mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o...

12
IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92 , jul./dez. 2011 Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em Guerreira de Alessandro Buzo Sandra Maria Pereira do Sacramento * Luciano Santos Neiva ** RESUMO: Este artigo visa a demonstrar de que forma a transgressão feminina, no universo de mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira de Alessandro Buzo. Palavras-chave: Cultura suburbana. Feminismo. Transgressão. Do centro às periferias: a cultura suburbana em foco Ele tem o samba no pé E o reggae na cabeça A benção no coração Sua mãe dona Maria Trabalhava todo dia prá trazer o pão Mas é a rainha do Carnaval meu irmão Do Carnaval O trecho da canção Poeta da Favela, em epígrafe, do grupo Afrojah, revela em verso a convicção suburbana de criação e expressão cultural. O vínculo entre as produções artísticas e a realidade vivenciada revela um conjunto de elaborações e experiências comuns sobre a marginalidade e a periferia. A presença desses elementos locais como forma de avalizar expressões culturais suburbanas contraria o raciocínio por similitude da cultura ocidental fundante que, em sua pretensa homogeneização, estabeleceu o centro como referência, pregando uma tarja à boca dos meios alternativos de circulação dos bens culturais da periferia. Esse modelo paradigmático, que perdurou ao longo dos séculos, tem insuspeita propensão para a totalidade, como forma de perceber e representar o mundo. Nesta perspectiva, dada a complexidade da realidade humana, o esgotamento desse paradigma deixa aflorar outros cenários, possíveis e necessários. Do centro às periferias, os estudos culturais permitiram novas cartografias sobre a arte e a cultura, a relação entre o local e o global, o ser humano e o tempo, a ecologia, a economia e a arte, as relações de gênero, as relações de etnia etc., desprendendo-se da costumeira visão segregacionista, homogeneizadora, racionalizadora e padronizante da metafísica ocidental. Analisando uma dessas expressões culturais – o Teatro Negro, pesquisado e encenado no Brasil e nos Estados Unidos, no século XX –, Martins (1995) assinala: Sua distinção e singularidade não se prendem, necessariamente, à cor, fenótipo ou etnia do dramaturgo, ator, diretor, ou do sujeito que se encena, mas se ancora nessa cor e fenótipo, na experiência, memória e lugar desse sujeito, erigidos esses elementos como signos que o projetam e representam [...] buscando discernir alguns traços e rastros sígnicos que me permitam apreender a nervura da diferença, evitando, assim, o engodo das concepções generalizantes e

Upload: phamnga

Post on 11-Nov-2018

224 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011

Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em Guerreira de Alessandro Buzo

Sandra Maria Pereira do Sacramento*

Luciano Santos Neiva**

RESUMO:Este artigo visa a demonstrar de que forma a transgressão feminina, no universo de mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira de Alessandro Buzo.

Palavras-chave: Cultura suburbana. Feminismo. Transgressão.

Do centro às periferias: a cultura suburbana em foco

Ele tem o samba no pé E o reggae na cabeçaA benção no coraçãoSua mãe dona Maria

Trabalhava todo dia prá trazer o pãoMas é a rainha do Carnaval meu irmão

Do Carnaval

O trecho da canção Poeta da Favela, em epígrafe, do grupo Afrojah, revela em verso a convicção suburbana de criação e expressão cultural. O vínculo entre as produções artísticas e a realidade vivenciada revela um conjunto de elaborações e experiências comuns sobre a marginalidade e a periferia. A presença desses elementos locais como forma de avalizar expressões culturais suburbanas contraria o raciocínio por similitude da cultura ocidental fundante que, em sua pretensa homogeneização, estabeleceu o centro como referência, pregando uma tarja à boca dos meios alternativos de circulação dos bens culturais da periferia. Esse modelo paradigmático, que perdurou ao longo dos séculos, tem insuspeita propensão para a totalidade, como forma de perceber e representar o mundo. Nesta perspectiva, dada a complexidade da realidade humana, o esgotamento desse paradigma deixa afl orar outros cenários, possíveis e necessários.

Do centro às periferias, os estudos culturais permitiram novas cartografi as sobre a arte e a cultura, a relação entre o local e o global, o ser humano e o tempo, a ecologia, a economia e a arte, as relações de gênero, as relações de etnia etc., desprendendo-se da costumeira visão segregacionista, homogeneizadora, racionalizadora e padronizante da metafísica ocidental. Analisando uma dessas expressões culturais – o Teatro Negro, pesquisado e encenado no Brasil e nos Estados Unidos, no século XX –, Martins (1995) assinala:

Sua distinção e singularidade não se prendem, necessariamente, à cor, fenótipo ou etnia do dramaturgo, ator, diretor, ou do sujeito que se encena, mas se ancora nessa cor e fenótipo, na experiência, memória e lugar desse sujeito, erigidos esses elementos como signos que o projetam e representam [...] buscando discernir alguns traços e rastros sígnicos que me permitam apreender a nervura da diferença, evitando, assim, o engodo das concepções generalizantes e

Page 2: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 82

universalistas, que, muitas vezes, discriminam sem, no entanto, compreender e apontar, criticamente, os traços da diversidade (MARTINS, 1995, p. 26).

