erminia maricato - metropole na periferia do capitalismo

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  • 8/22/2019 Erminia Maricato - Metropole Na Periferia Do Capitalismo

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    METRPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO:ILEGALIDADE DESIGUALDADE E VIOLNCIA

    ERMNIA MARICATO

    Fotos deNAIR BENEDITO / N- IMAGENS

    So Paulo, julho de 1995

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    NDICE

    INTRODUO

    PARTE I

    URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DADESIGUALDADE E CONTRAVENO FATOS DA CIDADE CONTROVERSA RAZES DA ORDEM INVERTIDA: TRABALHO E TERRA URBANIZAO DA "INDUSTRIALIZAO COM BAIXOS SALRIOS" CIDADE, ESTADO E MERCADO: A MODERNIZAO EXCLUDENTE FIM DO DESENVOLVIMENTISMO- GLOBALIZAO E VIOLNCIA NOS ANOS 80

    PARTE II

    ENTRE O LEGAL E O ILEGAL - MERCADO E ESCASSEZ SEGREGAO AMBIENTAL E EXCLUSO SOCIAL ILEGALIDADE E EXCLUSO ENTRE O LEGAL E O ILEGAL, ARBTRIO E AMBIGIDADE DIREITO OCUPAO, SIM. DIREITO CIDADE, NO

    PARTE III

    SEGREGAO AMBIENTAL E VIOLNCIA URBANA VIOLNCIA URBANA O "(DES)AJUSTE GLOBAL" OU A NOVA "(DES)ORDEM INTERNACIONAL E A

    EXPLOSO DA VIOLNCIA A EXCLUSO UM TODO SEGREGAO AMBIENTAL E VIOLNCIA EVIDNCIA CARTOGRFICA DA SEGREGAO AMBIENTAL NO MUNICPIO DE

    SO PAULO.

    GUISA DE CONCLUSO, UM ALERTA MILITANTE

    PARTE IV

    AS TESTEMUNHAS DA CIDADE OCULTAAS IMAGENS DA CIDADE OCULTA

    BIBLIOGRAFIA

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    INTRODUO

    As idias aqui desenvolvidas tiveram origem na perplexidade causada pelas contradiesvividas tanto em minha militncia em movimentos populares urbanos quanto em meu estgio naadministrao municipal de So Paulo. H um profundo descolamento entre a ordem legal e acidade real. H um profundo desconhecimento social sobre a cidade concreta. Esse descolamento

    entre a concretude e sua representao, com as conseqentes prticas da decorrentes, vo semanifestar no cotidiano tanto no universo informal como no corao do aparelho de Estado, grandepromotor da ruptura aludida. intrigante, perceber as estratgias desenvolvidas pelo Estado e pelasociedade para conviver com o ocultamento da cidade real, mas no sistema jurdico porem, a quemcompete oficialmente garantir a justia e os direitos universais previstos na legislao, que ascontradies so mais profundas.

    O reconhecimento da "cidade partida", da segregao espacial, do aumento da pobreza, doapartheid social, j constituem um avano para uma sociedade que to alienada em relao dimenso dos excludos. A chamada "violncia urbana" uma manifestao daquilo que se procuratanto esconder mas que extravasou seus espaos de confinao. A representao elaborada pelascamadas dominantes, da cidade hegemnica ou da cidade virtual, como eu a chamo aqui, est

    sofrendo um srio revs, com o aumento da violncia. A concretude escapa pelas frestas da hbilconstruo. Mas alem dessa constatao que no evita uma abordagem dual, h um ardil que exigereflexo e que se encontra nas estratgias elaboradas para apresentar a realidade diferente do que .

    De 1975 a 1983 eu militei junto a movimentos reivindicatrios urbanos, na zona sul dacidade de So Paulo. A regio da Capela do Socorro, j estava formalmente protegida pela Lei deProteo dos Mananciais mas era ali, que numerosos loteamentos clandestinos eram abertos luz dodia e lotes totalmente irregulares eram vendidos a preos compatveis com o poder aquisitivo deuma populao pobre, recm chegada cidade e empregada, na maior parte, nas indstrias daregio. A ilegalidade era acompanhada de uma baixssima qualidade urbanstica j que oinvestimento na abertura do loteamento era o mnimo possvel, praticamente restrito abertura dasruas e demarcao dos lotes. Os movimentos de terra raramente guardavam alguma compatibilidade

    com o stio ou as condies geotcnicas do terreno, contribuindo para comprometer a represa queabastecia a cidade de gua. A ausncia de servios e infraestrutura urbanos e as imensas distncias aserem percorridas tornavam a vida um grande sacrifcio. Foi baseada no binmio loteamentoclandestino e nibus urbano que a periferia da cidade de So Paulo se expandiu horizontalmente nasdcadas de 40, 50, 60 e 70.

    Em raras oportunidades a cidade ilagal foi tomada como tema para a interveno projetualna Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP onde eu dava aulas desde 1974. A alienao noera alimentada apenas pelo ardil social (ou pela fora do regime militar), mas tambm pelo suporterepresentado por livros e revistas de arquitetura que informavam mais sobre as tendencias universais(leia-se, dos pases centrais) do que sobre a realidade que vizinha universidade. A atividade decriao se referenciava a uma globalidade que entretanto ignorava a concretude cientfica e os

    conflitos presentes na produo e apropriao do territrio prximo, apesar da boa inteno demuitos.No foram apenas os setores elitistas ou conservadores da academia que ignoraram essa

    produo gigantesca e ilegal da periferia urbana. A fuga em relao realidade concreta geroutambm uma produo intelectual abstrata e alienada inclusive por muitos dos que fizeram umaleitura crtica do capital imobilirio e da renda imobiliria. A literatura estrangeira sobreinstrumentos reguladores do desenvolvimento urbano foi inspiradora de farta produo intelectual eo que mais grave, tambm do planejamento oficial. A idealizao da relao cidade e sociedade etambm da relao Estado e sociedade foi responsvel por uma imensa quantidade de Planos

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    Diretores incuos (mas com evidente papel ideolgico) e um grande arsenal regulatrio que foiaplicado apenas ao mercado imobilirio legal ou cidade hegemnica. (VILLAA 1995).

    Esse fato iria se tornar mais evidente durante o perodo em que fui responsvel pela polticade habitao e desenvolvimento urbano do municpio de So Paulo. Uma legislao rigorosa edetalhista sobre o uso do solo urbano, convive com um processo anrquico e desastroso de ocupaodo solo, causador de dramas e tragdias a cada chuva que apresente intensidade um pouco maior. A

    prpria estrutura da Secretaria de Habitao e Desenvolvimento Urbano partida. ASuperintendncia de Habitao Popular convive com a banalizao das tragdias motivadas pelaocupao clandestina, pobre e descontrolada do solo : incndios em cortios e favelas,desmoronamentos de encostas habitadas com precariedade, desabrigados de enchentes, despejadosde terrenos privados, epidemias por falta de saneamento, etc. Do outro lado os departamentos dasecretaria, que se ocupam da cidade formal fazem anlise, minuciosa e detalhista de cada projetoque solicita licena para a construo dentro da ordem legal. O processo pode levar, freqentemente,mais de um ano em sua trajetria por inmeros departamentos municipais, onde zelosos tcnicosiro fazer a anlise baseados em diversificada e abundante normatizao, para depois dar ou no aautorizao para a construo. A fragmentao na diviso de trabalho isolando cada departamentoem seu mundo e a especializao na fragmentao pelos tcnicos faz parte da estratgia de

    sobrevivncia diante de um conjunto (a soma das intervenes na cidade real) que no admiteunidade. A cidade real no passa de uma referencia longnqua e abstrataUma das certezas que adquiri nesse perodo foi constatar que a privatizao da estrutura de

    administrao pblica no praticada apenas pelos por interesses empresariais privados e pelospolticos profissionais que so representantes do atraso. Parte dessa mquina no serve ningumseno micro interesses sedimentados atravs da conquista de micro poderes. No se trata docorporativismo moderno mas de resqucios do arcaico que passa pelos privilgios pessoais. O rigornunca alcanou as aes de controle geral urbanstico mas era uma regra quando se tratava dedetalhe, papel e gabinete.

    Num mesmo dia podamos enfrentar conflitos como no ter para onde levar uma dezena defamlias retiradas de reas de risco (e era um alvio encontrar locais em outros barracos de favelas

    para que ficassem em segurana ) e conflitos advindos de um promotor imobilirio que viu o inciode sua obra atrasar meses porque a prefeitura cobrava a notao dos bebedouros (pequenos pontosportanto) na planta do shopping center, tal como exigia a legislao. De um lado improviso, carnciade recursos diante da gigantesca demanda e de problemas acumulados na cidade clandestina, deoutro, rigor normativo e ao cartorial. Tudo debaixo do mesmo teto, no mesmo edifcio de umainstituio pblica, mas separados por uma distncia infinita: o desconhecimento mtuo.

    A busca de compreender a lgica das situaes vividas (ou da "idias fora do lugar")1, cujosexemplos iremos abordar ao longo do texto, levou a um reencontro muito feliz com uma parte daproduo intelectual brasileira que mereceria sem dvida extravasar os limites estreitos daacademia, para auxiliar a desvendar, amplamente, democraticamente, a identidade da sociedadebrasileira: Roberto Schwarz, Antonio Cndido, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Otavio

    Ianni, Jos de Souza Martins, Maria Silvia de Carvalho Franco , entre outros. Certamente a lista bem maior e se no a completo aqui porque seria muito extensa.Como parte integrante de um processo que capitalista, sem dvida, e de uma sociedade de

    classes, relaes calcadas no favor, no privilgio e na arbitrariedade caracterizam a formao dasociedade brasileira. Mais do que uma convivncia entre o atrasado e o moderno, a evoluo dos

    1Aluso feita expresso de Roberto Schwarz (SCHWARZ 1973), definida como a"combinao amalucada denormas prestigiosas da modernidade com relaes sociais de base que discrepam muito delas". (Rev. Teoria e Debate,So Paulo, PT. Ano7, n.27, dez.94 ,jan. 95).

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    acontecimentos se d com o "desenvolvimento moderno do atraso". No se trata, como nota MariaSilvia de C. Franco, "dualidade integrada" mas sim de "unidade contraditria". (FRANCO 1969).

    A relao calcada no favor constitui a negao da universalidade dos direitos (emboraprevistos na ordem legal) ou a negao da cidadania e da dignidade. Ela est na essncia daconfuso entre a coisa pblica e os negcios privados, na confuso entre governo e Estado, nadificuldade de abstrao do Estado (pelas camadas pobres) submetido a relaes pessoais.

    Desvinculado da violncia que sempre acompanhou a esfera produtiva, o favor pode encobri-la e at alimentar interpretaes mais amenas sobre a sociedade brasileira. (SCHWARZ 1973). Ascaractersticas do crescimento econmico, entretanto no deixam dvidas. Ele profundamenteconcentrador. Concentrador de renda, de terra, de poder. Ele sempre profundamente excludente.No se trata da excluso que atinge a Europa e os Estados Unidos no incio da dcada de 70. Ofordismo perifrico que se inicia no Brasil, aps a segunda guerra por exemplo, se desenvolve comexcluso social, diferentemente do que acontecera nos pases centrais. Trata-se da modernizaocom excluso.

