nem o centro nem a periferia

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I. Nem o centro e nem a periferia sobre cores, calendários e geografias Subcomandante Insurgente Marcos (EZLN) Erahsto Felício e Alex Hilsenbeck (Org.) :

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I.

Nem o centroe nem a periferiasobre cores, calendários e geografias

SubcomandanteInsurgente Marcos (EZLN)

Erahsto Felício e AlexHilsenbeck(Org.)

:

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5- Apresentação

27 - I - Acima, pensar o BrancoA geografia e o calendário da teoria

59 - 11- Escutar o amareloO calendário e a geografia da diferença

79 - 111- Tocar o verdeO Calendário e a Geografia da destruição

105 - IV - Degustar o caféO Calendário e a Geografia da terra

133 - V - Cheirar o negroO calendário e a geografia do medo

155 - VI - Olhar o azulO calendário e a geografia da memória

175 - VII - Sentir o vermelhoO calendário e a geografia da guerra

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Apresentação

Em primeiro de janeiro de 1994,numa das regiões mais pobres do Méxi-co, veio a público um exército de indí-genas empunhando mais sonhos do quearmas. Autodenominaram-se ExércitoZapatista de Libertação Nacional (EZLN)1e havia sido formado dez anos antes, pelaconfluência e mescla de um pequenogrupo de marxistas provindos da cidadee uma grande quantidade de pessoas dediversas etnias indígenas, das comuni-dades de Chiapas. Esses insurgentes, emplena época de "fim das utopias", cobri-

1. Para uma ótima introdução e cronologia sobre oEZLN ver: GENNARI, Emílio. EZLN - Passosde umarebeldia, São Paulo: Expressão Popular, 2005; Paraos fundamentos do levante zapatista verARRELANO, Alejandro Buenrostro, As raizes do fe-nômeno Chiapas. Buenrostro y Arellano, AlejandroM. _ "As Raizes do Fenômeno Chiapas", São Paulo,Editora Alfarrábio, 2002.

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ram seus rostos com lenços vermelhos(os paliacates) e gorros negros (os pas-sa-montanhas) para se fazerem visíveis,empunharam armas para que ouvissemsua voz. Um exército muito outro, quecombateu abertamente com armas porapenas 12 dias e que - sem abandoná-Ias - continua a combater há 14 anos compalavras, resistências, autonomia e dig-nidade. Nesse período, têm efetivado no-vas formas de democracia e de relaçõessociais, de acesso à justiça, à saúde, à ter-ra e à educação em seus territórios au-tônomos em rebeldia, nos quais, comojá nos diz a placa na entrada: "quemmanda é o povo e o governo obedece".

Além disso, em 14 anos de insurreiçãopública e 24 de formação, os zapatistas, emdecorrência das próprias transformaçõesteóricas e práticas pelas quais passaram,inovaram e questionaram diversos cânonesdas teorias e experiências dos movimentosde esquerda do último século, desvelandonovas e reeditando velhas formas de orga-nização e de se fazer política. Pelas suascaracterísticas organizativas, suas formas de

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luta, suas inscrições identitárias, suasconceitualizações da ação coletiva, suas for-mas de linguagem, seus questionamentosem relação ao poder, à política, ao Estado eà democracia, colocam particularidades queos distinguem de outros movimentos pre-cedentes e, sem dúvida, impulsionam arevitalização do pensamento crítico. Comuma capacidade questionadora e deautocrítica poucas vezes vista emmovimen-tos do tipo, o EZLN se apresenta mais comoantípoda das tradicionais guerrilhas- que aAmérica Latina conheceu, sendo um dosdespertares mais visíveis de um novo ciclode protesto social que tomou corpo nodecorrer da segunda metade dos anos 1990na América Latina, de cunho antineoliberale anticapitalista.

2. Um dos exemplos de "outras" práticas levadasadiante pelo exército guerrilheiro zapatista é o fatode em, 2005, o EZLN ter-se retirado das funções degoverno nos territórios autônomos em rebeldiazapatista, deixando-as a cargo da população civil,com o intuito de não "contaminar" a construção des-sa forma de organização social alicerçada na demo-cracia - direta e representativa - com as característi-cas verticais próprias da instituição militar.

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Não por acaso, em dezembro de 2007realizou-se em San Cristobal de Las Ca-sas o Colóquio em Memória a Andrés Aubry.Nesta ocasião, reuniram-se grandes in-telectuais e ativistas, como ImmanuelWallerstein, Naomi Klein, Carlos AguirreRojas, integrantes do MST brasileiro e dozapatismo mexicano, entre outros, paradar saudações póstumas a Aubry, excep-cional antropólogo e cientista socialfrancês, que adotou o México como lare a humanidade como pátria.

Estão aqui publicados os sete textos li-dos, nesta ocasião, pelo SubcomandanteInsurgente Marcos, porta-voz e chefe mi-litar do Exército Zapatista de LibertaçãoNacional. Nestes comunicados, que versamsobre calendários, geografias e cores, o leitor-ouvinte terá acesso às elaborações teóri-cas zapatistas, divididas em sete partes, aenfocar, conforme o Subo Marcos, as setecores que foram criadas com o mundopelos deuses mais primeiros que eramsete, os sete sentidos humanos, os setepontos cardeais que norteiam os passos deconstrução do mundo atual, seja em cima,

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seja embaixo. A extraordinária qualidadeliterária do Subo Marcos é aqui exploradaem suas diversas vertentes; nos textosmesclam-se denúncias, análises teóricas epolíticas, conjunturais e estruturais do sis-tema mexicano e do capitalismo, que eledefine como o crime global que deu inícioà IV Guerra Mundial, a guerra da huma-nidade contra a sua destruição, a guerrada humanidade contra a sua conversão, ede tudo o mais, em uma mera mercadoria.Ao mesmo tempo que Marcos nos dá aconhecer os contos do guerreiro Sombra- que ainda não era todavia Sombra =, damenina Dezembro - que nasceu emnovembro =. de Magdalena - que não énem homem e nem mulher - e de EliasContreras - que, como todo zapatísta. es-colheu amar com desafio.

Os tons dramáticos e poéticos porvezes dão lugar a passagens diretas, emtodo caso, recheadas de excepcional efino humor irônico. As denúncias ances-trais se entrelaçam com as exigênciasatuais, num tom anti-solene. cercado deimaginação e vida. A forma de lingua-

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gem tradicional dos indígenas maias érespeitada, inclusive com seus "erros"gramaticais e de concordância - sublinha-dos no decorrer do texto - mas, sobretu-do, com seus elementos mágicos, suaslendas e visões de mundo, com seus va-lores éticos e políticos, com suas vivênciasna construção, aqui e agora, de "outromundo" com outra geografia e calendá-rios. Enfim, uma linguagem do coração,que deita suas raizes nas formas de ex-pressão e de visão do mundo maia e domundo ocidental, mundos tão diferentese tão iguais, que padecem da mesma for-ma de dominação e exploração.

São sete capítulos que abordam teo-ria, diferença, destruição (da natureza),terra, medo, memória e guerra.

Aqui o leitor-ouvinte poderá observaruma realidade diferente, marcada pela re-sistência, uma realidade outra que, comonos relata Marcos, se nega a viver perpe-tuamente em "tempos de indefinição con-veniente, ilusões e evasões".

Veremos que os zapatistas buscamhumanizar a teoria para que ela aban-

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done sua obsessão pela higiene anti-re-alídade. ligando-a com o amor, com amúsica e a dança, mais do que com aseriedade e o rigor científico. Eles pre-tendem que a teoria volte a se enamorarda realidade e que esta compreenda, ain-da que seja um pouco ao menos, aquela.Desta maneira, eles demonstram como aciência enveredou pela teoria de cima,que prima pelo eu individual e o definecomo centro, qualificando, assim, o ou-tro como periferia, por vezes inexistente,ou do qual se deva sentir medo. Assim,aspiram a que a teoria não permaneçaconvertida numa mera mercadoria a en-cher estantes de lojas e servir a quemmais lhe pague, adaptando-se e cumprin-do a função de ocultar a realidade comargumentações, garantindo a impu-nidade. Como, por exemplo, quando"protótipos de intelectuais" quiseramculpar os mortos pelos seus próprios as-sassinatos, como ocorreu na matançados indígenas, homens, mulheres (inclu-sive grávidas) e crianças em Acteal. Ou,quando quiseram culpar a natureza por

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calamidades provocadas pelas mãos doshomens e mulheres em sua busca insaci-ável por lucros. Mas os zapatistas tambémnos mostram que existe outra ciência, paraalém do decadente mundo da "teoria bran-ca" que anda aos tropeços, realizada porpensadores progressistas. Estes, ao irem acontracorrente, alicerçados na crítica e nahonestidade, e ao procurarem entender,pensar, analisar, debater e criticar paraexplicar, questionam as "evidências" queencobrem a própria realidade. Para que,então, essa teoria mesclada com sentimen-tos, que se utiliza da cabeça e do coração,do sentimento e da razão, essa outra teoria,da qual alguns dos seus traços estão a serdesenhados, rompa com a lógica de cen-tros e periferias (e com as imposições doscentros às periferias, que por sua vez sãocentros de outras periferias), alicerçando-se em realidades e práticas emergentes paraabrir novos caminhos possíveis.

Os zapatistas mostram-nos como assuas diferenças com a esquerda institu-cional e partidária mexicana não são tó-picas, pontuais, não são diferenças en-

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tre reforma ou revolução, não são diver-gências entre estratégias ou táticas. Que,nesse caminho, os zapatistas optaram,uma vez mais, por ficar com os seus mor-tos, por não traí-Ios, por não se subme-terem a uma concepção cínica da reali-dade que nos diz para escolher o "me-nos pior", pois "os tempos são outros eas possibilidades de outra sociedade nãopassariam de vestígios de um passado aser esquecido". Com o lançamento daOutra Campanha os zapatistas se afasta-ram totalmente desta esquerda, ao ten-tar levar adiante a política por outroscaminhos e atores, desde baixo, em queela não seja o monopólio de um sistemadesvirtuado de representação, eviden-ciado pela desideologízação da quase to-talidade dos partidos políticos, que nãorepresentam mais alternativas diferentes,uma política em que não há sistema-ticidade distinta de idéias, e, menos ain-da, práticas efetivas que diferenciem ospartidos, em que quem representa o fazem benefício próprio e não do coletivoque deveria obedecer. Da experiência de

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auto-governo em suas comunidades po-demos aprender um pouco mais com osindígenas chiapanecos em rebeldia, comocom seu oximorón de "mandar-obede-cendo", que subverte a lógica da políticatradicional, mesclando elementos da de-mocracia representativa e da democraciadireta, em que o auto-governo pode serum sonho que está ao alcance da mão ereal, em que todas e todos mandam e obe-decem, e por isso são governo.

Apontam para a questão "mais comple-xa, pesada e contínua das lutas anti-sistêmicas", a luta de gênero, uma lutacomplicada também dentro das comunida-des zapatistas, onde, apesar das significati-vas melhoras, existe ainda muito no queavançar. Compreendemos como as mulhereszapatistas se rebelam como mulheres, semesquecer que são indígenas e muito menoszapatistas. Como essa luta deve evoluir paraum reconhecimento mútuo que signifiquealgo superior ao que está dado hoje, e anecessidade que os zapatistas têm - e nãoapenas eles - desses encontros com outrosmovimentos, grupos e indivíduos, desde que

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pautados numa relação de respeito (de co-nhecer e aprender), para que avancem nasprofundas transformações nessa construçãocoletiva da (imperfeita) realidade zapatista(com suas fissuras, contradições e máculas).

Falam-nos sobre a destruição da na-tureza e das mal chamadas "catástrofesnaturais", que são acompanhadas pelamão sangrenta do capital e de seu mo-delo de desenvolvimento predatório, que,ao só se interessar pelo lucro sob qual-quer forma que seja, em todo o calendá-rio e em toda a geografia, usufrui das maisvariadas destruições do planeta, lucran-do duplamente, seja como desgraça ounas conseqüências desta. Relatam-nos,assim, o drama vivido por comunidadesinteiras ao transbordar um rio no Méxi-co, afetando mais de um milhão de pes-soas. De como as autoridades gover-namentais buscaram se isentar de suasresponsabilidades colocando a culpa emcausas naturais, e escondendo uma sé-rie de políticas públicas que permitiram talsituação, que apenas atingiu as populaçõespobres da região de Tabasco, fronteira com

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Chiapas. Mas também nos trazem emoci-onantes relatos de outras formas de aju-da. Daquelas que brotam dos corações dehomens e mulheres humildes, que, nãoobstante, contribuem com tudo o que têm,com seus corpos e almas, com o pouco ali-mento, com a palavra sincera e verdadeira,com o ouvido atento, com o olhar frater-no. Deste modo ficamos a saber que, en-quanto os atingidos pelo transbordamentodo rio não tinham sequer comunicaçãotelefônica e as estradas estavam interdita-das para veículos, longas filas de centenasde zapatistas, velhos, homens, mulheres ecrianças surgiam do meio da mata e daescuridão, após andar por dias, levando nosombros a ajuda aos necessitados, tirandodo já pouco que tinham e dividindo comaqueles que nem com isso podiam contar.Talvez essa seja uma das melhores imagensdo que seja esse "outro mundo" (em cons-tante construção) almejado pelos zapatistas.

Veremos que até bem pouco tempoatrás os indígenas chiapanecos eram obri-gados a viver tal qual há séculos passados,explorados pelos fazendeiros como se es-

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ses fossem senhores feudais, e que pas-saram a melhorar de vida (ainda quetenham erros e longos caminhos a per-correr), isto é, a ter avanços na saúde,educação, habitação, alimentação, partici-pação das mulheres, comercialização,cultura, comunicação e informação nãocom a insurreição zapatista, mas quandopassaram a deter os meios de produção,neste caso as terras, os animais e asmáquinas, ou seja, quando passaram a teras condições de se auto-governarem.

Sentiremos a ética zapatísta. atravésdas palavras, como se pudesse ser toca da,como algo tangível, que podemos pegar,pensar, cheirar, sentir, ouvir, degustar.Que esta ética é, para eles, segundo o SuboMarcos, o que lhes garante coesão in-terna, os define, lhes dá identidade e fu-turo, mais do que o fato de estarem ounão na mídia, de quantas pessoas exis-tem em suas filas, a clareza ou aradicalidade de seu programa.

Assim, a confluência entre o falar eo agir zapatista lhes dá uma dimensãoética de verdade, que imediatamente

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contrasta com os discursos e os atos dopoder político institucional identificadocada vez mais com a mentira, com a "po-lítica do possível". E, o fato deles nãoestarem nos cabeçalhos dos jornais nemnos noticiários da televisão não significaque as coisas não estejam a ocorrer, aexistir e a se mover, pois o programa te-órico e a prática zapatista não devem serpensados somente em suas expressõespúblicas e conteúdos programáticos, masespecialmente em sua práxis, na sua co-erência e contradições internas.

Marcos nos demonstra como a éticazapatista é antagônica a ética dominante.Esta ética do medo, da não-liberdade, a não-ética de cima que insiste, a todo o momento,com argumentos comprados no mercadodas teorias, que há um sem-número derazões, das mais simples às mais complexas,para não se mudar esse mundo, para quetudo continue como está e que o outro e odesconhecido são perigosos. Portanto, estaética nos diz que devemos ter medo dooutro, seja mulher, homem, velho, adulto,jovem, criança, homossexual, lésbica,

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transexual. heterossexual, do indígena, doestrangeiro, do negro, do branco, do que édiferente, do que não é igual.

O mundo a ser construído, em que acada manhã o medo não esteja na agen-da do dia, onde exista a liberdade, nãouma liberdade seqüestrada e deformada,terá que vencer estes medos, e outros quemesmo não nomeados não quer dizerque não existam.

Aprenderemos que a liberdade tem aver com o ouvido, a palavra e o olhar. Coma possibilidade de não termos medo doolhar e da palavra do outro, do diferentee, da mesma maneira, não termos medodeser observados e escutados pelos outros.A liberdade não pode ser feita sobre o medodo outro. Ela não está num lugar, mas temque ser construída, coletivamente.

Aqui temos a expressão de um movi-mento que não abandona a perspectivado núcleo central do domínio capitalista,a propriedade dos meios de produção, masque não se circunscreve exclusivamentea ela, não privilegia a infraestrutura, abase das relações sociais capitalistas, em

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detrimento das relações sociais, políticase jurídicas que conformam toda a supe-restrutura desse sistema. Um movimen-to que atenta para os outros espaços dedomínio a que as transformações neces-sárias para a construção de outro mun-do, mais humano e digno, por conseguin-te não capitalista, devem se ater. Contu-do, ao não adotarem uma perspectiva deque o sistema capitalista está em falên-cia, de que vivemos em uma conjunturana qual a revolução está dada e basta es-tender o braço para tocá-Ia, possuem alucidez de uma análise que se entrelaçacom a realidade, reconhecendo, destemodo, como sustenta o Sub Marcos, quenão existe atualmente uma organizaçãoou um movimento que seja capaz de abar-car todos os aspectos necessários da agen-da da luta anti-sistêmica, que seja capazde cobrir a amplitude desse sonho e a atu-al estreiteza das forças de esquerda.

Veremos que a palavra zapatista não édesprovida de prática; melhor dizendo, suaprática entra em concordância com seudiscurso, gerando uma práxis política

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concreta, dando materialidade a sua con-cepção, como a tentativa de "acabar" coma fragmentação dos de baixo, dos traba-lhadores e trabalhadoras, inserindo todose todas, que se levantam e antagonizam-se com o poder instituído, nesse projetocomum de construção de um mundo não-capitalista. Um exemplo dessa atitude é aexperiência levada adiante pela OutraCampanha e a VI Declaração, ou os exem-plos práticos de solidariedade aos calen-dários e geografias da esperança, comoocorrido em Cuba, em que levaram nãoapenas suas palavras, admirações e sauda-ções a esse povo, mas um pouco de milhoe um pouco menos de petróleo. O EZLN,conforme o Subo Marcos, não procura seruma vanguarda nos clássicos moldes dasexperiências socialistas, de hegemonizar ehomogeneizar as lutas sociais, nãopretende representar a totalidade dosmovimentos, organizações, coletivos eindivíduos de todos os aspectos da oposiçãoanti-capitalista. Parte da premissa de queesta construção anti-sistêmica deverá sercom o outro, que compartilha as mesmas

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dores e esperanças, que busque a supera-ção radical e profunda dessa situação, semse limitar a aparar as arestas ou buscarhumanizar o responsável dessas situaçõesde exploração e opressão.