Neste sentido, o cenário da explosão de expressões culturais suburbanas e periféricas resume a própria “nervura da diferença”, pondo de lado as camisas de força de um congelamento conceitual; e realça a importância de uma visibilidade restaurada do “Planeta Favela” pela própria favela, que deixa de ser uma construção aprumada, escorada e tijolada por uma engenharia que lhe concebe como um eterno avesso do centro, fi xado por um retrato deformado em tradições. Hall (2003) relaciona a tradição às formas de associação e de articulação de certos elementos simbólicos muito mais que a mera persistência de velhas formas. Tais elementos, por sua vez, não impedem as violações, ricas em contradições e possibilitadoras de reengenharias de bases e feições identitárias.

Os traços de diversidade na periferia, antes silenciados, ganham corpo e contaminam os papéis a ela destinados, adquirindo contornos próprios. No caso específi co da Literatura produzida na periferia – a Literatura Marginal – essas feições identitárias se delineiam como um universo autônomo de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos. Nesta perspectiva, Bourdieu, ao defi nir o “campo literário”, observa que este “obedece às suas próprias leis de funcionamento e de transformação, isto é, a estrutura das relações objetivas entre as posições que aí ocupam os indivíduos ou grupos colocados em situação de concorrência pela legitimidade” (BOURDIEU, 1996, p. 243). Assim sendo, a ampla rubrica da Literatura Marginal, de entendimento quase sempre problemático, dada à classifi cação das obras literárias como suburbanas, já que produzidas à margem do mercado editorial, tematiza o que é peculiar aos sujeitos e espaços tidos como “marginais”. Esta adjetivação, no cenário cultural contemporâneo, não se subsume ao sentido pejorativo que se lhe quer impor, já que expressa uma identidade coletiva e divulga a ideia de uma “cultura da periferia”.

Hossne cunhou a expressão “Literatura Marginal” para designar o tipo de literatura “que não está excluída do mercado editorial, que não está se excluindo do cânone, mas que está sendo produzida por quem está excluído social, econômica e literariamente” (HOSSNE, 2003). Sendo assim, ao reler o contexto de grupos oprimidos e retratá-lo nos textos, os autores periféricos não se conformam numa categorização analítica, já que suas trajetórias literárias estão organizadas em torno da expressão do submundo urbano: textos marcados pelo tom irônico, pelo uso da linguagem coloquial e do palavrão; versando sobre sexo, drogas e cotidiano suburbano, com um realismo exacerbado, e subvertendo os padrões de qualidade, ordem e bom gosto vigentes. Esta produção literária se desenvolveu à margem da produção e do consumo dos bens econômicos e culturais, do centro geográfi co das cidades e da participação político-social. Sobre este aspecto, bem observou Oliveira, em prefácio à obra Guerreira de Alessandro Buzo:

Assim tem sido a literatura rediviva da periferia, nova pelo que fala, nova pelo ponto de vista de que surge, surpreendente por pressionar as entradas do universo literário. Não se trata, entretanto, apenas da voz do gueto – e até pode ser, por que não? –, mas é, antes de tudo, texto, recriação artística de outras interpretações do mundo, do país (OLIVEIRA apud BUZO, 2007).

Observe-se que a utilização da linguagem das periferias urbanas, cujas construções escritas destoam da norma culta, a partir da recorrência de gírias do hip hop, uso de neologismos e forte apelo visual com desenhos, fotos e grafi tes; é pano de fundo para o desenvolvimento de temas recorrentes como vida e prática de membros das classes populares e problemas sociais como: violência, carência de bens e equipamentos culturais, precariedade da infraestrutura urbana e relações de trabalho. A crítica social, aqui aludida, tematiza o cotidiano de moradores das favelas e periferias, que passam

Page 3: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 83

por humilhações e violências e não usufruem de serviços públicos de qualidade. Desta forma, a Literatura Marginal veicula diferentes vozes marginais. É, pois, uma forma de afi rmação cultural das manifestações artísticas dos sujeitos marginais. Tal afi rmação endossa a constatação de que “a importância, hoje, não é somente do que se fala, mas, principalmente, do como se fala e de onde se fala” (SCHMIDT, 1993, p. 178).

A título de ilustração, no editorial da terceira edição da Revista Caros Amigos/Literatura Marginal, Ferréz procura delimitar o espaço próprio da referida literatura:

Como sempre acontece a todo movimento feito por pessoas que estão à margem as críticas vieram aos montes também, fomos taxados de bairristas, de preconceituosos, de limitados, e de várias outras coisas, mas continuamos batendo o pé, cultura de periferia por gente da periferia e ponto fi nal, quem quiser que faça o seu, afi nal quantas coleções são montadas todos os meses e nenhum dos nossos é incluído? A missão que todo movimento tem não é de excluir, mas sim de garantir nossa cultura, então fi ca assim, aqui é o espaço dos ditos excluídos, que na verdade somam toda a essência do gueto (FERRÉZ, 2004, s/p).