    Na primeira parte deste livro, um conjunto de dados e fatos, embora no sistemticospretendem destacar a articulao contraditria entre norma e infrao no espao da metrpolebrasileira. Uma leitura ou representao alienada da cidade perpassa Estado e sociedade, orientando

    discurso e prtica. antagnicos. Especula-se acerca das razes de situao to extraordinria quantohabitual. Faz-se referencia a aspectos que marcaram a formao da sociedade brasileira em especial emergncia do trabalhador livre. So feitas referncias a alguns aspectos fundamentais quemarcaram a formao da sociedade brasileira em especial a emergncia do trabalhador livre, sementretanto, uma preocupao com a sistematizao ou o aprofundamento historiogrfico.

    O perodo que vai de 1930 a 1980, caracterizado pelo intenso processo de industrializao eurbanizao, com a forte interveno estatal na vida econmica e poltica, mereceu algumasreferncias numricas com a finalidade de evidenciar tanto o crescimento econmico quanto aconcentrao das riquezas, com evidente reflexo na construo das cidades. Cinco dcadas deacentuado crescimento populacional urbano marcado pela dinmica expressa no binmiocrescimento e pobreza, resultaro numa cruel herana para os anos 80. Nessa dcada ela ser

    agravada pelo fim do desenvolvimentismo e pela emergncia de um novo arranjo internacional, queacarretar a ampliao da desigualdade.A poltica urbana implementada pelo Estado autoritrio, tecnocrtico e centralizador que tem

    origem em 1964, expressa especialmente pela a criao e gesto do SFH/BNH (Sistema Financeiroda Habitao e Banco Nacional da Habitao) e o impacto da lei federal 6766/79 de parcelamentodo solo, pretendem mostrar o carter excludente das medidas modernizantes de produo do espaourbano.

    As caractersticas do ambiente construdo por uma sociedade marcada pela desigualdade epela arbitrariedade no poderia neg-la. O paradoxo que articula legislao, arbitrariedade eexcluso social explorado na segunda parte do livro. Destaca-se que a ocupao ilegal de terras informalmente consentida (ou por vezes at incentivada) pelo Estado que entretanto no admite o

    direito formal do acesso terra e cidade. Isso se d por conta da articulao entre legislao,mercado e renda imobiliria. A ocupao consentida inclusive em reas de proteo ambiental,mas raramente em reas valorizadas pelo mercado imobilirio calcado em relaes capitalistas.

    ao contexto do ardil que a excluso ser referenciada. a cidade oculta, disfarada edissimulada que dever emergir na parte final deste modesto trabalho. No h uma preocupaorigorosa com a historicidade dos dados durante todo o texto, mas h a pretenso de fundamentaruma leitura da metrpole em sua essncia, e tambm uma leitura mais circunstanciada do perodops 80 na ltima parte, quando as manifestaes de violncia criminal evidenciam o que as camadasdominantes insistiram em esconder: a desastrosa construo scio ecolgica, a gigantesca

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    concentrao de misria que resultou de um processo histrico de ocupao excludente esegregadora do solo urbano. Nos anos 80 a desigualdade se aprofunda no Brasil, mas no s aqui.Agora ela se manifesta tambm nos pases centrais que abandonam a era do "consenso social". Aempresa e o mercado substituem o papel outrora atribudo ptria - todos se ajudarem mutuamentecontra os concorrentes. (LIPIETZ 1989). Mas o impacto do novo arranjo internacional, que a tudosubordina, lgica do mercado, tem evidentemente efeitos diferenciados j que no Brasil, ele

    encontra um cenrio de excluso que histrico.Nos meados dos anos 90, a chamada violncia urbana um dos temas fundamentais quepreocupa todas as camadas sociais. O espao, o territrio o ambiente fsico parte intrnseca dessequadro, embora freqentemente esquecido e ignorado. A preocupao aqui foi a de destacar oespao fsico ou ambiente construdo como objeto e sujeito desse processo. Mais do que outrosterritrios, as metrpoles apresentam com maior evidencia, embora no com exclusividade, osconflitos e as contradies aqui tratados. Por isso as idias desenvolvidas vo se referir a elas semuma preocupao de abranger a todas nos dados apresentados , mas buscando referenciasparadigmticas. So Paulo, ser a referencia principal do trabalho devido disponibilidade deinformaes e devido tambm s dimenses dos conflitos que apresenta.

    Alguns mapas do municpio de So Paulo, realizados com dados estatsticos coletados em

    vrias fontes, mostram at que ponto pode chegar a desigualdade e a segregao na cidade deeconomia mais dinmica do pas. Essa megaconstruo, at certo ponto desconhecida (em suas reaisdimenses scio-econmicas), cobra hoje, atravs da violncia social, o preo da abstrao e dodesconhecimento que acompanharam seu crescimento.

    Ningum melhor do que os moradores da cidade oculta para descrev-la. Isto feito atravsdas letras dos raps dos Racionais MC, moradores de um dos bairros mais violentos de So Paulo.A viso daqueles que esto no interior do "caldeiro", que comeam a ter voz, constitui umanovidade que atrai multides de jovens maciamente negros, aos shows que o conjunto musicalapresenta na periferia de So Paulo. Os apartados constrem sua identidade.

    Um ensaio fotogrfico de Nair Benedito mostra as insubstituveis imagens dos bairroscitados na letra de Mano Braun (Domingo no Parque) e tambm dos bairros que ocupam lugar de

    destaque quando se trata de indicadores de analfabetismo, mortalidade infantil, nmero dehomicdios, conforme mostram os mapas. A maior parte desses bairros se localizam na zona sul dacidade de So Paulo. Na mesma regio que viu os primeiros movimentos populares urbanos dadcada de 70, movimentos de luta por condies mais dignas de vida, se mobilizarem , desafiando oRegime Militar.

    As idias aqui apresentadas, embora restritas ao cenrio brasileiro, pretendem contribuir paraos estudos que buscam elementos de unidade entre as cidades, e mais exatamente entre asmetrpoles do capitalismo perifrico. A insistncia na especificidade do caso brasileiro no quersignificar a negao de caractersticas que so universais no mundo capitalista (se que possveldefinir um "mundo capitalista" parte neste final de sculo), ou caractersticas que so prprias daperiferia do capitalismo, ou dos chamados NICs- New Industrialized Countries ou mesmo dos pases

    latino americanos. Reconhecer especificidades s dever contribuir para melhor entender o que dunidade a determinado conjunto e evitar generalizaes apressadas como fazem muitos dos autoresque tentam teorizar sobre o urbano nos chamados pases do sul, termo que est na moda, paradenominar os paises perifricos.

    O recurso s numerosas citaes bibliogrficas visam compensar a ausncia de uma pesquisade carter historiogrfico e compensar tambm a utilizao de tantos fatos extrados da minhaexperincia emprica, particularmente na gesto da SEHAB/ Prefeitura de So Paulo. O auxliobuscado em tantos e to lcidos pensadores talvez tenha sido a nica forma da autora adquirirsegurana necessria para to graves afirmaes e inter-relaes aqui feitas.

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    Resta alertar que dois textos de minha autoria, publicados em outras oportunidades serviramde ponto de partida para este livro e foram integrados ao conjunto ora apresentado: 1) O urbanismona periferia do capitalismo: desenvolvimento da desigualdade e contraveno sistemtica., foipublicado em uma coletnea organizada por Maria Flora Gonalves sob o ttulo, O novo Brasilurbano, impasse, dilemas, perspectiva. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1995. 2) Exclusosocial e reforma urbana. que faz parte de um nmero especial da revista Proposta, n. 62, editada

    pela FASE, Rio de Janeiro, setembro de 1994.Apesar das dimenses modestas deste livro os agradecimentos envolvem um grande nmerode entidades: PROAIM - Programa de Aprimoramento das Informaes de Mortalidade noMunicpio de So Paulo/ Servio Funerrio; SEADE - Fundao Sistema Estadual de Anlise deDados; FIPE - Fundao Instituto de Pesquisas Econmicas da FEA - USP; CESAD - Laboratriode Dados / FAUUSP; SEMPLA - Secretaria Municipal de Planejamento do Municpio de So Paulo;NEV - USP - Ncleo de Estudos da Violncia/USP; IBGE - Instituto de Geografia e Estatstica;CAP - Coordenadoria de Anlise e Planejamento / Secretaria de Segurana Pblica do Estado deSo Paulo; INSTITUTO LIDAS.

    .Agradeo tambm aos funcionrios da FAUUSP, Elizabeth Aparecida Casemiro e CludioFaria Sarti; aos alunos, Marcio Luiz e Cid Blanco Junior; historiadora Vera Lcia Vieira; ao

    urbanista Flavio Villaa e ao cientista social Ricardo Neder.

    ERMNIA MARICATOSo Paulo, abril de 1995

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    URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DADESIGUALDADE E CONTRAVENO SISTEMTICA

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    FATOS DA CIDADE CONTROVERSA

    O uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificaes em meio urbano atinge mais de50% das construes nas grandes cidades brasileiras, se consideramos as legislaes de uso eocupao do solo, zoneamento, parcelamento do solo e edificao2. O profundo descolamento entrea norma e o fato suscitam estranheza a qualquer analista diante deste concreto ignorado. A pretenso

    de que o Estado se organiza para cumprir a norma e pune os que a contrariam. Quando porem, ocontrrio predomina e a impunidade ou a punio aleatria se generalizam, estabelece-se um "faz deconta" geral das instituies que se estruturam baseadas numa legislao que se diz regulamentadorada globalidade urbana.

    A construo ideolgica hegemnica da representao do urbano procura ignorar aarticulao contraditria entre norma e infrao. Essa conceituao que filtra, mediando, arealidade concreta, perpassa o Estado e a sociedade incluindo-se a intelectuais e tcnicos doplanejamento urbano. Antes de buscar o nexo da unidade do conjunto fraturado e suas possveisrazes, vamos procurar elucidar o fato: sua ambigidade, suas contradies, seu descolamento, ouseja, vamos buscar esclarecer a fratura, que est na base da relao tensa entre o urbano real e ourbano virtual, mesmo que correndo o risco de lanar mo, temporariamente da abordagem dualista.

    Comecemos pela representao que a mquina governamental municipal faz do urbano, cujocontrole do desenvolvimento de sua competncia, de acordo com a Constituio brasileira.Grande parte das reas urbanas ocupadas no existe nos cadastros municipais. No

    municpio de So Paulo, cidade ncleo da rea metropolitana, havia em 1989 aproximadamente30.000 ruas ilegais que, portanto, no tinham nome, o que no dava direito aos moradores (em suamaioria de loteamentos ilegais) de terem sequer um endereo. Em 1990 moravam nos loteamentosilegais do municpio de So Paulo 2,4 milhes de pessoas de acordo com estimativas doRESOLO/SEHAB. Apesar da importncia da ao do municpio na regularizao de loteamentos,(ela condio para o registro legal do imvel) a gesto municipal do perodo 1985/88 fechou orgo especfico que tinha essa competncia e se desinteressou pelo assunto causando adesorganizao de cadastro de 2.600 processos de regularizao de loteamentos em andamento na

    prefeitura. Essa cidade ilegal inexiste, freqentemente, para o planejamento urbano oficial.Embora as grandes cidades brasileiras contem com um respeitvel nmero de profissionaisenvolvidos com o tema, no raramente estes trabalham com uma realidade virtual atravs dasrepresentaes nos gabinetes, longe do territrio sem lei, sem segurana ambiental, sem saneamento,constitudo pelas reas de moradias pobres.