Com a leitura dos textos, quase pode-remos sentir também o odor exalado pordiversos incidentes ocorridos e perpetra-dos recentemente, inclusive por partidosde esquerda, que advertem e previnem oszapatistas de que os caminhos e horizon-tes de uma nova guerra às comunidadesse preparam e se aproximam. Com efeito,são múltiplos os relatos recentes de novasagressões às comunidades zapatístas, quevão da repressão aberta à guerra econô-mica, realizadas por grupos paramilitaresou pelo-exército, por programas de assis-tência social à Iniciativa Metida (PlanoMéxico )3. Ao mesmo tempo, veremoscomo ° zapatismo é um movimento quebusca a paz, mas não a paz do silêncio, domedo, da repressão, e sim uma paz digna,

3. Para saber mais sobre o "Plano México", veja:http://www.midiaindependente.org/ptlblue/2008/06/421370.shtml

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e por isso mesmo anticapitalísta, pois aguérra é, ela mesma, uma forma pela qualo capitalismo produz negócios, gera lucros.

O "outro mundo" propugnado peloszapatistas não pode ser definido a priori,ele não tem uma forma determinada, suaênfase deve ser posta no próprio proces-so de sua construção, no caminho quese constrói a cada passo, a cada luta tra-vada, às vezes de maneira espetacularcomo ao nascer da primeira madrugadade 1994, outras vezes levada a cabo pe-los tortuosos, sutis e anônimos labirin-tos da preciosa vida cotidiana. Com oolhar atento ao futuro, nesta outra soci-edade almejada, que é alicerçada poroutras relações experimentadas no pre-sente é que poderemos vislumbrar, poralguns instantes, "o fantástico, terrível emaravilhoso que são as possibilidadesabertas ao amanhã". "Como se todo o malque somos e carregamos se mesclasse como bom que podemos ser e o mundo intei-ro redesenhasse sua geografia e seu tem-po se refizesse com outro calendário".

Mas esse vislumbrar não pode durar

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mais do que um instante - o instante doperigo, de W. Benjamin -, pois ainda falta oque falt~ ... falta construir esses espaços erelações, seus lugares e não-lugares, seusmodos e não-modos, ainda falta fazer ou-tro calendário e inventar outra geografia.

E, ao modo da insurreição dos zapatistasque nos seus 14 anos de construçãoininterrupta de autonomia e auto-governo,que no caminhar dessa construção nãodeixemos de dançar, cantar e sorrir, que nosmantenhamos felizes apesar dos erros,problemas e desafios, das distâncias queseparam geografias e calendários. Pois aconstrução desse novo mundo florescerá doscorações que hoje batem em rebeldia coletivae que colocaram a girar a roda da históriaem seu longo caminho para, finalmente,adentrar na história da humanidade.

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A publicação no Brasil de Nem o Centro eNem a Periferia, tal qual a experiência dosindígenas em rebeldia de Chiapas - econo-micamente um dos estados mais pobres dafederação mexicana e inversamente um dosmais ricos em dignidade - é a materializaçãode um longo esforço coletivo e colaborativo,um trabalho de tradução, revisão epublicação feita a muitas mãos e corações.Um livro que tem por propósito servir comouma janela, para que outros e outrasconheçam e difundam uma parte dessaexperiência em outras geografias e emoutros calendários, que os zapatistas saibamque não estão sós nesta luta coletiva.

Este, enfim, é um livro para se ler,ouvir, degustar, tocar, pensar, sentir e,principalmente, refletir e recordar (es-peramos que para todo o sempre), poisao contrário da memória de cima que éseletiva e lembra ou não das coisas con-forme o que convém, a memória de bai-xo nada esquece. Muito menos de trans-gredir sistematicamente a lei da gravi-dade, que diz que o que está abaixo não

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deve se levantar. Mas não nosdelonguemos nesta apresentação pois,como verão, muito mais se inclui e ex-clui em um olhar, e em uma leitura ...

Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho*

ps.: Agradeço profundamente a leituraatenta e crítica da Isabel Loureiro, daFátima Cabral e do Cássio Branca/eone.

*. Cientista Social, Prof.? colaborador na Universi-dade Estadual de Maringá e doutorando em Ciên-cia Política na Universidade Estadual de Campi-nas. Defendeu na Unesp-Marília em 2007 a dis-sertação de mestrado: "Abaixo e à esquerda: Umaanálise histórico-social da práxis do ExércitoZapatista de Libertação Nacional". Acessível em:http://www.marilia.unesp.br/Home/Pos -Grad ua ca o/C iencia s Sociais/Dis s erra coe s/filho _amh _me_mar. pdf

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I-Acima, pensar o BrancoAgeografia e o calendário da teoria

"O problema com a realidade, é quenão entende nada de teoria"

Dom Durito da Lacandona

Elias Contreras, Comissão de Investi-gação do EZLN, dizia que a luta, a nossaluta pelo menos, podia ser explicada comouma luta de geografias e calendários.Ignoro se este companheiro, mais um dosmortos que por si só somos, imaginouque suas teorias (" seus pensamentos",dizia ele) seriam representadas ao lado detantos renomados intelectuais como osque agora confluem ao sudeste estado

* Participações de Immanuel Wallerstein, Carlos An-tonio Aguirre Rojas e do Subcomandante InsurgenteMarcos na conferência coletiva do dia 13 de dezembroàs 9:00 da manhã, correspondente ao "Primeiro Coló-quio Internacional In Memórian Andrés Aubry"

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mexicano de Chiapas. Tampouco sei se ha-veria autorizado que eu, um subcomandantequalquer, tomasse alguns desses pensamen-tos e os expusesse publicamente.

Porém, tendo consciência da evidên-cia de nosso baixo "rating'" midiático eteórico, creio que posso permitir-me ex-por as bases rudimentares desta teoria,tão outra que é prática.

Não vou aborrecê-los contando-lhesa complicação sentimental de EliasContreras que, como tod@s zapatistas,escolheu amar com desafio. Como se aponte afetiva que se estende até o outro,a outra ou o outro, já não fosse por si sócomplexa e complicada, Elias Contreras,contudo, somou as distâncias e murosque separam os calendários e as geogra-fias, além do conhecimento, quer dizer,o respeito da existência do outro. Como

1. o "ratíng" no mercado financeiro é uma opi-nião sobre a capacidade de um país ou uma em-presa saldar seus compromissos financeiros. Aavaliação é feita por empresas especializadas, asagências de classificação de risco, que emitem no-tas. Pode ser entendido também como a "audiên-cia" midiática e teórica zapatista.(N.O)

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se dessa forma ele (e com ele, o coletivoque somos) decidisse fazer todo o possí-vel para que um ato tão antigo, comume cotidiano como a existência do ser hu-mano, se converta em algo extraordiná-rio, terrível, maravilhoso.

Em vez de contar-lhes sobre a com-plicada e inquebrável ponte de amor deElias Contreras por Magdalena (que nãoera nem homem e nem mulher, o que jáé por si um desafio à luta de gênero),pensei então em trazer-lhes algo da mú-sica que toca nas comunidades zapa-tistas-, Por exemplo, só ontem à noiteescutei uma música que o "mestre decerimônia" classificou como ritmo "cor-rido-cumbia-ranchera-nortena". Quetal? Ritmo corrido-cumbia-ranchera-norteüa .... se isso não é um desafio teó-rico, então não sei o que é. E não me

2. Para um artigo que analisa o baile, a comunica-ção e a participação no zapatismo ver: Vamos aobaile: gingas da comunicação e da participação nozapatismo, de Guilherme Figueiredo, acessível em:http://WWW.scielo.br/scielo.php?script= sei_arttext&pid= SOl02-64452007000300003&lng=en&nrm =Í50 (N.O)

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perguntem como se toca ou se dançaisso, porque eu não toco nem uma portae, além disso, com a minha idade avan-çada, no baile tenho a graça de um ele-fante com unha encravada.

Faz mais de dois anos, nestas monta-nhas do sudeste mexicano, em ocasião dasreuniões preparatórias do que depois sechamaria '1\ Outra Campanha>". uma mu-lher jovem disse, palavras mais, palavrasmenos, "se tua revolução não sabe dançar,não me convide à tua revolução+". Temposdepois, mas então nas montanhas do no-roeste do México, voltei a escutar essasmesmas palavras da boca de um chefe in-dígena que se esforça por manter vivos osbailes e toda a cultura de nossos ancestrais.

Ao escutar a ela e ao outro, em tem-

3. A Outra Campanha tem por objetivo apresentarpropostas de como lutar contra o capitalismo e cri-ar um programa nacional de lutas, com uma am-pla rede de setores subalternos em rebeldia, unin-do organizações sociais, movimentos, coletivos eindivíduos à distância da política tradicional,resumida a democracia eleitoral. (N.O)4. Essa é uma frase famosa da anarquista e femi-nista Emma Goldman (N.O)

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pos distintos, eu voltei a olhar a uma dascomandantas e lhe disse: 'í\í lhe falamjovem". A Comandanta não deixou deolhar a multidão, mas em voz baixa dis-se: "Urr Sup ... Puta madre, veja que medão pista e lhes deixo o chão liso".

Eu não lhes estarei mentirando. A ver-dade é que pensei que poderia trazer-lhesalgumas histórias de Sombra o guerrei-ro, de Elias Contreras e a Magdalena, dasmulheres zapatistas, das meninas e me-ninos que crescem em uma realidade di-ferente (olhe: não melhor, não pior, ape-nas diferente) à de seus pais, marca dapor outra resistência, e até lhes contariaum conto da menina chamada "Dezem-bro" que, como seu nome indica, nas-ceu em Novembro. E pensei também poralgumas músicas (sem irritar as presen-tes), mas é de todos conhecida a serie-dade com que os zapatistas abordam ostemas teóricos, assim que só direi queteria que encontrar alguma forma de li-gar a teoria com o amor, a música e adança. Talvez, da mesma maneira a teo-ria não conseguiria explicar nada que

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valesse a pena, mas seria mais humana,porque a seriedade e o endurecimentonão garantem o rigor científico.

Porém, bem, já estou indo de novopor outro lado. Dizia-lhes eu que EliasContreras, Comissão de Investigação doEZLN, dizia, por sua vez, que nossa lutapodia ser entendida e explica da comouma luta de geografias e calendários.

Em nossa participação como "telo-neros" dos pensamentos que nestes diasse congregam neste lugar e nestas da-tas, serão a geografia e o calendário ... oumelhor, uma grande trança que entreambos se amarra abaixo, um dosreferenciais da nossa palavra.

Dizem nossos mais velhos que os pri-meiros deuses, os que nasceram o mundo,foram sete; que sete são as cores: o branco,o amarelo, o vermelho, o verde, o azul, ocafé e o preto; que são sete os pontos car-deais: o acima, o abaixo, o adiante e o atrás,o um lado e o outro lado, e o centro; quesete são também os sentidos: olhar, degus-tar, tocar, ver, ouvir, pensar e sentir.5. Bandas menores que abrem os shows. (N.T)

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Sete serão então os fios desta grandetrança, sempre incompleta, do pensamen-to zapatista.

Falemos, pois, da Geografia e o Ca-lendário da Teoria. Para isto pensemosna cor branca lá em cima.

***

Não temos a informação exata, mas nocomplexo calendário do pensamento teó-rico de cima, de suas ciências, técnicas eferramentas, assim como de suas análisesdas realidades, houve um momento emque as pautas se definiam de um centrogeográfico, e daí se estendiam até a peri-feria, como uma pedra arremessada nocentro de um tanque cheio de água.

A pedra conceitual tocava a superfícieda teoria e produzia uma série de ondas queafetavam e modificavam os distintos afaze-res científicos e técnicas adjacentes. A con-sistência do pensamento analítico e refle-xivo fazia, e faz, com que essas ondas semantenham definidas ... até que uma novapedra conceitual caia e uma nova série de

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ondas mude a produção teórica. A mesmadensidade da produção teórica talvez pu-desse explicar o porquê as ondas, na maio-ria das vezes, não conseguem chegar à bor-da, quer dizer, à realidade.

"Paradigrnas científicos" é assim quealguns chamam estes conceitos capazesde modificar, renovar e revolucionar opensamento teórico.

Nesta concepção da ocupação teóri-ca, nesta meta-teoria, se insiste não sóna irrelevância da realidade, mas tam-bém, e, sobretudo, se alardeia que se temprescindido completamente dela, numesforço de isolamento e higiene que, di-zem, merece ser aplaudido.

A imagem do laboratório asséptico nãosó se limitou às chamadas "ciências na-turais" ou as "ciências exatas", não. Nosúltimos saltos do sistema mundial capi-talista, esta obsessão pela higiene anti-realidade alcançou às chamadas "ciênci-as sociais". Na comunidade científicamundial começou então a ganhar força atese de "se a realidade não se comporta comoindica a teoria, pior para a realidade".

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Mas voltemos ao tranqüilo tanque cheiode água da produção teórica e à pedra quetem alterado sua forma e conteúdo.

O reconhecimento desta aparente fra-gilidade do arcabouço conceitual científi-co significou aceitar que a produção teó-rica se renovava continuamente, inclusi-ve dentro de seu pretenso isolamento darealidade. O laboratório (termo agoramuito usado pelos chamados cientistassociais para se referir às lutas dentro dassociedades) não poderia nunca reunir ascondições ideais, por mais as séptico e es-terilizado que estivesse, para garantir aperpetuação que toda lei científica recla-ma. Daí que em sua própria ocupação, bro-tam, uma ou outra vez, novos conceitos.

Nestas concepções, a idéia (o concei-to, neste caso) precede à matéria e se atri-bui assim à ciência e à tecnologia a res-ponsabilidade das grandes transformaçõesda humanidade. E a idéia tem, segundo ocaso, um produtor ou um enunciante: oindivíduo, o cientista neste caso.

Desde a ociosa reflexão de Descartes,a teoria de cima insiste na primazia da idéia

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sobre a matéria. O "penso, logo existo"definia também um centro, o eu indivi-dual, e o outro como uma periferia que sevia afetada ou não pela percepção desse eu:afeto, ódio, medo, simpatia, atração, repul-sa. O que estava fora do alcance da per-cepção do eu era, e é, inexistente.

Assim, o nascimento deste crimemundial chamado capitalismo é produ-to da máquina de vapor e não do despo-jo. E a etapa capitalista de globalizaçãoneoliberal começa com o surgimento dainforrnática, da Internet. do telefone ce-lular, do shoppinq center, da sopa instan-tânea, do fast food; e não com o início deuma nova guerra de conquista em todoo planeta, a IV Guerra Mundial".

6. Ou a guerra que o neoliberalismo lançou a todo omundo nesta etapa do capitalismo. Após a III GuerraMundial, a Guerra Fria, o neoliberalismo ataca sele-tivamente, escolhendo quais seres devem ou nãoviver, é uma guerra de conquista de todos os espa-ços do planeta pelo mercado mundial. Ver texto AQuarta Guerra Mundial já começou em FELICE,Massimo di e MUNOZ, Cristobal (org). A Revolu-ção lnvencível. Subcomandante Marcos e ExércitoZapatista de Libertação Nacional. Cartas e Comuni-cados. São Paulo: Boiternpo, 1998. (N.O)

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No campo da tecnologia se repete omesmo padrão. E se agrega que, como oconceito científico, a técnica nasce "inocen-te", "livre de toda culpa", "inspirada no bemda humanidade". Einstein não é responsá-vel pela bomba atômica, nem o senhorGraham Bell o é pelas fraudes via celulardo homem mais rico do mundo, CarlosSlim/.O coronel Sanders não é responsávelpelas indigestões provocadas pelo KentuckyFried Chiken, nem o senhor MacDonaldpelos hambúrgueres de plástico reciclado.

Isto, que alguns desenvolveram e de-finiram como "objetividade científica",criou a imagem do cientista que permeiaainda o imaginário popular: um homem,ou uma mulher, despenteado(a), comóculos, guarda-pó branco, com desalinhocorporal e espacial, concentrados frenteàs provetas e matrazes" borbulhantes.

O autodenominado "cientista social"

7. Empresário mexicano de telecomunicações, con-siderado em 2007 o homem mais rico do mundo.O espanto é que desta vez o homem cifras é umcidadão de um país subdesenvolvido. (N.O)8. Recipientes usados em laboratórios. (N.T)

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"comprou" esta mesma imagem, comalgumas mudanças: no lugar de laborató-rio, um cubículo; no lugar de ma trazes eprovetas, livros e cadernos; no lugar de umguarda-pó branco, uma bata de cor escu-ra; o mesmo desalinho; mas somado aotabaco, café, brandy ou conhaque (tambémna ciência existe níveis, meu bem) e música defundo, impensáveis num laboratório.

Contudo, uns e outros, concentradoscomo estavam em sua objetividade eassepsia, não advertiram a aparição e cres-cimento dos "comissários da ciência",quer dizer, dos filósofos. Estes "juizes" doconhecimento, tão objetivos e neutroscomo seus vigiados, expropriaram o crité-rio de cientificidade. Como a realidade nãoera o referencial para determinar a verda-de ou a falsidade de uma teoria, então afilosofia passou a cumprir esse papel. Apa-receu assim a "filosofia da ciência", querdizer, a teoria da teoria, a meta-teoria.

Mas a chamada "ciência social", a fi-lha bastarda do conhecimento, encon-trou os filósofos com sobrecarga de tra-balho ou com exigências difíceis de cum-

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prir (do tipo" Se A é igual a B e B é iguala C, então A é igual a C"), assim, cadavez mais, os intelectuais da academiapadecem como censores e comissários.

Mmm ... creio que, com o expostoanteriormente, já demonstrei que possoser tão obscuro e incompreensível comoqualquer teórico que se respeite, masestou seguro de que há uma forma maissimples de seguir com isto.

Assim, aqui vou eu, no mais vão um pou-co pro ladinho, que não quero lhes cuspir.

Em resumo, a conseqüência deste ca-lendário e desta geografia é que lá acima aprodução teórica não é mais que umamoda que se pensa, vê, cheira, gosta, toca,escuta e sente nos espaços da academia,nos laboratórios e institutos especializados.

Ou seja, a teoria é uma moda que temnas teses (de pós-graduação, meu bem, tam-bém na academia há níveis), nas conferên-cias, nas revistas especializadas e nos li-vros, os substitutos das revistas de moda.Os colóquios suprem o lugar das exibi-ções de moda, e aí os palestrantes fazem

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O mesmo que as modelos na passarela,isto é, exibem sua anorexia, neste caso,sua magreza intelectual.