A expressa oposição periferia/centro no relato, em apreço, pode ser compreendida como a perpetuação de uma visão segregacionista, em que fi caria alocada a produção crítica e literária oriunda dessas culturas. Por sua vez, a alusão à exclusão da produção cultural marginal do cânone revela um aspecto determinante na interpretação dos critérios de igualdade e diferença. Ferréz (2004) reivindica o direito de não ser excluído da produção cultural, porém sem ter de abdicar do direito de debruçar-se sobre as suas raízes, o “Planeta Favela”, como qualquer membro da comunidade a que pertence. Nas palavras de Oliveira: “Escrever há de ser a tomada do espaço mais prestigiado, a manipulação da palavra-arma, o refl uxo da textualidade apodrecida e bolorenta ou, pelo menos, o pigarro incômodo entre um cânone e outro [...]” (OLIVEIRA apud BUZO, 2007). Neste sentido, o “Manifesto de Abertura” da primeira edição de literatura marginal da revista Caros Amigos, Ato I, lançada em 2001 dá o tom exato dessa situação:

O signifi cado do que colocamos em suas mãos hoje é nada mais do que a realização de um sonho que infelizmente não foi vivido por centenas de escritores marginalizados deste país. Ao contrário do bandeirante que avançou com as suas mãos sujas de sangue sobre nosso território e arrancou a fé verdadeira, doutrinando os nossos antepassados índios, e ao contrário dos senhores das casas grandes que escravizaram nossos irmãos africanos e tentaram apagar toda a cultura de um povo massacrado [sic] mas não derrotado. Uma coisa é certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa história, mataram nossos antepassados. Outra coisa também é certa: mentirão no futuro, esconderão e queimarão tudo o que prove que um dia a periferia fez arte (FERREZ, 2001, s/p).

Longe da aparente “guetização” cultural, a situação específi ca do escritor suburbano ou periférico faz da criação literária um exercício social e político por meio do qual ele busca encontrar novos ângulos de aproximação da realidade, sem, no entanto, promover o estabelecimento de lugares simbólicos e institucionais do discurso literário, tal como é fi xado no cânone, cuja tradição ocidental se pautou no preconceito existente entre o conceito de literatura e o de classe social. A exclusão cultural da expressão artística da periferia esteve, então, associada à submissão e à dependência econômica do centro. Se o talento criador não era exclusividade dos detentores do cânone ocidental, os meios para

Page 4: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 84

desenvolvê-los, com certeza, eram. A pós-modernidade, com os estudos culturais, veio a possibilitar fi ssuras nessa longa via de mão única.

Diante disso, a relação entre o rap e a literatura, o acesso dos moradores da periferia aos bens culturais, a produção de fanzines1 [expressão interessante do imbricamento periferia/ centro], o hip hop enquanto expressão cultural e a produção literária com contornos próprios demonstram bem uma série de transformações, presentes nos movimentos de contracultura, e promovem um chamamento para o centro do que estava à margem, incrementando a política da diferença, da valoração das minorias e das manifestações culturais marginais, sem que fossem percebidas sob o signo do exótico e do inferior. Além disso, a carência de textos que expressem a linguagem da periferia e o risco de apropriação e enquadramento etnocêntrico da pesquisa acadêmica realçam a importância de estudar o movimento literário-cultural protagonizado por sujeitos que vivenciam situações de marginalidade. Ressalte-se, neste sentido, que faz-se necessária, por parte da crítica, “uma renovação, ou pelo menos outros recortes e vieses teóricos” para dar conta de “novos focos, perspectivas e subjetividades” (ZIBORDI, 2004, p. 86), delineados por escritores da periferia.

Mulheres da periferia e transgressão

Se pensarmos na adjetivação negativa da marginalidade em relação à lei e à sociedade, podemos pensar em sujeitos vitimados por processos de marginalização social, como pobres, desempregados, migrantes, membros de minorias étnicas e raciais, tendo como sinônimo o adjetivo marginalizado (PERLMAN, 1977). Em extensão a esse raciocínio, pode-se incluir a mulher suburbana nesta categorização, se observarmos a sua condição de minoria de gênero tanto em relação ao homem, quanto em relação às próprias mulheres, dada a sua dupla condição de exclusão: ser mulher e da periferia. Neste sentido, Schmidt considera que “tanto quanto raça e classe, gênero é uma das categorias da diferença [...] falar sobre gênero é falar sobre diferença sexual e cultural” (SCHMIDT, 2002, p. 178).

A dupla condição, aqui aludida, coloca a mulher da periferia em situação de deslocamento em suas margens deslizantes, em que a assunção da “marginalidade” passa pela diáspora de sentido (HALL, 1997), à luz de preceitos fundados no hibridismo, não conformado ao sujeito arrogante da modernidade: homem, em seu discurso dominador; branco e europeu, delineado em um modelo etnocêntrico e calcado em discursos que privilegiam “unidade e pureza” (SANTIAGO, 1978). Com esse deslocamento, não há possibilidade de construção de uma identidade feminina periférica essencialista, já que a representação feminina da periferia ganha em multiplicidade, na medida em que a mulher não pode ser aprisionada em uma categoria, tampouco em preceitos de gênero que não dão conta da vivência singular deste ser concreto. Nesse processo, as mulheres da periferia respondem às demandas locais pelo viés disjuntivo da alteridade, a partir de fi ssuras e deslizamentos identitários próprios e de injunções diferenciadas.

