mas achou conveniente calar-se e ceder. Com imensa satisfao dos companheiros, Jernimo foi atender ordem do Capito Ortiz, voltando as costas tranquilamente ao terrvel feitor. Me Felcia abalava a cabea, sentindo-se vingada. Soou, de novo, a trompa. A bandeira punha-se em marcha. Trinta e nove cavaleiros e cento e cinquenta e dois infantes36, inmeros escravos de p no cho e bugres sobraando arcos. Todos os brancos e mamelucos armados de escopetas, facas e adagas. Muitos levando machados de falquejar, pendentes da sela. Nos ombros e a tiracolo, cobertores de baeta37 enrodilhados. O Anhangera marchavam na frente, ladeado pelos filhos Bartolomeu e Baltazar. Este causava admirao porque, por sua expresso resoluta, parecia um bandeirante completo: trazia a tiracolo a bela espingarda de pederneira atrombetada, como mira e ponto, soquete38 e guarda-mo39 de prata, que o tio Simo lhe dera, pelo ltimo aniversrio; da cintura, pendia a patrona 40, com seu polvarinho41. Seguiam-se os subchefes: Simo Bueno, com a sua bela barba branca, contrastando com a barba negra do Capito Ortiz, que marchava ao seu lado; Antnio Ferraz de Arajo, envergando suas armas de algodo acolchoadas, o que lhe dava aparncia de muito gordo; o Capito Incio Dias Pais, levando uma rede de pescar no aro42 da sela; e os capeles da tropa, Frei Cosme de Santo Andr, um franciscano baixinho, de barba ruiva, cavalgando um cavalo troto, e mais Freis Antnio da Conceio e Frei Lus de Sant'Ana, ambos beneditinos, altos e bem postos nas suas alimrias. Seguia-se, ento, o Alferes Peixoto, da milcia de S. Paulo, todo pimpo, distribuindo olhares, frente de seus comandados que marchavam p; e, por fim, Nuno Ramires, a cavalo, precedendo a bugrada e os escravos negros que levavam pelo cabresto as mulas cargueiras, atulhadas de cestos encourados, bruacas e bas de bois43. Os sinos continuaram bimbalhando... De mistura, ouvia-se o ladrar dos ces e o mugido dos bois que iam sendo tangidos pela tropa. As mulheres, paradas aqui e ali, pelas imediaes da igreja, agitavam os lenos para os parentes que se afastavam... Os olhos do Capito Ortiz voltavam-se, a cada momento, para o grupo formado 10 pela famlia de Anhangera. Nisto, Belinha tomou coragem e fez ao noivo um ltimo gesto de adeus, mas logo ocultou o rosto no leno, chorando, e nem viu que ele lhe retribua o carinho, tirando o chapu e acenando-o repetidamente. Rompendo a massa dos infantes, me Felcia fez uma derradeira recomendao a Jernimo: - V com Deus, meu filho! E tome tento, disse, baixando a plpebra com o indicador, para abrir mais o olho, lavado de pranto. Olho vivo com seu Ramires!... Aquilo no feitor: malfeitor que ele ! Isso sim! E acrescentou ainda, mudando de expresso: V com Deus e a Virgem Maria!

III A PRIMEIRA CRUZA bandeira rumou para as bandas de Jundia. Dentro em pouco, a marcha era to regular, que o tropel dos cavalos se fundia com os passos cadenciados dos infantes. Entre estes, destacavam-se, de mosquete44 ao ombro e polvarinho a tiracolo, Manuel Cabea, mestrefundidor, gordo, barrigudo, bastos bigodes, e Antnio Indai, mateiro45 mameluco, magro, tostado, imberbe. No se conheciam ainda, pois o mestre-fundidor havia chegado recentemente do reino. Entretanto a sorte comum criou entre eles uma rpida e crescente camaradagem, tanto assim que se puseram logo a conversar, sem mudar o ritmo da marcha. Manuel Cabea perguntava, passando a mo nos bigodes: - O amigo j foi ao serto? - Mas que dvida! Eu fui nascido l... - E que tal, hein? - Ah! O serto um paraso! - No tem muito perigo, pois no? - Pra divertir sempre aparece algum, disse Indai, com um sorriso irnico...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica - Animal de peonha?, arriscou-se a indagar seu Manuel. - Assim!... informou o outro, apinhando os dedos, para juntar o gesto palavra. Seu Manuel, cofiando os bigodes, visivelmente nervoso, continuou: - Muito bicho sugador? - Um dilvio!... - Muita fera carniceira? - Ah! Que nem formiga! - Muita peste e carneirada? - Nem fale!... Coitado do Manuel Cabea! Ele ia de mal a pior nas suas perguntas!... Mas, assim mesmo, continuava: - Muito gentio feroz? - Ih! o que no falta!... Sempre afagando os bigodes, o mestre-fundidor chegou-se mais ao mameluco e disse-lhe, com a voz surda de emoo: - E diga-me c: verdade que eles comem uma pessoa viva? - Ah! Isso mentira!... Seu Manuel sentiu-se aliviado com a informao: - Bem, logo vi que havia de ser mentira!... Mas Indai prosseguiu, com simplicidade gaiata: - Uma pessoa viva eles no comem. Matam primeiro, cozinham e comem depois... Desta vez, seu Manuel fechou a carranca, passou a mo repetidas vezes no bigode e emudeceu. A bandeira marchou at sol a pino, cerca de quinze lguas de campo aberto e pequenos outeiros, e chegou mata, pois segundo o costume dos bandeirantes, s deviam caminhar nas primeiras horas da manh, no s para evitar os rigores do sol, com para poderem aproveitar o resto do dia, sondando o terreno em volta e possivelmente caando e pescando. No dia seguinte, a estrela-d'alva ainda cintilava com todo seu esplendor e os pssaros comeavam a voar assustados de seus 11 ninhos. Um barulho estranho tomava conta da mata. Duzentas vozes ecoavam, tiniam machados de falquejar, tombavam troncos enormes, abrindo um claro na galharia de em torno: era a bandeira rasgando caminho em plena selva!... A simples trilha de uma fera transformava-se num largo carreador46 para dar passagem aos grandes cargueiros. Das rvores de candeia47, tiravam achas de que se utilizariam noite. E os homens iam se embrenhando na selva, at que, numa ampla clareira, acamparam. E a noite veio surpreend-los j no corao da mata. Grupos aqui e ali foram se acomodando para o sono reparador luz das achas de candeia, que punha sombras fantsticas na espessura48. Quebrando o silncio dos homens, ouviam-se atritos de folhas secas, pios de aves noturnas, barulhos de gua, sussurros de vento, o quiriri impressionante da floresta adormecida. Ainda despertos, Antnio Indai e Manuel Cabea cochichavam. O mameluco no perdia ocasio de assombrar o companheiro. Quando j estavam deitados, ele apontou para um ramo alto de perobeira e disse: - seu Cabea, repare l quem est namorando vosmec... Seu Manuel olhou na direo indicada e avistou logo um mocho orelhudo, de olhos encadeados pelos archotes. Mas, no se dando por achado, fez tambm uma descoberta, num outro galho: - seu Indai, olhe l um ratinho pendurado, pedindo a vosmec um pedao de queijo... Antnio Indai deu uma gargalhada: - Ratinho, seu Manuel? Aquilo um morcego que vai se regalar com o sangue de vosmec, at de madrugada... Desta vez o nosso amor assustou-se: puxou o cobertor at a cabea e dormiu abafado toda a noite. S depois de quatro dias, a bandeira saiu da mata e marchou por uma campina at as barrancas do rio Moji e como j fosse tarde, armou acampamento ali mesmo. Ao clarear do outro dia, atravessou o rio a vau49, com gua pelo peito. Os tropeiros tiveram de repartir a carga das mulas e fazer o transporte em duas ou mais viagens. Os negros erguiam os fardos de provises acima da cabea e transpunham o rio penosamente.