Pegue cada momento do surgimentode um desses paradigmas e encontrará umcentro intelectual que disputa a primazia.As universidades européias e os institutostecnológicos da América do Norte repe-tem a listagem da moda: Paris, Roma, Lon-dres, Nova York (lamento se rompo algu-ma ilusão, mas não aparecem o Tec deMonterry, nem a Ibero, nem a UDLN).

Com isto quero dizer que o mundocientífico construiu uma torre de cristal(mas chumbada) com suas próprias leise adornada com vitrais churriguerescos"que elaboram os intelectuais ad hoc.

Para esse mundo, essa torre e suaspent-houses, não se poderá acessar a rea-lidade até que credite estudos de pós-gra-

9. Respectivamente, Instituto Tecnológico y deEstudios Superiores de Monterrey (ITSM). Centroeducacional tecnológico. (N.O)10. Estilo inspirado no barroco empregado por JoséBenito Churriguera e seus imitadores no séculoXVIII e caracterizado por uma exuberante orna-mentação. (N.T)

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41duação e um currículum, prestem aten-ção, tão gordos quanto à carteira.

Assim se apresenta à maioria das pes-soas, e assim se auto-representa à comu-nidade científica. Mas uma observaçãoatenta e crítica, uma dessas que se fa-zem tão escassas agora, permitiria ver oque acontece na realidade.

Se o novo paradigma é o mercado e aimagem idílica da modernidade é oshoppinq center. ou o centro comercial,imaginemos, então, uma sucessão de es-tantes cheias de idéias, ou melhor, ain-da, uma loja com teorias para cada oca-sião. Não será difícil então imaginar ogrande capitalista ou o governante da vezrecorrendo ao corredor, pesquisandopreços e qualidades dos distintos pensa-mentos, e adquirindo aqueles que seadaptem melhor a suas necessidades.

Lá em cima, toda teoria que se res-peite deve cumprir uma dupla função:por um lado deslocar a responsabilidadede um fato com uma argumentação, quenão é por ser elaborada que é menos ri-dícula; e, pelo outro, ocultar a realidade

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(quer dizer, garantir a impunidade).Na explicação da desgraça aparecem

exemplos:O senhor Calderón 11 (que alguns de-

sorientados consideram o presidente doMéxico), disfarçado de militar, encontrana teoria lunática a explicação das ca-tástrofes que assolaram Tab a sco " eChiapas (como antes assolaram Sonorae Sínaloa'") e ordena a suas tropas quelhe proporcionem uma capacidade deconvencimento impossível de construirsobre este castelo de cartas adulteradasque foi a eleição presidencial de 200614•

Seu fracasso, tão pouco informado nosmeios de comunicação, era previsível:consegue mais o Teleton " que o EstadoMaior presidencial. Deslocando a respon-

11. Felipe de Jesús Calderón Hinojosa, eleito em 2006à presidência do México pelo PAN. (N.O)12. Estado mexicano ao leste de Chiapas. (N.O)l3. Estados mexicanos ao norte do país. (N.T)14. Referência a disputa entre Calderón (PAN) e LópesObrador (PRD) em 2006. Obrador contestou a vitória deCalderón e acusou o PAN de fraudar as eleições. (N.O)15. Evento que arrecada recursos para organizaçõese entidades que cuidam de deficientes. (N.T)

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sabilidade para a lua (que, diga-se de pas-sagem, é rancorosa, como conta a lendada origem de Sombra, o guerreiro - masisto ficará, se é que vai ficar, para outrodia), Calderón oculta sua responsabilida-de e a daqueles que o antecederam. Re-sultado: se cria uma comissão para inves-tigar ... astronomia, e dar-lhe, além da po-breza das armas, alguma base legítima paraeste culto a Huerta'" (e amantes), segun-do confissão própria, dos jogos cíber-néticos militares. Seguramente, se a lua senega a aceitar sua culpabilidade, o titulardo IV Reich lhe dirá, com olhar duro edecidido: "desça-te ou mando peqar-lhe"?',

O senhor Héctor Aguilar Camín!", oprotótipo do intelectual não de cima (é

16. Presidente mexicano (1913-1914) que chegouao poder após um golpe de estado que culminouna morte do antecessor Francisco Madero. Huertaera apoiado pela aristocracia rural que buscava res-tabelecer o regime do General Porfírio Díaz, contu-do a luta dos rebeldes (Villa, Zapata, Carranza eObregón) o fez cair no ano seguinte à sua ascensãoà presidência do México. (N.O)17. No original se lê "ibájate o mando por ti!" (N.T)18. Jornalista, escritor, empresário e historiador me-

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O que ele mais quer), e sim "acimista",reescreve o "Livro Branco" com o qual aPGR zedilista'? quis explicar, sem êxitoalgum, a ma tança de Acteal" (que nes te22 de dezembro completa 10 anos semverdade nem justiça). Fiel ao patrão atu-al, Aguilar Camín busca, inutilmente,desviar a indignação que novamente selevanta, ocultando um crime de Estadoe deslocando a responsabilidade aos as-sassinados ... aos mortos.

Felipe Calderón e Héctor AguilarCamín, um vestido comicamente de mili-tar e outro pateticamente disfarçado dein telectual. O primeiro maldizendo aquem o recomendou comprar a teoria dalua, e o segundo recorrendo aos escritó-rios governamentais e quartéis militarescolocando a venda seu inútil detergentepara limpar manchas de sangue.

xicano, graduado na Universidad lberoamericana, comdoutorado em história no Colégio de México. (N.T.)19. Procuradoria Geral da República mexicana. (N.T)20. Chacina de 45 indígenas tzotziles, incluindo grávi-das, crianças e velhos, provocada por paramilitares(supostamente os Máscara Roja) em 22 de dezembrode 1997 na localidade de Acteal em Chiapas. (N.O)

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É esta, a teoria branca e imaculada decima, a que domina no decadente mundocientífico. Frente a cada um de seus esta-los teóricos, também chamados pomposa-mente de "revoluções científicas", o pen-samento progressista em geral se vê obri-gado a remar contra a corrente. Com o parde remos da crítica e da honestidade, ospensadores (ou teóricos, ainda que sejacomum usar este termo como depreciati-vo) de esquerda devem questionar aavalanche de evidências que, com a fanta-sia da cientificidade, sepultam a realidade.

O referencial desta tarefa crítica é aciência social. Mas se esta se limita a ex-pressar desejos, juízos, condenações ereceitas (como agora fazem alguns teóri-cos de esquerda no México), ao invés detratar de entender para tratar de explicar,sua produção teórica não só resulta inca-paz, mas na maioria das vezes, patética.

É, então, quando a distância entreteoria e realidade não só se converte numabismo, mas também se apresenta notriste espetáculo de autodenominadoscientistas sociais jogando-se com singu-

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lar alegria ao vazio conceitual.Talvez algurn@, dos que nos escutam ou

lêem, conheçam esses comerciais que anun-ciam produtos para emagrecer sem fazer exer-cícios e se entupindo de garnachas" e comi-da rica em "hídrocarbonetos". Sei que é pou-co provável que alguém daqui conheça isto,pois estou seguro que se encontram imersosem questões realmente importantes da teo-ria, assim permitam-me dar-lhes um exem-plo: há um anuncio de uma bolacha que secome, e ao comê-Ias as mulheres podem ga-nhar o corpo de Angelina Jolie (suspiro), eos homens podem chegar a ter o corpo atlé-tico do Sup-Marcos (arrrrrroz com leite!) ...um momento! Eu escrevi isto que acabo dedizer? Mmh ... não, não creio, minha modés-tia é lendária, assim apaguem esta parte desuas anotações. Onde estava? Ah sim, na bo-lacha que vos dará um corpo espetacular eisso sem fazer mais exercícios que o de levaro produto à boca e mastigá-lo.

Da mesma forma, nos últimos anosganhou forças, no meio intelectual pro-

21. Provável variedade de uvas muito doces. (N.T.)

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gressista do México, a idéia na qual sepode transformar as relações sociais semlutar e sem mexer nos privilégios de quedesfrutam os poderosos. Só é necessárioassinar a cédula eleitoral e zaz!, o país setransforma, proliferam-se as pistas de pa-tinação no gelo e as praias artificiais, ascorridas de automóveis em Reforma, osviadutos de dois andares e as constru-ções do bicentenário (você tem notadoque não se fala do centenário?). Veja,nem sequer é necessário vigiar a eleiçãopara que não se converta em uma frau-de e em um filme que a documente.

A submissão com que isto foi adqui-rido, digerido e difundido por boa parteda intelectualidade progressista do Mé-xico não deveria estranhar, sobretudo, selevado em conta que o outro, o pensar, oanalisar, o debater e o criticar, custa mais,quer dizer, é mais caro.

O que surpreende é a virulência eruindade com que atacaram, e atacam, aquem não engole essa bolacha dietética,perdão, essa roda de moinho.

Dou-lhes outro exemplo:

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Na Cidade do México tem-se realizadoum despojo impecável e obtido apoio e/ouo silêncio cúmplice dessa intelectualidade.Um governo de "esquerda moderna" con-seguiu o que a direita não podia: despojara cidade e ao país do Zócalo".

Sem necessidade de leis reguladoras decaminhadas e comícios, sem necessidadedas assinaturas que os panistas" tiveramque falsificar, o governo de Marcelo Ebradtoma o Zócalo, o entrega a empresas co-merciais (por aí lemos que era de se lou-var que não houvera custado nada ao go-verno do Distrito Federal e que tudo tinhasido custeado por empresas privadas que,por certo, incluem uma das emissoras deTV "vetadas" pelo lopezobradorismo),constrói-se uma pista de patinação no geloe zaz!, durante dois meses, nada de comí-cios ou manifestações nesta praça que omovimento estudantil de 1968 arrancouàs celebrações oficiais.

Sem mais CND-lópezobradorista24• Sem

22. Praça central onde é tradicional as manifesta-ções na Cidade do México. (N.T)23. Partidários do PAN. (N.T)

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mais invasões de multidões à catedral, nadade gritos que não sejam aqueles dos quecaem, nada de comícios nem marchas, semmais gritos, faixas, indignação.

Para os 10 meses restantes do ano, o"esquerdoso" Ebrard já pensou novos proje-tos que façam os capitalínos" sentir estaremem alguma outra metrópole muito "chie".

Faz apenas alguns dias, a chamadaFrente Nacional Contra a Repressão des-cobriu que a caminhada que havia convo-cado para o Zócalo não poderia se realizarlá porque a pista de patinação o ocupava.

Não protestaram contra este despojo,simplesmente trocaram de lugar. Depois de

24. Convención Nacional Democrática. Organizaçãopolítica convocada pelo EZLN e a sociedade civil.Posteriormente a CND é recriada após a fraude elei-toral de Calderón e fica nas mãos do Partido daRevolução Democrática (PRD) de Lopez Obra dor.Neste segundo momento a tentativa era realizar"um governo paralelo", mas a crítica dos zapatistasdenuncia esta CND-Iópezobradorista de populismoe freio nas radicalizações populares. (N.O)25. Referente aos moradores da capital do país, aCidade do México, também conhecidos como"defeftos", isto é, do Distrito Federal. (N.T)

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tudo, não havia por que interferir no espíri-to novayorkino que agora se respira no Dis-trito Federal... nem nas vendas de patins degelo nos grandes centros comerciais.

Não só não se impediu o despojo, nãosó não se criticou, além disto se aplau-diu e celebrou com fotos coloridas naprimeira página, crônicas e entrevistas,este evento "histórico" que poupou osdefeiios das longas filas para obter o vistonorteamericano e o custo do transportee da hospedagem em Nova York dos fil-mes que vêem Marcelo Ebrard e sua as-pirante à Cristina Kirchner autóctona.

Se isto recorda o método de "pão e circo"tão caro aos governos priístas, se esquece quecontinua faltando o alimento, pois o únicoPAN26 que existe é o partido que agora seaproveita da queda de Calderón Hinojosa, comquem toda classe política se relaciona em pri-vado e se desentende em público.

Tudo isso se passa e se celebra por-que o senhor Ebrard não saiu (ainda) nafoto com Felipe Calderón e porque disse

26. Uma inferência em duplo sentido entre a pala-vra "pão" (pan) e o partido PAN. (N.O)

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que é de esquerda ... ainda que governecomo a direita, com desocupações e rou-bos disfarçados de espetáculo e ordem.

E estes intelectuais de esquerda?Bom, aplausos para a desocupação dos

bairros (com acusações de narcotráficoque nunca foram provadas), mais aplau-sos para a desocupação do comércio am-bulante no centro histórico (para acabarde entregá-Io à iniciativa privada), maisaplausos às garotas propaganda nas cor-ridas de automóveis na avenida Reforma ...

O que mudou, meu bem, das barracas"ali included" de plantão contra a fraude,ao glamour da velocidade num esporte tão demassa, tão popular e tão sem patrocínio comoé o das corridas de automóveis; do "grito doslivres" contra o espúrio à aspiração de sersubsede da olimpíada de inverno; não, meubem! não importa se isso não é de esquerda,mas que chama a atenção, chamal; olhe, es-tes patins eu os tenho em várias combinações:tricolores para os nostálgicos, azuis para osbenzidos, e amarelo com preto para os ingê-nuos; há também com as cores para a crian-çada, digo, do perdido que aparece, não crê?

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Agora que a patinação sobre gelo é para genteesbelta, de modo que incluo estas bolachas quelhes deixam mais magro que um apertão nometrô em hora de pico. O que? Você éskater@? Não lhe disse? Por isto este paísnão progride, em qualquer lugar abundamessa gente suja, feia, mau e, para acabar deamolar, carente. Ora, ao menos o dê o segurodesemprego e eu não o digo nada ...

Frente à desocupação de famílias nobairro valente de Tepito, o silêncio ou ajustificativa frívola e servil: "está se com-batendo a delinqüência", assinalou umintelectual e aspirante fracassado à rei-toria da UNAM27, e uma foto em primei-ra página mostrava uma menina senta-da sobre os poucos móveis que sua fa-mília resgatou de uma das desocupações.A filosofia de Rudolph Giulianni, impor-tada de Nova York (como a pista de pati-nação) por López Obrador com a justifi-cativa de "primeiro os pobres", agoraproduz uma argumentação intelectual:essa menina era uma narcotraficante em

27. Universidad Nacional Autônoma de México. (N.T)

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53potencial... agora é ... ninguém.

Já não se quer ocultar que a chamadaesquerda institucional não é de esquerda,agora se apresenta como uma virtude, damesma forma que se anuncia um cafédescafeinado com a virtude de que não tedesperta e não saiba ser café. É esta es-querda a qual alguns intelectuais progres-sistas (seja como for aí os homens sãomaioria) apresentam como o únicoreferencial aceitável, maduro, responsávele possível para a transformação social.

Contudo, e felizmente, nem todo o pen-samento progressista é "bem comportado".

Alguns homens e mulheres têm feitodo pensamento analítico e reflexivo, pala-vra incômoda e a contrapelo. Nestes diaspoderemos escutar alguns dessespensador@s. Não estão todos os que o são,nem são todos os que estão, mas o saberde seu navegar rio acima no leito do co-nhecimento é um alívio para aqueles queàs vezes imaginamos que não estamos sós.

Por isto saúdo nesta primeira rodada aImmanuel Wallerstein e Carlos Aguirre Rojas.

Refletindo sobre algo do trabalho te-

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órico deles, apresentamos ...

Algumas teses sobre a luta anti-sistêmicaUMNão se pode entender e explicar o siste-ma capitalista sem o conceito de guerra.Sua sobrevivência e seu crescimento de-pendem primordialmente da guerra e detudo o que a ela se associa e implica. Pormeio dela e nela, o capitalismo despoja,explora, reprime e discrimina. Na etapade globalização neoliberal, o capitalismofaz guerra à humanidade inteira.

DOISPara aumentar seu lucro, os capitalistasnão só recorrem à redução dos custos deprodução ou ao aumento de preços devenda das mercadorias. Isto é correto,porém incompleto. Há pelo menos maistrês outras formas: uma é o aumento daprodutividade; outra é a produção denovas mercadorias; uma outra é aabertura de novos mercados.

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TRÊSA produção de novas mercadorias e aabertura de novos mercados éconseguida agora com a conquista e re-conquista de territórios e espaços soci-ais que antes não tinham interesses parao capital. Conhecimentos ancestrais ecódigos genéticos, além de recursos na-turais como a água, os bosques e o arsão agora mercadorias com mercadosabertos ou por abrir. Quem se encontranos espaços e territórios com estas e ou-tras mercadorias, são, querendo ou não,inimigos do capital.

QUATROO capitalismo não tem como destinoinevitável sua autodestruição, a menosque inclua o mundo inteiro. As versõesapocalípticas sobre o colapso do sistemapor si mesmo são erradas. Como indíge-nas, levamos vários séculos escutandoprofecias neste sentido.

CINCOA destruição do sistema capitalista só se

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realizará se um ou muitos movimentos oenfrentem e o derrotem em seu núcleocentral, quer dizer, na propriedade privadados meios de produção e de troca.

SEISAs transformações reais de uma socie-dade, isto é, das relações sociais em ummomento histórico, como bem assinalaWallerstein em alguns de seus textos, sãoas que vão dirigidas ao sistema em seuconjunto. Atualmente não são possíveisos remendos ou as reformas. Em trocasão possíveis e necessários os movimen-tos anti-sistêmicos.

SETEAs grandes transformações não come-çam acima nem como fatos monumen-tais e épicos, e sim com movimentos pe-quenos em sua forma e que aparecemcomo irrelevantes para o político e ana-lista de cima. A história não se transfor-ma a partir de praças cheias ou multi-dões indignadas, e sim, como assinalaCarlos Aguirre Rojas, a partir da consci-

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ência organizada de grupos e coletivosque se conhecem e se reconhecem mu-tuamente, abaixo e à esquerda, e consti-tuem outra política.

Acreditamos que temos que desala-mbar" a teoria, e fazê-Ia com a prática.Mas isto talvez possa explicar melhorDaniel Viglietti esta noite, quando assumeparte da culpa que tem que eu esteja portrás deste passamontanhas", em vez deestar atrás de um violão tentando o ritmocorrido-cumbia -ranchera -nortefia.

Assim são as coisas, creio que sem-pre assim. Daniel Viglietti cantará estanoite, assim haverá música e dança.

Talvez cheguem também, nestes dias,Elias Contreras e Magdalena, Sombra,Dezembro e as mulheres zapatistas.