Tais injunções remetem as mulheres da periferia à condição de seres em “reciclagem identitária”, no sentido de Bauman (2007), já que não se encontram acomodadas ao “destino de mulher”, diante da aparente “possibilidade de deixar de ser o que é para se transformar em alguém que não é” (BAUMAN, 2007, p. 16). Segundo o autor, a fl uidez do “mundo líquido” implica em liberdade de escolha, tornando também as pessoas mais inseguras. No seu dizer: “O caminho que leva à identidade é uma batalha em curso e uma luta interminável entre o desejo de liberdade e a necessidade de segurança, assombrada pelo medo da solidão e o pavor da incapacidade” (BAUMAN, 2007, p. 44). Como se constata, o “Planeta Favela” é um mundo desprovido de permanências, as identidades estão sempre em processo, ancoradas na indeterminação, num esforço eternamente

Page 5: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 85

inconcluso. Novas identidades se afi rmam e são reivindicadas a partir das representações periféricas, produzindo propostas de signifi cação com efeitos de sentido não permanentes ou estáveis. Em síntese, os “quebra-cabeças identitários” nunca se completam.

Esta nova cartografi a teórica de gênero, no universo de mulheres da periferia, dá uma contribuição ímpar à cultura suburbana, já que, tal como os sujeitos marginalizados, essas mulheres passam a ser sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores redescobertos, num continuum processo de autoconhecimento e transgressão. Tal transgressão ocorre conforme o que foi defendido por Butler (2008), em que o gênero constitui um fenômeno inconstante e contextual, “um ponto relativo de convergência entre conjuntos específi cos de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2008, p. 29). Através de uma “performatividade” construída, pelo viés disjuntivo da diff érance, as relações de gênero da periferia radicam-se em um efeito que contraria os aporia de direções, pautados na dicotomia essencialista sexo/gênero e substancialista da metafísica ocidental em que “um eu verdadeiro é simultâneo ou sucessivamente revelado no sexo, no gênero e no desejo” (BUTLER, 2008, p. 45).

Nesta perspectiva, se a Literatura Marginal abarca o conceito de sujeitos, no plural, uma vez que é capaz de contemplar as vozes de excluídos de raça, etnia, idade, etc.; a transgressão feminista das mulheres da periferia, também no plural, refuta qualquer presunção de um sujeito estável e fi xo. Essas identidades moventes, através dos signifi cados produzidos pelas representações, dão sentido às experiências pela pluralidade de caminhos e procedimentos. Retomando Butler (2008, p. 13), “a identidade é inalienável, mas só é possível quando alguém se insere em um grupo, quando se vê em relação a um outro”. Assim sendo, o delineamento da identidade, ainda que através de referenciais constitutivos, não se adequa mais a um mero processo de naturalização, mas se revela em processo de diferenciação diuturna em relação à alteridade. Em respaldo a isso, “o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes” (BUTLER, 2008, p. 18).

Tal aspecto retira do feminismo, especialmente o delineado por mulheres de periferia, o caráter essencialista que se quer lhe impor, como se seu espaço fosse um eterno espaço binário “homem dominador versus mulher fraca”, cujas lacunas seriam preenchidas na dimensão da falta. Esta “dependência radical do sujeito masculino diante do ‘Outro’ feminino expôs repentinamente o caráter ilusório de sua autonomia” (BUTLER, 2008, p. 7-8). Ainda com Butler, podemos questionar: “Ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas?” (BUTLER, 2008, p. 8-9).

Interessa-nos aqui voltar nosso olhar para os “novos referenciais da autonomia individual”, no sentido de Lipovetsky (2000), em que se reinterpretam as “dicotomias do gênero” pela “dinâmica do sentido, das identidades sexuais e da autonomia subjetiva” (LIPOVETSKY, 2000, p. 13). Esta autonomia do feminismo de subversão, arrolado na periferia, longe de qualquer pretensão essencialista, põe em xeque o tratamento da diferença sexual como “natural”. Nesta perspectiva, a subversão da identidade traz consigo o delineamento dos múltiplos níveis de signifi cação – materiais ou semióticos – da cultura periférica, nos quais se constroem as “diferenças”. Desta forma, refuta-se qualquer pretensão de totalidade, de universalismo. Com isso, a transgressão e a condição marginal, aqui defendidas, ancoradas na condição pós-moderna, subvertem a ordem previamente estabelecida pelos aporia da racionalidade ocidental, “desconstruindo” “pressupostos e propostas de universalização que marca[ra]m a cultura, a arte e o saber modernos” (VAITSMAN, 1994, p. 38). Neste sentido, “a desconstrução pós-moderna é uma perspectiva que ajuda a entender as desigualdades de gênero que aí se desenvolvem” (VAITSMAN, 1994, p. 38).