    A prtica do planejamento urbano oficial tem uma irresistvel atrao pelaregulamentao do mercado imobilirio atravs de leis detalhadas de uso do solo e zoneamento.GIAQUINTO 1995). O fascnio exercido pela proposta do "solo criado" nos debates queenvolveram, inclusive pensadores de esquerda, (durante os anos 1970 a 1980 o assunto quase quemonopolizou os debates acadmicos, influenciados por intelectuais franceses) contrasta com o

    pouco acmulo nas anlises e busca de solues para os graves conflitos entre a propriedade privadae a ocupao ou parcelamento ilegal do solo urbano, ou seja a excluso, a segregao territorial quese d atravs das relaes jurdicas.

    2Essa afirmao se baseia no nosso conhecimento emprico adquirido profissionalmente junto adiversas prefeituras. Em relao do municpio de So Paulo, ver a respeito: cadastro de favelas emHABI/SEHAB, cadastro de loteamentos ilegais no RESOLO/SEHAB, previses sobre populao moradorade cortios na SEMPLA, estimativa sobre imveis ilegais CASE/SEHAB. Estima-se que a ilegalidade atinja70% dos imveis do municpio

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    Os Planos Diretores - PDs tm se prestado busca idealizadora da unidade e datotalidade do urbano to ao gosto do urbanismo modernista. A incorporao do conceito ps-moderno de fragmentao, valorizando o desenho urbano, no implica necessariamente, na visoalienada do planejamento oficial, em encarar a cidade real que exige interveno emergencial,menos generalizante e abstrata. Para grandes reas do territrio urbano esta regulamentao nadasignifica. Gesto e no simples regulamentao, operao, ao administrativa e no apenas

    planejamento de gabinete, o caminho para a preveno das tragdias cotidianas que vitimammoradores dos morros e encostas que deslizam a cada chuva, ou moradores das beiras dos crregosatingidos por enchentes, ou bairros inteiros atingidos por epidemias.

    notvel o distanciamento entre quem pensa a cidade nos executivos municipais equem exerce o controle urbanstico. A aprovao de plantas e o poder de polcia sobre o uso eocupao do solo esto diludos em uma estrutura fragmentada que favorece, numa ponta a ao doplanejamento alienado e na outra, a ao dos "pragmticos" fiscais, cuja prtica bastante mediadapela corrupo. (MARICATO, 1993)

    O Cdigo de obras de So Paulo (lei 8.266), vigente de 1975 at 1992, fixava porexemplo, exigncias em relao dimenso de uma sala de espera para uma cabeleireira que seinstalasse em qualquer bairro da cidade (desde que a lei do zoneamento o permitisse, claro).

    Fixava ainda a espessura das paredes externas e internas, ou do lastro para o piso nas edificaes.Para mudar uma porta de lugar ou executar pequenas reformas no interior da residncia o moradordeveria abrir um processo e solicitar permisso Prefeitura, respeitando todos os procedimentosformais (e informais) que costuma caracterizar a obteno de alvars para edifcios.

    A lei de anncios do Municpio de So Paulo probe, por exemplo, anncios emempenas cegas de edifcios (parede contnua, sem abertura de janelas) mas eles esto presentes portoda a cidade

    A legislao detalhista e "rigorosa" contribui para a prtica de corrupo e constituium exemplo paradigmtico da contradio entre a cidade do direito e a cidade do fato. Pois em umambiente onde "a infrao, alm de infrao norma e a norma alm de norma infrao, como sedeveria esperar de uma contraveno sistemtica", qual o papel das leis que pretendem

    regulamentar procedimentos detalhados do universo individual do interior da moradia, quando amaior parte das moradias e do contexto urbano constituem um imenso universo clandestino queignora normas mais gerais e bsicas ?3

    O legislativo tambm tira partido dessa situao. Ao invs de buscar adequar alegislao realidade ou a realidade `a lei, podemos afirmar que, mais como regra do que exceo,parlamentares se aproveitam desse descolamento entre norma e conduta na produo e uso doespao, para "beneficiar" vastas camadas da populao com anistias peridicas para os imveisilegais. Alis o assentamento ilegal residencial constitui inesgotvel fonte de clientelismo polticoque historicamente praticado no Brasil pelo legislativo e inclusive pelo executivo.

    Se a ambigidade e a contradio marcam profundamente a ao do executivo elegislativo, o que no dizer do judicirio? O que no dizer dos sistemas jurdicos encarregados de

    assegurar os direitos previstos nas leis?.

    3 Quando atingidos por alguma medida saneadora, os agentes vistores de So Paulo, (fiscaismunicipais de uso e ocupao do solo), se vingavam aplicando a lei "indiscriminadamente", multandoquaisquer moradores da cidade ilegal e jogando-os contra a prefeitura. O universo domiciliar ilegal maiordo que o legal nas metrpoles brasileiras como j registramos. por isso que utilizamos aqui a expresso deRoberto Schwarz - "contraveno sistemtica"- na frase construida por Arantes. A expresso est fora docontexto (Schwarz se referia elite brasileira promotora do trfico de africanos), mas bastante adequada aourbanismo perifrico. SCHWARZ 1991; ARANTES 1992.

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    A criao de leis historicamente articuladas formao do mercado imobilirio e osconflitos que emergem na aplicao dessa legislao s reas ocupadas ilegalmente, com especialdestaque ao contraditria do judicirio, so relatados em um estudo elaborado por Falco Neto eAlmeida Souza (1985), cuja anlise emprica centrada na cidade do Recife.

    O Recife apresenta aproximadamente 50% de sua populao vivendo em mocambosdesde o incio do sculo XX at seu final. Segundo o estudo citado, em 1914 essa proporo era

    43% e em 1960 era 60 % .Em 1988 essa taxa era de aproximadamente 50% segundo outra fonte :oprojeto de lei do Plano Diretor. enviado Cmara Municipal nessa data. Recife a metrpolebrasileira que apresenta a maior proporo de moradores de favelas em sua populao. Vamosacompanhar o relato do referido estudo:

    As leis do imprio, as ordenaes, os alvars, tinham validade apenas para astransaes com os sobrados. As negociaes que envolviam os mocambos eram regidas por usos,normas e costumes no formalizados pelo Estado. Os dois sistemas conviviam na produo doespao social da cidade do Recife.

    Enquanto a cidade manteve espao fsico disponvel no seu interior, odesenvolvimento urbano permitiu uma convivncia contraditria entre o direito (de fato) demoradia das populaes de pouco ou nenhum valor econmico e o direito (legal) de propriedade,

    que regulava as transaes nas reas mais valorizadas. (p. 77)Quando essa condio se esgotou o conflito tornou-se inevitvel, com a ocorrnciade um grande nmero de ocupaes de terra, fruto de aes coletivas que faziam surgir novasfavelas da noite para o dia. Existe uma diferena essencial entre esse tipo de ao (que no mesmoperodo, meados dos anos 70 em diante, ocorreram nas principais cidades brasileiras) e a ocupaolenta e tradicional que marcou o surgimento das favelas ou das periferias urbanas ilegais durantedcadas

    Diante dos conflitos relativos ocupao de terra, como reagiu o judicirio?Continuemos com o relato sobre os mocambos de Recife:

    Ao contrrio do que se pode pensar, os conflitos dela resultantes raramente foramsolucionados por meio de violncia ilegal de proprietrios ou da polcia, ou pela aplicao judicial

    do Cdigo Civil e da legislao pertinente. Na imensa maioria dos casos, a soluo foi negociada:dentro, fora, ou margem da lei. (p. 77)A questo ganha relevncia, segundo os autores, porque no se trata de um ou outro

    caso, mas inmeros casos cujas negociaes envolveram, durante anos, os governos estadual,municipal e poder judicirio. No faltou at mesmo, no relato, o caso de um juiz que sentenciou spartes sjulgar o processo quando estas entrassem em acordo. E os autores concluem:

    ...diante do agravamento do conflito urbano, o Poder Judicirio tem aparecido comoinstncia onde se tenta no s fazer cumprir o direito de propriedade, como tambm no faz-locumprir. (p. 77)

    Essa impresso de que o judicirio age de modo "flexvel" no que se refere aaplicao da lei aos casos de ocupaes de terras urbanas, desaparece diante de outros relatos, os

    quais apontam para outras concluses. Durante os anos 80 acirrados conflitos na disputa pela terraurbana suscitaram diferentes reaes dos executivos ou judicirios. Em So Paulo pudemosparticipar (enquanto governo) de negociaes entre ocupantes e proprietrios, legitimadas por juzessensveis possibilidade de ocorrncia de conflitos violentos nos despejos executados por ordensjudicial4. Outros casos, entretanto, tomaram rumos diferentes. Durante uma ao de despejo que

    4 Em alguns casos os juizes exigiram dos proprietrios tempo para a busca de alternativas, caminhespara mudanas e inclusive cesta bsica de alimentos para os ocupantes. No foi incomum encontrarcomandantes de polcia, alem de juizes, preocupados e desejosos que uma soluo fosse encontrada antes daao de despejo, principalmente depois do conflito da "Vila Socialista", no municpio de Diadema, em 1990,

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    teve lugar na zona leste de So Paulo, um trator contratado pelo proprietrio do terreno, colocouabaixo casas de alvenarias que ainda abrigavam moradores no seu interior (pessoas idosas e crianasneste caso). Essa ao foi acompanhada (assistida) por fora policial.

    Diante da esdrxula situao na qual o prprio judicirio aplica ou no a lei e porvezes, ao invs de aplic-la, prope a negociao (na melhor das hipteses), surge uma indagao:afinal, qual o critrio de aplicao da lei? Voltamos situao apontada inicialmente: unidade

    articulada entre norma e infrao abre espao para a subjetividade, o clientelismo, o favor, aarbitrariedade. A deciso judicial socialmente muito valorizada nessa situao. A lei pode seraplicada ou no, depende de cada caso. Ela est mo para ser usada ou no. E alem dos aspectosapontados, ela cumpre seu papel em relao ao mercado imobilirio capitalista formal, restrito econcentrado..

    Enquanto os imveis no tm valor como mercadoria, ou tm valor irrisrio, aocupao ilegal se desenvolve sem interferncias do Estado. A partir do momento em que osimveis adquirem valor de mercado (hegemnico) por sua localizao, as relaes passam a serregidas pela legislao e pelo direito oficial.. o que se depreende dos dados histricos e daexperincia emprica atual. A lei do mercado mais efetiva do que a norma legal.