28. Música do uruguaio Daniel Viglietti. (N.T)29. Gorros utilizados pelos zapatistas para cobri-rem seus rostos, que paradoxalmente, ao se torna-rem símbolo da rebeldia zapatista, ao esconderemas faces dos indígenas tornam visíveis os invisí-veis de sempre (N.O)

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E talvez Andrés Aubry sorria vendo eescutando tudo, contente de não estarnesta mesa onde nunca acabava de dizero que tinha para dizer-nos, porque viviaà vida agradecendo e, invariavelmente,na metade de sua comunicação lhe pas-savam o papelzinho de "tempo".

'De modo que, antes de o passem amim, obrigado, nos vemos à tarde.

Subcomandante Insurgente Marcos.San Cristobal de Las Casas, Chiapas,

México.13 de dezembro de 2007.

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11 - Escutar o amareloOcalendário e ageografia da diferença

"O perigo d@s diferentes está emlogo parecerem-se muito entre si".

Dom Durito da Lacondona

A luta das mulheres, do centro à periferia?Se antes falamos que no pensamento

de cima existia um abismo entre teoria erealidade e da concomitante bulimia te-órica que virou moda em uma parte daintelectualidade progressista, agora que-remos nos deter nesse ponto da geogra-fia pretensamente científica que é o cen-tro onde a pedra conceitual, ou seja, amoda intelectual, cai e se iniciam as on-

* Participações de Sylvia Marcos, de Gustavo Esteva edo Subcomandante Insurgente Marcos na conferênciacoletiva ocorrida no dia 13 de dezembro à 7:00 p.m.

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das que afetarão a periferia.Acontece que essas teorias e práticas

surgidas no centro, se estendem até aperiferia não só afetando os pensamen-tos e práticas nesses lugares, mas tam-bém, e, sobretudo, impondo-se comoverdade e modelo a seguir.

Já se falou do surgimento de novosatores ou sujeitos sociais, e se mencionouas mulheres, jovens e outros amores.

Pois bem, sobre estes "novos" prota-gonistas da história cotidiana, surgemnovas elaborações teóricas que, sempreno centro emissor, se traduzem em prá-ticas políticas e organizativas.

No caso da luta de gênero, ou mais es-pecificamente, no feminismo, sucede omesmo. Em urna das metrópoles surge umaconcepção do que é, de seu caráter, de seuobjetivo, de suas formas, de seu destino. Daíse exporta a pontos da periferia, que porsua vez, são centros de outras periferias.

Este translado não se dá sem os pro-blemas e "engarrafamentos" próprios dasdistintas geografias.

Tampouco se dá, paradoxalmente, em

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termos de equidade. E digo "paradoxal-mente" porque um dos traços essenciaisdesta luta é sua demanda de equidade,de equidade de gênero.

Espero que as companheiras e compa-nheiros que levantam esta luta, e que estãome escutando ou lendo, desculpem oreducionismo e simplismo com que estoutocando este ponto. Não que eu queira salvarmeu machismo, tão natural e espontâneo, naverdade, é porque não estamos pensando, nahora em que tratamos disto, nos esforços quelevam adiante. Não dizemos que seus projetosnão sejam questionáveis. O são e em mais deum aspecto, mas estamos falando de outraluta de gênero, de outro feminismo: o quevem de cima, do centro à periferia.

Nos próximos dias, as mulhereszapatistas celebrarão um encontro ondesua experiência e palavra terão um espaçoexclusivo, assim não me aprofundarei maisneste terna'. Contudo, quero contar-Ihes

1. o Ill Encontro dos Povos Zapatistas com os Povosdo Mundo, foi realizado entre 28/12/2007 a 01//01/2008, se destinou a discutir o desenvolvimento daluta das mulheres, tanto dentro dos pueblos e das

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. a breve história de um desencontro.Nos primeiros meses posteriores ao iní-

cio de nosso levante, um grupo de feminis-tas (assim se autodenominaram) chegarama algumas das comunidades zapatistas.

Não, não chegaram a perguntar, aescutar, a conhecer, a respeitar. Chega-ram falando o que as mulheres zapatistasdeviam fazer, chegaram a libertá-Ias daopressão dos machos zapatistas (come-çando, evidentemente, por libertá-Ias doSup), a dizê-Ias quais eram seus direi-tos, a mandar portanto.

Cotejaram quem consideravam aschefas (por certo, com métodos muitomasculinos, diga-se de passagem). Atra-vés delas tentaram impor, de fora, na for-ma e conteúdo, uma luta de gênero quesequer se detiveram em averiguar se

regiões zapatistas, como em relação aos coletivos egrupos de variadas partes do mundo: como se de-ram os avanços na construção de participação iguali-tária nas tarefas de governo dentro dos territóriosem rebeldia indígenas. Para mais informações sobreeste e os outros encontros (como áudio, textos, fo-tos) ver: http://zeztainternazional.ezln.org.mxJe http://chiapas.indyrnedia.org/. (N.O)

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existia ou não e em que grau nas comu-nidades indígerias zapatistas.

Nem sequer pararam para ver se ashaviam escutado e entendido. Não, suamissão "libertadora" estava cumprida.Voltaram a suas metrópoles, escreveramartigos para jornais e revistas, publica-ram livros, viajaram com despesas pagasao estrangeiro dando conferências, tive-ram cargos governamentais, etc.

Não vamos questionar isto, cada umconsegue suas férias como pode. Só que-remos recordar que não fizeram coisaalguma nas comunidades nem trouxe-ram benefício algum às mulheres.

Este desencontro inicial marcou a re-lação posterior entre as mulheres zapatistase as feministas, e levou a uma confronta-ção subterrânea que, claramente, as femi-nistas imputaram ao machismo vertical emilitarista do EZLN. Isto chegou até o pon-to em que um grupo de Comandantas senegou a um projeto sobre direitos da mu-lher. Acontece que queriam dar uns cur-sos, planejados por cidadãs, ministradospor cidadãs e avaliados por cidadãs. As

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companheiras se opuseram, queriam serelas quem decidisse os conteúdos, quemministrassem o curso, quem avaliassemos resultados e o que seguia.

O resultado vocês poderão conhecerao assistir ao Caracol da Garrucha/ e es-cutarem, dos próprios lábios daszapatistas. essas e outras histórias. Talvezlhes ajudassem a entender melhor, levara disposição e o ânimo de compreender.Talvez, como Sylvia Marcos! no Israel dasbeduínas, entenderiam que as zapatistas.como muitas mulheres em muitos can-tos do mundo, transgridem as regras semdescartar sua cultura, se rebelam comomulheres, mas sem deixar de ser indíge-nas e também, não há como esquecer, semdeixar de ser zapatistas.

Faz uns anos, um jornalista me con-

2. Ver nota 1 desta Parte 11.3. Antropóloga, escreve sobre a história da psiqui-atria, medicina e da mulher na cultura popularpré-hispânico e contemporânea do México.Temcomo preocupação a recuperação das práticas tra-dicionais de saúde das mulheres indígenas mexi-canas. Foi diretora do Centro de InvestigaçãoPsychoethnological de Cuernavaca, México. (N.T.)

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tou que havia encontrado na estrada umasenhora zapatista e lhe havia dado "ca-rona" até o povoado. "Andava com unifor-me ou calça ou botas?", lhe perguntei pre-ocupado. O jornalista me esclareceu:"Não, carregava água, camisa bordada e es-tava descalça. Ainda levava seu filho carrega-do no rebuço", "Como soube então que erazapatista?", lhe insisti. O jornalista merespondeu com naturalidade: "é fácil, aszapatistas param diferente, caminham dife-rente, olham diferente", "Como?", reiterei."Pois como zapatistas", disse o jornalista esacou seu gravador para perguntar-mesobre a proposta de diálogo do governo,as próximas eleições, os livros que tenholido e outras coisas igualmente absurdas.

Contudo é necessário assinalar que estadistância tem diminuído graças ao traba-lho e compreensão de nossas companhei-ras feministas da Outra Campanha", parti-cularmente e de maneira destacada, nos-sas companheiras da Outra Jovel".

4. Ver nota 3 da Parte 1.5. Algo como a Outra Campanha dentro do territó-rio de Chiapas.

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Segundo minha visão machista. emambos os lugares tem se entendido a dife-rença entre umas e outras e, portanto, teminiciado um reconhecimento mútuo queacabará em algo muito diferente, que se-guramente poderá abalar não só o sistemapatriarcal em seu conjunto, mas tambémnós que apenas estamos entendendo a for-ça e o poder dessa diferença, e que nos levaa repetir, ainda que com outro sentido, o"Vive le difference!", Viva a diferença!

Dessa tensão que, paulatinamente, seconverte em liga e ponte, resultará umnovo calendário em uma nova geografia.Um e uma onde a mulher, em sua igual-dade e em sua diferença, tenha o lugarque conquiste nessa sua luta, a mais pe-sada, a mais complexa e a mais contínuade todas as lutas anti-sistêmicas.

***

Nossos mais velhos sábios contamque os deuses mais primeiros, os quenasceram o mundo, fizeram a cor ama-relo a partir do riso das meninas e dos

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meninos. Recordando isto, decidimoscontar-lhes um conto para menores deidade, mas que os maiores terão de es-cutar porque ... porque ... bem, porquepegaria muito mal que saiam antes quetermine esta sessão do colóquio.

Agora, se forem sair, eu peço que nãosejam malvados e o façam com discrição paraque os organizadores não se constranjam.

Bem, para os que ficam, aqui está o conto ...Anteriormente contei isto, assim so-

mente repetirei brevemente a história deDezembro. Ela era uma menina, assim,pequenina. Nasceu no mês de novembroe, como seus pais só falavam línguaindígena, fizeram uma confusão quan-do foram registrá-Ia. O tabelião pergun-tava atropeladamente onde nasceu,quando nasceu, em que mês estamos (éque andava meio de ressaca) e coisas as-sim. Sua mãe estava apenas para respon-der o mês em que estávamos, quando odo registro civil voltou a perguntar comoiam chamá-Ia. "Dezembro", escutou o ta-belião e, se pois a escangalhar Roma,porque quando se deram conta já era

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complicado trocar os papéis. Assim que"Dezembro" se passou a chamar esta me-nina que nasceu em novembro. Segun-do os usos e costumes dos adultos, quan-do brigam com uma menina ou meni-no, não se lembram de seu nome, e co-meçam a dizer vários nomes até que acer-tam. No caso de Dezembro, as brigas erammenos rigorosas, porque a mãe começa-va por Janeiro, e quando chegava a De-zembro já havia esquecido porque estavaa brigar com a menina.

Em outra história, agora já mais ve-lha, Dezembro conheceu uma coruja ese fez amiga dela. Naquele então, resol-veu o desafio da flauta de brinquedo enão me lembro que outras travessuras amais fizeram.

Pois bem, aqui vai...

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Dezembro e a blstórla do Uno sem mãosUma tarde, quase noite, como esta que

anuncia chuva de luzes, andava Dezembrocaminhando sem motivos. Por acaso es-tava pensando em nada, só caminhavapegando pedrinhas e raminhos, e pendu-rava as pedrinhas em uma árvore, eamontoava os raminhos em um lado docaminho, e lhes colocava nomes: essa erauma "árvore de pedras" e aquela era uma"montanha de ramos". Ou seja, como sediz, Dezembro não só mexia seus pensa-mentos, mas também mexia o mundo.

Tinha, além disso, uns lápis de corque não sabia quem a havia presentea-do. Assim, quando não estava penduran-do pedras e amontoando ramos, Dezem-bro tirava os lápis de sua morraleta' e co-meçava a pintar com as cores que esti-vessem em sua mão.

Bem, pois acontece que assim anda-va Dezembro, cantando uma canção ao

6. Pequeno saco de pano ou couro utilizado paracarregar provisões e ferramentas. (N.T.)

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ritmo de corrido-cumbia-ranchera-nortefia, quando zaz!, ali estava parado,no meio do caminho, um livro.

Dezembro se pôs contente. Sacou suascores e foi muito decidida a agarrar o livropara enchê-lo de raios, bolinhas, palitos eaté um garrancho que se supõe, seria oretrato falado da Panfililla, que assim cha-mava sua cadelinha que era muito maissua mulinha (sem ofender as presentes).

Dezembro já se cercava do livro que estavano meio do caminho, já imaginava que aJunta de Bom Governo lhe dava permissãopara pintar um mural na parede da escolaautônoma, já se via pedindo a uma senhorasociedade civil que tirasse uma foto dela coma Panfililla, paradas junto ao mural, e jápensava que se por acaso não se parecessecom a Panfililla a pintura do mural, aí mesmopintava as correções. Não na parede da escola,mas no corpo da Panfililla, obviamente.

Tudo isto ia pensando Dezembro quan-do, ao aproximar-se para pegar o livrocom suas mãos, zas!, o livro abriu suascapa e começou a voar.

"Ora!", disse Dezembro, com um tom

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que não deixava dúvida de sua origemplebéia, "este livro avoa", O livro flutuouuns metros e pousou mais adiante, nomeio do caminho. Dezembro correu paraagarrar o livro, mas antes de chegar, elevoltou a voar. Dezembro pensou então queo livro queria brincar e também se pôs abrincar. Assim andava a menina corren-do de um lado ao outro com o livro voa-dor e, entretanto, a Panfililla já havia en-golido meia dezena de pedras e duas de-zenas de ramos, e havia ficado derruba-da, fazendo a digestão e, além disso, mo-vendo as orelhas de um lado ao outro,enquanto corria Dezembro atrás do livro.

Aí tardaram, mas chegou o momentoem que Dezembro se cansou e parou mui-to esgotada, estirada ao lado de Panfililla.

"E agora o que fazemos Panfililla?", per-guntou Dezembro.

E a Panfililla, somente, moveu a orelha,porque, todavia, estava tratando de digeriruma pedra de âmbar e não podia resmungar.

"Já tenho uma idéia", disse Dezembro, "voubuscar o senhor Coruja e vou perguntar a ele".

A Panfililla moveu as orelhas como se

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estivesse dizendo "vá, eu te espero aqui",enquanto isso olhava que, contudo, lhefaltava a metade do montinho de ramospara devorar.

Assim Dezembro foi visitar seu amigoCoruja. O encontrou sentado em cima de suaárvore, vendo uma revista com garotas nuas.

Aqui o Coruja interrompe o conto eesclarece ao respeitável público:

"Não acreditem no Sup, não era uma re-vista de garotas nuas, era um folheto delingerie, de Victoria Secrets, para ser mais exa-to. Não é o mesmo".

Bem, pois o Coruja estava vendouma revista de garotas sem i-nuas quan-do chegou Dezembro e aí do nada, semanestesia e sem pedir licença, soltou:

"Oi senhor Coruja, por que existem livrosque avoam?"

"Se diz 'voam' e não 'avoam'", corri-giu o senhor Coruja, e continuou: "E não,os livros não voam. Os livros estão nas livrari-as, nas bibliotecas, nos gabinetes dos cientis-tas e, quando ninguém lhes compra, nas me-sas do lado de fora dos colóquios".

"Existe um que voa sim", contes tou

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Dezembro, e em seguida lhe contou o quehavia passado antes com o livro voador.

a senhor Coruja fechou seu folhetode garotas em roupas de baixo, claro, nãosem antes marcar a página em que haviafechado, e disse muito decidido:

"Muito bem, vamos investigar, no maisme aguarde um momento porque tenho quepor uma roupa adequada".

"Bom", disse Dezembro e enquanto es-perava o senhor Coruja, se pôs a colocarnos ramos das árvores algumas pedrinhasque conseguiu resgatar da gula da Panfililla.

a senhor Coruja, enquanto isso,abriu um gigantesco baú e começou aprocurar, murmurando: "mmh ... chicote,não cinta-liga, tão pouco ...narguilé, me-nos mmh ... aqui está!", exclamou pron-tamente o senhor Coruja e tirou umpassamontanhas preto.

a vestiu e, tomando um cachimbo,se dirigiu a Dezembro e a perguntou:

"Bem, o que te parece meu disfarce?"Dezembro olhou estranhada e, depois de

um momento, disse: "de que estádisfarçado?""Como de quê? Pois de subcomandante!

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Se o livro me ver como coruja, não irá me dei-xar aproximar sequer, porque as corujas gos-tam de muitos livros, já os subcomandantesnão os usam nem para nivelar mesas".

Aqui o Sup interrompe para esclare-cer ao respeitável:

"Não acreditem no senhor Coruja, ossubcomandantes usam os livros, às vezes,quando a lenha não ascende... rr

Coff coff.Bom, pois lhes dizia que Dezembro e

o senhor Coruja disfarçado de subcoman-dante. desceram da árvore e se dirigiramaonde a menina havia deixado a Panfilillaesperando-lhe.

Quando chegaram onde estava a ca-chorrinha, a encontraram tratando, si-multaneamente, de roer a metade de umchinelo e de digerir a outra metade.

"Minhas pantufas totalmente Palácio!",exclamou escandalizado o senhor Coru-ja e começou a lutar com a Panfililla, tra-tando de pegar a metade da pantufa que,ainda, era a metade da frente, ou seja,que, contudo, podia passar como umapantufa versão minimalista.

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Dezembro o ajudou, e algo lhe disseao ouvido, bem à orelha de Panfililla queesta, imediatamente, soltou a metade di-anteira da pantufa do senhor Coruja.

"Uf]!", suspirou aliviado o senhorCoruja e, enquanto fazia a análise dosdanos, perguntou a Dezembro:

"0 que disseste para que ela soltasse?"Dezembro respondeu sem alterar-se:

"Que ia lhe dar a metade da outra pantufa"."Que?", gritou o senhor Coruja. "Mi-

nhas pantufas, meu bom nome, meu prestí-gio, meu status intelectual ... !"

Nisso, zas!, Dezembro descobriu,próximo de onde estava, o livro voador.

"Aí está",gritou Dezembroao senhor Coruja.O Senhor Coruja se acomodou como

pode no passamontanhas, acendeu o ca-chimbo e disse a Dezembro:

"Tu me esperes aqui, vou investigar".Chegou o senhor Coruja até onde es-

tava o livro voador, que não o reconhe-ceu por seu disfarce de subcomandante.

Como é sabido, os livros contam aossubcomandantes até o que não vem es-crito neles, assim que conversaram

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demoradamente.Dezembro já estava quase dormindo

quando o senhor Coruja regressou e disse:"Já está. O mistério está resolvido"."Que passou?", perguntou Dezembro

bocejando."Elementar, minha querida Dezembro. Se

trata, só e simplesmente, de um caso extremo de'livro sem mãos'", disse o senhor Coruja.

"Livro sem mãos? E o que é isso?", per-guntou Dezembro.