Page 6: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 86

Esse aspecto, dentro da contribuição que as “mulheres da periferia” dão ao “Planeta Favela”, gera múltiplos signifi cados, rupturas e recombinações na forma de se conceber arte, cultura e literatura. Pelos vieses críticos da fl exibilidade e da pluralidade, o feminismo transgressor e subversivo da periferia reivindica seu próprio espaço, sem se ater às oposições binárias e seus papéis sexuais dicotômicos. Nesta perspectiva, a literatura, a arte e a cultura periféricas são instrumentos de contestação das categorias legitimadoras de relações de dominação, com práticas tidas como “corretas”, especialmente nas relações de gênero. Em reforço ao nosso raciocínio, podemos utilizar as constatações de Butler, ao analisar a categorização do “ser” mulher, para realçar essa contribuição do gênero periférico às novas cartografi as teóricas da cultura suburbana:

Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços pré-defi nidos de gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida (BUTLER, 2008, p. 20).

No amplo “Planeta Favela”, tais interseções realçam o trato discursivo do ambiente híbrido da periferia, concebendo uma nova forma de ver a vida. Explicando melhor: a condição de existência da mulher, no contexto do subúrbio, é repensada a partir da problematização do espaço, da classe e da etnia, pois sua identidade perpassa pelos “interstícios da enunciação”, para usar a expressão de Bhabha (2000). Isto porque os enunciados padecem de um “desviamento de inserção”, concorrendo para uma ampla mescla conceitual em que se aponta para as assimetrias de gênero e para a cena enunciativa da periferia. Este deslizamento de sentido produzido por sujeitos periféricos dimensiona a não valência de preceitos essencialistas na concepção de identidade de gênero. No dizer de Butler:

Certos tipos de “identidades de gênero” parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente porque [sic] não se conformarem às normas da inteligilibilidade cultural. Entretanto, sua persistência e proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligilibilidade e, consequentemente, de disseminar, nos próprios termos dessa matriz de inteligilibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem do gênero (BUTLER, 2008, p. 39).

Essa desordem aponta para a transgressão, aqui aludida, não numa percepção essencialista e demérita do gênero, mas construída com fragmentos de expressões culturais, composta pelo constante deslocamento, pelo embaralhamento de identidades e pela crise social. Ocorre, com isso, que o gênero constitui um fenômeno inconstante e contextual, “um ponto relativo de convergência entre conjuntos específi cos de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2008, p. 29). Enfi m, a identidade feminina, enquanto manifestação do gênero, implica um efeito, com a expressão da “performatividade” elaborada e reelaborada, através de um processo contínuo de diferenciação, de diff érance.

O processo aqui evidenciado acaba por impossibilitar o estreitamento a paradigmas amparados em pré-conceitos, porque o discurso da modernidade, pautado na razão etnocêntrica, na tradição socrático-platônica e na moral judaico-cristã, esteve ancorado na manutenção de pares dicotômicos, cujos segundos elementos são sempre evidenciados pela falta. O elemento simbólico do “Planeta

Page 7: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 87

Favela” constitui, assim, uma força reativa que valoriza a descontinuidade e a ruptura. As mulheres da periferia, enquanto seres de vontade, alteram o sistema cultural eurocêntrico, permitindo a diferenciação do gênero enquanto realidade linguística, simbólica e histórica. Há aqui uma brecha na representação, em sua dimensão subjetiva de espacialização da voz feminina.

Assim sendo, a identidade feminina suburbana, através da transgressão, se coloca como negadora de qualquer pretensão ao uso de uma racionalidade que não refl ita suas existências periféricas. Assim, as personagens femininas se colocam como sujeitos periféricos que buscam a construção de uma identifi cação a partir de referenciais próprios, porque internos. Há, com isso, a inserção de vozes silenciadas em processo de construção da sua própria historicidade. A representação feminina, sob essa ótica, resgata o universo cultural e altera o acontecer fi ccional alicerçado na ideologia vivenciada.

Guerreira: uma expressão da periferia

Guerreira é o relato ávido da transgressão vivida na periferia. É a história de Rose, assaltante, viciada em crack e outras drogas, que vive intensamente muitas outras histórias com personagens que se descartam ao longo da trama. Depois de promover um assalto e um sequestro, ao lado de Tonho, Rose é presa e abandonada pelo amante. No cárcere, ela recebe a visita de Wellington, sua vítima no sequestro, que se apaixona por ela. Passam a viver juntos após sua saída da prisão, mas Rose reencontra Tonho, que a ameaça. Numa tentativa de solucionar defi nitivamente o problema, Wellington tenta matar Tonho, para viver livremente seu amor com Rose, mas ambos morrem num confronto. Rose passa à condição de empregada doméstica e se envolve com Rodolfo, seu patrão, e adquire boa condição fi nanceira, mas não consegue deixar o vício das drogas. Após muitas recaídas, e prestes a perder defi nitivamente a sua fonte fi nanceira, ela monta, ao lado de Verônica, sua fi el escudeira, uma luxuosa fi rma com meninas, “escolhidas a dedo, tinham que ser educadas, jovens e muito bonitas, meia-boca não servia, só avião” (BUZO, 2007, p. 94). “A Firma” ganhou notoriedade com um “time de celebridades da prostituição” e era apenas frequentada pelos ricaços da alta sociedade. De presidiária a amante, de viciada a empresária “do sexo”, em um ano, Rose estava completamente milionária. Depois de se reencontrar com Rodolfo, ela opta por passar “A Firma” para Verônica, abandona tudo e vai viver ao lado do seu amante, desta vez, como proprietária de uma pousada em Natal, longe da periferia. Antes disso, como que encerrando defi nitivamente seu elo com a vida suburbana, ela descarrega a sua pistola em César, um antigo amante, usuário de crack, que tenta assaltá-la e estuprá-la quando esta vai de carro com Rodolfo rumo à sua nova vida. “Agora o Sr Rodolfo e a Sra. Rose eram da alta sociedade em Natal e nem queriam saber mais da babilônia chamada São Paulo” (BUZO, 2007, p. 116).