    Deixemos momentaneamente a esfera do Estado em sua relao com o urbano paraverificar qual a representao da cidade, que predomina em certos setores da sociedade.

    O desconhecimento da cidade real pelas classes medias e dominantes da sociedade reforado pelo seu confinamento a uma rea de circulao restrita pelas "ilhas de primeiro mundo".A concentrao de infraestrutura e equipamentos urbanos aliados ao mau funcionamento dostransportes pblicos, vo determinar a ocupao densa da cidade hegemnica. Esses circuitosfornecem a iluso de um espao relativamente homogneo, contando com comrcio e serviossofisticados. No apenas a estrutura administrativa municipal, os cadastros urbanos e o oramentopblico que se organizam em funo desse espao restrito. Uma imprensa dedicada ao "estilo devida" ai existente refora a idia predominante que toma o global pela centralidade oficial.

    Entre 1989 e 1992, os empresrios imobilirios reunidos em torno de seu sindicato, oSECOVI, se opuseram aprovao do projeto de lei relativo regularizao fundiria de favelas emSo Paulo, proposto pela prefeitura e modificado por vereadores da Cmara Municipal emnegociao com os movimentos de favelados. Suas idias foram expressas atravs da revista doSECOVI (principalmente atravs de dois artigos publicados no ano de 1992). Neles, empresriosimobilirios propunham a remoo das favelas de reas pblicas e a devoluo dessas reas ao usopblico. Uma posio pretensamente correta - incorporar ao patrimnio pblico reas ocupadasprivadamente por moradias - revela o desconhecimento sobre a impossibilidade de aplicar talmedida a uma cidade onde quase 20% da populao, ou mais de um milho de pessoas, mora emfavelas.

    A populao favelada tem crescido a taxas muito maiores que a populao da cidadecomo um todo. No incio da dcada de 70, menos de 1% da populao do municpio morava em

    favelas. Em 1987 essa taxa era de 8%. (SEHAB 1987). Em 1993 levantamento da FIPE resulta emuma taxa de 19,4 %. O crescimento de favelas foi espetacular em relao populao total domunicpio de S. Paulo, nas dcada de 70, 80 e mantm um aumento progressivo nos anos 90.Durante esse perodo ou mais exatamente de 69 a 89 a prefeitura promoveu a construo deaproximadamente 97.000 unidades de habitao atravs da COHAB-SP, ou seja durante 20 anos aprefeitura, contando com recursos federais, hoje escassos, construiu moradias para um nmeroequivalente a aproximadamente metade da populao moradora de favelas em 1987. Ela no

    cuja reintegrao de posse pedida pelo governo do estado, transformou-se em um conflito armado com aocorrencia de uma morte e vrios feridos, entre os quais estava um vereador que perdeu uma das mos.

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    conseguiu sequer frear o crescimento das favelas quanto mais elimin-las. (Sem contar ocrescimento de cortios e adensamento dos loteamentos da periferia).

    Certamente algumas razes levaram os representantes do SECOVI a essa atitude, jque muitos dos terrenos ocupados por favelas esto situados no ncleo hegemnico, pressionandopara baixo o valor dos imveis do entorno. Muito possivelmente eles no estavam se referindo atodas as favelas do municpio, mas apenas aquelas que estavam situadas na rea eleita como o novo

    fil mignon do capital imobilirio em So Paulo, situadas nos arredores do Rio Pinheiros. Oempenho da gesto do prefeito Paulo Maluf, agindo em parceria com empreiteiras e demaisempresrios da regio, em retirar ou dar uma nova fachada, s favelas localizadas exatamente nessasreas, durante o ano de 1995 e no incio de 1996, mostram que no se tratou de simples coincidenciaou necessidade tcnica relacionada s obras virias. (FIX 1996).

    As polticas saneadoras, que a julgar pelos discursos e exposio de motivos, sedestinavam a resolver problemas sociais de moradores de favelas e cortios, no Brasil, se ocuparamconcretamente, desde o comeo do sculo XX, em retir-los das reas mais valorizadas pelomercado imobilirio, sem nunca apresentar qualquer eficcia em relao questo social. Foi assimnas reformas urbanas higienistas do incio da Repblica, foi assim durante o populismo varguista efoi assim durante o regime militar. (SEVCENKO 1993; VAZ 1994; BARBOZA 1995, MARICATO

    1995). Mas alm do interesse econmico, est presente tambm uma boa dose de desinformaosobre a dimenso da misria urbana e as condies de habitao. Se a excluso social omitida, nodiscurso utilizado, porque a ausencia de informaes junto chamada opinio pblica, permite amistificao.

    A representao que muitas entidades ambientalistas, situadas em oposio ao capitalimobilirio, fazem da cidade revela tambem notvel desinformao.

    Por ocasio do Tribunal das guas, encontro promovido em 17/11/90, pela ativaApedema- Assemblia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Estado de SoPaulo, que discutiu o conflito entre habitao e mananciais, diversas entidades ambientalistasreivindicavam a remoo de populao que habita a rea de proteo dos mananciais da bacia deRepresa de Guarapiranga.

    A regio foi ocupada por loteamentos clandestinos durante a vigncia da Lei Estadualde Proteo dos Mananciais, promulgada em 1975. Crescentemente ocupada pelos trabalhadorespobres que no contam com alternativas no mercado privado legal ou nas polticas pblicas,contando com a conivncia da fiscalizao municipal e estadual, ausentes, a regio apresentava omaior ndice de crescimento populacional do municpio de So Paulo, no final dos anos 80 (8,88%a.a. no Subdistrito de Parelheiros - Fonte SEADE)

    Em 1990, a prefeitura de So Paulo procurou traar uma estratgia para, antes demais nada, diminuir progressivamente a taxa de ocupao da bacia atravs de fiscalizao integradacom o governo estadual. Em seguida, como parte do programa de saneamento e recuperaoambiental da bacia, buscou-se definir o saneamento e urbanizao das reas de ocupao jconsolidadas, removendo apenas os domiclios indispensveis para o saneamento ambiental,

    apontados em levantamento tcnico, para depois, colocar em prtica um plano de desenvolvimentosustentvel5. No foram raros os representantes de entidades ambientalistas que se colocaramcontrrios urbanizao e regularizao das reas ocupadas exigindo a remoo da populao deum modo geral. Certamente havia uma desinformao sobre a dimenso da populao moradora narea da bacia, ou ento, uma despreparo sobre o que significa remover aproximadamente 600.000

    5 Ver a respeito o Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga, elaborado sob acoordenao da Secretaria de Energia e Saneamento do governo estadual de So paulo, com a participao daSEHAB/ PMSP.

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    s do seu local de moradia, em termos sociais e econmicos. Muitos dos que defendiam essaproposta argumentavam que era necessrio cumprir a lei, sem aprofundar muito a discusso sobre osaspctos que a impediam de ser cumprida.

    A defesa de propostas formais inviveis, que abstraem a base social, econmica efsica qual se referem, no pode ser generalizada chamada militncia ecolgica. Podemos afirmarentretanto, sem temer exageros, que a abstrao em relao realidade urbana brasileira, que est

    presente em toda a sociedade, est tambm, fortemente presente, nas entidades ecolgicas que,embora reconhecendo os males de uma concentrao demogrfica considerada "excessiva",desconhece a real dimenso da ocupao anrquica do solo e as contradies que so inerentes aesse processo. Esse "desconhecimento" sobre a realidade prxima, acompanhado de umaconstruo ideolgica da representao sobre o urbano, que repete a marca das idias fora dolugar, tambem entre muitas das entidades ambientalistas, atrasando a urgente e necessria defesado meio ambiente.

    Toda temporada de chuvas acompanhada anualmente por tragdias urbanas noBrasil. Enchentes e desmoronamentos com mortes fazem parte do cotidiano da populao pobre quehabita as grandes cidades. A mdia repete continuamente acontecimentos desse tipo, sem fazer,entretanto, qualquer referencia ao processo anrquico de uso e ocupao do solo. A ausncia do

    saneamento bsico o fator principal da disseminao de epidemias. A rede hdrica e os mananciaistransformam-se em depsito de esgotos comprometendo a captao de gua. Alm dasconseqncias que so percebidas, no existe a conscincia social sobre o fio que une esses fatos: adimenso da tragdia urbana brasileira.

    A violncia que eclodiu a partir dos anos 80, nas metrpoles brasileiras, com maisvisibilidade na cidade do Rio de Janeiro, que finalmente tem atrado ateno para a imensa massade excludos do mercado de trabalho e do mercado de consumo regular, alem de excluda dosservios e infra-estrutura urbanos. O desempenho recessivo da economia brasileira durante os anos80 e aumento da pobreza, esto mostrando aos setores privilegiados da sociedade que no hcondomnio fechado, segurana privada, dispositivo de segurana, "edge cities", zoneamentossegregados e demais normas urbansticas, que a protejam da realidade concreta.

    Os movimentos urbanos, mais freqentes e crescentes a partir de meados dos anos 70,tambm contriburam bastante para revelar a ponta do "iceberg" (dimenso da pobreza urbana),porm, fora a ocupao de terras privadas que acarreta conflitos envolvendo proprietrios e Estado,a violncia urbana contida nos assaltos, roubos, chacinas tm sido mais eficazes para trazer tonaessa realidade de excluso.

    RAZES DA ORDEM INVERTIDA :TRABALHO E TERRA

    "(...) insistiremos ainda um pouco na ambivalncia ideolgica das elites brasileiras,um verdadeiro destino. Estas se queriam parte do Ocidente progressista e culto, naquela altura j

    francamente burgus (a norma), sem prejuzo de serem, na prtica, e com igual autenticidade,membro beneficirio do ltimo ou penltimo grande sistema escravocrata do Ocidente (a infrao).Ora, haveria problemas em figurar simultaneamente como escravista e, indivduo esclarecido?"(SCHWARZ, 1990, p. 41)

    A evoluo urbana no Brasil contrariou a expectativa de muitos, da superaodo atraso, do arcaico e da marginalidade, pelo moderno capitalista. O processo de urbanizao,acelerado e concentrado, marcado pelo "desenvolvimento moderno do atraso", cobrou, a partir dosanos 80, aps poucas dcadas de intenso crescimento econmico do pas, um alto preo, atravs da

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    predao ao meio ambiente, baixa qualidade de vida, gigantesca misria social e seu corolrio, aviolncia.

    O desenvolvimento urbano desigual ao invs de eliminar a herana do atraso,reproduziu-a e deu-lhe novas conformaes. Segundo Martins,

    (...) o capitalismo na sua expanso, no s redefine antigas relaes, subordinando-as reproduo do capital, mas tambm engendra relaes no capitalistas igual e contraditoriamente

    necessrias a essa reproduo" (MARTINS, 79, p. 19).A reproduo do atraso pela modernizao, ou como lembra Florestan Fernandes, a"modernizao do arcaico" que simultnea "arcaizao do moderno, constitui uma marca docapitalismo perifrico que acaba por lhe conferir caractersticas prprias. (FERNANDES, 1977). 6

    A compreenso de que os pases capitalistas chamados de centrais so como soporque o processo de acumulao global ( e no final do sculo XX esse fato muito maisevidente), no deve impedir a busca das especificidades que caracterizam o capitalismo ditoperifrico. A relao de dependncia biunvoca mas alguns ganham mais com ela.