"Pois é um livro que não quer estar em umaestantede livrariaou biblioteca,ou em um gabinete,ou arrumado em um canto, ou nivelando umamesa. É um livro que quer estar nas mãos dealguém. Que o leia, que o escreva,que o pinte, queo queira", explicou o senhor Coruja.

"Eu!", disse Dezembro alegremente."Estás segura? Um livro não é qualquer

coisa, não é como um dinossauro come-pantufas", disse o senhor Coruja enquan-to olhava com rancor para Panfililla, quejá estava mordiscando o cachimbo dodisfarce de Sup do senhor Coruja.

"Não é dinossauro, é dinossaura, e sim, euestou segura", respondeu decidida Dezembro.

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"Bom, prova para ver se convence a ele",disse o senhor Coruja enquanto tratavade arrebatar o cachimbo de Panfililla.

"E como faço?", perguntou Dezembro."Muito simples, aproxime-te, mas não muito

e estende tuas mãozinhas. Se te aceita, então eleirá até você", lhe indicou o senhor Coruja.

"Sai", disse a Panfililla, perdão, a De-zembro.

Limpou as mãos na água porque serecordou que não as havia lavado, se apro-ximou pouco a pouco do livro voador e,quando acreditou estar suficientementeperto para que o livro viesse sem se es-pantar, estendeu suas duas mãozinhas.

O livro abriu então suas capas, comopara voltar a voar, mas duvidou.

Dezembro estendeu mais suas mãozi-nhas e disse:

"Vel11,vem, vem"O livro começou então a voar, mas

no lugar de afastar-se, foi pousar nasmãozinhas de Dezembro.

A menina se pôs toda contente e abra-çou o livro contra seu peito, tanto que olivro soltou um peidinho: prttt.

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o senhor Coruja aplaudiu satisfeitoe a Panfililla não latiu, mas arrotou comaroma de pantufa mal digerida.

O senhor Coruja foi então continuarvendo as garotas ... perdão, a ler e estu-dar muito.

Dezembro se pôs a colorir o livro comseus lápis e não viveram muito felizesporque, por um descuido, a Panfililla ras-gou a contracapa, o índice, os anexos esete pés de página.

Tan- tan.Moral: não deixem nada ao alcance

das cachorrinhas, podem ser dinossaurasdisfarçadas.

E já, espero que Daniel Viglietti lhesfaça esquecer logo esta comunicação tãopouco séria, e que as meninas a recor-dem ... para todo o sempre.

Obrigado.

Subcomandante Insurgente Marcos.San Critóbal de Las Casas, Chiapas,

México.

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Ill-Tocar o verdeOCalendário e aGeografia da destruição

"Não basta enterrar o capitalismo, éprecisosepultá-lo virado de barriga pra baixo.

Para que, caso queira sair,se enterre mais ainda"

Dom Durito de Lacandona.

Várias vezes têm se dito aqui que opoderio norte americano está liquidado,inclusive se tem adiantado as saudaçõespelo óbito do capitalismo como sistemamundial. Na seção de anúncios fúnebrese lugares na lista de espera para a funerá-ria da história, tem se incluído: o socia-

*. Participação do Subcomandante InsurgenteMarcos, no segundo dia do Colóquio InternacionalIn Memorian Andrés Aubry, sexta-feira 14 de de-zembro, que ainda contou com a presença de Gil-berto Valdés e Jorge Alonso.

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lismo, a economia política, o regime po-lítico no México e a capacidade militar doopressor mundial, nacional e local.

Convidam-nos a deixar de nos preo-cuparmos com o que nos explora, des-poja, reprime, despreza. Exortam-nos adiscutir e acordar com o que vem depoisdeste pesadelo.

Enfim, os letreiros de "FECHADO" e"EM PROCESSO DE DEMOLIÇÃO" quese têm colocado nos edifícios, nos permi-tem a desconfiança cultivada com esme-ro ao longo de 515 anos, a nós, zapatistas,nos parecem ainda não só sólidos, mas empleno funcionamento e prosperidade.

A soberba costuma ser má conselheiraem questões práticas e teóricas. Foi elaquem alimentou aquilo de "não tiraramnenhuma pena do meu galo", "as pesquisasme favorecem por 10 pontos", "sorria, vamosganhar", "Oaxaca não será Aienco'",

1. Atenco é um dos estados mais pobres do Méxi-co, pretendeu-se construir um Aeroporto Interna-cional, mas seus habitantes, organizados na Fren-te de Luta pela Terra, impediram mediante ummovimento de resistência civil que obrigou ao

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Não será uma presunção parecidacomo essa que nos dará ânimo e nos farásentar e ver o cadáver do inimigo passar.

Mais adiante, em outra destas sessões,assinalaremos o tema guerra. Agora que-remos nos focar mais detidamente em as-sinalar algumas destruições que vêm ope-rando e que, diferente das mencionadasacima, podem ser constatadas "in situ" (Ora!Latim! Agora sim me vi muito acadêmico).

Mais que uma descrição ou uma rela-ção em lista, queremos nos deter em umaspecto que se costuma passar ao largo nes-

governo federal a suspender definitivamente aconstrução. Contudo, a resposta governamental sedeu na forma de violência descomunal e violaçãodos direitos humanos, com efetivos policiais a es-pancar, prender e violar as pessoas indiscri-minada mente, como se pode observar nodocumentário Romper el Cerco (disponível emwww.deriva.com.br). O documentário, além demostrar os ocorridos durante os primeiros dias demaio de 2006, também mostra a falta de neutrali-dade dos meios de comunicação de massa, que cri-aram um ambiente propício, por meio do cerco in-formativo, para legitimar a brutal operação policial.Por sua vez, em meados de junho de 2006, surgiuna cidade mexicana de Oaxaca, capital do Estado

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sas outras destruições. Falo das destruiçõesda natureza, seja via desflorestamento, con-taminação, desequilíbrio ecológico, etc.,assim como as mal chamadas "catástrofesnaturais". E digo mal chamadas, porquecada vez é mais evidente que a sangrentamão do capital acompanha estas desgraças.

Já em outras ocasiões temos desta-cado que o capitalismo, como tendênciadominante nas relações sociais, tudoconverte em mercadoria; em sua produ-ção, circulação e consumo, o lucro é o

de mesmo nome, a Assembléia Popular dos Povosde Oaxaca (APPO), fruto de um vigoroso movi-mento social de massas que temporariamente le-vou à paralisia a maioria dos organismos de esta-do daquela região, ao levar adiante uma vigorosacampanha de tomada das ruas e instalações degoverno, no que ficou conhecida como a Com unade Oaxaca, uma luta que evoluiu de uma greveprofessoral (duramente reprimida) para modelosde autogoverno e a exigência da destituição dogovernador. Para um ótimo trabalho de cronologiae análise do conflito em Oaxaca, ver o artigo deCássio Brancaleone: Em busca do "governo bara-to"? A Assembléia Popular dos Povos de Oaxacacomo experimento de (re )criação política, publi-cado na Revista Lutas Sociais, n. 19-20. (N.O).

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eixo articulador de sua lógica; e a vonta-de de lucro busca também a "aparição"de novas mercadorias, e a criação ouapropriação de novos mercados.

Talvez nos rotulem de demasiado "orto-doxos" ou "clássicos" (algo de que, como temsido evidente nestes 14 anos, seguramente sepode acusar o neozapatismo), se insistimosnisto de que ao capital interessam os lucros,por qualquer meio e de qualquer forma, todoo calendário e em toda a geografia.

Os entendemosMas pedimos a quem vem de cima que,

pelo menos por um momento, deixem delado suas leituras de "Vuelta". "LetrasLibres", "Nexos", "TV y Notas" e as con-ferências magistrais de AI Gore; deixemdescansar uns minutos seus fantasmas doGulag e do Muro de Berlim; apaguem ummomento as velas acendidas ao ex-candi-dato "menos mal"; coloquem em "standby" suas análises que não sabem diferen-ciar uma mobilização de um movimento;e aceitem que, talvez, seja provável, sejaum supositório, pode ser que, por supo-sição, o capital pretenda converter tudo

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em mercadoria e esta em lucro.Revisem agora, detalhadamente, cada

uma das distintas destruições que o pla-neta padece e concluirão como apareceo capital usufruindo destas. Primeiro nascausas da desgraça, e depois em suasconseqüências.

***

Tabasco e Chiapas.As geografias e oscalendário da destruição

Há várias semanas que o Rio Grijalva eo Rio Carrizales transbordaram, colocandosetenta por cento do território do sudestedo estado mexicano de Tabasco debaixo deágua, parece que se abriu aí uma nova eta-pa: a da reconstrução e das justificativasinaceitáveis. O saldo é arrepiante: um mi-lhão de afetados e, ao menos, oitenta milresidências destruídas, além do perigo la-tente de um novo transbordamento.

No governo do panista Felipe Calderónevitou-se uma discussão séria sobre o quemotivou a inundação - através do argumen-

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to de "não politizar a situação". Em 8 denovembro passado, o secretário de Governodeclarou que: "a emergência é a emergência etem que ser resolvida, não encontrar culpados".

Claro que não se pode encontrar cul-pados se não se faz uma avaliação sériado acontecido. A realidade é que, con-forme a população se sente mais segurano que concerne a sua integridade físi-ca, a discussão sobre o que passou é otema central das conversas, não pode-mos dizer que são conversas de mesas-porque não há mesas, somente nos re-fúgios, nas ruas e nos campos.

Da mesma forma, nas esferas das di-versas correntes políticas do país o temacomeça a se manifestar, nem sempre demaneira desinteressada. Deste então, é umabsurdo pedir que não se politize o quesucedeu, quando por trás de tudo existeuma série de políticas públicas que têmpermitido, em paralelo às causas naturais,a situação que hoje se vive em Tabasco.

Felipe Calderón, ao grito de "vi odocumentário de AI Gore", esconde-se em

2. No original: conversa de sobremesa.(N.T)

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uma explicação muito na moda em nos-sos dias: a mudança climática: "não nosequivoquemos, a origem da catástrofe está naenorme alteração climática" disse.

Assim não é necessário buscar ou lo-calizar uma responsabilidade concreta.Parece que, para o autodenominado pre-sidente, a mudança climática é uma tra-gédia quase divina, não tem nada a ver como modelo de desenvolvimento aplicado eque se continua aplicando. É muito pro-vável que esta inundação tenha ligaçãocom essa mudança climática, o que seriaimportante elucidar são as razões disso.

Cecília Vargas, jornalista de A Verdadedo Sudeste, nos disse: "uma das causas dainundação é a venda de terras e a construção decasas e lojas comerciais nas zonas pantanosas,que são terraplanadas, tapando assim os lençóisreguladores da cidade e impedindo a circulaçãoe absorçãodeágua. Em zonas aterradas (ou ater-ros) se constróem centros comerciais como WalMart, Sam 's, Chedrahui, Fábricas de Francia,Cinépolis (construídos durante os governos deRoberto Madrazo eManuel Andrade)".

Ou, como assinalam os habitantes in-

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dígenas da zona rural: "dizem os nossosvozinhos que antes chovia mais ou igual, masnão havia inundação, por que agora inunda?Dizem que é por causa das novas construçõesque tapam os caminhos da água".

Posteriormente, o senhor Calderón res-ponsabilizou, no cúmulo da estupidez, a luapelas tremendas marés que provocou.

No entanto, Maria Esther, habitanteda cidade de Villahermosa e companhei-ra da Outra Campanha, utiliza o sensocomum - tão alheio aos "especialistas"-, e assinala um fato estranho: "a Lagu-na de Ias Ilusiones, que se encontra em plenavillahermosa. nunca transbordou, e subiuapenas seu nível, a diferença de outros anos.Se a origem fundamenta I da catástrofe tivessesido as chuvas, essa lagoa teria transbordadoe isso não ocorreu".

E concordam a jornalista CecíliaVargas e María Esther: "as inundações fo-ram um crime, porque houve a abertura dascomportas da represa Peiiitas quando já nãodava mais, e foi esta água que inundouVillahermosa", Adiante, citam um docu-mento do Comitê Nacional de Energia, de

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30 de outubro, onde se assinala que "a re-presa Pehitas está à beira do colapso porque sóusa a água para geração de eletricidade nas noi-tes, enquanto a base da geração elétrica é pormeio degás enviado pelas indústrias privadas".Por trás disto está a Repsol, a multinacionalespanhola que "aonde pisa não volta acrescer grama". No documento, comosempre, é advertido que "é necessário abriras comportas, porque os limites da represa estãono máximo" e exigido da Secretaria deEnergia a geração permanente de energiapor meio das hidroelétricas.

O fato concreto é que andando emVillahermosa constata-se que a zona ho-teleira, a colônia Tabasco 2000 e outraszonas "ricas" da cidade não foram afeta-das, graças às obras que, em anos passa-dos, aí fizeram para prevenir inundações(a borda de contenção do Rio Carrizal).

Em meio às catástrofes se mede a es-tatura dos políticos ... e dos analistas. Estaocasião não tem sido exceção. Em meioa tragédia tem ficado claro que os trêsprincipais partidos do México comparti-lham a responsabilidade do que ocorreu.

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Tanto a presidência da república nasmãos do direitista PAN, como o governodo estado nas mãos de um militante docorrupto Partido Revolucionário Institu-cional, como as prefeituras municipais,majoritariamente nas mãos do suposta-mente esquerdista Partido da RevoluçãoDemocrática, têm evidenciado seu pro-fundo desapego da sociedade.

O exemplo mais claro desta situaçãose viu em 31 de outubro, quando oautodenominado presidente do México,Felipe Calderón, chegou a Tabasco parafazer uma visita para avaliar a situação.Vendo que havia pessoas que estavamcolocando sacos com areia nas bordas dorio para criar um dique, decidiu ajudar edurante 15 minutos se pôs a trabalhar,junto com sua esposa e alguns membrosde seu gabinete. Esse tipo de atitudes, tãopróximas do que era a forma de gover-nar do PRI, tinham forte impacto sociale midiático, mas agora somente provo-cou indignação e raiva.

Pior foi que ao ver que havia muitagente apenas olhando e perante os "solu-

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ÇOS", do governador, Felipe Calderón ga-nhou coragem e ameaçou aos que so-mente olhavam dizendo: "Ponham-se aajudar ou mando pegar-losr", e imediata-mente ordenou aos militares que fossemforçar os homens a ajudar a encher os sa-cos de areia. As pessoas não se alteraram,e o olhar adquiriu um sentido de despre-zo, os soldados tampouco se moveram,entendendo que aquela ordem era ateargasolina ao fogo; a conseqüência disto foique o suposto presidente se retirou do lu-gar e deu por terminado seu trabalho dereconstrução. Seus quinze minutos de tra-balho não se converteram em quinze mi-nutos de glória, mas pelo contrário, devergonha. Um dos que estavam olhandocomentou depois, levantando a voz semnenhum temor: "éfácil vir aqui 15 minutose tirar uma foto, para que osgrandes noticiári-os de televisãogravem, tomar um banho depovoe logo ir para sua casa, jantar e dormir como-damente com sua família" .

A várias semanas do início da tragé-dia de Tabasco, o que chama atenção doshabitantes desse lugar é a grande solida-

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riedade que sua situação tem despertadoentre o povo do México. A maior partedos alimentos, bebidas e medicamentosque lhes têm chegado são recolhidos en-tre a sociedade civil mexicana.

Enquanto os carregamentos provenien-tes de diferentes governos, seja o federal,os estaduais ou os municipais, são invaria-velmente etiquetados com os logotipos queidentificam os partidos políticos no qualmilita o funcionário, a ajuda cidadã temcomo característica o anonimato. Em nadasemelhante com as desavenças entre o go-verno federal e o distrito federal, nem FelipeCalderón e nem Marcelo Ebrard se impor-tam com a situação dos atingidos, a únicacoisa que lhes interessa é tirar fotos: umenchendo sacos de areia com a habilidadede um advogado egresso de uma universi-dade privada, e o outro dando bandeiradade saída, com cara de bobo, rodeado de fo-tógrafos e jornalistas.

Mas, houve outra ajuda presente des-de os primeiros dias nas comunidades maispobres de Tabasco, as que fazem fronteiracom o estado de Chiapas: a ajuda que se

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fez de povoado pobre a povoado pobre.Nos narra uma habitante desta região:

"Houve um interesse por parte dos com-panheiros zapatistas de saber como estávamos,em que condições estavam cada um. Nos dis-seram que se necessitássemos sair poderíamoscontar com os municípios autônomoszapatistas como albergues seguros.

Eram dias difíceis; não havia comuni-cação, cortaram as linhas de telefone, asestradas, e a água potável. Inclusive emmuitos lados não havia luz, escasseavamos alimentos e a água para consumo, masem meio a tudo isso, tínhamos a certezade saber que contávamos com teto e co-mida segura nos municípios autônomos.

Não foi fácil a comunicação entrenós, mais ou menos sabíamos onde ha-via inundado pela localização de cadaum, sabíamos que estavam com vida, ain-da que [padecendo] das dificuldades des-te desastre provocado.

Então, as respostas foram ao estilozapatista: rápidas, efetivas e seguras. Oscompanheiros das bases de apoio con-vocaram em Tila, Chiapas, e nos muni-

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CIpIOS autônomos a solidariedadeconosco. Pode-se dizer que os três ca-minhões de carregamentos que vieramde Tíla. no dia 3 de novembro, foramuma das primeiras ajudas que o estadorecebeu, quando não tínhamos comuni-cação telefônica e nem passagem nasestradas salvo para veículos pesados.

Sabíamos que, junto com a ajuda da soci-edade civil e da paróquia de Tila, vinha o apoiodas bases zapatistas da zona norte. Sabíamosque os companheiros trabalharam dia e noitepara promover a provisão. E a ajuda foi nãosó oportuna, mas maravilhosa. Quando nãohavia como cozinhar nas casas, só em algunsalbergues, chegaram três caminhões cheios depozol (bebida típica dos indígenas tantode Chiapas como de Tabasco), torradas, etodos nossos alimentos tradicionais ao contrá-rio dos governos que nos davam horríveis so-pas instantâneas. Efetivamente foram os pri-meiros a chegar e todo mundo se admirava eagradecia este apoio tão oportuno e além dissotão de baixo, tão conhecedor de nossos alimen-tos, que a gente já sentia falta, o pozolito. atortilla. Logo, dois dias depois, outros três ca-

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minhões e assim várias viagens".E, logo, cheia de emoção a habitante

narra: "A região de Tacotalpa estava sem co-municação, não entravam nem caminhõespesados. Os companheiros das bases de apoiozapatista nos disseram que não ficássemos tris-tes, pois ia chegar apoio especial para eles efoiassim que, em meio da serrania de Tacotalpa,ante o olhar assombrado dos povoados vizi-nhos, se viu descerda montanha uma fila lon-ga de mais de 50 homens, 30 mulheres emuitas crianças, meras bases de apoiozapa tis tas, que em dois dias desceram, carre-gando em seus ombros por várias horas, sacoscom milho, feijão, torradas, pozol, pinol, açú-car, laranjas, tangerinas, limões, abóbora,mandioca e água engarrafada ou fervida dosriachos da montanha, para os companheirose companheiras tasbaquefias ... Isto através doMunicípio Autônomo El Campesino, mas sa-bemos que houve apoio de outros municípiosque de bom coração deram o que tinham ecomo sempre o que tinham era muito grande,muito valioso, capaz de romper qualquer difi-culdade por maior que pareça.