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Enquanto isso, Nuno Ramires andava numa extraordinria atividade, confabulando, aliciando50 a chusma de aventureiros, preparando enfim, a grande traio... E assim prosseguiu a bandeira. Percorreu cerca de cem lguas em trinta dias, por uma trilha mais ou menos conhecida pelos mineiros de Sabar, at que atingiu as barrancas do rio Grande. A fez alto. E dentro de pouco havia uma atividade febril no acampamento: Anhangera dirigia a fabricao de canoas de samama para a travessia do rio. Agora que ia comear a tarefa. Dali em diante seria o desconhecido e j o cansao e o desalento comeavam a vincar as fisionomias... Algum se aproximou do Anhangera: era Simo Bueno, que vinha prevenir o irmo de que as provises estavam esgotadas... O Anhangera, porm, no mostrou sinal de surpresa ou desagrado; limitou-se a dize: - Tanto melhor para as mulas cargueiras... Agora viveremos da providncia das armas. Mas previna os homens que no cacem a tiros sem minha licena: No convm atrair a ateno dos caiaps51, que vivem de corso52 e infestam este serto!... Numa hora de descanso a bugrada atirou-se ao rio. Antnio Indai convidou o companheiro: - mestre-fundidor, vamos mergulhar a cabea na gua? - Agradecido, seu Indai, mas j fui batizado. O mameluco, porm, disfarou e empurrou seu Manuel pela barranca. E este, que no esperava, bumba, caiu na gua! Debatia-se furioso, aos berros. Indai mergulhou e agarrou-o por uma perna. Ento recrudesceu a gritaria: - Um jacar! Um jacar! Acudam!... Mas logo se agarrou a uma taboca53 pendente da margem e pisou no seco, resmungando: - Era o que me faltava! Estar a tomar banho no mato, como se tivesse que ir recepo na corte!... Reinava franca alegria entre os banhistas, quando um carij, que atravessava o rio a nado, voltou nadando a custo e gritando: - Tapuia anamaima!54... Tapuia anamaima!... Houve um sobressalto geral. Os banhistas saram da gua. O 12 ndio foi arrastado para a margem e examinado: estava ferido, a flecha no peito! Estendido no cho, o infeliz arquejava. No havia esperana de salv-lo. Era um bugre espadado e ainda moo. Interrogado, fez um supremo esforo e disse: - Paran up omun suaxara!55, e olhou para o outro lado do rio. Os circunstantes acompanharam o seu olhar e perceberam um bulir de folhas na margem oposta. Mas ningum atirou, por ordem expressa do Capito Ortiz; qualquer hostilidade iniciada seria um transtorno para a travessia do rio, na madrugada seguinte. Sobre o corpo do ndio sepultado ergueu-se o primeiro marco daquela viagem para o desconhecido: a cruz. Em torno dela, Frei Cosme rezava em cantocho, com os ndios ajoelhados.

Tup, Tup, iuaca pinai, remunh ne rara, oic iuacop... quah pituna pup... quah pituna pup...Frei Lus e Frei Antnio repetiam a orao, em sua lngua, acompanhados, em coro, por todos os cabos da tropa: - Senhor! Senhor! Que estais no cu, fazei com que vosso filho esteja no cu, ainda esta noite, ainda esta noite...

IV O ROTEIRO DESCONHECIDOPassaram-se meses e a orgulhosa bandeira estava reduzida a um punhado de criaturas famintas, maltrapilhas, febrentas, opadas e moribundas. E errava por chapades56 perdidos, carrascais57 espinhentos, corumbs58 desoladores... Certa vez, a inanio da maioria forou arranchamento demorado, margem de um rio mais ou menos piscoso. Os grandes banhos reparadores j no seduziam ningum. Sucuris espreitavam os descuidados, ocultas nas touceiras das margens, e jacars estavam aparecendo com muita freqncia. O

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica maior perigo, porm, era o das piranhas, que tinha reduzido um carij a ossos limpos, em poucos minutos... Em compensao, elas eram o alimento mais certo da tropa. Antnio Indai apanhava-as com facilidade, lanando gua o que restava de seu cobertor de baeta vermelho. Atrados pela cor sangunea, os terrveis peixes carnvoros metiam os dentes agudos no tecido; Indai dava um puxo enrgico e atirava as piranhas na margem, onde elas rapidamente se tornavam inofensivas... Dentro dos ranchos, em redes ou jiraus59, deliravam os febrentos. Pela manh, os frades vinham confess-los; tarde, o Anhangera sempre os visitava, animando-os, mas saa abanando a cabea, em silncio... O mameluco e o mestre-fundidor faziam a enfermagem com admirvel solicitude. Um dia, ao pr-do-sol, seu Manuel acabou de cobrir o rosto de um morto e saiu praguejando contra um urubu que rondava por perto: - Espera que eu j te ensino, ave agourenta! Disse e entrou no seu rancho, de onde voltou trazendo uma escopeta. Fez pontaria e ia atirar quando, por detrs dele, chegou Antnio Indai e murmurou-lhe ao ouvido: - No adianta! H outros para comerem vosmec... E apontou para um bando que se entretinha a devorar os restos de um cavalo, morto de inanio. O urubu abiu vo. Enquanto isso, num rancho prximo da mata, Nuno Ramires tramava contra o Anhangera e o Capito Ortiz. Sentado numa canastra de couro, dizia aos aventureiros, entre os quais se encontrava o Alferes Peixoto, queimado e emagrecido pela dura jornada: - Vai para quase um ano que estamos merc desse velho manaco e desse capito imbecil! Tinha razo, o senhor Sebastio do Rego para opor loucura desta empresa. Mas o senhor governador foi no engodo60... Agora s nos resta uma salvao: tomar conta da bandeira! Os ouvintes abalavam a cabea, em sinal de aprovao. E Ramires, animado, continuou mais eloquente ainda: - O velho no tem roteiro algum! Desde Moji que prometeu mostrar-nos o rumo seguro. Mas adia sempre... Enquanto isso, os 13 companheiros vo morrendo... Estamos esfarrapados, sem uma vara61 de pano novo nas bruacas. Estamos famintos e no nos resta nem um paneiro62 de farinha, nem um surro63 de carne salgada... J comemos todos os ces e acabaremos comendo os restos de nossas cavalgaduras, com palmito e mel silvestre. decidirmos a volta ou a mudana de rumo. E isso quanto antes!... Os aventureiros continuaram a ouvir tudo em silncio. Seus rostos, tornados lvidos e sinistros pela misria e pela revolta, fecharam-se mais ainda. Ramires sentiu o terreno fcil e prosseguiu: - Que respondem, companheiros? Que me diz a isto, Alferes Peixoto? Este, decididamente, aplaudiu o conspirador: - Digo que estou de pleno acordo, seu Nuno Ramires. Vamos ao rancho do chefe exigir o roteiro. E, em atitude ameaadora, acrescentou: - Se ele se negar!... Todos se levantaram, erguendo as escopetas, num gesto de ameaa, repetindo: - Se ele se negar!... Nesse momento entrou um aventureiro, empurrando Jernimo pela frente: - Encontrei este cambembe64 sonso escutando a fora... Ramires sorriu com perversidade e disse: - Deixe-o por minha conta... E, voltando-se para os seus comparsas: - Vo fazer o combinado, meus amigos, que eu fico ajustando contas com este traidor. Ele vai aprender a calar de uma vez por todas... Logo depois, estarei l com vosmecs... Os aventureiros saram do rancho. Ramires dirigiu-se a Jernimo: - Quem te mandou me vigiar, diacho do inferno? Jernimo, de olhos baixos, no respondeu: - Ah! No respondes? Pois vais responder!... Avanou e derrubou Jernimo de um soco; ps a bota ferrada no peito nu do desgraado, desembainhou a espada e, aproximando a ponta da lmina ao pescoo do escravo, insistiu:

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica - Fala, miservel!... Jernimo tinha uma expresso de angstia, mas continuava calado. Ramires, na mxima exaltao, tocou a ponta da espada na pele do negro e repetiu: - Pela ltima vez: quem te mandou me atraioar, co tinhoso? O escravo estava de boca aberta, olhos esbugalhados, no auge do terror! E Ramires acrescentou: - Capito Ortiz? No mesmo instante, como se estivesse aguardando a chamada, o Capito Ortiz entrou e disse, perfilando-se: - Presente!... O feitor recuou surpreendido e voltou a espada para o capito, praguejando: - Ah! Traidores!... O Capito no se perturbou: - Jernimo! Diga a Bueninho que mande dar o toque de alarma! O negro recobrou nimo como se houvesse ressuscitado. Levantou-se e ia saindo quando Ramires tentou interceptar-lhe o passo, mas o capito, desembainhando tambm a espada, deu um salto e cobriu-lhe a retirada: - Aviso ao cavalheiro que a minha toledana65, disse Ortiz, brandindo a espada na direo do feitor. Nuno Ramires, sentindo-se impotente diante da visvel superioridade do adversrio, tremia de dio. E Ortiz continuou, batendo as palavras: - Rica valentia, que se exerce contra um escravo indefeso! assim que se honra a confiana de um chefe: traindo-o e acusando de traio ao seu fiel escravo!... Ramires tentava fingir serenidade e fazia ironia: - Perdo, eu no sabia que o senhor capito era to ntimo do escravo fiel... - No confunda intimidade com piedade e justia!... - Piedade do negro ou inveja do prestgio do branco? Previno-o de que as armas da bandeira esto em minhas mos, arriscou-se a 14 lembrar, ameaador. - Vosmec sabe que no me faz sombra em terreno nenhum. E vou provar-lhe que no tenho piedade s do negro cativo, mas tambm do branco covarde: podia mandar enforc-lo, como traidor de bandeira, mas vou conservar-lhe a vida... Dou-lhe novas oportunidades para aumentar o seu prestgio... Enquanto isso ocorria, porta de seu rancho o Anhangera esquadrinhava o horizonte, de perfil recortado no cu anoitecido. De vez em quando respirava profundamente para combater a opresso de um pensamento angustioso. Erguia os olhos e fitava demoradamente a estrela Vsper. Do fundo do rancho, Baltazar acompanhava desassossegado o drama ntimo que se estampava na fisionomia de seu pai. Baltazar crescera a olhos vistos e, apesar das terrveis vicissitudes, sua barba de adolescente no podia desmentir que ele j era um homem, to valoroso e decidido como os demais. Desde pequenino acostumara-se a ver o pai encarar as maiores dificuldades com a tranqila certeza de venc-las. Agora, ali estava aquele gigante de vontade e coragem, com o semblante devastado pelas provaes e pelas incertezas da caminhada trgica... Baltazar bem sabia que o abatimento daquele Anhangera no vinha das fomes que passava, mas do sofrimento moral de ver sua bandeira se acabando e o seu sonho de quarenta anos sempre fugindo ao seu alcance, como boitat66 ao vento da noite... O Anhangera despertou de seu pesadelo com o rudo de passos que se aproximavam: era a chusma de aventureiros descontentes... Alferes Peixoto, que vinha frente, tomou a palavra, sem rodeios: - Chefe! Queremos saber, de uma vez por todas, qual o roteiro da bandeira... Com o perdo de Vossa Merc, estamos que nem besouros tontos, dando cabeadas no serto bruto... Vamos andando sem rumo, vamos morrendo e no chegamos nunca... preciso que Vossa Merc nos mostre o roteiro!... Anhangera fechou o sobrolho, compreendendo a situao. E toda a fora prodigiosa de seu esprito, que parecia morta, ressurgiu num momento. Encarou friamente a turba ameaadora e disse, batendo as slabas: - No tenho roteiro nenhum para mostrar...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Houve um zunzum de protesto, que tendia a avolumar-se. Baltazar empunhou a sua bela espingarda e correu para a porta, postando-se ao lado do pai. Este repetiu imperturbvel: - No tenho roteiro nenhum, mas, em considerao s penas por que temos passado, posso dizer-lhes que vamos caminhando rumo ao oeste, at alcanar a taba dos quirixs 67, onde vive um velho cacique branco, chamado Loureno, amigo de meu pai, que nos servir de guia. Enquanto no chegamos l, fiquem sabendo disto: o roteiro de um bandeirante que se preza traado no cu, pelo sol!... No h risco mais claro nem livro mais fcil de ler... E saibam, de uma vez por todas tambm, que a palavra do bandeirante sempre a mesma: Para Adiante!... S os pusilmines, os miserveis e os traidores que pensam em voltar... Do meio da massa de descontentes, porm, gritou um aventureiro, erguendo a escopeta: - Estamos cansados de promessas!... Queremos o roteiro!... - O roteiro!... O roteiro!... O roteiro!... - ps-se a exigir a turba em tumulto. - Para trs, gritou Baltazar, pondo-se frente do pai e apontando a espingarda para os aventureiros. Para trs!... Acovardada com o desassombro do jovem Anhangera, a chusma recuou. Anhangera, impassvel, cruzou os braos e encarou a todos... Nisto soou o toque de alarma. De todos os lados surgiram, correndo, infantes, negros e ndios e, num muito, toda a bandeira estava reunida diante do rancho do chefe. Os aventureiros, surpreendidos com o golpe, calaram-se aguardando os acontecimentos. Foi ento que apareceu, apressado, o Capito Ortiz, ajeitando a espada ao cinturo: - Anhangera!... Os escutas68 acabam de descobrir pegadas de bugres. Mandei dar o alarma porque estamos para ser sitiados pelos caiaps... Houve um espanto geral, ao tempo em que o Anhangera sorria e indagava: - E poderemos resistir? - Aqui impossvel!... 15 - Ento ordene a partida. No h tempo a perder!... O Capito Ortiz, como se nada houvesse acontecido, voltou-se para o Alferes Peixoto e ordenou: - Alferes Peixoto! Rena os infantes. Coloque os doentes nos cavalos que nos restam, os moribundos nas macas de tucum69 e mande dar o toque de partir imediatamente! Alferes Peixoto perfilou-se: - Perfeitamente, senhor capito! E comeou a marcha batida pela noite adentro... Ao claro da lua nova, pareciam mais lvidos os corpos estendidos nas macas e mal cobertos pelas roupas em tiras... Nas alimrias esqulidas, iam outros tantos corpos murchos de febrentos, que deliravam e tinham vises fantsticas, muitas vezes to horripilantes que chegavam a impressionar os que ainda gozavam sade mas no possuam foras para resistir ao contnuo espetculo do sofrimento de seus companheiros... O grosso da tropa, inclusive alguns chefes, marchava a p. De vez em quando, os padioleiros eram aliviados de sua carga humana que ficava pelo caminho, marcando-o com mais uma cruz... Para diante!... Sempre para diante!... J fazia mais de um ano que tinham atravessado o rio das Velhas, o rio Paranaba, e o rio Corumb. E agora transpunham as barrancas de um rio caudaloso e profundo, que ficou se chamando Meia Ponte. Para isso, os homens se serviram das rvores emaranhadas de lianas70, cadas sobre a corrente. Fizeram-no, agarrando-se aos cips que pendiam da abbada de verdura. Os animais atravessaram nadando, mas presos a longos cabrestos de muurana71. Passado o rio, caminharam algumas horas e deram num campo desolado de cupins. Manuel Cabea sentou-se num deles, com expresso de desistncia definitiva... A bandeira continuou a marchar arrastadamente. Antnio Indai tentou animar o companheiro: - Coragem, seu Manuel, que estamos chegando! Seu Manuel abanou a cabea em sinal de profunda descrena. E no se mexeu o lugar. Do alto de seu cavalo, o Capito Ortiz percebeu a dificuldade. Voltou-se, apeou e perguntou: - Que h companheiro?

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica - Ah, meu capito! Deu-me uma coisa nas pernas que no posso dar um passo... - Faa um esforo, seu Manuel! No podemos arranchar aqui!... - Mas andar como, se as pernas esto pregadas no cho? Dizendo isto, ele se abaixou e tentou erguer as pernas com ambas as mos. Mas s conseguiu levantar o cano das botas, j sem solas, expondo os ps chagados. E ento concluiu, abanando a cabea: - Como v, meu capito, no possvel! Ortiz compreendeu, puxou o cavalo pela rdea e ajudou seu Manuel a montar, por meio do cupim, penosamente. Por fim, os bandeirantes fizeram alto no sope de uma serra. No lhes restava foras para transp-la naquele dia. O desalento era avassalador. A fome no poupava nem os chefes, nem os capeles da bandeira, nem os humildes escravos negros e carijs. Ao cair da noite, Frei Cosme, vencendo o prprio desnimo, regou, como de costume, para aquele triste punhado de famintos e prometeu-lhes que, em breve, achariam a rota desejada e, com ela, o alimento, o reconforto e at o ouro. Um aventureiro de faces escaveiradas no se conteve: - No precisamos de ouro, precisamos de alimento!... - Pois vs tereis alimento em abundncia! - respondeu Frei Cosme. - Mas quando? - foi a pergunta geral. Frei Cosme, cheio de inspirao, corajosamente afirmou: - Amanh! Temos sofrido muito, mas no temos orado com o fervor devido. Precisamos rezar agora, com toda a f e com toda a confiana. S a orao poder fazer o milagre!... Disse e caiu de joelhos e toda a gente, tomada do mesmo impulso, ajoelhou-se tambm. E Frei Cosme, acompanhado por Frei Lus e Frei Antnio, rezou, num tom profundo de litania. Suas palavras eram repetidas fielmente por toda a bandeira, at pelo prprio Anhangera: - Senhor! Senhor! Neste momento de angstia e fome, de dor sem nome, d-nos alento, fora e alimento, Senhor! Senhor! Faze, 16 Senhor, que este teu povo possa, de novo, recuperar a f perdida e assim salvar a prpria vida... Senhor! Senhor! E enquanto aquela turba desamparada lanava ao cu seu apelo de misericrdia, a centenas de lguas de distncia, na fazenda de Parnaba, Belinha acendia um crio no altar da Senhora da Boa Viagem e, em companhia das irms, rezava chorando, pela sorte de seu pai, de seus irmos, de seu noivo, de todos aqueles heris perdidos nos confins sertanejos...