    A ambiguidade foi a marca da sociedade colonial. A produo na Colonia no foipr-capitalista e nem feudal j que combinava produo para subsistncia e produo para omercado internacional. Isto , a produo colonial era capitalista sem ser. O produtor colonial no

    era burgus e nem senhor feudal.A emergncia do trabalhador livre em substituio mo de obra escrava, noimplicou em trabalho assalariado, e aqui novamente as relaes no so definidas como capitalistasapesar de fazerem parte do processo de acumulao de capital. (MARTINS 1979). Relaesbaseadas no mando, na dominao pessoal e no favor, sobreviviam (e ainda sobrevivem) nummundo em que se afirmavam os direitos civis: igualdade perante a lei, direitos individuais, liberdadede expresso, etc.

    Assim a ligao do Pas ordem revolucionada pelo capital e das liberdades civis,no s no mudaram os modos atrasados de produzir, como os confirmava e promovia na prtica,fundando neles uma evoluo com pressupostos modernos (...). (SCHWARZ 1991, p. 37)

    A convivncia do iderio liberal europeu com relaes de trabalho que o

    contradiziam marcou a formao ideolgica e moral da sociedade brasileira, segundo Schwarz.Citando Felipe de Alencastro, aquele autor lembra que durante a negociao para o reconhecimentodiplomtico da Independncia, o novo governo brasileiro buscando legitimar-se prometia,externamente a abolio e internamente a continuidade da escravido. Ser abolicionista ou no,dependia da ocasio. No mais das vezes era-se as duas coisas.

    As autoridades, apesar de eventuais declaraes em contrrio, faziam vista grossa pirataria que facultava o transporte de carne humana, formalmente ilegal desde o acordo com aInglaterra em 1826 e a lei regencial de 7 de novembro de 1831.( BOSI 1992, p. 196)

    Entre 1830 e 1850, entraram no pas, segundo Bosi, 700.000 africanos.O contedo do liberalismo brasileiro se definia ao nvel econmico por: comercio,

    produo escravista, compra de terras (aps 1850). E ao nvel poltico por: eleies indiretas e

    censitrias. Tratava-se do liberalismo dos possuidores, ou do respeito individualidade e autonomiado cidado proprietrio. Um liberalismo adaptado s "circunstncias" e s " peculiaridades"nacionais.(BOSI 1992) O surgimento da burguesia brasileira no se faz em oposio aos

    6"Os mesmos efeitos dinmicos do padro dependente de modernizao acarretam a necessidade dapersistencia e da revitalizao de dinamismos que no so especificamente "modernos", embora sejamessenciais, em graus variveis, eficcia dos fins visados atravs da modernizao dependente. Isto querdizer que a modernizao processa-se de forma segmentada e segundo rtmos que requerem a fuso do"moderno"com o "antigo"ou, ento, do "moderno" com o "arcaico", operando-se o que se poderia descrevercomo a "modernizao do arcaico" e a simultnea "arcaizao do moderno".(FERNANDES 1977,p.211).

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    privilgios do sistema colonial mas sim em oposio ao "jugo colonial". Com a destruio daordenao jurdico poltica deste, os demais privilgios no s subsistiram, mas foram atreforados. (FERNANDES,1977)

    A forma como se deu a passagem do Brasil colnia para o pas independente, o finalda escravido, a substituio dos escravos pela fora de trabalho imigrante europia e a emergnciado trabalhador livre, de fundamental importncia para entender o processo de industrializao e a

    formao do proletariado urbano.Caio Prado lembra que a produo escravista afastou o trabalhador livre da atividadeprodutiva:

    Quem no fosse escravo e no pudesse ser senhor, era um elemento desajustado queno podia se entrosar normalmente no organismo econmico e social do pas. .(PRADO 1956,p.203)

    De uma populao de 3 milhes de pessoas residentes no Brasil do sculo XVIII,quase a metade estava na condio de livre ou liberto, a qual, praticamente excluda da produoorganizada, vivendo da cultura de subsistncia ou de tarefas ocasionais (embora cumprindo umpapel importante para a dinmica econmica), era tida pelo pensamento predominante, comocomposta de vadios , indolentes e imprestveis para o trabalho.(FRANCO 1969)

    A maneira como os senhores tratavam o cativo, passvel de ser explorado at oslimites de sua sobrevivncia, influenciava tanto a percepo que os livres tinham acerca dotrabalho disciplinado e regular como a percepo que os proprietrios faziam da utilizao da mode obralivre.(KOWARICK 1994, p. 42)

    Para o trabalhador livre, o trabalho organizado nessas condies era visto comodegradante

    A libertao dos escravos se consumou aps muitas resistncias, quando o processode sua substituio pelo trabalhador imigrante europeu j estava em curso, atravs de um caminhoque tentou, novamente, marginalizar o trabalhador brasileiro da produo organizada.

    Os conflitos que acompanharam essa substituio do escravo pelo imigrante europeu,("escravido disfarada", segundo diversos autores ), e a incorporao dos trabalhadores nacionais

    ao mercado de trabalho regular, participam da constituio das razes que esto presentes nasociedade brasileira no final do sculo XX. Relaes coloniais de produo sobrevivem sobre anova legalidade iniciada com a Independncia (1822), relaes de trabalho baseadas no mandopessoal, no favor e no coronelismo poltico ultrapassaram a Repblica at nossos dias.

    No limiar da Repblica, parte da fora de trabalho fabril era escrava e ostrabalhadores assalariados recebiam parcela da remunerao em espcie. (REIS 1994). Essa prticafez parte da relao dos fazendeiros com as primeiras levas de trabalhadores imigrantes. Elasobrevive ainda aps 1930, especialmente no campo, no atingido pela regulamentao das relaesde trabalho promulgadas em 1935. No final do sculo XX, o pagamento em espcie, ou o que maisgrave, o trabalho escravo ainda encontrvel no campo brasileiro.

    A questo fundiria teve um papel central em todo esse processo.

    Se antes de 1850 a terra no exigia "cautelas jurdicas" nem da Coroa Portuguesa enem do Imprio Brasileiro, sendo a ocupao ou posse, prticas legtimas para adquirir apropriedade, aps essa data o Estado passa a regular o acesso terra. Antes de 1850, "a terra erapraticamente destituda de valor" (ausncia de mercado imobilirio e abundncia de terrasdevolutas) enquanto que o escravo sim, era mercadoria que contava entre os bens do seuproprietrio, no como capital, mas como renda capitalista (MARTINS, 1979)

    A terra no tinha importncia econmica sem os escravos, que independentes daterra, eram valiosos, utilizados inclusive como objeto de penhores e hipotecas.

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    H uma perfeita articulao entre o processo de extino do cativeiro do homem e oprocesso subsequente de escravizao da terra. (BALDEZ,1987)

    O ano de 1850 marcado pelo fim do trfico de escravos, e pela Lei de Terras n 601,de 18 de setembro. No por coincidencia que as duas leis so promulgadas com uma semana detempo entre uma e outra. De acordo com a lei, as terras devolutas poderiam ser adquiridas apenasmediante compra e venda, o que afastava a possibilidade de trabalhadores sem recursos tornarem-se

    proprietrios. Dessa forma garantia-se a sujeio do trabalhador "livre" aos postos de trabalho, antesocupados por escravos. (MARTINS 1979; BALDEZ 1987)O processo de definio da terra como mercadoria, que caminhou paralelamente ao

    processo da emergencia do trabalhador livre, foi marcado, como este, por muitos conflitos, comomostra Roberto Smith (SMITH 1990)

    A transferencia do sistema portugues de sesmarias para a realidade da Colniasignificou, l como aqui, a concesso da terra pela Coroa, em troca de lealdade. Diferentemente deoutros paises da Europa, a monarquia portuguesa controlava as atividades econmicas e as terras.Caso a exigencia de ocupar, produzir e pagar os tributos no fosse satisfeita, a terra se tornariadevoluta, isto , a concesso seria cancelada e ela retornaria para o Estado. As regras queregulamentavam a aplicao das concesses no Brasil, no foram aplicadas rigorosamente devido

    abundancia de terras. Mais importante do que a relao legal, era a capacidade de ocupar a terra enela produzir, e esta estava vinculada propriedade de escravos.Os colonos, senhores de terra, proprietrios de escravos, compunham as Cmaras

    Municipais. Definidos como homens bons, alem de grandes produtores rurais, eles deveriam,segundo as normas, residir na cidade, adotar a religio catlica, apresentar a pele branca e ofcio nomanual. Como autoridade municipal e representante da Coroa esses latifundirios, juntamente comos burocratas administradores, tinham autoridade sobre o destinos das coisas e das pessoas(incluindo o poder de polcia). Eles podiam inclusive doar terras, as datas, pores do territrioque faziam parte do patrimonio pblico municipal, sob a forma de uma gleba terra, (denominadarossio) que acompanhava a concesso da autonomia municipal. (MARX 1991). A prtica arbitrriado poder exercido dessa forma, se confirmou no Imprio, quando os latifundirios tornaram-se

    autoridades militares como coronis da Guarda Nacional.No faltou motivo portanto, para fortes manifestaes contrrias, primeira tentativade regularizar a propriedade da terra, em 1795. O sistema de sesmarias continuou em vigor at 1822quando foi suspenso, mas foi somente em 1850 que a lei de terras foi promulgada. Entre 1822 e1850, com a indefinio do estado em relao ocupao da terra, esta se d de forma ampla eindiscriminada. nesse perodo que se consolida de fato o latifndio brasileiro, com a expulso depequenos posseiros por poderoasos proprietrios rurais. Apesar do fim das sesmarias, algumasprovncias continuaram a fazer concesses, irregulares e arbitrrias.

    A demorada tramitao do projeto de lei que iria definir a comercializao e apropriedade da terra devia-se ao medo dos latifundirios em no ver suas terras confirmadas.Rejeitaram tambem o imposto territorial que constava na primeira redao do anteprojeto de lei

    Diviso de Terras e Colonizao, de 1843.A proposta liberal que alimentou o longo debate sobre a definio da lei de terras,pretendia, em sntese, utilizar as terras devolutas para com sua venda financiar uma colonizaobranca (com imigrantes europeus), baseada na pequena propriedade. Dela, na redao final da lei,pouco sobrou seno uma pomposa e avanada exposio de motivos fundamentada nas virtudes doprogresso das relaes capitalistas. (SMITH 1990). Novamente aqui est a marca da fratura entreinteno manifesta e prtica concreta. Como foi anteriormente mencionado para o caso da proibiodo trfico de escravos, a argumentao liberal encobriu amanuteno das relaes de poder. Apenasno sul do pas, a colonizao branca, vinculada pequena propriedade foi implementada. No

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    restante do territrio, os imigrantes substituiram a mo de obra escrava no latifndio, que passava aconstar como propriedade privada.