Guerreira, com isso, retrata as carências, a pobreza, a violência e as práticas relacionadas aos espaços e “sujeitos” marginais. Inicialmente, a trama expressa a oposição centro/periferia quando delineia espaços socialmente distintos: de um lado Ferrugem, que mora sozinho no apartamento de “seus pais que há três anos foram morar na Austrália, logo que a multinacional em que o pai trabalha o transferiu para lá” (BUZO, 2007, p. 12). Do outro, Rose e Tonho, “viciados, usam crack, bebem, fumam cigarro e maconha, cheiram e o que mais tiver” (p. 12). Ao estabelecer os limites borrados entre o “eu” e o “outro”, a literatura periférica acaba por redefi nir ou mesmo reafi rmar as construções identitárias.

Na obra em análise, centraremos nosso olhar em Rose, a nosso ver, personagem reveladora das representações femininas suburbanas. Dentro de sua respectiva construção identitária, inclusive com suas limitações e imposições, defendemos que essa personagem se torna cognoscente e revela

Page 8: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 88

um sujeito em processo de reconfiguração identitária. Ao sugerirem outra ordem cultural que não a eurocêntrica, os relatos identitários de sujeitos periféricos fazem emergir vozes silenciadas e o espaço do imaginário e da reflexão – impensável pelo discurso branco colonizador.

Sob a ótica transgressora, vemos o desnudamento das regras de obediência e submissão ao macho dominador: se à mulher, categorizada universalmente numa “estrutura reifi cada do binário disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino” (BUTLER, 2008, p. 57), estava destinado o lar burguês, em que os afazeres domésticos e a total submissão ao chefe da família se constituíam numa espécie de perpetuação hereditária; no “Planeta Favela” vemos os resquícios desse comportamento opressor do gênero, mas repensado pelos desregramentos do ser e pela subversão da identidade:

Ela era a dona desta residência, sua família partiu para a terra natal, Porto Alegre, e lhe deixou com a casa. Não aguentavam mais os problemas que ela causava por causa das drogas, seu pai quase foi morto por um trafi cante cobrando uma dívida da fi lha, partiram e a abandonaram literalmente. Assim que passou a morar sozinha, fez altos agitos na casa, movidos sempre a bebidas, drogas, maus elementos e sexo.Até que numa dessas festas veio o Tonho. Ele passou a morar com ela e a primeira coisa que fez foi acabar com as baladas ali, a casa agora tinha um homem (BUZO, 2007, p. 14, grifo nosso).

A noção de posse faz da mulher um objeto, o que realça o seu caráter essencialista, em seu processo de dominação excessiva do homem, que engendra situações de refi nada sutileza. Perpetua-se, assim, a visão da mulher, confi nada em seu ambiente doméstico, apesar de toda a anomia social da realidade de periferia, e, enquanto objeto sexual, sempre à disposição do macho. Nesta perspectiva, a matriz homogênea de feminilidade, com caráter biológico determinante, que pautou o modelo de razão imposto pela cultura ocidental, presa a preceitos que submetiam os “corpos dóceis” para o trabalho doméstico, é ressignifi cada no contexto suburbano, mas não deixa de ser um referencial nas condutas adotadas. Em suma, esta sociedade sexista reforçou a extrema submissão das mulheres tanto no centro quanto na periferia. Com Butler, reafi rmamos: “a categoria das ‘mulheres’, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação” (BUTLER, 2008, p. 19).

Retomando a narrativa, vemos o macho que subjuga o seu objeto de dominação:

Tonho olhou para Vilma e sua companheira.– Essa aqui é minha esposa e vou ali no quarto matar saudades dela, vocês esperem aqui.Jogou na mesa três pinos de cocaína para elas fi carem cheirando e arrastou a Rose pelos cabelos (BUZO, 2007, p. 29).

A “desconstrução”, conforme já explicitamos, constitui a base de uma nova “episteme”, assinalando caminhos diversos e levando a ruir discursos de teor hegemônico e o ideal de um universalismo a-histórico. Pelo viés da transgressão, no contexto “escancarado” da periferia, com linguagem própria, Rose se insere, no dizer de Richard (2002), num processo de resistência/negociação, resultando em seu “empoderamento”, enquanto ser dotado de razão e querer: em Guerreira, a referida personagem, enquanto ser de vontade, cria suas próprias condições de sobrevivência e opta pelo embrutecimento da sensibilidade para esse sobreviver. Aqui, o desdobramento do ponto de vista representa a necessidade de a personagem colocar um abismo entre si e sua própria experiência, de

Page 9: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 89

se transformar em seu próprio duplo, de se converter no “outro” e adquirir suas práticas, a ponto de planejar friamente a morte do seu algoz.