Para os que presenciaram, foi algo

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maravilhoso ver homens, crianças, mu-lheres, anciãos da cor da terra trazer osustento que necessitamos aos compa-nheiros de cá deste lado da zona de bai-xo. Depois chegaram outras duascamionetes com ajudas similares. Masnão só vinham nos dar ajuda, tambémvinham escutar nossa dor, que dissemoso que estava passando, como estávamos,o que realmente provocou tudo isto,como é que se estava vivendo após odesastre. Que arrancássemos a nossa dor,para começar a curá-la.

Não há palavras com as quais possamosagradecera todos e a cada um dos companheirosda base de apoio zapatista, que com bom cora-ção e com verdadeiro humanismo compartilha-ram seu pão, sua água e sua luta para construirum mundo onde caibam muito mundos."

Claro, nada disto apareceu nos gran-des meio de comunicação mexicanos.Além das pistas de patinação, o que in-sistentemente se diz nestes meios é quetoda classe política se acusa entre si porlucrar com a tragédia. Assim, por exem-plo, o ministro do Trabalho se confron-

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tou com o Chefe de Governo da Cidadedo México, o primeiro chamou de ruimao segundo, e este o respondeu chaman-do-lhe de tonto. O interessante é queambos tinham razão.

Aqui vocês observam uma diferençafundamental e irreconciliável entre o quenós buscamos, no movimento que aindase chama A Outra Campanha, e os que seaglutinam em torno ao lopezobradorismo',

Eles querem um mundo com pistasde gelo para patinação, praias artificiais,viadutos de dois andares, e o glamour doprimeiro mundo.

Nós queremos um mundo como esse quedesce da montanha zapatista para ajudar onecessitado, ou seja, um outro mundo.

***

3. Referente ao político mexicano Andrés ManuelLópez Obrador derrotado nas eleições presidênci-as de 2006 por meio ponto percentual. a qual acu-sa de terem sido fraudulentas.

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Algo de Geografia e Calendário básicosExiste no Caribe, estendida ao sol como

um verde jacaré, uma espichada ilha. "Cuba"é como se chama o território, "Cubano" écomo se chama o povo que aí vive e luta.

Sua história, como a de todos os po-vos da América, é uma longa trança dedor e dignidade.

Mas há algo que faz esse solo brilhar.Se diz, não sem verdade, que é o pri-

meiro território livre da América.Durante quase meio século, esse povo

tem sustentado um desafio descomunal:construir um destino próprio como Nação.

"Socialismo" tem chamado este povoo seu caminho e motor. Existe, é real, sepode medir em estatísticas, pontospercentuais, índices de vida, acesso à saú-de, à educação, à moradia, à alimentação,desenvolvimento científico e tecnológico.Quer dizer, que se pode ver, ouvir, olhar,degustar, tocar, pensar e sentir.

Sua impertinente rebeldia lhe temcustado o bloqueio econômico, as ínva-

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sões militares, as sabotagens industriaise climáticas, as tentativas de assassina-tos contra seus líderes, as calúnias, asmentiras e a mais gigantesca campanhamidiática de desprestígio.

Todos estes ataques provêm de umcentro: o poder norteamericano.

A resistência deste povo, o cubano,não só exige conhecimento e análise,mas também respeito e apoio.

Agora que tanto se fala em defuntos,é bom recordar que há 40 anos tentamenterrar Che Guevara; que Fidel Castrojá foi declarado morto várias vezes; quea Revolução Cubana tem sido marcada,inutilmente até agora, com dezenas decalendários de extinção; que nas geogra-fias onde se traçam as estratégias atuaisdo capitalismo selvagem, Cuba não apa-rece, por mais que se empenhem.

Mais do que com ajuda efetiva, comosinal de reconhecimento, de respeito e deadmiração, as comunidades indígenaszapatistas têm enviado um pouco de milhonão transgênico e um pouco menos de ga-solina. Para nós, tem sido nossa forma de

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fazer com que este povo saiba que enten-demos que as mais pesadas das dificulda-des que padecem têm um centro emissor:o governo dos Estados Unidos da América.

Como zapatistas pensamos que deve-mos estender o olhar, o ouvido e o cora-ção a este povo.

Não vai ser que, como a nós, se diráque o movimento é muito importante eessencial, e blâ, blá, blá; e quando, comoagora, somos agredidos, não há nenhu-ma linha, nenhum pronunciamento,nenhum sinal de protesto.

Cuba é algo mais que o estendido everde jacaré do Caribe.

É um referencial. cuja experiênciaserá vital para os povos que lutam, so-bretudo, nos tempos de obscurantismoque agora se vive e se alargarão ainda poralgum tempo.

Ao contrário dos calendários e geogra-fias da destruição, em Cuba há um calen-dário e uma geografia da esperança.

Por isto agora dizemos, sem afetação,não como ordem, mas com sentimento:Que viva Cuba!

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Muito agradecido.

Subcomandante Insurgente Marcos.San Cristóbal de Las Casas, Chiapas,

México.Dezembro de 2007.

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ps.: Que confirma que a Lua é rancorosa e contaa lenda da origem de Sombra, o guerreiro:

Sombra, o levantador de LuasConto a vocês como me contaram.

Faz muito tempo, não há calendário queo localize. O lugar em que ocorreu nãotem geografia que assinale. Sombra, oguerreiro, todavia não era guerreiro nemera ainda Sombra. Cavalgava a monta-nha quando lhe deram notícia.

"Onde?" perguntou."Ali, onde é a fenda da montanha" - foi

a vaga referência que lhe deram.Sombra cavalgou, contudo ainda não

era Sombra. A notícia percorria ascanhadas de extremo a extremo:

"A Lua. Caiu. Assim do nada. Como quedesmaiou e veio a cair. Devagarzinho veio,como não querendo. Como não me olhem.Como não se dêem conta. Mas bem que a olha-mos. Como que parou sobre a colina e logofoirodando até o fundo do barranco. Ali foi. Cla-ro que vimos. Era luz, pois. Era a Lua."

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Chegou Sombra à borda do barran-co, se apeou do cavalo. Devagar desceuao fundo. Lá encontrou à Lua. Com olaço a rodeou. Sobre suas costas a carre-gou. Subiram Lua e Sombra montanhaacima. Sombra sobre o caminho, Luasobre Sombra. Chegaram até a pontamais alta da colina. Para lançá-Ia daí denovo ao céu, disse Sombra. Para que an-dasse a Lua novamente nos caminhos danoite. Não quero, disse Lua. Aqui queroficar, contigo. Tíbia será minha luz parati, na noite fria. Fresca no ardente dia.Tu me trará espelhos que multipliquemmeu brilho. Contigo ficarei, aqui. Som-bra disse não, o mundo, seus homens emulheres, suas plantas e animais, seusrios e montanhas, da Lua necessitampara melhor ver seus passos na escuri-dão, para não perder-se, para não esque-cer quem são, de onde vêm, e aonde vão.Discutiram. Tardaram ali. Os murmúri-os eram luzes morenas, sombras lumi-nosas. Muitas outras coisas disseram.Tardaram. De madrugada se ergueuSombra e com a correia lançou A Lua de

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novo ao céu. A Lua irritada ia, incomo-dada. No alto, no lugar que os primeirosdeuses lhe deram, ficou a Lua. Desde aía Lua maldisse a Sombra. Assim disse:

"De agora em diante Sombra serás. Luzesverás,mas não serás.Sombra caminharás. Guer-reiro serás. Não haverá para ti rosto, nem casa,nem repouso. Só caminho e luta terá. Vencerás.Encontrará, sim, a quem amar. Teu coraçãofa-lará em tua boca quando 'te quero' dizer. MasSombra seguirás e nunca encontrarás quem teame. Buscarás, sim, mas não encontrarás oslábios que saibam dizer 'tu'. Assim serás, Som-bra, o guerreiro, até que já não sejas".

Desde então, Sombra é quem agoraé: Sombra, o guerreiro.

A saber quando e onde foi e será.Todavia falta fazer esse calendário,

todavia falta inventar essa geografia.Todavia falta aprender a dizer "Tu".Todavia falta o que falta ...Até amanhã.

Sup.

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IV- Degustar o caféOCalendário e a Geografia da terra

"À terra, o indígena a vê como mãe.O capitalista, como um que não tem mãe".

Dom Durito de Lacandona.

Algumas anedotas pouco científicasNo dia de ontem, mediando o Sol,

chegou com sua banda o Daniel Vigliettique, como todos sabem, é um cidadão daAmérica Latina de baixo que viaja com umpassaporte uruguaio e um violão subver-sivo. Houve música e palavras. Com elemandamos cumprimento a MarioBenedetti, outro dos culpados de frustrarminha carreira como músico de ritmosdesconcertantes. O Viglietti nos contou

*. Participações no dia 15 de dezembro ao meio-dia,que contou com as presenças de Ricardo Gebrim(membro do MST), François Houtart e Peter Rosset,além da presença do Subcomandante Marcos.

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que o recolhedor das chuvas da memóriade baixo, Eduardo Galeano, esteve enfermo,mas que já estava melhor. Mandamosparabéns a Don Eduardo e a oferta de que,em caso de uma recaída, o atenderemos naClínica de Oventik, onde não se abunda amedicina, mas sim a morena alegriazapatísta. que não cura, mas alivia.

Não é por presunção, mas o Viglietti eeu compusemos juntos alguns versos parauma de suas canções e, além disso, nóstiramos um dueto, quer dizer, ele cantoue eu sustentava o caderno com as anota-ções. A tenenta insurgenta nos acompanhounos coros e sabia todas as canções semnecessidade do caderno. Na hora das con-fissões inconfessáveis, supôs ele que euna realidade era, por estas travessuras dageografia de baixo, um uruguaio nascidoem Chiapas. Estiveram também RaúlSendicl e meu general Artígas-, mas não

1. Nascido no Uruguai em 1926, foi importantefigura política que liderou o grupo Tupamaro nalutá armada contra a ditadura no seu país.2. José Gervasio Artigas, herói nacional uruguaio,sendo um dos grandes responsáveis pela inde-pendência do país.

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estou autorizado a revelá-lo. E o Che semanifestou muito ligeiramente, incorpo-rado e brincalhão sobre uns versos desonhos e madrugada.

Quando chegamos ao momento de "ADesalambar", Daniel nos explicou que,quando a cantou pela primeira vez a seupai, ele lhe advertiu das conseqüênciasde cantá-Ia no campo. "Se tirar a cerca vaiprovocar uma baderna, Daniel, porque ogadovai sair e ir a quem sabe aonde, ouse revol-tar" lhe disse, mais ou menos assim.

Foi então que eu lhe contei uma pe-quena parte do que agora lhes conto maisextensamente:

Pelas bandas do Caracol de LaGarrucha, na região da Selva Tzeltal(que, certamente, é onde será celebradoo Encontro das Mulheres Zapatistas comas Mulheres do Mundo, nos últimos diasdeste mês de dezembro), antes do levanteexistiam várias fincas, é assim que oscompanheiros chamam as fazendas.

Localizadas nos melhores terrenoselos vales da Selva Lacandona, com águaabundante, solos planos e férteis, estra-

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das próximas, pistas de pouso privadas,estas fazendas concentravam milhares dehectares e se dedicavam quase exclusi-vamente à pecuária extensiva.

As grandes árvores: as ceibas, oshuápacs, os cedros, os magnos, os acotes,os homiquillos, os bayalté, as nogueiras; ca-íram para dar lugar aos bovinos que da-vam lucros para as associações pecuaristas,os frigoríficos de carne, os comerciantes eos governos de todos os níveis.

Os indígenas (zapatistas, nãozapatistas e anti-zapatistas) foram dei-xados de lado nas encostas de serras eno alto das colinas, em terrenos pedre-gosos, sempre em grandes inclinações.Aí deviam fazer seus cafezais em peque-nos clarões que a montanha, generosacom seus guardíões. abria de tanto emtanto em suas irregulares chateações. Ospés de milho cresciam entre pedras e es-pinhos, agarrando-se como podiam nasinclinadas costas que caíam do despe-nhadeiro, como se a montanha tivessese cansado de estar de pé e prontamentese deixara cair, do nada, e no mais, para

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se assentar nas terras onde o mandãomandava e aquela de "senhor de forca enavalha" não era uma imagem literária.

Nos pequenos cafezais trabalhava todaa família. Gente de idade, homens, mu-lheres, meninas e meninos podavam, lim-pavam, secavam, alinhavam e empacota-vam o café em grandes costais chamadospergamino. Para comercializá-lo, os mes-mos anciões, homens, mulheres e crian-ças deviam carregá-lo, se tinham um pou-co de dinheiro, em seus animais de car-ga. Mas como a carência também era deanimais, ancião, homens, mulheres e cri-anças eram os animais de carga que, so-bre seus ombros, levavam 30, 40 quilosde café pergamino. 2 ou 3 jornadas de 8 a10 horas de caminho cada uma. Chega-vam à margem da estrada e esperavam umcarro (é assim como chamam os cami-nhões de três toneladas), que lhes cobra-vam o equivalente a 10 ou 15 quilos decafé que haviam levado no lombo.

Ao chegar à sede do município, osçoiotes (assim os companheiros chamamaos intermediários) cercavam os veículos

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e praticamente assaltavam os indígenas,mentindo sobre o peso e o preço do café,aproveitando que o castelhano é poucoou nulo nestes indígenas. A constataçãode que eram enganados fracassavacontra o argumento do coiote: "se nãoqueres, volte". O pouco pago era gastoem comida e nos bordéis, os quaistinham na época de colheita do café suamelhor "temporada".

De colheita em colheita de café, osindígenas, homens, mulheres e crianças,deviam trabalhar em seus milharais demontanha, e empregar-se como peõesnas grandes fazendas que se faziam do-nas dos grandes vales que os rios Jatatée Perlas abriam por entre essas monta-nhas do sudeste mexicano.

Os finqueros, que é como os compa-nheiros chamam os fazendeiros, segui-am um mesmo padrão para a instalaçãode suas possessões. A Casa Grande, querdizer, a casa onde o finqueiro habitavanos dias em que estava em suas posses-sões, era feita de material de construção,ampla e com grandes corredores rode-

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ando-a. De um lado tinha a cozinha.Depois havia um amplo espaço cercadopor arames farpados. Fora da cerca quedemarcava os limites do espaço do "se-nhor", viviam os peões com suas famíli-as, em casas de adobe ', madeira e teto depalha. Ao espaço da "Casa Grande", querdizer, dentro da cerca de arame farpado,só podiam passar o capataz, e as mulhe-res que se encarregavam da cozinha e dalimpeza da casa e das coisas do senhor.Também costumavam entrar, de noitequando a senhora do "senhor" não es-tava, as noivas sobre as quais o finqueroexercia o chamado "direito de pernada"(que consistia no direito que o fazendei-ro tinha de desvirginar a mulher antesde ser desposada).

Eu sei que parece que estou contando umanovela de Bruno Traven ou que estou tomandoum texto do final do século XIX, mas o calendá-rio em que ocorria isto que lhes conto marcavadezembro do ano de 1993,faz apenas 14 anos.

3. Tijolo, preparado com argila crua, secada ao sol,ê que também é feito misturado com palha, parase tornar mais resistente; tijolo cru". (N.T.)

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Os peões indígenas não só haviamcolocado a cerca que os separavam do"senhor", também cercavam os grandespastos em que pastavam os gados quedepois seriam suculentos filés e compli-cados refogados e ensopados nas mesasdos ricos de San Cristóbal de Las Casas,de Tuxtla Gutiérrez, de Comitán, da Ci-dade do México.

A cerca de arame farpado não era sópara controlar o gado do finquero. Eratambém, e, sobretudo, um sinal destatus, uma linha geográfica que sepa-rava dois mundos: o do caxlán ou ricobranco, e o do indígena.

Com métodos que dariam pena àBorder Patrol" e ao Minutternan", os fa-zendeiros criaram e aplicaram sua pró-pria lei aduaneira: se um animal, dospoucos que tinha nos povoados, cruzas-se para o lado do terreno do finquero,

4. Polícia responsável pela fronteira dos Estados Uni-dos- e México e deportações de imigrantes ilegais.5. Grupo de paramilitares de extrema direita quepersegue os imigrantes que tentam cruzar a fron-teira do México com os EUA.

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passava a ser de sua propriedade e o "se-nhor" podia fazer o que quisesse com ele:sacrificá-lo e deixá-lo aos abutres, sacrificá-10 e levá-lo à sua mesa, ferrá-lo com suamarca, ou presenteá-lo ao capataz para que,por sua vez, fizesse o que quisesse. Se, pelocontrário, algum animal do "senhor" cru-zasse para o lado do povoado, este deviadevolvê-Ia ao terreno do finquero, e se so-fresse algum acidente, o povoado deviapagá-lo e, além disso, devolver o animal fe-rido ou morto à fazenda.

Eu sei que estou me estendendo mui-to para assinalar algo muito simples: apropriedade da terra pertencia, antes dolevante, aos fazendeiros ou finquerosque, certamente, são o setor mais retró-grado dos poderosos. Se alguém querconhecer de verdade como pensa e atuaa ultra-direita reacionária, bata um papocom um finquero chiapaneco. E lhespasso um nome de um deles que, atépouco tempo, era aliado de Andrés Ma-nuel López Obrador em Chiapas e, juntocom o Croquete Albores e o PRD, levouao poder Juan Sabines (o qual empur-

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rou, primeiro em um bordel desmantela-do e logo depois em uma bodega de café,as famílias zapatistas desalojadas há algunsmeses de Montes Azules - certamente,sem que os intelectuais progressistas dis-sessem nenhuma palavra de protesto). Onome do finquero é Constantino Kanter,e foi o autor daquela famosa frase, ditaquando o calendário marcava o mês demaio do ano de 1993: "Em Chiapas maisvale um frango que a vida de um indígena".