V OS QUIRIXSBaltazar entrou correndo no rancho e disse ao Anhangera: - Nhor pai, chegue a fora e veja que mundo de borboletas! uma coisa como nunca se viu! O Anhangera levantou-se prontamente e correu para a porta. Logo depois voltou de olhos brilhantes de alegria e esperana, exclamando: - Pan-pan72, filho! Pan-pan! Baltazar arregalou os olhos sem compreender, e perguntou: - Pan-pan, pai? - Sim, filho. So as borboletas que esto de mudana. Sabe o que isso quer dizer? - continuava o velho bandeirante, cada vez mais entusiasmado. - Quer dizer que estamos prximos da taba dos quirixs! Baltazar compreendia cada vez menos. Que teria que ver a migrao das borboletas com a taba dos quirixs? Decididamente o pai estava tendo vises... Os dois saram para contemplar, de novo, o espetculo rarssimo: milhares de asas brancas palpitavam a pequena altura e outros milhares de asas inquietas pareciam recobrir o cho e as rvores de um imenso lenol de seda branca... Era maravilhoso! A esse momento, a novidade j havia corrido e um certo

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica alvoroo sacudira a desalentada bandeira. At os doentes queriam ver e procuravam sair dos ranchos, arrimando-se s paredes e aos companheiros vlidos... O quadro era novo e alegre e todos o encaravam de alma refeita. O Anhangera exultava. Alguma coisa lhe dizia que o pan-pan era um sinal de que tinha encontrado o roteiro. S uma vez tinha visto aquele fenmeno to belo: foi quando era menino e acompanhava seu pai por aqueles sertes. E no dia seguinte ao da chegada das borboletas, lembrava-se muito bem, deram com a taba dos quirixs. Esta ideia podia ser ilusria, mas teve a fora de uma esperana. Por isso, voltando-se para Baltazar, disse: - Baltazar, rena os vanguardeiros e veja se descobrem alguma coisa do alto da serra. O valente rapazinho aprestou-se imediatamente e partiu frente dos vanguardeiros. Fizeram juntos uma batida pela mata densa que orlava as montanhas e deram com uma picada. Subiram por ela, cheios de precauo e, de repente, na virada da serra, surgiu-lhes diante dos olhos uma roa, com ranchos abandonados, milharal, mandiocas, aboboreiras atapetando o cho, bananeiras apendoando cachos maduros... A alegria e a certeza do milagre brilharam no olhar dos mseros famintos. Num abrir e fechar de olhos, caram como caititus na roa, fazendo uma colheita feroz. Os bugres davam dentadas no milho cru e devoravam bananas sem tirar sequer a casca. Baltazar, vendo que era intil exigir obedincia quela gente, voltou sozinho para anunciar bandeira a extraordinria descoberta. A nova foi acolhida com um grito de triunfo: - Viva Deus! - exclamou Frei Cosme. - Viva! - responderam os circunstantes. A picada, excessivamente estreita para a impacincia daquele povo, ainda exigiu de todos uma prova; no podiam chegar to depressa quanto desejavam roa bendita. E os desgraados se atropelavam, metiam o peito e se enredavam nos cipoais, feriam-se nos arranha-gatos, caam ao cho, peados pelas filandras73 rasteiras. Erguiam-se, porm, rapidamente, e continuavam a corrida. At os mais enfraquecidos subiam a picada quase a correr, como se tivessem sarado de repente... E, em poucos minutos, toda a bandeira se derramava pela roa. Um bando de macacos fugiu, assustado com os 17 importunos visitantes. O Alferes Peixoto viu-os e ia atirar sobre eles, mas foi impedido pelo Anhangera: - Guarde o tiro para depois. No devemos atrair a ateno dos bugres antes de matar a fome e refazer-nos da jornada. Nisto ouviu-se um barulho na espessura do milharal asselvajado. Os homens puseram-se em guarda, voltando a boca das escopetas para o local de onde provinha o rudo. E Manuel Cabea apareceu, sobraando duas abboras imensas, com um riso vitorioso. Uma hora depois, era o prprio Manuel Cabea que se propunha a preparar uma caldeirada de milho, abbora e mandioca. Estava ele a mexer o caldeiro fumegante, quando chegou Antnio Indai trazendo um macaquinho. Seu Manuel, vivamente interessado, exclamou: - Ai que rico!... Coitadinho, at parece gente! mameluco, queres fazer-me presente desse bichinho? - Que vai fazer com ele, seu Manuel? - indagou Indai. - Ora, que h de ser? Vou cri-lo, pobrezinho... Antnio Indai entregou o macaco a seu Manuel, que o segurou com grandes cautelas, fez-lhe festas e comentou: - At parece teu filho, mameluco... tarde, em volta de caldeires fumegantes, os homens comiam sofregamente. Seu Manuel, vendo Antnio Indai matar a fome como um desesperado, aproximou-se dele, bateu-lhe no ombro e segredou-lhe: - Que tal a caldeirada? Antnio Indai resumiu a sua opinio, estalando os beios e acrescentou: - Ergue um defunto!... Seu Manuel acariciou o estmago com a mo espalmada: - Nada como um caldinho de macaco para curar a fraqueza de uma pessoa... E se afastou, sem mais explicaes. Quando Anhangera achou a hora oportuna, destacou trs ndios para a batida pelos arredores e com mais dezesseis homens enveredou por uma picada aberta na montanha. Iam com ele: Baltazar, Bueninho, Ortiz, Antnio Ferraz de Arajo, Simo Bueno, Alferes Peixoto e Antnio Pais, cada qual ladeado por um infante bem

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica armado, e logo aps Antnio Indai e Manuel Cabea. Muito atrs caminhava Ramires, sempre conspirando, com os seus aventureiros de confiana, e, a maior distncia ainda, o restante da bandeira, com as cargas e os doentes. Jernimo, sempre dedicado, ora estava na frente para servir ao chefe e a Ortiz, ora se atrasava para vigiar as quatro mulas cargueiras que restavam, sem perder de vista os movimentos do feitor. Os batedores74 escalaram cautelosamente a montanha. Na outra vertente, para o norte, avistaram um aldeamento de ndios, com seus fogos. O Anhangera suspendeu a batida e ordenou bandeira que se preparasse para um ataque, durante a madrugada. E assim se fez. Seriam mais ou menos quatro horas da manh quando os bandeirantes desceram a montanha, em silncio, pisando o cho com extremos cuidados, para no serem pressentidos... Mas nisto, ouviram latidos desesperados de ces. Suspenderam o avano e deitaram-se no cho, aguardando o movimento da taba; os ces continuaram a latir, logo depois a ganir lastimosamente e tudo silenciou de brusco... Os bandeirantes se ergueram e continuaram avanando. Mas tiveram que cair de bruos de novo porque, da mata prxima, comeou a cair uma chuva de flechas em torno deles. Os selvagens haviam sido advertidos da aproximao de estranhos pelos ces da taba... Anhangera continuava a exigir terminantemente que os bandeirantes no fizessem fogo, por isso todos se imobilizaram, resguardando-se nos relevos do terreno. Mas Simo Bueno, que estava a cavalo, se atreveu a franquear a mata e foi surpreendido por um bugre, que, do alto de uma rvore, lhe caiu sobre os ombros. Rolaram os dois por terra, num corpo a corpo feroz. O cavalo assustou-se e disparou pelo mato. Manuel Cabea, que estava mais perto, correu atrs do animal. Surgiram-lhe, porm, dois bugres que o deixaram estendido como morto, no cho, com pancadas de garrote75. Em seguida, tentaram afast-lo para longe, na inteno de come-lo mais tarde. Mas Antnio Indai acudiu e afugentou os bugres fora de cutiladas. Por seu lado, o punhado de bandeirantes, depois de curtas escaramuas em que foram feridos muitos, conseguiu repelir os selvagens e, repentinamente, toda a luta cessou: a tribo internara-se pela mata, abandonando a taba. 18 Antnio Indai, a muito custo, conseguiu trazer Manuel Cabea, desacordado e ensanguentado, para p-lo a salvo da sanha dos bugres... Quando os bandeirantes franquearam, afinal, o recinto da maloca, encontraram os ces dos ndios todos mortos, para no denunciarem a pista de seus donos... O Capito Ortiz examinou os cadveres dos pobres animais e concluiu apreensivo: - Eles voltaro esta noite. Mas os bandeirantes, em geral, s se preocupavam com a vela perspectiva: tinham mais de vinte ces para comer! A oca central era uma construo alta, circular, coberta de pacova76, com buracos juntos ao cho, que eram as portas. Depois de convenientemente fortificada, a bandeira se instalou nela. Nas camas, que eram cestos de buriti, foram postos os feridos mais graves; outros ficaram mesmo pelo cho. Enquanto alguns homens vigiavam por seteiras abertas na parede, Antnio Indai lavava os ferimentos de seu Manuel. Por efeito da gua fria ou por acaso, naquele instante o mestre-fundidor voltou a si e resmungou, abrindo os olhos a custo: - Os marotos reservaram todas as pancadas para a minha cabea... Ao que Indai respondeu, convencido: - Felizmente! Seu Manuel vibrou de indignao: - Como diz? - Sim, explicou Indai, porque se sobrasse alguma pancada para a minha cabea, a estas horas eu estaria morto e seu Cabea comido... Mas aqui estamos salvos, por enquanto... acrescentou, olhando para os vigias das seteiras. Seu Manuel compreendeu o gesto e fechou os olhos, num novo desfalecimento. noitinha, uma primeira flecha atravessou a parede do rancho. Era o sinal da batalha comeada. E logo uma nuvem de flechas comeou a chover, de todos os lados, na fortaleza improvisada. Atravs das seteiras, os sitiados principiaram a atirar. O estrondo das escopetas ecoava dentro da noite longamente. Nuno Ramires, visivelmente inquieto, espiou a atividade dos bugres contra a oca e