Assim sendo, “ser mulher” a remetia à condição nada confortável de frágil ser à espera dos favores sexuais do macho dominador. Dessa forma, a violência contra a mulher é uma forma de dizer que o status quo precisa ser assegurado a qualquer custo. Assim, não é possível acreditar em quem está contra o establishment. Logo depois, Rose se mostra subversiva, inicialmente tímida e atemorizada, para aos poucos tornar-se autônoma contra o discurso “falocêntrico” pelo viés disjuntivo do desejo, ao envolver-se com Rodolfo, seu patrão. Neste contexto, Rose, enquanto sujeito cognoscente, opta por trilhar por um caminho desejado somente por ela – envolver-se amorosamente por dinheiro:

– Desde que você chegou aqui sinto uma grande atração, sabe que é uma garota muito bonita e queria muito fazer sexo com você, claro que com seu consentimento.Rose esbravejou.– Você pensa que sou uma vagabunda? Se fosse, estaria trepando com seu fi lho que vive dando em cima de mim.– Você é uma mulher e toda mulher precisa de sexo, ou não?– O senhor está enganado comigo, sou pobre, mas sou direita. [...]– O senhor está forçando eu pedir minhas contas.– Você não tem nada a perder.– Além de minha dignidade, é claro.– Dignidade não enche barriga e não paga dívidas (BUZO, 2007, p. 42).

Percebe-se que, por mais que se tente desvincular dos pares binários, nas considerações sobre a representação feminina, não há como desconsiderar, nas palavras de Bourdieu, que “ser homem é estar instalado, de saída, numa posição que implica poderes” (1999, p. 21). Partindo desse pressuposto, o status de dominante é a essência da identidade masculina. E, dentro de uma tradição contínua, o sistema patriarcal ocidental instaurou a diferença dos papéis e das identidades sexuais de forma bem delimitada – homem forte versus mulher fraca. Em síntese, “a virilidade repousa sobre a representação de um desejo masculino, natural, irrefreável, que necessita de um exutório” (PERROT, 1998, p. 448).

Observe-se, porém, que a representação feminina periférica questiona o ideal de masculinidade, categorizado como aquele que compreende noções de vigor, potência, força e virilidade (MOSSE, 1997), a partir do momento em que Rose estabelece o seu preço:

– Acha que pode me comprar?– Todo mundo tem seu preço.– Mas o meu não é esse, quer transar, então eu quero vinte mil e se quiser continuar o apartamento tem que ser em meu nome.Rodolfo fi cou maluco de tesão, abriu a gaveta da escrivaninha e sacou mais um pacote de 10 mil reais (BUZO, 2007, p. 42).

O exemplo é uma instrutiva demonstração da natureza ideológica da masculinidade (mais uma vez, a necessidade de analisar a identidade feminina, a partir do contraponto com o legado opressor). Concepções de identidade, como executivo, ou dona de casa, operam para suportar e legitimar estruturas de desigualdade social, como a divisão sexual do trabalho entre homens (públicos/produtivos) e mulheres (privado/doméstico). A função ideológica primária dessas defi nições consiste em naturalizar as desigualdades nas relações de poder. Assunções, ideologicamente carregadas, recebem, através disto, um incontestável status de natural. Em contraponto, Rose, enquanto ser de vontade, opta pelo embrutecimento do ser, numa percepção materialista do corpo, através do domínio

Page 10: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 90

do próprio corpo feminino, pelo viés disjuntivo da volonté, o que leva ao seu empoderamento. Com isso, sua relação se torna estritamente comercial.

Assim sendo, a textura do vivido, em condições extremas e excepcionais, leva-nos a questionar até que ponto, ao proceder à representação de seu percurso existencial, as condições de sobrevivência da mulher em sociedades machistas e repressoras, nas quais ela parece fadada a conviver com a culpa aliada à satisfação do prazer; a proibição é sempre mais forte que o poder de realizar-se, de forma feliz, a transgressão. Ainda em Guerreira, vemos:

Através da Verônica, Rose descobriu que existem várias prostitutas que não têm lugar fi xo para trabalhar e eram exploradas por cafetões ou boates. Rose foi a fundo em suas investigações e resolveu investir. Verônica seria sua gerente e braço-de-ferro, elas acertaram detalhes e tinha início “a fi rma” (BUZO, 2007, p. 94).

“A Firma”, voltada para “os mais ricos e badalados”, confere ao gênero uma dupla inscrição: ao mesmo tempo em que denuncia a hipocrisia social, ele não se atrela a uma moral. Este aspecto redimensiona a transgressão, já que a prostituição é vista profi ssionalmente, sem qualquer teor pejorativo – “Os funcionários eram bem remunerados e profi ssionais” (BUZO, 2007, p. 96). Rose exerce sua independência fi nanceira alheia aos preconceitos sociais, já que mantém um grupo de prostitutas que não lhe traz consequências mais negativas do que sua condição de dependente de drogas. Rose, então, opta por transitar por uma espécie de norma arrevesada: ela não rompe com o ethos estabelecido, entretanto, experimenta as relações de gênero e classe, colocando-se em uma forma de contraproposta híbrida. Assim sendo, a performance da personagem, em análise, e sua construção identitária redesenham, com a sutil matéria da subjetividade, a representação feminina, estabelecendo o viço emancipatório do novo, devido à ressemantização ocorrida em discursos que negavam a contingência em nome da harmonia e do todo.