    A demora na demarcao das terras devolutas se deveu s resistencias e imprecisescom que as solicitaes do governo central eram respondidas pelo poder local. Durante esseprocesso, um vasto patrimonio pblico sob a forma de terras rurais e urbanas, passou para mosprivadas. Murilo Marx lembra que at 1911 a Cmara Municipal de So Paulo apresentou iniciativas

    de concesso de terras municipais. Apenas em 1917, com o Cdigo Civil a proibio dessa prticase consolida.Aps a promulgao da lei de terras, de 1850 , engendrada, segundo o jurista

    Miguel Baldez, "uma densa malha de leis, regulamentos e formas processuais" com a finalidade decosturar "em torno da propriedade, um sistema de proteo eficiente e gil, capaz de assegurar-lhe ocarter preponderante de mercadoria". (BALDEZ 1987). Apesar da pouca importncia do mercadofundirio urbano, a partir de meados do sculo XIX, surgem as necessidades, at ento desprezadas,de dar maior preciso ao loteamento, sas fraes e suas dimenses, o alinhamento das fachadas, onivelamento das vias e o que era cho pblico ou privado. Como lembra Murilo Marx, o lotecomercializado passa a ser o mdulo dominante quadrangular e ortogonal, que orienta a produodo espao urbano. Tudo mudou a partir da. (MARX 1991)

    O aparato legal urbano, fundirio e imobilirio, que se desenvolveu na segundametade do sculo XIX, forneceu base para o incio do mercado imobilirio fundado em relaescapitalistas e tambem para a excluso territorial. Os Cdigos de Posturas Municipais de So Paulo(1886) e Rio de Janeiro (1889) proibiam a construo de cortios ou edificaes acanhadas nasreas mais centrais. (MARICATO 1995). As exigencias da propriedade legal do terreno, plantas,responsvel pela obra, tudo obedecendo s normas dos cdigos, afastou a maior parte da massapobre do mercado formal. A atividade empresarial imobiliria regulamentada em 1890. (REIS1994)

    com o incio da Repblica que se afirma o urbanismo modernista segregador. Ascidades brasileiras mais importantes, em especial o Rio de Janeiro, passam por grandestransformaes que procuraro adapt-las aos novos tempos, isto , s novas necessidades

    economicas ligadas administrao e exportao dos produtos agrcolas, em especial o caf, e ocombate s epidemias atravs do saneamento. Um cenrio que no determinado apenas pelaeficcia econmica e sanitria acompanha as mudanas. Busca-se adequar as cidades fachadaprogressista e modernizante que a Repblica requeria e sepultar a simbologia do passado escravista.

    A necessidade de se afirmar levou o Estado republicano a incentivar uma sucesso dereformas urbansticas nas cidades do Rio de Janeiro, So Paulo, Manaus, Belm, Curitiba, Santos ePorto Alegre, reformas essas que se inspiraram no que o Baro de Haussmann fizera, alguns anosantes, em Paris. As cidades adquiriram uma importncia que nunca tiveram antes, enquanto lugar dacrescente produo industrial e enquanto mercadoria, elas prprias, atravs de um mercadoimobilirio crescentemente importante.

    Com os objetivos de eliminar os resqucios da sociedade escravista, erguer um

    cenrio modernizante e consolidar o mercado imobilirio, as reformas urbansticas expulsaram amassa sobrante (negros, pedintes, pessoas sem documentos, desempregados de um modo geral)dos locais urbanos mais centrais ou mais valorizados pelo mercado em transformao. Mais do quea cidade colonial ou imperial, a cidade, sob a Repblica, expulsa e segrega. (VAZ 1986). Asepidemias provocadas pela densidade habitacional e pela falta de saneamento, forneceu o argumentopara o limpeza social que implicava numa nova disciplina tica e cultural, em um novo tratamentoesttico e paisagstico, alem da remoo dos pobres com seu estilo de vida, para as periferias,morros , vrzeas subrbios. (SEVCENKO 1993). A represso que se seguiu revolta da vacina,quando a massa enfurecida tomou conta das ruas no Rio de Janeiro, por tres dias, durante o ano de

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    1903, terminou com a expulso, para o exlio no Acre, no s dos lderes da revolta, mas tambem deuma parte da massa sobrante.

    A URBANIZAO DA "INDUSTRIALIZAO COM BAIXOS SALRIOS" 7

    A industrializao brasileira, que se afirma decisivamente a partir da chamada

    Revoluo de 1930, combinou crescimento urbano industrial com regimes arcaicos de produoagrcola. Um " pacto estrutural" entre antigos proprietrios rurais e a burguesia urbana garantirammudanas sem rupturas e a convivncia de polticas contraditrias..8

    nova correlao de foras sociais, corresponde a reformulao do aparelho estatal,a regulamentao da relao capital/trabalho e a novas regras de expanso do mercado interno.

    Um Estado centralizador, interventor e protecionista da acumulao urbano industrialinstitui, de cima para baixo, legislao trabalhista e regula o preo da fora de trabalho.,privilegiando o trabalhador urbano, em detrimento do trabalhador rural.

    Examinando a participao do "salrio no produto industrial" de quarenta pases(capitalistas centrais ou perifricos, alem de socialistas), Joo Eduardo Furtado (UNESP) revela queo Brasil est situado no ltimo lugar juntamente com o Kuwait. (Citado em SCHILLING 94, p.66).

    Essa " "industrializao com baixos salrios" predatria com a fora de trabalho, incidindo emaltas rotatividades, ausncia de treinamento e ms condies de trabalho . A incorporao crescentede mulheres e crianas ao mercado de trabalho uma estratgia para fazer frente crescente quedado poder aquisitivo e aumento da demanda de consumo por produtos industriais modernos, que produzida pelo modo de vida urbano.

    A manuteno de relaes arcaicas de propriedade rural, resulta, no final do sculoXX, numa situao de profunda concentrao fundiria: 14,16 % da rea rural do pas, ouaproximadamente 58,3 milhes de ha, esto distribudos entre 2.174 estabelecimentos ou 0,04% donmero de propriedades. As propriedades rurais de mais de 1.000 ha correspondem a 43,77 % dasterras rurais. (SCHILLING 1994).

    Alguns fatos esto na base do gigantesco processo de migrao que ocorreu no

    territrio brasileiro, neste sculo, do campo para as cidades: a referida concentrao fundiria emprimeiro lugar, seguida da introduo de tecnologia em certos setores da produo rural destinadaprincipalmente exportao e tambm o desprezo pelo avano das relaes trabalhistas no campo.

    De 1940 a 1980 a populao urbana passa de 26,35% do total para 68,86%. No finaldesse perodo, aproximadamente 40 milhes de pessoas (33,6% da populao), havia migrado dolocal de origem. Somente entre 1970 e 1980 incorpora-se populao urbana mais de 30 milhes denovos habitantes. Em 1960 havia no Brasil duas cidades com mais de 1 milho de habitantes: SoPaulo e Rio de Janeiro. Em 1970 havia cinco, em 1980 dez e em 1990 doze. (SANTOS 1993, p.74)

    Crescimento industrial ligado ao fenmeno da metropolizao uma constante noschamados NICs- New Industrialized Countries. Segundo Lipietz, o desenvolvimento do chamadofordismo perifrico no se estendeu a todo o territrio mas se reduz e se concentra em alguns pontos

    do pas, ao contrrio do que aconteceu nos pases centrais.(LIPIETZ, 1985 ).Esse processo, entretanto, tem um impacto em todo o territrio nacional, sem dvida.Industrializao, urbanizao, expanso da classe mdia, assalariamento, produo de bens deconsumo durvel, o Brasil ps anos 50 constitui o simulacro da modernidade. H uma ampliao daintegrao do territrio (infraestrutura de transportes e comunicao) e do mercado interno. Uma

    7 MEDEIROS 19928 Ao contrario da revoluo burguesa "clssica", a mudana das classes proprietrias rurais pelas

    novas classes burguesas industriais, no exigir, no Brasil, uma ruptura total do sistema, no apenas porrazes genticas, mas estrtuturais. (OLIVEIRA 1972, p.34)

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    nova diviso social do trabalho, a partir dos anos 60, trouxe mudanas no padro de urbanizao,nas dinmicas regionais, com a modernizao agrcola (sul, sudeste, leste e centro-oeste), agro-indstria (sudeste, sul e leste) e expanso metropolitana industrial (nordeste, leste, sudeste e sul).(SANTOS 1993). Os smbolos do consumo ps moderno extravasaram as regies metropolitanas epodem ser encontrados, por exemplo, nos centros urbanos do interior do Estado de So Paulo, Minasgerais, Paran, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, que crescem e se industrializam.

    De 1940 a 1980 o PIB brasileiro cresceu a ndices superiores a 7% ao ano. Os ndicesde natalidade e mortalidade apresentam quedas espetaculares. Apesar disso, o aprofundamento dadesigualdade se acentuou, inicialmente atravs da cooptao que caracterizou o "populismodesenvolvimentista" e depois de 1964, sob a represso do regime militar.

    A tabela abaixo mostra a variao do poder aquisitivo do salrio mnimo realregulamentado por lei, entre 1940 e 1980:

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    VARIAO DO SALRIO MNIMO REAL -

    BRASIL 1940/80ANO NDICE ANO NDICE1940....98,02 1960...100,301941 ...89,35 1961...111,52

    1942....80,22 1962...101,821943....78,78 1963....89,511944....83,19 1964....92,491945....67,03 1965....89,191946....58,82 1966....76,031947....44,94 1967....71,921948....41,61 1968....70,391949....42,19 1969....67,731950....39,84 1970....68,931951....36,80 1971....65,961952....98,77 1972....64,78

    1953....81,35 1973....59,361954....98,88 1974....54,481955...111,04 1975....57,911956...112,81 1976....56,541957...122,65 1977....58,921958...106,70 1978....60,70

    1959...119,45 1979....61,27.1980 61,78

    Fonte: DIEESE

    Em 1981, no final do perodo referido, de intenso crescimento industrial, o 1% maisrico da populao concentrava 13% da renda nacional enquanto que os 10% mais pobres receberam0,9%. Atravs da concentrao da renda foi possvel criar um mercado de consumo para os bensindustriais modernos e luxuosos. Como lembra Alain Lipietz:

    ...quando se 120 milhes, suficiente que 20% da populao se aproprie de doisteros da riqueza para que se constitua um mercado para os bens durveis e mesmo luxuosos,equivalente a um pas mdio da Europa do Norte (LIPIETZ 1985, p.30)

    Se a maior parte da populao no constitui mercado para os bens luxuosos, emcompensao constitui ampla oferta de mo de obra barata para a produo dos mesmos.

    CIDADE, ESTADO E MERCADO: A MODERNIZAO EXCLUDENTE

    As cidades refletem o processo industrial baseado na intensa explorao da fora detrabalho e na excluso social, mas o ambiente construdo faz mais do que refletir. Como parteintegrante das caractersticas que assume o processo de acumulao capitalista no Brasil, o urbanose institui como polo moderno ao mesmo tempo em que objeto e sujeito da reproduo ou criaode novas formas arcaicas no seu interior, como contrapartidas de uma mesma dinmica.