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica segredou ao ouvido do Alferes Peixoto. Este fez um muxoxo de descaso e no abandonou o posto, junto a uma das seteiras. Dos dezoito ranchos que circundavam a oca central, s os mais prximos no tinham sido ainda incendiados pelos bugres. O claro das fogueiras facilitava a tarefa dos sitiantes, emboscados na orla da mata. Percebendo que iam ficar prisioneiros num crculo de fogo, Anhangera resolveu promover uma surtida desesperada. Esbarrou com Nuno Ramires e ordenou-lhe: - Seu Ramires, saia com seus homens e v ver de perto que esperanas nos restam... Ramires ficou lvido e engrolou uma desculpa: - Eu, chefe? Neste momento estou curando um ferido grave, que levou uma flechada no vazio77. Mas o Capito Ortiz, que ouviu a desculpa, zombou de seu inimigo: - Ah! Anhangera! O senhor Ramires indispensvel como enfermeiro. Deixe por minha conta que eu organizo a surtida. O Anhangera teve um sorriso de compreenso. E imediatamente Ortiz instruiu Indai, Antnio Pais, Bueninho e Baltazar para a misso arriscada. Para cobrir a sada dos batedores, o chefe mandou descarregar as armas em todas as seteiras com o fim de enxotar para longe os bugres mais avanados. E os homens, enquanto as escopetas troavam sobre as suas cabeas, saram da maloca rastejando. Aproveitaram-se de uma tigera78 que havia por trs da maloca e penetraram, afinal, na mata, sem serem vistos. Valendo-se da escurido de em torno, puderam levantar-se e caminhar s apalpadelas pelos troncos das rvores. Depois de algum tempo, guiados por foguinhos intermitentes, surpreenderam sete ndios sentados, fumando nos longos canudos de suas cangoeiras79. Fizeram o cerco e os aprisionaram. Foi, todavia, com as maiores dificuldades que conseguiram lev-los presena do Anhangera. Este, mal os examinou, ordenou a Calhamares: - Ponha-os na corrente! Ho de ficar sabendo que lidam com um filho de Anhangera!... Ouvindo isto, um prisioneiro, velho e capenga, que tinha sido 19 trazido por Baltazar, abriu a boca espantado e falou com gesticulao copiosa e expressiva: - Anhangera?! Filho de Anhangera?! Eu, Caxing... amigo seu amigo Loreno! Velho Loreno falou: Anhangera vai rio Vermelho, tem ouro... Anhangera fica amigo cacique goi, Nheenguiru conta tudo, mostra caminho pra Anhangera... Anhangera sorriu vitoriosamente: - Viva, Caxing! Andamos muitas luas para te encontrar. Tu s quirix? - Caxing quirix, sim. Cacique meu Abaet. - E onde est meu amigo Loureno? - Cacique ara matou velho Loreno e prendeu filha dele. - Pois vai em paz com teus irmos, Caxing. E fala ao cacique Abaet, que eu, Anhangera, sou amigo dos quirixs e quero que ele seja meu amigo. - Caxing fala, Anhangera! E os sete ndios foram postos em liberdade. Ao amanhecer, os bugres quirixs saram do mato e se aproximaram da maloca, receosos. Os bandeirantes lhes fizeram uma recepo festiva, conforme as instrues do chefe. Entenderam-se por sinais com facilidade e, quando comeou a troca de presentes, parecia que eram velhos amigos e no adversrios da vspera. Chegou o cacique Abaet, com seu majestoso canitar, acompanhado de dezesseis ndias moas e claras, com tangas de penas, faixas de algodo colorido envolvendo o trax e colares de tucum no pescoo. Antnio Indai correu para dentro da oca, alvoroando e assombrando seu Manuel com esta novidade: - Seu Manuel, vosmec no sabe o que est perdendo! O cacique l fora est oferecendo folhetas de ouro para quem quiser... Seu Manuel despertou da modorra e saltou da cama como se fosse de mola e no tivesse nada. Agarrou no brao de Antnio Indai e perguntou-lhe assombrado: - Folhetas de ouro? - De ouro legtimo! E das maiores! Seu Manuel comps-se s pressas e j ia saindo da oca quando

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Indai perguntou: - Aonde vai, seu Manuel? - Vou buscar o meu quinho... O mameluco soltou uma risada: - No vale a pena, seu Manuel! - No vale a pena? Ora, mentiroso! O cacique est oferecendo nada!... - Est sim! O cacique est oferecendo mas no por aqui. Precisamos caminhar ainda um bocado at a taba goi. Seu Manuel meteu-se na cama desalentado: - Eu logo vi... preciso caminhar! preciso caminhar! E no se tem feito outra coisa!... Esse chefe o que quer matar a todos ns! - O Alferes Peixoto no est mais conosco? Ramires, receando perder os adeptos, resolveu mentir: - Ah! O Alferes Peixoto continua conosco. - Mas no parece, - continuou o aventureiro, - est sempre a servio do Capito Ortiz... Ramires forou um sorriso e disse num tom confidencial: - Pois isso faz parte do plano, homem! - Ento ele est fingindo? - claro que sim. - Ah! - exclamaram os aventureiros. - Estamos entendidos, ento? - Perfeitamente! Perfeitamente! - concordaram todos. Logo depois, a bandeira palmilhava um deserto interminvel de barba-de-bode. O sol era causticante e a sede inexorvel. A marcha se tornava cada vez mais penosa. Os ps se erguiam a custo do cho. E s a esperana de encontrar gua ainda impelia aqueles mseros caminhantes... S Frei Antnio e Frei Lus se mantinham com certo apruma nas usas valentes alimrias, ao passo que Frei Cosme, num dado momento, pendeu a cabea, seu cavalo diminuiu a marcha e foi ficando para trs at que a bandeira se sumiu no horizonte... Aps algum tempo de caminhada, porm, viram todos, como um verdadeiro osis, um cerrado fechado. Para l se dirigiram, na nsia de fugir soalheira. Ao atingir o cerrado, os que iam na frente gritaram para os trs: - Araticum ponh!80 Foi um grito de salvao. Os atrasados correram tanto que ainda subiram nas rvores antes dos que iam frente. Um cheiro forte de fruta madura se exalava da vegetao. Nesse refgio a bandeira repousou e se regalou com deliciosas frutas refrescantes. De um galho muito alto, Indai avistou um rio e preveniu a bandeira: iam, enfim, matar a sede! Era o rio Pasmados. Com um pouco mais de esforo, alcanaram a margem do rio; os homens atiraram-se de bruos e beberam a longos haustos. Os animais entraram na gua para melhor matarem a sede. Foi quando Ortiz, dando pela falta de Frei Cosme, se 20

VI OS GOISRecomeou a jornada herica em demanda da taba goi. Mas a camaradagem estabelecida entre os administrados e os quirixs seduzia os carijs e os convidava desobedincia. Muitos haviam fugido da bandeira para regressar ao convvio dos seus iguais. Era a saudade da vida livre e selvagem que impelia aqueles pobres ndios escravizados... E alm do mais, passava entre os brancos uma nova onda de descontentamento. Ramires, inteiramente esquecido dos sustos por que passara, dentro da oca sitiada, estava de novo fanfarro, incitando os aventureiros a se amotinarem e a trarem o Anhangera... Mas Jernimo no dormia. E assim pode escutar, oculto entre as folhas de uma pacoveira brava, este fim de conversa: - E no se esqueam! O ouro ser nosso. Mas deve ser mandado para a casa de seu Sebastio do Rego, onde estar garantido, at que possamos entrar na posse dele sem suspeitas. Para isso, basta fazer uma coisa muito simples: a troca das bruacas. Estamos entendidos? Um aventureiro, porm, estava em dvida:

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica dirigiu ao chefe: - Anhangera, aconteceu alguma coisa a Frei Cosme. Vou procur-lo. - Mas a bandeira no pode esperar... Olhe, v que eu mandarei colocar uma flecha emplumada do outro lado do rio, indicando nosso rumo para a taba dos gois. Dizendo isto, o Anhangera desatou do cinturo a borracha81 quase vazia, e entregou-a ao capito: - Tome, o pouco que nos resta. Mas pode ser de grande utilidade para Frei Cosme. Ortiz partiu procura do frade, enquanto a bandeira se aprestava para a travessia do rio. Esta foi feita sem grande sacrifcio porque havia uma sensao geral de desafogo e esperana. Antes de penetrarem na mata, por uma vereda recentemente trilhada por ps largos de bugres, o Anhangera mandou Antnio Pais assinalar o trilho para orientar o Capito Ortiz, quando viesse de volta com Frei Cosme. Assim que a bandeira franqueou a mata, Ramires foi ficando para trs e, a pretexto de apanhar o chapu que deixara cair de propsito, arrancou a flecha enfeitada de penas vermelhas que Antnio Pais fincara no cho inclinada para direita e mudou-lhe a direo para a esquerda. Sorriu com profunda satisfao e alcanou, a galope, a bandeira, que j andava em plena mata. Apesar do arvoredo, o sol se mostrava em quase todo o trajeto, para aumentar a alegria das araras e papagaios que palravam nos galhos das suins vermelhas. Aqui e ali, deparavam-se abrics-de-macacos, inteiramente floridos, do cho copa, como se algum houvesse cingido os troncos com guirlandas caprichosas. Esse aspecto festivo da mata distraa a ateno dos bandeirantes dos perigos que ela encerrava: trepados nas rvores mais altas, ndios vigiavam o progredir da bandeira... De sbito, ouviu-se um tant prximo, logo aps um outro mais distante, e, por fim, um outro mais demorado e mais longnquo ainda... Velho conhecedor da linguagem daqueles tambores, Anhangera ergueu o brao e gritou: - Alto! Estamos cercados pelos gois! No devemos opor nenhuma resistncia! 21 A, surgiram, de todos os lados, selvagens de rostos tatuados de crculos concntricos, ameaadores de flechas enristadas82 nos arcos. Os bandeirantes deixaram-se conduzir. Um ndio, mais tatuado que os outros, caminhava frente da leva. Transposta a mata, surgiu aos olhos dos prisioneiros, uma taba de grandes ocas redondas, em cujo ptio central havia um mouro rodeado de igaabas83 gigantescas, nas quais mulheres remexiam com um pau algum alimento. O ndio que ia frente, entrou correndo no recinto da taba e bradou: - Mira goi camunu cariua-it!84 Parou diante da oca central e repetiu: - Mira goi camunu cariu-it! Apareceu, ento, porta, morubixaba majestoso com seu cocar de sete cores e perguntou: - Mira cet ser?85 - Mira cet ser respondeu o arauto selvagem. Seguiu-se um alvoroo medonho na ocara. As mulheres abandonaram o servio e correram para a entrada das habitaes. Os prisioneiros foram levados presena do cacique. E ento o Anhangera, puxando a rdea do seu cavalo, adiantou-se e falou: - Xe Anhangera raira, ne anama.86 O cacique teve um largo sorriso de surpresa, mostrando uma dupla fileira de dentes alvos e pontiagudos. Fez um gesto de quem se recorda, ergueu os braos para indicar simpatia e disse: - Filho de Anhangera! Nheenguiru fala lngua de branco. Velho Loreno falou filho Anhangera. Nheenguiru amigo sua gente! - Muitas graas te dou, Nheenguiru, pela tua amizade. Tup te seja favorvel e te d fortes guerreiros tua gente e nunca falte a ela o bom carim87 e o gostoso cauim88! Teus amigos brancos vieram de longe e s desejam o ouro de tuas guas e terras. - Ouro? Ouro? Nheenguiru no tem ouro! Gente ara 89 tem ouro, rio Vermelho! Cacique Tombu, chefe bravo, amigo no Nheenguiru. - Gente ara? Pois amanh partiremos para l! - exclamou Anhangera, animado. - Gente ara brava! Matou velho Loreno! Nheenguiru ajuda

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica chefe branco! Em poucos instantes houve a confraternizao de brancos e vermelhos na taba goi. Alguns bandeirantes tomavam ao colo curumins ariscos e bravos como filhotes de ona. O alarido que eles faziam era to violento que se destacava o vozerio geral, dos gritos de araras e dos guinchos dos saguis. Antnio Indai e Manuel Cabea, sempre juntos, passeavam pela aldeia, apreciando o trabalho das mulheres. Ao passarem perto de uma ndia velha e dentua, esta, sem a menor cerimnia, apalpou os braos do mestre-fundidor e comentou, passando a lngua nos beios: - Re oic cat xe arma! Seu Manuel, julgando entender, ficou orgulhoso e corrigiu: - Isto no arame, isto so barras de ferro! - e apalpou os prprios braos satisfeito. Mas Indai deu uma gostosa gargalhada e perguntou: - Sabe o que ela disse, seu Manuel? Disse que vosmec est bom para ser comido... Seu Manuel perdeu a calma e praguejou: - Vai comer gente tua, bugra antropfaga! - Tome, que um restinho de cana de Pernambuco! Frei Cosme chegou os lbios descorados ao bocal da borracha e bebeu em pequenos tragos. Quando pode falar, agradeceu: - Deus pague vosmec, capito. Afinal, ajudado por Ortiz, montou de novo e partiram. Transposto o rio, seguiram a falsa indicao da flecha emplumada. Caminhavam, portanto, numa direo oposta, certos de que demandavam a taba goi. E conversavam, despreocupados: - De minha parte, Frei Cosme, eu lhe digo que s a f tem importncia. Morrer pouco, desde que a f sobreviva. Se eu no realizar o meu sonho, o herdeiro de minha f poder realiz-lo... - Isto quer dizer que pretende casar-se. Algum o espera em So Paulo... A argcia do frade deixou Ortiz embaraado: - maneira de falar, Frei Cosme. Ningum em espera... Mas o frade indagou, incrdulo: - Ningum?... Ortiz, emocionado e tirando o sombreiro90, explicou: - A esta hora ningum me espera mais... faz mais de dois anos! - Ora, capito! Onde est a sua f, que, em dois anos de ausncia, morre assim? Ortiz no achou palavras para responder. Chegavam nesse momento a uma clareira da mata. Atravs dos troncos das rvores, divisaram um aldeamento selvagem. S ento falou tranquilamente: - Aquela a taba goi. Anhangera j deve ter chegado. Certos disso, saram da mata e se aproximaram sem a menor suspeita. Franquearam-lhes o recinto. No havia sinal de vida. Mas o capito descobriu um indcio de fogo recentemente apagado, junto oca central e murmurou, apreensivo: - No estou gostando deste silncio, Frei Cosme. Subitamente, prorrompeu de todos os lado, um vozerio diablico e surgiu uma multido de guerreiros, com tatuagens horrveis no rosto, armados de tangapemas, arcos e flechas emplumadas. Num segundo, cercaram o frade e o capito. Este, instintivamente, levou a mo espada, mas se conteve logo, pois 22

VII A NDIA MARABO Capito Ortiz encontrou Frei Cosme desfalecido, ao p de uma touceira de barba-de-bode. A trs passos uma jararaca se desenrolava ameaadora. O cavalo buscava, inutilmente, alguma pastagem pelos arredores. Ortiz apeou de um salto e, sem temor algum, pois suas botas eram altas, corou a cabea da serpente com um golpe de espada. E foi socorrer Frei Cosme, tentando reanim-lo com a bebida: - Eh! Frei Cosme! O frade abriu os olhos a custo.

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica percebeu a inutilidade de qualquer resistncia. Frei Cosme elevara o crucifixo e esperava, esttico. E ambos foram agarrados, arrancados da sela e feitos prisioneiros. Os selvagens ataram-lhes uma corda fina ao pescoo e outras mais grossas nos tornozelos e nos pulsos. Logo em seguida, atiraram-nos para dentro de uma pequena oca, onde os deixaram sentados nos cho. Nenhum dos dois alimentava iluses sobre a sorte que os esperava. Estiveram silenciosos a princpio, at os olhos se acostumarem penumbra. Depois o capito puxou conversa, entre irnico e decepcionado: - Camos numa ratoeira de antropfagos, Frei Cosme. Creio que dentro em pouco tempo estaremos comidos. Olhe aqui o aviso!explicou, mostrando a corda que trazia no pescoo. com esta muurana que nos vo atar no mouro... - Veja l, capito, o que estvamos conversando h pouco. No se deve perder a f antes de perder a vida... - No me esqueo de nossa conversa, Frei Cosme. Mas agora o que eu quero dizer que a vida est por pouco. Venha ver a atividade da taba! E os dois se arrastaram at a portinhola ogival da oca e puseram a cabea para fora, cheios de emoo e curiosidade. Corria desusada animao no recinto central. Cunhs91 e curumins transportavam espigas de milho e vasilhas de barro cabea. Junto a uma grande oca, outras cunhs preparavam os vinhos do sacrifcio. Mastigavam os gros de milho e cuspiam num imenso alguidar, em torno do qual estavam sentadas. Ao centro do terreiro, um mouro enrodilhado de muuranas, tendo ao p enormes vasos de barro em fila. E, por todo o ambiente, um vozerio ensurdecedor. Os prisioneiros se recolheram, sempre se arrastando, at o fundo da oca e Ortiz comentou: - No lhe disse, Frei Cosme? Vamos ser muito bem temperados... J um consolo... - O que eu mais sinto que tudo foi culpa minha. Se o capito no tivesse ido em meu socorro, nada lhe aconteceria. - Ora, Frei Cosme. Isso ano tem importncia... O que importa no perder a f! 23 O frade teve uma atitude de recolhimento e, tomando de seu rosrio, comeou a rezar em voz baixa. Ortiz concentrou-se tambm. De repente, uma voz fresca de mulher comeou a cantar, rente oca, numa toada montona mas agradvel:

Se eu fosse um sa dourado, no ficava mais aqui: Voava para teu lado e pousava ao p de ti...Um sorriso de agrado passou pelo rosto dos prisioneiros. A voz se foi aproximando e cessou, ao mesmo tempo em que um corpo encurvado tapava o orifcio da entrada. E no demorou que se esclarecesse a situao: uma ndia vinha ficar a servio dos prisioneiros. Tinha um colar de pepitas de ouro, uma pele de maracaj atravessada do ombro cintura, uma tanga de penas, uma liga vermelha nas pernas nuas. Nos cabelos, negros e lisos, uma flor arroxeada de fava-divina. Era clara e bonita. Trazia em cada mo uma vasilha de alimento. Depois de examin-los cuidadosamente, sorriu para ambos: Nan traz comida pra guerreiro branco... Iluminaram-se as fisionomias dos prisioneiros. E Ortiz perguntou, cheio de surpresa: Nan fala lngua de branco? Nan marab92. Pai branco Loreno ensinou Nan. Ortiz indagou: Nan goi? Goi inimigo. Nan ara. Ortiz silenciou, tomado de nova apreenso, enquanto a ndia continuava a falar coma maior tranquilidade: Nan quer saber nome guerreiro branco. Ento Ortiz pronunciou, vagarosamente: Or... tiz! Nan tentou repetir: O... re... ti. Ortiz!