Conclusão

Rose traduz, com sua performance em Guerreira, o percurso de outras mulheres da periferia, pelo viés disjuntivo e subversivo da transgressão, ressignifi cando o discurso que tem subjugado as mulheres. Se essa subversão da identidade, no sentido butleriano, promove rupturas na forma de representar o feminino, ela acaba por contribuir para o delineamento de expressões culturais da periferia. A cultura acha-se disseminada nas baixas esquinas do mundo e recebe do gênero, delineado no subúrbio, forte contorno em um espaço claramente defi nido.

Em Guerreira, as desigualdades, os limites e as violências do discurso androcêntrico, que cunhou a percepção do centro em suas concepções política, social, artística e, consequentemente, na formação do cânone ocidental são transgredidos pelo desvelamento desse universo, cerceador de outras formas de representar. Tal aspecto denuncia o essencialismo das representações de gênero, em que o macho, viril, forte, parece endossar a existência de uma substância imutável em cada coisa, como se fosse um núcleo duro, fi xo, atemporal, que seria responsável pela identifi cação.

Neste sentido, ao desestabilizar e provocar tensões no discurso hegemônico, a identidade feminina transgressora, através da “desconstrução” de estruturas tidas como sólidas, se coloca ao serviço do “Planeta Favela”, em seu processo de reconfi guração identitária ante a imposição unilateral do centro, dito civilizado, nas formas de conceber arte e cultura. Assim, o locus enunciativo se desloca e revela a periferia como um lugar também de produção cultural.

Page 11: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 91

Women of the Periphery: feminism and trespass in Guerreira, by Alessandro Buzo

ABSTRACT:Th is article aims to demonstrate through the analysis of the novel Guerreira, written by Alessandro Buzo, how the feminist trespass in the women of the periphery universe, contributed for the development of the suburban culture.

Keywords: Peripherical culture. Feminism. Trespass.

Notas explicativas

* Professora Titular de Teoria de Literatura da Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC. Coordena o Grupo de Pesquisa em Estudos de Gênero, UESC/CNPq.

** Professor Colaborador do Grupo de Pesquisa em Estudos de Gênero, UESC.1 Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais propriamente da aglutinação da última sílaba da palavra

magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Fanzine é portanto, uma revista editada por um fan (fã, em português). Trata-se de uma publicação despretensiosa, eventualmente sofi sticada no aspecto gráfi co, dependendo do poder econômico do respectivo editor (faneditor).

Referências

BUZO, Alessandro. Guerreira. São Paulo: Global, 2007. 120 p.BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 212 p.BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 394 p.BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 432 p._ . A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 160 p.BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 236 p.FERRÉZ. Literatura marginal: a cultura da periferia: ato I. In: Caros Amigos Especial. São Paulo, agosto de 2001. 31 p._ . Literatura marginal: a cultura da periferia: ato III. In: Caros Amigos Especial. São Paulo, abril de 2004. 31 p.HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva et al. Rio de Janeiro: DP & AED, 1997. 102 p._ . Da Diáspora: identidade e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003. 434 p.HOSSNE, Andrea Saad. Depoimento ao programa “O mundo da literatura”: Literatura marginal: tradição. Produção: Ricardo Soares. São Paulo: Rede STV, 2003. 1 fi ta de vídeo (30 min).LIPOVETSKY, Gilles. A Terceira mulher: permanência e revolução do feminino. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 344 p.MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. 217 p.MOSSE, George. L’ image de l’ homme: l’ invention de la virilité moderne. Traduction de Michèle Hechter. Paris: Abbeville, 1997. 203 p.

Page 12: Mulheres da periferia: feminismo e transgressão em ... · mulheres da periferia, contribuiu para o desenvolvimento da cultura suburbana, a partir da análise do romance Guerreira

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2 - Especial, p. 81-92, jul./dez. 2011 92

OLIVEIRA, Patrícia Matos de. Uma advertência. In: BUZO, Alessandro. Guerreira. São Paulo: Global, 2007. 120 p.PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Trad. Valdívia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 120 p.PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1998. 157 p.RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Trad. Rômulo Monte Alto.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 206 p.SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978. 212 p.SCHMIDT, Rita Terezinha. Os estudos sobre a mulher e a literatura no Brasil: percursos e percalços. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE MULHER E LITERATURA, 5, 1993, Natal. Anais, Natal: EDUFRN, 1993._ . A crítica feminista na mira da crítica. In: ALMEIDA, S. R. G. Ilha do desterro: a journal of English language, literatures in English and cultural studies. Florianópolis: Editora da UFSC. n. 42, jan./ jun. 2002.VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e Plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 203 p.ZIBORDI, Marcos. Literatura marginal em revista. Estudos de literatura brasileira contemporânea. Brasília: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, n. 24, p. 69-88, jul./dez., 2004.

Recebido em: 31 de maio de 2011Aprovado em: 1 de setembro de 2011