    No somente o trabalhador do extensivo e atrasado tercirio urbano informal (e quetantos autores denominaram de "inchado" nas anlises comparativas), que habita as favelas,ocupando ilegalmente a terra e lanando mo do expediente arcaico da autoconstruo para poder

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    morar em algum lugar. Nossas pesquisas mostram que at o trabalhador da indstria fordista(automobilstica), levado freqentemente a morar em favelas, j que nem os salrios pagos pelaindstria e nem as polticas pblicas de habitao so suficientes para atender as necessidades demoradias regulares, legais. (MARICATO 1977) Em 1980, 57,3% dos chefes de famlia ativos,moradores das favelas de So Paulo trabalhavam no secundrio. (TASCHNER 1993). Trata-se do"produtivo excludo". (MNMMR,1994) A produo ilegal de moradias e o urbanismo segregador,

    esto, portanto, relacionados s caractersticas do processo de desenvolvimento industrial -namedida em que o salrio do operrio industrial no o qualifica para adquirir uma casa no mercadoimobilirio legal,- s caractersticas do mercado imobilirio capitalista - sobre cujos agentes nopesa nenhum constrangimento anti-especulativo como seria o caso da aplicao da funo social dapropriedade- e tambem s caractersticas dos investimentos pblicos - que favorecem ainfraestrutura industrial e o mercado concentrado e restrito.

    A anlise do SFH - Sistema Financeiro da Habitao e o BNH- Banco Nacional daHabitao fornece um exemplo muito adequado da modernizao excludente.

    Criados pelo regime militar, em 1964, o SFH e o BNH foram estratgicos para aestruturao e consolidao do mercado imobilirio urbano capitalista. O investimento de umavultosa poupana, parte compulsria (FGTS) e parte voluntria (SBPE) no financiamento

    habitao, saneamento bsico e infraestrutura urbanos, mudou a face das cidades brasileiras,financiando a verticalizao das reas residenciais mais centrais; contribuindo para o aumentoespeculativo do solo; dinamizando a promoo e a construo de imveis (o mercado imobilirioatinge um novo patamar e uma nova escala); diversificando a indstria de materiais de construo;subsidiando apartamentos para as classes mdias urbanas; patrocinando a formao e consolidaode grandes empresas nacionais de edificao e mesmo de construo pesada, nas faranicas obras desaneamento bsico. (MARICATO 1987).

    Apesar do SFH ter financiado 4,8 milhes de moradias ou praticamente 25 % doincremento do nmero de habitaes construdas no Brasil entre 1964 a 86 (estimativa), o nmerode moradores de favelas cresceu acentuadamente no perodo. Das 4,8 milhes de unidadesresidenciais, financiadas pelo SFH, 1/3 foi objeto da promoo pblica (conjuntos habitacionais)

    supostamente destinados a moradores com renda menor que 5 salrios mnimos. (A "distribuio"das moradias populares, foi uma das maiores fontes de troca de favores que contribuiu para areeleies sistemticas de polticos clientelistas, alem de contribuir tambm para a altainadimplncia no pagamento das prestaes, j que a relao de favor no permitia a cobrana maisrigorosa).

    Nunca demais lembrar que essa poltica foi criada e praticada em nome dosdesassistidos e que grande parte dos recursos assim utilizados vieram do FGTS, espcie de segurodesemprego que " flexibilizou" as relaes de trabalho no mercado formal, promovendo arotatividade no emprego e barateando as demisses. Sobre esse fundo incidem juros situados abaixodos juros de mercado. Os trabalhadores subsidiaram um dos captulos mais vergonhosos daspolticas pblicas brasileiras, no qual a corrupo, o superfaturamento e o uso do dinheiro pblico

    para fins privados, se generalizaram. Tudo leva a crer que a extino do BNH em 1986 e o incndiodo seu arquivo, ento no Ministrio da Habitao e Desenvolvimento Urbano, no foramacidentais.( MARICATO 87)

    A poltica praticada pelo SFH combinou o atendimento dos interesses dosempresrios privados (construo, promotores imobilirios, banqueiros e proprietrios de terra )com os interesses de polticos clientelistas (governadores, prefeitos, deputados, vereadores), quandono aconteceu destes fazerem parte daquele grupo. Na verdade essa poltica foi fundamental para aestruturao de um mercado imobilirio de corte capitalista Ela constituiu tambm um dos

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    expedientes de concentrao de renda, na medida em que privilegiou a produo de habitaosubsidiada para a classe mdia em detrimento dos setores de mais baixa renda.

    Durante a vigncia do regime autoritrio essa equao era clara apenas para ospesquisadores acadmicos que a descreveram em um sem nmero de trabalhos a partir da tesepioneira de Gabriel Bollafi. (BOLLAFI 1975). A partir do momento em que se deu a instalaoregular do Conselho Curador do FGTS , em 1989, o qual contou com a participao da bancada de

    representantes de trs centrais sindicais, ( Fora Sindical, Central nica dos Trabalhadores eConfederao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crdito), a manipulao dos recursos deacordo com a troca de favores ficou evidente para o movimento sindical . Os dados detalhadospodem ser encontrados nos trs relatrios elaborados pela bancada de trabalhadores do ConselhoCurador do FGTS, de abril a agosto de 1991.

    Entre a extino do BNH, em 1986 e a instalao do novo conselho do FGTS, aadministrao dos recursos se deu de forma ilegal. Instado legalmente a responder sobre a situaodos recursos do FGTS pelo ento deputado federal Luiz Ignacio Lula da Silva, o presidente da CEF-Caixa Econmica Federal, Paulo Mandarino respondeu que, na ocasio, no tinha como esclarecer aquesto j que a CEF no tinha informaes completas sobre o fluxo de caixa dos recursos doFGTS, que administrava.

    Combinando investimento pblico com ao reguladora, o Estado garante aestruturao de um mercado imobilirio capitalista para uma parcela restrita da populao, enquantoque para a maioria resta as opes das favelas, dos cortios, ou do loteamento ilegal, na periferiasem urbanizao, de todas as metrpoles.

    Estudando a construo do mercado imobilirio em Salvador, Maria Brando mostraa articulao entre a nova legislao urbanstica segregadora, a quebra da velha estrutura fundiria, aproduo ilegal da periferia e o financiamento do SFH, nos anos 60. Como a cidade passou porrelativa estagnao, resultante das caractersticas da economia regional, a prefeitura pemaneceucomo proprietria da maior parte das terras municipais at meados do sculo XX. At esse perodo aocupao de reas ociosas era consentida e mesmo estimulada pelos proprietrios e enfiteutas quebuscavam extrair alguma renda dos ocupantes. Com a chegada de alguns grandes projetos

    industriais regio, a situao se modifica. No final da dcada de 50, a questo fundiria assume aconfigurao de crise poltica. O Estado populista intervem ambiguamente como era de se esperar.Essa atitude vai mudar, entretanto, com o autoritarismo do regime militar. Em 1968 aprovada leimunicipal que abriria aquisio particular em propriedade plena milhes de metros quadrados deterras municipais. Acompanhava o projeto de lei, arrazoado tcnico fundamentado nodesenvolvimento da cidade.

    E esgotam-se os vazios - terras devolutas, terras pblicas, terrenos com donosausentes, terrenos de posse pouco esclarecida- passados a outras mos. Solda-se assim todavaestrutura de controle privado do solo, sem deixar brechas, exceto escassas reas ainda sob controlepblico com destinao prevista. (BRANDO 1981)

    Complementando o processo de monopolizao da terra, ou de parte dela, a parte que

    interessava, os governos investem em infraestrutura, especialmente a viria, a qual dar condiesindispensveis para o acesso e para a realizao da renda fundiria.Nos anos 70, ainda segundo Brando, metade dos domiclios da cidade, so

    construes ilegais. As mudanas na estrutura fundiria e a abertura da rede viria produziram,paradoxalmente, a escassez.

    Outro fato que, ao lado da criao do sistema SFH/BNH, foi paradigmtico paramodernizao nas relaes de produo do espao urbano e que ao mesmo tempo, acarretou ocrescimento de favelas, foi a promulgao da lei federal 6766 em 1979.

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    A chamada lei Lehman estabelece regras para o parcelamento do solo urbano .Apesar da concepo embasada em anlise correta, o tipo de ao reguladora que acarretousignificativa restrio da oferta de moradias para a populao trabalhadora. O loteamento ilegal,combinado autoconstruo parcelada da moradia durante vrios anos foi a principal alternativa dehabitao para a populao migrante se instalar em algumas das principais cidades brasileiras. Dessaforma foram construdas as imensas periferias de So Paulo e Rio de Janeiro. (At a dcada de 70, a

    favela no representava uma alternativa importante para a populao pobre em So Paulo, comoacontecia no Rio de Janeiro. No final dos anos 80 podemos dizer que tanto a favela cresceu deimportncia em So Paulo como o loteamento ilegal no Rio de Janeiro).

    Em 1981 a Secretaria Municipal de Planejamento de So Paulo identificou 3.567loteamentos ilegais, ocupando 35% da rea do municpio. Em 1989, aps 8 anos de uma polticaassistemtica de regularizao, com a utilizao da nova lei, a Secretaria de Habitao eDesenvolvimento Urbano do municpio constatou a existncia de aproximadamente 2.600 processosde loteamentos ilegais onde vivem perto de 2,4 milhes de pessoas

    Apoiada pela luta de movimentos de moradores de loteamentos irregulares , a leifederal 6766/79 atende a uma reivindicao popular: criminalizao do loteador "clandestino",possibilidade da suspenso do pagamento para efeito de viabilizar a execuo de obras urbansticas

    e atribuio ao municpio ou Ministrio Pblico a representao das comunidades atravs dointeresse difuso. A lei contribuiu para a mobilizao popular e a politizao do direito de ao comodestaca Miguel Baldez. (BALDEZ 1986) nossa hiptese, entretanto que, em ltima instncia, elacontribuiu tambm para o fortalecimento do mercado capitalista formal e para a segregaoambiental, ao evitar que a terra urbana, bem cada vez mais escasso nas metrpoles, fosse parceladairregularmente (mercado informal) devido a exigncias urbansticas e burocrticas. De um modogeral as leis municipais de parcelamento do solo so mais exigentes do que a lei federal. Mas elatrouxe a novidade da criminalizao do loteamento ilegal.

    H uma evidente correlao entre a diminuio da oferta de lotes ilegais no municpiode So Paulo e a exploso do crescimento das favelas. Durante o perodo de 1989 a 1992 aprefeitura de So Paulo aprovou o desprezvel nmero de dois projetos de loteamentos residenciais

    por ano e todos eles se destinavam classe mdia ou de nvel de renda superior.Apesar das intenes louvveis, a lei 6766 s conseguiu entravar, no dia a dia, asnegociaes e interaes que tinham fortes motivaes lgicas para ser como eram. Resultado: oparcelamento desenfreado de franjas e periferias parou, bem verdade. Em compensao, no seest registrando qualquer indcio de ocupao e adensamento de vazios intermedirios. Se noesto mais sendo oferecidos lotes irregulares e desprovidos de servios e infraestrutura aos pobres,tambm cessou de haver alternativas. A mdio prazo h grandes ameaas de colapso, pois s estorestando as intervenes oficiais, que so mnimas, e as favelas, relativa novidade longe dosncleos dos grandes aglomerados. (SANTOS 1986, p.10)

    Mas preciso acrescentar tambm que nem a abertura de loteamentos ilegaisestancou totalmente aps a promulgao da lei federal 6766/79 nem se tem notcia de que os

    poderes pblicos se esforaram em sua aplicao rigorosa. Talvez o esgotamento de terrapouco valorizada no municpio de So Paulo, que central na regio metropolitana tenhacontribudo mais para a queda da oferta de loteamentos ilegais do que a prpria lei.