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Ore... ti, Oreti! repetiu ela rindo, satisfeita. Voltou-se depois para Frei Cosme, desatou-lhe a corda dos pulsos e dos tornozelos e avisou: Abar93 sair pode. Oreti, no. Em seguida, entregou ao frade uma das vasilhas, cheia de angu de milho verde. Frei Cosme tomou a vasilha mas, apesar da enorme fome que tinha, ficou hesitando se devia comer ou no. Nan, sempre sorrindo, sentou-se diante de Ortiz e perguntou: Oreti no come? Ortiz mostrou-lhe os pulsos atados. Nan no teve cerimnia: meteu a mo na vasilha, ajeitou um bocado de angu com os dedos e levou-o boca de Ortiz. Este arregalou os olhos, num susto, mas logo se conteve, sorriu e abriu a boca para receber o bocado. Mastigou, fazendo cara de quem achava excelente. Ela riu, deliciada. Mas,pouco depois, ele parou de comer. Ela percebeu a sua preocupao e indagou: Oreti no gosta avati94? Frei Cosme tomou a palavra: Ortiz perdeu a fome, Nan. Ele est triste, porque deixou a cunh branca l longe e veio buscar ouro. Ainda no achou ouro e no poder voltar... Ouro? Nan sabe lugar ouro. Colar Nan ouro. Nan mostra, disse ela, pegando o colar. Mas como pode ser, Nan, se estamos prisioneiros? perguntou Ortiz, perturbado por uma vaga esperana. No temos mais armas, nem cavalos... No h mais jeito de sair daqui... A ndia teve, ento, um sorriso inteligente: Nan mostra ouro Oreti! A penumbra da oca se fez escurido de repente. Mas logo os prisioneiros encontraram explicao para o caso: um trovo reboou demoradamente. Nan ergueu-se e disse: Tup est falando. Tup quer ajudar. E saiu da oca, deixando frade e o moo perplexos, mirando, atravs da porta, os grossos pingos d'gua que comeavam a cair. Os prisioneiros permaneceram mudos por algum tempo. Depois 24 Frei Cosme se ergueu, caminhou para o capito e desatou-lhe a muurana dos braos e dos tornozelos. Foi ento que Ortiz quebrou o silncio: Que nos adianta, agora, estarmos de mos livres? Deus sabe... respondeu o frade. Ah, sim, Tup! Foi o que ela disse. Vamos ver como que Tup nos tira daqui! concluiu o moo, sem esconder seu desalento. O frade no respondeu. Rezava, enquanto a chuva torrencial caa l fora.

VIII A CRUZ DE ANHANGERADe madrugada, a chuva ainda no havia cessado. Reinava silncio na taba. Todos dormiam. S a sentinela, no outeiro prximo, estava de p. Em dado momento, de uma das ocas saiu um vulto, esgueirou-se rente s paredes e entrou na oca dos prisioneiros. Frei Cosme dormia ainda. O Capito Ortiz, porm, estava desperto e murmurou sentando-se: Nan. A moa no respondeu; abaixou-se para libertar Ortiz das peias, mas era tarde: o frade j o havia feito. Nan compreendeu e disse: Abar soltou Oreti! Nan vai mostrar ouro Oreti! Pegou no brao do moo e puxou por ele. Frei Cosme acordou com o movimento e ambos saram, guiados pela ndia. Ao franquearem a porta da ocara levaram um grande susto, ouvindo uma voz roufenha: Arara! Caram os trs de bruos e ficaram colados ao cho, numa poa de gua. A sentinela do outeiro ficou alerta. Mas logo depois, tranqilizada, deu as costas para o ponto onde estavam os fugitivos. Ento Nan ergueu-se e, p ante p, aproximou-se da sentinela e flechou-a pelas costas. Ouviu-se um grito lascinante:

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Ruaina ! E o corpo da sentinela rolou pelo outeiro abaixo. Nan, ofegante, agarrou vigorosamente o punho do moo e correram ambos, seguidos de perto por Frei Cosme. J haviam mergulhado na mata quando comeou o vozerio da taba e o tant impressionante do alarma. Principiava a perseguio. Amanhecia. A chuva cessara. O cu clareava. No acampamento que a bandeira fizera junto a umas pedreiras, os bandeirantes despertos aprontavam-se para enfrentar os aras. Sentado numa pedra, Manuel Cabea polia sua arma, que de repente, disparou. Seu Manuel estremeceu. Anhangera correu para censur-lo: Belo servio, Seu Manuel! Alm de perder munio preciosa... Seu Manuel no se deu por achado e blasonou: Por isso no, meu chefe. Tenho mais munio para eles... E sorriu convencido. Ouvindo a detonao, os fugitivos da taba ara orientaram-se e procuraram alcanar a orla da floresta, que estava prxima. Uma alegria pairava nas fisionomias ofegantes. Nan apontou para um rio que se via atravs da folhagem e disse: Rio Vermelho... tem ouro... Continuaram a correr. Sbito, Nan caiu flechada nas costas. Ortiz e o frade procuraram ampar-la. Mas Ortiz, sozinho conseguiu lev-la para trs de uma pedra e pediu ao companheiro: V, Frei Cosme, e pea socorro aos nossos! Frei Cosme desandou a correr com as foras que lhe restava, escorregando, dando cabeadas nos troncos molhados e perseguido por flechas que zuniam em torno dele. Afinal, transps a mata e, do alto de uma pedra, avistou a bandeira acampada e gritou, a plenos pulmes: Socorro! ndios aras! Capito Ortiz em perigo! Por aqui!... Algum no acampamento ouviu o apelo. E logo os cavaleiros, com Anhangera, Baltazar e Bueninho frente, subiram a galope uma ribanceira e alcanaram Frei Cosme. Por aqui, gritava este, rubro, pelo susto e pela corrida, apontando na direo de onde os aras estavam desfechando o ataque. 2595

Os cavaleiros apearam, colocaram-se por detrs dos troncos e comearam a atirar. Nuvens de flechas responderam aos tiros, mas o selvagens detiveram a marcha. Enquanto isso, a bandeira marchava ribanceira acima para reforar a defesa dos cavaleiros. As escopetas continuavam a disparar. Manuel Cabea parou logo no incio da subida e encostou-se ao barranco, esbaforido. E como Antnio Indai se voltasse, numa atitude de interrogao, ele explicou: Segue, mameluco! Eu fico por aqui... Deu-me outra vez aquela coisa nas pernas. Indai alcanou rapidamente a bandeira e, dentro de poucos minutos, estava de escopeta rente ao rosto, dando o primeiro tiro. Frei Cosme, Anhangera, Baltazar e Alferes Peixoto conseguiram chegar, afinal, ao esconderijo de Ortiz. Com a cabea amparada nas mos do capito, Nan agonizava. Escorria-lhe da boca um fio de sangue. Sorria vagamente e, apontando de novo na direo do rio, murmurou: Ouro! E, pegando o colar que trazia, acrescentou: Oreti d colar pra moa branca... Frei Cosme ajoelhou-se compungindo e rezou encomendando a Deus a alma de Nan. Os bandeirantes, embora acostumados com o espetculo da morte, comoveram-se profundamento. Por fim, Anhangera ordenou ao Alferes Peixoto: V dizer tropa que estamos aqui. E que achamos o rio Vermelho. O alferes partiu correndo. Do caminho, encontrou Ramires e seus comparsas, muito bem emboscados mas inativos. Arrependido de haver conspirado contra Anhangera, avisou cheio de alegria, apontando para o vale O Anhangera tinha razo: achamos o rio Vermelho! O rio do ouro! Ramires e seu grupo no esperaram mais nada. Enveredaram por um atalho e desceram desabalados para o vale. O alferes alcanou a vanguarda dos bandeirantes, que ainda combatia e preveniu: Os chefes esto por trs daquela pedra... E, mostrando o rio,