Mas não insistamos nele, pois se sabeque a memória de cima é seletiva e re-corda ou esquece segundo o que lhe con-vém no calendário e na geografia.

O caso é que se passou algo. Não sei sesabem, mas se vos digo é porque pareceque alguns não sabem ou têm esquecido,ou mesmo fingem como se o tivesse. Bom,o caso é que o primeiro de janeiro de 1994,milhares de indígenas se levantaram emarmas contra o supremo governo.

Podem até não crer nisto, mas foi aqui,nesta geografia e neste calendário. E di-zem, e é preciso confirmar, que seautodenominaram "Exército Zapatista de

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Libertação Nacional" e que usarampassamontanhas para cobrir o rosto,como para evidenciar que eram ninguém.

Segundo algumas referências de jor-nais deste calendário, os insurgentes to-maram simultaneamente 7 sedes muni-cipais. Parece, não estou muito seguro,que uma dessas sedes municipais quecaiu em mãos rebeldes foi esta soberbacidade de San Cristóbal de Las Casas.

Combateram contra o exército fede-ral e o governo central de então, que eraencabeçado por Carlos Salinas de Gortarie estava formado por vários personagensque hoje podem ser encontrados nas fi-leiras do PRD e da CND lopezobradorista,e os catalogou como "transgressores dalei" (seguramente por terem transgredi-do a lei da gravidade, porque o que estáabaixo não deve levantar-se).

Peço-lhes que notem que nós não estamosfalando de pessoas com as quais temos dife-renças de estratégia ou tática, ou de concepçãode reforma ou revolução. Estamos falando denossos perseguidores, de nossos carrascos, denossos assassinos. Se tivéssemos traído nossos

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mortos e tivéssemos apoiado essa suposta op-ção contra a direita, agora estaríamos em uma"queda" e uma frustração similar às que des-creveu o companheiro Ricardo Gebrirn, doMovimento dos Sem Terra, do Brasil.

Esta manhã li que a aberração jurídicaque, violando a constituição, permite a legali-dade do fascismo (como oportunamente res-saltou ontem aqui Jorge Alonso),foi votada afavor pelos deputados de todas as tribos e cor-rentes do PRD, incluindo aquelas afins oudependentes de Andrés Manuel Lôpez Obrador.Odeio dizer que os avisei, mas avisei. Aquelesque passaram por alto, em movimentospsNdarados e em "ra deter a direita, agora esttribos e correntes do PRD, incluindo aquelasafins ou dependentes de Andrtpriedadara de-ter a direita, agora estãofrustrados e em "que-da". Nós que levantamos intuindo o que ago-ra se passa, temos ... outra coisa.

Enfim, é algo que deverá ser pesquisadonas bibliotecas e nas hemerotecas, que éonde o trabalho teórico sério deve surgir.

a que quero contar-lhes é o que pas-sou também nestes calendários, mas em

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outra geografia que não é a das cidades,quer dizer, na geografia do campo.

Acontece que, não é muito seguro,mas há indícios de que isto foi assim, osinsurgentes se prepararam com muitotempo de antecipação, e até elaboraramuns regulamentos ou memorandos quechamaram de "Leis Revolucionárias".

Uma delas, a chamada "Lei Revolucio-nária das Mulheres:", já foi mencionadaaqui por Sylvia Marcos? faz uns dias. Ela éuma pesquisadora séria, assim que é mui-to provável que, de fato, existiram (talvezainda existam) essas mencionadas leis.

Bom, pois outra dessas leis se chamou,ou se chama, "Lei Agrária Revolucionária".

Ainda que nem todo teórico que serespeite o faz, eu tenho tomado o incon-veniente de pesquisar e, assim, tenhoencontrado o que os intelectuais pro-

6. Acesse as leis revolucionárias através do site:http://palabra.ezln.org.mx/7. Diretora do Centro de Investigação Psico-etnológicoCuernavaca, México. Dedica-se à história da psiquia-tria, medicina e da mulher na cultura popular pré-hispânica e contemporânea do México. (N.O)

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gressistas chamam de "panfleto" e queparece um jornalzinho. desses que ospequenos grupos radicais e marginaisfazem. Chama-se "O Despertador Mexi-cano. Órgão Informativo do EZLN", é onúmero 1 (ignoro se há números poste-riores) e está datado de dezembro de1993, faz exatamente 14 calendários.

Aí encontrei isto que lhes narro eque diz a letra (respeito a redação origi-nal só para evidenciar que estes insur-gentes não tinham nenhuma assessoriateórica respeitável e conhecida, e que seveja que eram de classes baixas, ou queperguntaram a sua gente - pessoas semnenhuma preparação, evidentemente -o que iam propor):

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Lei Agrária RevolucionáriaA luta dos camponeses pobres no

México segue reclamando a terra para osque a trabalham. Depois de EmilianoZapata e contra as reformas do artigo 27da Constituição Mexicanas, o EZLN reto-ma a justa luta do campo mexicano porterra e liberdade. É com o fim de versar anova partilha agrária que a revolução trazàs terras mexicanas e se expede a seguin-te LEI AGRÁRIA REVOLUCIONÁRIA.

8. O artigo 27, fruto da Revolução Mexicana leva-do à cabo por Emiliano Zapata e Pancho Villa, ga-rantia a posse coletiva da terra através dosejidos. Porém, sua reforma durante o governo deCarlos Salinas transformou a terra em uma mer-cadoria como qualquer outra, possibilitando suavenda e posse individual. Um emocionantedocumentário que retrata essa questão é o Los úl-timos zapatistas - Héroes olvidados, dirigido porFrancesco Taboada Tabone, contém testemunhosdos soldados que lutaram na Revolução Mexicanaao lado de Zapata, que comentam a atual situaçãoda terra e algumas das conseqüências da reformado artigo 27 na sociabilidade das comunidadescamponesas e indígenas. (N.O)

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PrimeiroEsta lei tem validade para todo o

território mexicano e beneficia a todos oscamponeses pobres e diaristas agrícolasmexicanos sem importar sua filiaçãopolítica, credo religioso, sexo, raça ou cor.

SegundoEsta lei afeta todas as propriedades

agrícolas e empresas agropecuáriasnacionais ou estrangeiras dentro do ter-ritório mexicano.

TerceiroSerão objeto de afetação agrana

revolucionária todas as extensões de terrasque excedam a 100 hectares em condiçõesde má qualidade e de 50 hectares emcondições de boa qualidade. Aos proprietá-rios cujas terras excedam os limites acimamencionados serão quitados os excedentese ficarão com o mínimo permitido por estalei, podendo permanecer como pequenosproprietários ou somar-se ao movimentocamponês de cooperativas, sociedades cam-ponesas ou terras comunais.

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QuartoNão serão objeto de afetação agrária

as terras comunais, ejidales ou em possede cooperativas populares ainda queexcedam os limites mencionados noartigo terceiro desta lei.

QuintoAs terras afetadas por esta lei agrária

serão repartidas aos camponeses sem terrae diaristas agrícolas, que assim o solicitem,em PROPRIEDADE COLETIVApara a formação de cooperativas, socieda-des camponesas ou coletivos de produçãoagrícola e pecuária. As terras afetadas de-verão ser trabalhadas em coletivo.

SextoTem DIREITO PRIMÁRIO de solicitação

os coletivos de camponeses pobres semterra e diaris tas agrícolas, homens,mulheres e crianças, que certifiquem devi-damente não possuírem terra alguma oupossuírem terra de má qualidade.

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lZZ

SétimoPara a exploração da terra em benefício

dos camponeses pobres e diaristas agrícolasserão afetados os grandes latifúndios emonopólios agropecuários incluindo osmeios de produção tais como maquinarias,fertilizantes, bodegas, recursos financeiros,produtos químicos e assessoria técnica. To-dos estes meios devem passar às mãos doscamponeses pobres e diaristas agrícolascom especial atenção aos grupos organiza-dos em cooperativas, coletivos e sociedades.

OitavoOs grupos beneficiados com esta Lei

Agrária deverão dedicar-se preferentementeà produção em coletivo de alimentosnecessários para o povo mexicano: milho,feijão, arroz, hortaliças e frutas, assim comoa criação de gado bovino, suíno, eqüino e daapicultura, e aos produtos derivados (carne,leite, ovos, ete.).

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NonoEm tempo de guerra, uma parte da

produção das terras afetadas por esta lei sedestinará ao abastecimento de órfãos eviúvas de combatentes revolucionários e aoabastecimento das forças revolucionárias.

DécimoO objetivo da produção em coletivo é

satisfazer primeiramente as necessidadesdo povo, formar nos beneficiados aconsciência coletiva de trabalho ebenefício, e criar unidades de produção,defesa e ajuda mútua no campomexicano. Quando em uma região nãose produza algum bem serão realizadastrocas com outra região onde se produ-za em condições de justiça e igualdade.Os excedentes de produção poderão serexportados a outros países se não hou-ver demanda nacional para o produto.

Décimo primeiroAs grandes empresas agrícolas serão

expropriadas e passarão às mãos do povo

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mexicano, e serão administradas em co-letivo pelos mesmos trabalhadores. Amaquinaria das lavouras, arreios,sementes, etc. que se encontrem ociososnas fábricas e agronegócios ou outroslugares, serão distribuídos entre oscoletivos rurais, a fim de fazer produzir aterra extensivamente e começar aerradicar a fome do povo.

Décimo segundoNão se permitirão o monopólio

individual de terras e meios de produção.

Décimo terceiroSerão preservadas as zonas de

florestas virgens e os bosques, e serãofeitas campanhas de reflorestamento nasprincipais zonas.

Décimo quartoOs mananciais, rios, lagoas e mares são

propriedade coletiva do povo mexicano eserão cuidados evitando a contaminação eevitando o seu mal uso.

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Décimo quintoEm benefício dos camponeses

pobres, sem terra e trabalhadoresagrícolas, além da partilha agrária queesta lei estabelece, serão criados centrosde comércio que comprem a preço justoos produtos do camponês e lhe vendama preços justos as mercadorias que ocamponês necessita para uma vida digna.Serão criados centros de saúdecomunitária com todos os progressos damedicina moderna, com doutores e en-fermeiras capacitados e conscientes, ecom medicina gratuita para o povo. Se-rão criados centros de diversão para queos campesinos e suas famílias tenhamum descanso digno sem botecos nembordéis. Serão criados centros de educa-ção e escolas gratuitas onde os campo-neses e suas famílias se eduquem semimportar sua idade, sexo, raça ou filiaçãopolítica, e aprendam a técnica necessá-ria para seu desenvolvimento. Serão cri-ados centros de construção de habitaçõese. estradas com engenheiros, arquitetose materiais necessários para que os cam-

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poneses possam ter uma habitação dig-na e bons caminhos para o transporte.Serão criados centros de serviços paragarantir que os campesinos e suas famí-lias tenham luz elétrica, água encanadae potável, drenagem, rádio e televisão,além de todo o necessário para facilitaro trabalho da casa, estufa, refrigerador,lavadoras, moinho, etc.

Décimo sextoNão haverá impostos para os camponeses

que trabalhem em coletivo, nem paraejidatários, cooperativas e terras comunais.DESDE OMOMENTO EM QUE SEEXPEDIRESTALEI AGRÁRIA REVOLUCIONÁRIASEDESCONHECEMTODASASDDnDAS QUERPOR CRÉDITO, IMPOSTO OU EMPRÉSTI-MOS, TENHAM OS CAMPONESES POBRESE TRABALHADORES AGRÍCOLAS COM OGOVERNO OPRESSOR, COM OESTRANGEIROOUCOMOSCAPITALISTAS.

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Com este artigo décimo sexto termi-na essa lei. Existem mais leis, mas nãovêm ao caso, ou coisa. Faz-se notar a fal-ta de perspectiva de modernidade destestransgressores da gramática e do bomgosto, já que não aparece nenhuma re-ferência ao livre comércio nem às como-didades agrícolas que, deus salve o se-nhor Monsanto, que o capitalismo temtrazido felizmente ao mundo.

Enfim, parece que nos territórios queos rebeldes chegaram a controlar se apli-cou esta lei e que os finqueros foramexpulsos de suas grandes propriedades eessas terras foram repartidas entre osindígenas que, contam, o primeiro quefizeram foi desfazer as cercas que prote-giam as casa dos fazendeiros.

Contam também que fizeram esseatentado contra a propriedade privadacantando a lista de mesmo nome, auto-ria de um tal Daniel Viglietti (o mesmoque foi visto faz umas horas nesta geo-grafia, acompanhado de gente de muitoduvidosa reputação - várias pessoas pre-sentes cobriram o rosto, o que não deixa

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dúvida de que ocultavam algo).Segundo rumores, anos depois os le-

vantados criaram suas próprias formasde autogoverno e formaram o que cha-mam "comissões agrárias" para vigiar apartilha de terra e o cumprimento da lei.

O que sabemos é que não são poucasas dificuldades que se tem encontrado ese encontram, e que os rebeldes resolvemsegundo suas próprias faculdades e mei-os, em lugar de recorrer a assessores, es-pecialistas e intelectuais que lhes digamo que devem fazer, como devem fazê-lo eos avaliem o feito e o desfeito.

Existe outro dado, escandaloso comoele. Segundo fontes confiáveis, que nãopuderam ser reveladas porque usavampassamontanhas, em uma madrugadaqualquer, esses homens, mulheres, crian-ças e anciãos, descobriram seus rostos ecantaram e bailaram, sempre com ritmoque não tem catalogação conhecida.Dizem que sabiam que não eram menospobres que antes e que lhes vinham, decima, problemas de todos os tipos, entreeles o da morte, assim nós não sabemos o

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motivo, causa ou razão de sua alegria.Segundo últimas informações, se-

guem dançando, cantando e rindo há 14calendários e dizem que é porque já háoutra geografia em suas terras. Isto sódemonstra que são uns ignorantes, por-que os mapas e cartas topográficas deINEGI9 não dão conta de nenhuma mu-dança no território desse sudeste estadomexicano de Chiapas.

***

9. Instituto Nacional de Estatística e Geografia dogoverno mexicano.

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Resposta simples a perguntas complexas.

NA madrugada é a região mais CheGuevara dos sonhos"

Daniel Viglietti

Primeira pergunta: Há mudanças funda-mentais na vida das comunidades indí-genas zapatistas?Primeira resposta: Sim.

Segunda pergunta: Estas mudanças sederam a partir do levante do primeiro dejaneiro de 1994?Segunda resposta: Não.

Terceira pergunta: Quando foi então quese deram?Terceira resposta: Quando a terra passoua ser propriedade dos camponeses.

Ouart a pergunta: Quer dizer que foiquando a terra passou às mãos de quema trabalha que se desenvolveram os pro-

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cessos que se podem apreciar agora nosterritórios zapatistas?Quarta resposta: Sim. Os avanços no gover-no, saúde, educação, habitação, alimentação,participação das mulheres, comercíalízação,cultura, comunicação e informação têmcomo ponto de partida a recuperação dosmeios de produção, neste caso, a terra, osanimais e as máquinas que estavam nasmãos dos grandes proprietários.

Quinta pergunta: Esta lei agrária revolu-cionária vigorou em todos os territórios emque os zapatistas afirmam ter controle?Quinta resposta: Não. Por suas caracte-rísticas próprias na zona de Los Altos eNorte de Chiapas este processo foi míni-mo ou inexistente. Só se deu nas zonasda Selva Tzeltal, Tzotz Choj e na SelvaFronteiriça. Contudo as mudanças se es-tenderam a todas as zonas pelas pontessubterrâneas que unem nossos povos.

Sexta pergunta: Por que sempre parecemestar contentes, ainda que tenham erros,problemas e ameaças?

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Sexta resposta: Porque, com a luta, te-mos recuperado a capacidade de decidirnosso destino. E isso inclui, entre outrascoisas, o direito de nos equivocarmos.

Sétima pergunta: De onde tiram essesritmos estranhos que cantam e dançam?Sétima resposta: Do coração.

Agradecido e nos vemos na noite.

SubComandante Insurgente MarcosSan Cristobal de Las Casas, Chiapas,

México.Dezembro de 2007

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v - Cheirar o negroOcalendário e a geografia do medo

"Quando parece que não fica nada,ficam os princípios"

Dom Durito da Lacandona

Dizia o Velho Antonio que a liberda-de tinha haver também com o ouvido,com a palavra e com o olhar. Que a li-berdade era que não tivéssemos medo doolhar e da palavra do outro, do diferen-te. Mas também que não tivéssemosmedo de ser observados e escutados pe-los outros. E logo acrescentou que sepodia cheirar o medo, e que abaixo e aci-ma esse medo expelia um odor diferen-te. Disse ainda, que a liberdade não esta-

*. Participação na conferência vespertina do dia l5de dezembro que teve as presenças de SérgioRodriguez Lascano e Enrique Dus sel, além doSubcomandante Marcos.

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va em um lugar, e sim que havia que fazê-Ia, construí-Ia em coletivo. Que, sobretu-do, não se podia fazer sobre o medo dooutro que, ainda que diferente, é como nós.

Isto vem ao caso ou à coisa, porquenós pensamos que, mais que a quantida-de de pessoas em um movimento, maisque seu impacto midiático ou acontundência de suas ações, mais que aclareza e radicalidade de seu programa, omais importante é a ética desse movimen-to. Isso é o que lhe dá coesão interna, odefine, lhe dá identidade ... e futuro.

Já em outra ocasião falamos, e fala-remos, do que são os fundamentos denossa ética zapatista.

Agora queremos nos referir, brevemen-te, à não-ética de cima, à ética do medo.

Sobre o medo e, mais especificamente,sobre o medo da transformação, o sistematem construído, com especial paciência, umedifício inteiro de razões para não lutar .

.Há um "não" para cada um, mais oumenos simples ou complexo segundo odestinado a usá-Ia.

Vamos deixar de lado, por um mo-

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mento, as condições materiais que per-mitem e marcam este que podemos cha-mar "o império do medo", uma das ca-racterísticas definidoras do sistema ca-pitalista, e nos concentremos em suaexistência, sua divisão e hierarquia.

Suponhamos que um dos medos maiselaborados é o medo do outro, do dife-rente, quer dizer, do que desconhecemos.

Só farei uma separação apressada, es-perando que possam desenvolver-se logo:

O medo de Gênero. Mas não só da mu-lher ao homem e vice-versa, também o medoda mulher à mulher e do homem ao homem.