    Este exemplo mostra claramente que o avano das relaes formais capitalistastrazem no seu bojo, no processo de acumulao brasileiro, a excluso. O loteamento ilegal,predatrio ao meio ambiente e que acarreta deseconomias profundas para as metrpoles brasileiras,na medida em que promove uma ocupao extensiva sem servios, infraestrutura urbana ou reaslivres, era ( e ainda continua sendo nos municpios perifricos das metrpoles), a forma de acesso dotrabalhador pobre propriedade urbana. A lei fechou essa alternativa que est muito longe de

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    satisfazer requisitos satisfatrios de qualidade ambiental, sem que outra fosse aberta. Por outro ladoela assegura que o estoque de terras ainda existente fica submisso produo capitalista formal.Esta envolve a participao de diversos capitais: incorporadores, construtores e financiadores,enquanto que no parcelamento ilegal participam apenas alguns personagens pr-modernos: oproprietrio de terra e o loteador, mais freqentemente. O mercado tambm no mais o mesmo(massa de trabalhadores pobres), mas sim compradores com poder aquisitivo para pagar o que a lei e

    uma melhor localizao, exigem. Num processo de urbanizao assim engendrado, a excluso estrutural, o que exigeuma reflexo mais aprofundada sobre o papel da regulao urbana na construo da cidadania ou daqualidade ambiental urbana para todos.

    O FIM DO DESENVOLVIMENTISMO: GLOBALIZAO E VIOLNCIA NOS ANOS80

    O Estado e seu projeto desenvolvimentista dos anos 30/50 esto mortos. (FIORI1994, p. 143)

    De 1981 a 1992 o PIB cresceu 1,3% ao ano enquanto que o crescimento populacionalfoi de 1,9%. O crescimento da informalizao na relao de trabalho tem uma correspondnciadireta com o desempenho econmico nacional. Do incio ao fim do perodo, cai o nmero detrabalhadores com carteira assinada nas seis principais regies metropolitanas do pas e cresce onmero de trabalhadores por conta prpria. Em So Paulo, cidade com menor grau de informalidadenas relaes de trabalho, havia em 1982 aproximadamente 64% da populao ocupada, com carteiraassinada. Em 1992, essa relao prxima a 58%. Os trabalhadores por "conta prpria" compunhamaproximadamente 5% no incio do perodo considerado e aproximadamente 20% no final. SegundoJoo Saboia, de quem extramos os dados aqui utilizados sobre mercado de trabalho, independenteda regio do pas, a evoluo do mercado de trabalho nas metrpoles apresenta uma configuraosemelhante,

    ...com a substituio de empregados com carteira assinada, por empregados semcarteiras e /ou trabalhadores por conta prpria, em perodos de recesso e comportamentosimtrico em perodos de recuperao.( SABOIA 1993, p.7)

    Saboia chama ateno para o dinamismo do mercado de trabalho no Brasil,demonstrado pela capacidade surpreendente de absoro da PEA - Populao EconomicamenteAtiva, e pelo baixo nvel de desemprego aberto, (em torno de 6% em seis regies metropolitanas).Esse comportamento do mercado de trabalho, difere bastante do que ocorre nos pases de economiadesenvolvida, onde o quadro mais esttico e o desemprego aberto maior.

    O fim dos recursos externos no final dos anos 70 e o incio do pagamento da dvidaexterna marcou o comeo da recesso. Outro dado da conjuntura internacional, a elevao da taxade juros (os emprstimos foram feitos a juros flutuantes) causou uma forte exploso da dvida

    brasileira. De 1983 para 1992, a ela cresceu de US$ 93,5 bilhes para US$ 135 bilhes, apesar dopas ter desembolsado US$ 67,7 bilhes como pagamento.De 1981 a 1989, a concentrao da renda continua a se aprofundar, seguindo a

    tendncia apontada:

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    DISTRIBUIO DA RENDA -

    BRASIL 1981/89

    50% mais pobres...............10,4% da renda01% mais ricos..................17,3% da renda

    Fonte: PNAD/IBGE

    Em 1995, o Relatrio de Desenvolvimento do Banco Mundial, aponta o Brasil comoo pas de maior desigualdade social do mundo. Segundo o relatrio, enquanto que 10% dapopulao concentra 51,3% da renda, os 20% mais pobres ficam com 2,1%.

    A trajetria do salrio mnimo real confirma, a tendncia ao decrscimo:EVOLUO DO SALRIO MNIMO REAL

    BRASIL - 1980/1992ANO NDICE

    1980.............................61,781981.............................63,341982.............................66,021983.............................56,101984.............................52,041985.............................53,241986.............................50,361987.............................36,311988.............................38,221989.............................40,701990.............................29,09

    1991.............................30,081992.............................26,07

    Fonte: DIEESE.

    Obs. importante lembrar que 53% da populao economicamente ativa ganha at 2 salriosmnimos.

    Durante os anos 80 a populao urbana brasileira cresceu, chegando a representar76,3% do total. Apesar de apresentar algumas mudanas no padro de urbanizao, o censo de 1991aponta para um aprofundamento da "periferizao" das grandes metrpoles, ou seja, maior aumentopopulacional nos municpios da franja metropolitana, reproduzindo e expandindo formas de favelase cortios tambm na periferia.

    O ajuste do capitalismo internacional nos anos 70 trouxe um aprofundamento dascaractersticas de excluso social, aqui tratadas, mas como pudemos ver, no se trata de umatendncia nova ou recente na realidade brasileira.

    De novidade, o aprofundamento da misria que vem com a globalizao, ir acarretaruma exploso de violncia em escala at ento desconhecida e que ser denominada de violncia

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    urbana. A forma como o figurino no liberal enfrenta essas questes, constituem mais um conjuntode "idias fora do lugar", como veremos adiante. Antes vamos explorar um pouco mais ascontradies sociais e as ambigidades j apontadas que esto no cerne do direito urbano no Brasil.

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    ENTRE O LEGAL E O ILEGAL - MERCADO E ESCASSEZ

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    As constituies feitas para no serem cumpridas, as leis existentes para seremvioladas, tudo em proveito de indivduos e oligarquias so fenmenos correntes em toda a histriada Amrica do Sul.

    Srgio Buarque de Holanda (HOLANDA 1971, p. 137)

    SEGREGAO AMBIENTAL E EXCLUSO SOCIAL

    Se na dcada de 40 as cidades brasileiras eram vistas como a possibilidade de avanoe modernidade em relao ao campo que representava o Brasil arcaico, na dcada de 90 sua imagempassa a ser associada violncia, poluio, criana desamparada, trfego catico, entre outrosinmeros males.

    O processo de industrializao / urbanizao sob o lema positivista da ordem e doprogresso, parecia representar um caminho para a independncia de sculos de dominao daproduo agrria e de mando coronelista.

    A evoluo dos acontecimentos mostrou que ao lado de intenso crescimentoeconmico, o processo de urbanizao com crescimento da desigualdade resultou numa indita egigantesca concentrao espacial da pobreza.

    No foi s o governo . A sociedade brasileira em peso embriagou-se, desde ostempos da abolio e da repblica velha, com as idealizaes sobre progresso e modernizao. Asalvao parecia estar nas cidades, onde o futuro j havia chegado. Ento era s vir para elas edesfrutar de fantasias como emprego pleno, assistncia social providenciada pelo Estado, lazer,novas oportunidades para os filhos...No aconteceu nada disso, claro, e , aos poucos, os sonhosviraram pesadelos. (SANTOS 1986, p.2)

    As oportunidades que de fato havia nas primeiras dcadas do sculo XX para apopulao imigrante e depois para a populao migrante (insero econmica e melhora de vida) seextinguiram. A excluso social tem sua expresso mais concreta na segregao espacial ouambiental, configurando pontos de concentrao de pobreza semelhana de " guetos", ou imensasregies nas quais a pobreza homogeneamente disseminada.

    A segregao ambiental uma das faces mais importantes da excluso social masparte ativa e importante da mesma. dificuldade de acesso aos servios e infraestrutura urbanos(transporte precrio, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento,difcil acesso aos servios de sade, educao e creches, maior exposio ocorrncia de enchentese desmoronamentos, etc.) somam-se menores oportunidades de emprego (particularmente doemprego formal), menores oportunidades de profissionalizao, maior exposio violncia(marginal ou policial), discriminao racial, discriminao contra mulheres e crianas, difcil acesso justia oficial, difcil acesso ao lazer. A lista interminvel.

    No h como definir um limite preciso entre o " includo" e o "excludo". Como jexpusemos, trabalhadores do setor secundrio , e at mesmo da indstria fordista brasileira, soexcludos do mercado imobilirio privado e freqentemente moram em favelas. Trata-se do

    "produtivo excludo" que resultado da industrializao com baixos salrios. Como j apontaramalguns pesquisadores, as camadas populares urbanas desenvolvem uma tica do trabalho com afinalidade de fugir da discriminao do pobre como criminoso: trabalhador X marginal, a oposioque d alguma sustentao num universo crescentemente estreito. (ZALUAR 1985 ;VALLADARES 1986).

    Desenvolvendo uma reflexo terica sobre as classes sociais na Amrica Latina,Florestan Fernandes reconhece que os "dinamismos nucleares e determinantes" nestas sociedadesprovem das relaes "mais adiantadas e ativas do regime de classes". H especificidades entretanto,em relao s sociedades capitalistas europias e norte americanas, j que as sociedades latino

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  • 8/22/2019 Erminia Maricato - Metropole Na Periferia Do Capitalismo

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    americanas "no se organizam para um desenvolvimento autnomo da economia, da sociedade e dacultura". A diviso repartida (externa e interna) do excedente econmico, continuidade deprivilgios senhoriais na formao da mentalidade burguesa e portanto adaptao de heranascoloniais no processo de modernizao, a excluso das classes "baixas" dos processos histricos esociais (negando inclusive sua existncia enquanto classe com direitos a serem respeitados comoocorreu no capitalismo "maduro") so caractersticas s quais se soma um decorrente "complexo

    padro de mercantilizao do trabalho".

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    A excluso social no passvel de mensurao mas pode ser caracterizada porindicadores como a informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa escolaridade, ooficioso, a raa, o sexo, a origem e, principalmente, a ausncia da cidadania.

    A carncia material a face externa da excluso poltica. (DEMO, 1993 p. 3)Segundo Pedro Demo, a caracterizao da pobreza a partir de nmeros mensurveis

    relativos carncia material, obscurece o "cerne poltico da pobreza" ou o que o autor chama de"pobr