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica acrescentou: Rio Vermelho! Rio de ouro! Ouvindo estas palavras mgicas, Antnio Indai parou de atirar e se ps a correr ribanceira abaixo at que alcanou seu Manuel no mesmo ponto em que o deixara e com a mesma cara desalentada. Seu Manuel, ouro! Acharam o rio Vermelho, foi bradando o mameluco. Seu Manuel se transfigurou: Acharam o rio do ouro? Acharam, seu Manuel! Este no disse mais nada: desandou a correr morro acima, deixando para trs Indai, que se ria a perder e no conseguia alcan-lo. Do alto da pedreira onde estavam abrigados, Capito Ortiz, Anhangera, Frei Cosme e Baltazar viram uma cena rpida e impressionante: o grupo de aventureiros chefiados por Nuno Ramires alcanaram o rio Vermelho e se pusera a pesquisar ouro sofregamente, quando foram cercados por ndios aras, manietados e arrastados para a mata onde desapareceram... Ortiz fez meno de partir em socorro dos desgraados. Anhangera, porm, o deteve, com olhar significativo: No vale a pena, capito. J era tempo... Vosmec bem sabe disso! Meia hora depois, no havia mais perigo de bugres aras pelas cercanias e a expedio avanava em ordem, para o rio Vermelho. Era um verdadeiro cortejo fnebre, precedido de uma estreita maca improvisada, carregada pelos chefes mais graduados, sobre a qual ia o corpo de Nan, com fartos cabelos pendendo at quase o cho. Chegando margem do rio, os bandeirantes entraram em atividade febril. As bateias, os almocafres enferrujados no descansavam. O primeiro ouro colhido foi levado a seu Manuel, que fez o toque96 devido e deu a sua palavra de mestre: de boa pinta, no h dvida... Ah! Se no fosse aquele tiro que eu dei, no apanharamos este tesouro... Vendo aproximar-se o Anhangera, emudeceu. Mas este sorria, pela primeira vez... Nan foi enterrada ao pr-do-sol. No mesmo lugar foi erguida uma cruz feita de um tronco de aroeira. E Frei Cosme fez ouvir sua palavra, em meio de religioso silncio: 26 Aqui sepultamos uma criatura pag, boa como as criaturas simples de Deus. Sobre a sua sepultura, erguemos o smbolo cristo da cruz. Mas no estamos diante deste contraste apenas... Viemos em procura das minas dos Martrios e s alcanamos martrios, durante a jornada. E agora achamos afinal estas minas de ouro e, graas ao filho do Diabo Velho, plantamos a cruz de Cristo no serto de gois! Honras, pois, a este gigante, que realizou um milagre de vontade humana! E honras a Baltazar, que o salvou numa hora de traio e misria. O que fazemos por nossos pais vai conta de Deus. E que Deus tenha piedade dos desgraados, a que a ambio e a fraqueza perderam...

IX A CANO DO BANDEIRANTE27 de Outubro de 1725. Na praa do terreiro da Matriz, em So Paulo, dois homens conversavam, sentados ao p do cruzeiro. Um deles, muito moo ainda, perguntava: Ento j faz trs anos? O mais velho respondeu: Mais de trs anos! E nem a mulher tem notcia dele... Mas eu ouvi falar que o senhor governador recebeu pedido de socorro para a bandeira. E quando foi que partiu esse socorro? Vosmec viu? No! Pois ento? No padece dvida que se deu com a bandeira dele o mesmo que aconteceu com a entrada do defunto Castanho, que Deus haja! Por essa altura da palestra, um escravo passou, tangendo uma vara de porcos. Logo depois surgiu um cavaleiro poeirento, benzeu-se ao defrontar o cruzeiro e estacou o animal porta da bodega da esquina, anunciando: Pai! pai! Vem vindo uma bandeira no caminho de Jundia!...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Pois vai rua Direita da Misericrdia e avisa D. Joana, que deve ser a bandeira do Anhangera, respondeu o bodegueiro, velho gordo, debruando-se ao balco. O cavaleiro partiu a galope, ao tempo em que os dois homens se levantaram do cruzeiro e se puseram a anunciar aos que passavam pelos arredores: A bandeira do Anhangera vem a!... Abriam-se portas e janelas das casas de todas as ruas circunjacentes. E surgiram, como por encanto, mulheres, homens e crianas. E a novidade correu de boca em boca: A bandeira vem a! O Anhangera vem a! O largo e as ruas se encheram de gente ansiosa e alvoroada. Ouviu-se a trompa anunciando a chegada. Logo depois os sinos da Igreja de So Bento comearam a bimbalhar festivos. E pouco mais tarde, a bandeira entrava triunfante na cidade. As fisionomias, crestadas de sol e curtidas de sofrimento, transbordavam de jbilo vitorioso... Ningum punha reparo nos andrajos dos bandeirantes porque o corao de todos estava cheio de alegria. Alguns infantes traziam sagis, papagaios e araras nos ombros. Em meio quele bando herico, mulheres procuravam, aflitas, os maridos, os filhos, os irmos... E comearam as decepes atrozes, em meio s cenas de contentamento dos encontros felizes. Eram abraos e beijos, choros e gritos por toda a rua. Rompendo a massa dos infantes, me Felcia conseguiu descobrir o filho que tangia uma das mulas muito carregadas. Jeromo, meu filho, a benzio te salvou!... E abraou-o, chorando. O filho respondeu, emocionado: verdade, me. Ficaram um instante calados. Depois ela perguntou, apreensiva: E o cuisa-ruim? Jernimo arregalou os olhos, expressivamente: Ficou por l... Os bugres... O semblante da preta entristeceu: Coitado de seu Ramires!deus tenha pena dele... 27 Sebastio do Rego andava inquieto, olhando para todos os lados, com um vinco indagador no sobrecenho. Esbarrou com Manuel Cabea, que levava um papagaio no ombro e caminhava ao lado de Antnio Indai, e amaciando a expresso, indagou: Vosmecs podem me dar novas do senhor Nuno Ramires? Ainda no veio, respondeu-lhe seu Manuel, muito srio. Sebastio do Rego, entre assombrado e aliviado, continuou: Por qu? A Antnio Indai explicou, irnico: Os bugres fizeram questo de ficar com ele... No compreendo... Para que os bugres quereriam seu Nuno Ramires? Mas seu Manuel concluiu, fulminante: Para que havia de ser, meu senhor? Pra criar... Sebastio do Rego, furioso, mastigou uma amea, mas receando ter a mesma sorte de seu cmplice, conteve-se e afastouse. Toda a famlia do Anhangera estava misturada na bandeira. Anhangera admirava Francisco e dizia orgulhoso: Vosmec est um homem, Francisco! D. Joana abraava Baltazar, o seu rapazinho herico. Joaninha jurava a Antnio Pais que no deixaria o marido partir de novo sem ela. Belinha, no auge da emoo, com lgrimas nos olhos, perguntou a Graciosa, que passava: Graciosa, vosmec j viu o meu prometido? A mucama, sem saber o mal que fazia, respondeu com toda simplicidade: No, Sinh Belinha. A moa rompeu num choro sacudido. Mas logo vislumbrou por entre as lgrimas a figura do Capito Ortiz, que lhe estendia os braos, a dois passos de distncia. Teve uma exclamao de espanto e entendeu-lhe tambm os braos: Ortiz! Belinha! Minha noivinha! J sei que rezou muito por mim...

O Gigante de Botas, de Oflia & Narbal Fontes Srie Vaga-lume Ed. tica Que nada, negou ela, sorrindo entre lgrimas. Rezei muito,mas foi por mim... O moo, ento, falou com certo acanhamento: Trouxe-lhe um presentinho... E tirando do bolso uma fieira de pepitas de ouro, prendeu-a no pescoo de Belinha. Era o colar de Nan... No dia seguinte, estava em festa a fazenda do Anhangera. Gente apertava-se pela escada, enchia a varanda, debruava-se s janelas, comprimia-se no ptio. Gervsio Rabelo, secretrio da governana, em traje de gala e todo empertigado, no ltimo degrau da escada, terminava a leitura de uma carta patente, diante do Anhangera e de toda a sua famlia. ... Assim sou servido prover a Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangera, no cargo de Capito-mor Regente das Minas de Gois, bem como prover ao Capito Joo Leite da Silva Ortiz, no cargo de Guarda-mor das Minas de Vila Buena de Gois, esperando que suas pessoas se havero nos novos cargos, de acordo com seus merecimentos. Ao terminar a cerimnia, Belinha, que estava atrs de toda a sua famlia, segurou o brao do noivo e puxou-o para dentro, segredando-lhe: Vamos fugir daqui, seu Guarda-mor das Minas de Vila Boa de Gois? Capito Ortiz deixou-se conduzir de bom grado. Entraram ento na varanda e sentaram-se no canap de couro tranado, junto pele de ona. L fora, ouviam-se vivas e aclamaes. Belinha foi quem puxou conversa: Depois da partida da bandeira, eu no sabia fazer nada seno chorar e rezar... No cantou mais? No. E daqui por diante? Daqui por diante cantarei. A cano do bandeirante? Essa ento, ainda mais. Como assim? Olhe que ela diz que quem casa com bandeirante no sabe bem o que faz... No. Ontem de noite eu e Joaninha inventamos uma trova melhor. Melhor? Como ento? Belinha no se fez de rogada. Cantou:

Quem casa com bandeirante deve saber o que faz... se o homem caminha adiante a mulher no fique