O medo da Geração. Entre os mais ve-lhos, adultos, jovens e meninos e meninas.

O medo do Outro. Contra homosse-xuais, lésbicas, transexuais e as outrasrealidades que, não porque as desconhe-çamos, deixam de ter existência.

O medo da Identidade ou da Raça. Entreindígenas, mestiços, nacionais, estrangeiros.

A liberdade que queremos deverátambém vencer estes medos.

***

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Aqui foi dito antes, e com razão, queas lutas anti-sistêmicas não devem circuns-crever-se unicamente ao que os ortodo-xos chamam de infraestrutura ou basedas relações sociais capitalistas.

O fato de sustentarmos que o núcleocentral do domínio capitalista está napropriedade dos meios de produção, nãosignifica que ignoremos (no duplo sen-tido de desconhecer e de não dar impor-tância) os outros espaços de domínio.

É claro para nós que as transforma-ções não devem apenas se focar nas con-dições materiais. Por isso para nós nãohá hierarquia de âmbitos; não sustenta-mos que a luta pela terra é prioritáriasobre a luta de gênero, nem que esta émais importante que o reconhecimentoe o respeito à diferença.

Pensamos, ao contrário, que todas asênfases são necessárias e que devemos serhumildes e reconhecer que não há atual-mente organização ou movimento quepossa apreciar cobrir todos os aspectos daluta anti-sistêmica, isto é, anticapitalista.

Este reconhecimento é a base de nossa

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Sexta Declaração da Selva Lacandona. Ela partedo reconhecimento e aceitação da largura denosso sonho e da estreiteza de nossa força.

Por exemplo, temos assinalado al-guns aspectos da luta de gênero no seiodo zapatísmo. e no próximo encontropoderão conhecer isto em primeira mão.Mas nosotros y nosotras reconhecemos queexiste avanços mais substanciais em ou-tros coletivos, grupos, organizações eindividu@s que possuem este objetivo.

Pensamos que a própria realidade denossa existência como EZLN não poucasvezes apresenta obstáculos e travas quenão podem ser resolvidos em nossa lógi-ca interna. Por isso buscamos e pedimosuma relação eqüitativa com as compa-nheiras e os companheiros que tem avan-çado mais que nós na luta de gênero.

Contudo queremos que não confun-dam ensinar com mandar, nem aprendercom obedecer. Cremos que é possívelconstruir uma relação de respeito ondenossa realidade avance em transforma-ções profundas neste aspecto e sabemosduas coisas: que não podemos fazê-lo por

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nós mesmos; e que necessitamos destarelação com os outros movimentos.

Não oferecemos nada em troca, nada dematerial quero dizer. Tampouco oferecemosunidade orgânica, nem hierarquia de man-do ou obediência em um ou outro sentido.

O que oferecemos é a disposição deconhecer, respeitar e aprender.

O que vocês podem e, creio eu, de-vem nos dar, terá seu próprio processode assimilação e algo novo sairá.

Este novo não será nem um cópia desuas propostas nem uma repetiçãojustificada de nossa imperfeita realidade(sobretudo nesta da luta de gênero), esim uma forma nova, a nossa forma, deassumir esta luta e levá-Ia adiante.

Isto que falo da luta de gênero, en-quanto EZLN, é que reconhecemos quetemos mais dificuldades, é válido paratodas as lutas e modos que não conhe-cemos, não abrangemos ou não conse-guiremos nunca cobrir.

'0 EZLN é uma organização que temrecusado claramente hegemonizar ehomogeneizar em suas relações com

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OU tros grupos, coletivos, organizações,povos e indivíduos, inclusive com outrasrealidades organizadas ou não.

Nem sequer no movimento indígena,que é onde está nossa força e nossa pri-meira identidade, temos aceita do o papelde vanguarda que represente a totalidadedo movimento indígena no México.

Às nossas carências evidentes na lutadas mulheres podem-se agregar lacunasinsuperáveis: os trabalhadores e trabalha-doras da cidade, os movimentos urbanospopulares, os jovens e as jovens, os outrosamores, e uma verdadeira constelação delutas que A Outra Campanha tem reveladoem seus percursos e atividades.

O movimento anti-sistêmico que pre-tendemos levantar no México parte des-ta premissa fundamental: tem de ser como outro, com o diferente que comparti-lha as dores e as esperanças, que reco-nhece no sistema capitalista o responsá-vel de sua situação de injustiça.

E isto, pensamos nós, só é possível com oconhecimento mútuo que leva ao respeito.

Por isso a Sexta Declaração e A Outra

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Campanha no México têm seguido ospassos que até agora tem dado: uma cha-mada, uma apresentação onde cada umdiz quem é, onde estava, como via omundo e o nosso país, o que queria ecomo pensava fazê-Io.

Neste processo de conhecimento, al-guns, algumas, souberam que este não erao seu lugar, nem seu tempo. Que não eramseu calendário e nem a sua geografia. Pude-ram dizer uma ou outra coisa, mas é esta acausa fundamental de sua distância atual.

Não é e nem tem sido o objetivo doEZLN criar um movimento sob suahegemonia e homogeneizado com seustempos, modos e não modos.

Queríamos, e queremos, um movi-mento amplo, com toda a extensão dode baixo de nosso país, mas com objeti-vos claros, diáfanos, definitivos edefinidores: a transformação radical eprofunda de nosso país, quer dizer, adestruição do sistema capitalista.

Não temos mentido, nem antes, nem agora.Não nos interessam os remendos nem

as reformas, simples e sensivelmente

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porque não remendam nada e não re-formam nem sequer o mais superficial.

Falamos sem rodeios àqueles que nosquerem escutar: à nós o que nos interes-sa é que se reconheçam nossos direitos,que nos deixem ser o que somos e comosomos, em suma, que nos deixem em paz.

Não nos interessam nem os postos,nem os cargos, nem as estátuas e mo-numentos, nem os museus, nem passarà história, nem prêmios, nem honras,nem homenagens.

O que queremos é poder levantarmoscada manhã sem que o medo esteja naagenda do dia.

O medo de ser indígena, mulheres,trabalhador@s, homossexuais, lésbicas,jovens, anciãos. crianças, outras, outros.

Mas pensamos que isto não é possí-vel no sistema atual, no capitalismo.

Temos buscado e temos encontradopensamentos e experiências diferentes,mas similares.

Temos sido parte, sobretudo alun@s,do mais formoso exercício pedagógicoque os céus e solos mexicanos têm con-

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templado em toda sua história.Tem sido, e é, uma honra chamar

companheiras e companheiros a povos,organizações, grupos, coletivos eindividu@s de todos os aspectos da opo-sição anticapitalista em nosso país.

Não somos muit@s, é verdade. Massomos. E nestes tempos de indefiniçãoconveniente, ilusões e evasões, isto, foi,são, é e será a peça ou o sonho que so-nhamos necessário para colocar paraandar a realidade em seu longo caminho.

***

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Elías Contreras explica àMagdalena sua muito peculiarversão do amor e dessas coisas

Creio que podemos imaginar tudo.Imaginar a conversação, o calendárioe a geografia em que se deu. Imaginarque Magdalena e Elías Contreras,Comissão de Investigação do EZLN,estão conversando qualquer coisa. Masimaginar que, quando chegam a nossoouvido e olhar, o que vemos eescutamos é o seguinte ...

Existe uma noite que se precipitou so-bre a tarde, retirando-a fora do dia e forado destempo, estendendo seus negros esuas sombras por todos os recantos, per-mitindo só algumas luzes e brilhos.

Tem sido tão rápida esta invasão obs-cura, que surpreende Elías Contreras eMagdalena no caminho de volta do mi-lharal.

Já estão próximo do povoado, mas anoite é tão densa e tão imprevista que asbreves luzes que povoam a aldeia, toda-via, não são suficientes.

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Como se os cocuyos ', estrelas, lua elampejos ficaram em outro calendário ou es-tavam errados na geografia e não chegarama tempo à noite que já era dona e senhora nasmontanhas do sudeste mexicano.

Elías Contreras sabe. Conhece, com aforça da caminhada, os caminhos que anoite cria sobre os caminhos do dia. Porisso é que Elías toma a mão de Magdalena,que estava paralisada com um suspiro demedo quando só via o negro.

Magdalena está nestas terras porqueveio ajudar Elías Contreras no combatecontra o mal e ao mau, mas este não éseu lugar. Ela, ou ele, conforme dizem,é citadino ou citadina. E na cidade, ain-da mais na cidade onde vivia Magdalena,a noite nunca se completa. Com tantasluzes pelejando por um espaço, a noiteali apenas é um pretexto para que cadauma delas, das luzes, se definam.

A mão de Elías tranqüilizou Magdalena.Por uns instantes essa mão é seu únicoapoio para a realidade. Quase imediatamen-

1. Inseto parecido com os vagalumes, mas que pelanoite aparece com luzes azuladas. (N.T.)

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te, Elías colocou a mão de Magdalena naspartes baixas de suas costas, de modo quesegurasse no cinto de Elías.

"Não te soltes", disse Elías.O medo fez com que Magdalena não

conseguisse sussurrar e só pensasse:"Nem louca", ou louco, segundo alguns.Elías saiu do caminho real com seus

grandes charcos e lodos, se adentrando porentre os arvoredos. Devagar caminha Blías,cuidando para que Magdalena não tropece.

No olhar cego de Magdalena aparecemterrores e fantasmas que não são desta ter-ra: os homens da lei rodeando-a, pondoum saco malcheiroso sobre a sua cabeça.Os golpes e as zombarias no carro. Nãover, não saber. Os ruídos que vão apagan-do. A discussão entre eles sobre o dinhei-ro que lhe roubam. Os revezamentos paraviolá-Ia/violá-lo. O ruído do carro afastan-do-se. O desmaio. O cachorro que lhe fa-reja o sangue das feridas ...

"Já cheqamos já" - disse a voz de Elías,e Magdalena, contudo, treme ao sentarsobre um tronco.

Em pouco tempo Magdalena se locali-

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za. Elías sabe o que faz. O lugar onde estãotem uma luz parda que não chega a ilumi-nar, mas sim a definir objetos e distâncias.

Parece que Elías pensa queMagdalena treme por causa do frio, e aenvolve com o náilon que, prevendo aschuvas, leva em sua morraleta.

"Onde?", pergunta Magdalena.Elías parece saber que o que

Magdalena quer saber é a origem dessaluz dispersa e difusa.

"São cogumelos", diz Elías acendendoum fósforo cuja luz apaga tudo e deixasó sua visão. "De dia agarram luz, e de noi-te vão soltando de pouquinho a pouquinho,para que dure, para que tarde, para que logonão se prevaleça a escuridão".

Respondendo uma pergunta que nãochega, Elías diz:

"Estes não se podem comer, só servem paraolhar" .

Não é a voz e sim o cheiro de Elías quevai tranqüilizando Magdalena. Uma mis-tura de milho, ramas, terra, tabaco, suor.

"Aqui vamos esperar um pouco até que anoite apanhe seu passo e deixe de andar cor-

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rendo", disse Elías.Magdalena, sentada ao seu lado, se

agarra a seu braço e repousa sua cabeçasobre o ombro de Elías.

Algo a faz pensar, porque prontamen-te se solta de Elías:

"Escuta Elias. tu tem estado com umamulher?".

Elías se engasga com o fumo de ci-garro e nota que seu corpo se mostranervoso. Sua voz é apenas um fio quan-do responde:

"Err. .. bom, sim, nas reuniões ... e nos tra-balhos ... e nas festas ... chegam as companhei-ras... e falamos da luta ... e dos trabalhos ... efalamos ... sim .... nas reuniões ... ".

"Não tefaças de bobo Blias, tu sabes do queestou falando", o interrompe Magdalena.

Se houvesse um pouco mais de luz,poderíamos ver que o rosto de Elías é umsemáforo: primeiro aparece a cor verme-lha, logo a amarela e agora está adqui-rindo uma cor verde luminosa.

"Err. ... Mmh ... Err... Ou seja, o que vocêestá perguntando é se tenho feito amor?".

Magdalena ri de boa fé ao escutar o

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modo com que Elías se refere a ter rela-ções sexuais.

"Sim", disse rindo, "pergunto se tensfeito amor".

As cores de Elías seguem agora o ca-minho inverso: do verde ao amarelo e daíao vermelho.

"Bem, sim, mas não vulgar, um pouco,ou seja mais ou menos, apenas ... ".

A noite é fria, como esta que cami-nhamos, mas Elías Contreras, Comissãode Investigação do EZLN, já tem a cami-sa ensopada de suor.

Magdalena está desfrutando do emba-raço de Elías e não faz nada para alivíá-lo.

Ao contrário, prolonga seu silênciopara que Elías tenha que continuar coma palavra ...

"Bom, Magdalena, não vou mentirar paravocê. Não me lembro, de repente sim ou derepente não ... Mas me lembro que eu li umlivro que encontrei e que se chama 'Já pensasno amor?' e ali eu vi bem como é isso".

Magdalena, ainda que não seja nemhomem e nem mulher, é uma mula detão teimosa (sem ofender aos que me

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escutam ou lêem), e o nervosismo deElías lhe faz esquecer os fantasmas quehá uns minutos lhe assediavam, assim opergunta ...

"Assim? E como é isso?", e se aproximamais do flanco de Elías.

A cor de Elías já é a dos cogumelosfosforescentes que cobre os troncos e asramas das proximidades.

Mas Elías Contreras é Comissão deInvestigação do EZLN, e tem enfrentadouma multiplicidade de perigos e situa-ções imprevistas, assim que respira fun-do enquanto pensa:

"Um cigarro, vou acender um cigarro.Ondedeixei os cigarros? Acendo um cigarro e assimme dá tempo de ajustar meu pensamento, acen-do um cigarro. E se não acender o palito? Poiscomo diz o Sup, se escangalhar essa senhoraRoma, bom, ora. E se o palito não acender?".

Elías inicia então sua explicação:"Bem Magdalena, arresulta que estão,

como diz, ele, esse-como-se-chama, e o outrotal, e este assim, como que se não está pen-sando em nada, mas prontamente como quejá pensa algo e pois então, acontece..."

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Elías duvida, depois diz:"Bem, creioque émelhor te explicar de outra

forma porque desta você não vai entender ... rrMagdalena tem um sorriso malicio-

so que a escuridão oculta quando diz:"Bom".Elías começa:"Bem, pois arresulta que há uns que

se chamam meios de produção, porqueos pichitos não são logo píchítos. poisque primeiro são produtos. Então os pro-dutos se fazem com meios de produção.Ah e também com matéria-prima.

Daí então arresulta que este é o meiode produção do homem que é assim comoalgo para produzir produtos, mas nãopuro nem só, pois necessita de outro meiode produção, então já se fala a uma me-nina, fazem acordo para a produção, põema matéria-prima, produzem o produto esempre um ou uma, dizem, se cansa, masassim como um cansaço bom, contente.

Contudo não é assim que um chega ediz a muchacha 'escuta, vamos fazer umaprodução de um produto', e sim que comoquem diz dando volta e vão os dois

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volte ando, volteando e logo fazem umacordo, logo tarda uns meses e sai o pro-duto e já colocam nome porque não vãoficar dizendo 'olhe o produto, veja ele tra-zer a água e a lenha', pois é preciso quetenha um nome, e logo se é produta pre-cisa também por um nome.

Daí que o homem é importante, masnão muito porque só é um, ou uma, dizem,se é zapatista pode escolher logo seu nomede luta, mas tem que ir pensando bem por-que alogo um já não sabe se fica assim.

Aí está por exemplo o Sup. que esco-lheu o nome de Sup e já escangalhou Romaporque continuará se chamando Sup. In-vés disso eu escolhi Elías, mas nem todossabem, assim que posso por outro nome.

E pronto, esta é toda minha palavra e es-pero que entendeste Magdalena e se caso nãotenha entendido, outro dia te explico porquejá é tarde e temos que chegar ao povoado".

Magdalena estava até com a barrigadoendo de tanto segurar o riso escutando aexplicação de Elías. mas se recompõe e diz:

"Bom, então me explicas outro dia".A noite já é mais clara quando Elías

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Contreras caminha colina abaixo comMagdalena nos braços. É Elías quemrompe o silêncio:

"Olha Magdalena. Já não tenhas medose estás comigo".

Magdalena apenas se detém para per-guntar:

"Como soube que tive medo?"."O medo se cheira", diz Elías retoman-

do o passo."Cheira como o pesadelo, como o mal so-

nho, como a vergonha e a pena".Já é madrugada quando chegam à

beira do povoado.Magdalena pergunta:"E como cheira a alegria?"Elías Contreras, Comissão de Inves-

tigação do EZLN, estende o braço comose construísse a manhã e diz:

"Assim ... "Um odor de capim e de dignas terras

rebeldes se levanta e cheira tanto quequase se pode ver e tocar e provar e es-cutar e pensar e sentir.

Como se o amanhã tivesse se debru-çado ao hoje, por um instante só, e ti-

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vesse mostrado seu tesouro mais fantás-tico, terrível e maravilhoso, ou seja, suapossibilidade.

Agradecido, boa noite. Nos vemosamanhã.

Subcomandante Insurgente Marcos.San Cristóbal de Las Casas, Chiapas,

México.Dezembro de 2007.

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.. ~

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VI- Olhar o azulOcalendário e a geografia damemória

"Se para os de cima, nós de baixosomos apenas insetos. Piquemo-lhes",

Dom Durito da Lacandona

Temos dito, não poucas vezes, quenosso levante zapatistàé contra o esque-cimento. Permitam-me então fazer umpouco de memória.

Faz algumas luas, em passagem por umadas zonas do irregular território zapatistareunimos um grupo de oficiais insurgen-tes e Comandantes e Comandantas para tra-tar de alguns problemas.

Um dos problemas era que há muitosanos, a pedido de um dos comandos de

*. Participações de John Berger, J ean Robert eSubcomandante Marcos na conferência do dia 16de dezembro ao meio-dia.

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zona, alguns povoados haviam colabora-do com algo para levantar uma cooperati-va que, lhes disseram, tempos depois lhesressarciriam conforme o que tinham dado.

Certamente, como sempre acontecequando há um erro, ninguém se lembra-va quem havia feito a solicitação, quan-to tinha sido o colaborado, de quem, oque passou com a cooperativa, etc. Nahora de determinar as responsabilidadeschegávamos a um buraco negro.

'.í1 problema", disse um dos oficiaisinsurgentes, "é que simplesmente nós nãolembramos muito como foi. Mas os povoadosse recordam e estão virados na porra porquenão lhes prestam contas".

"Essa é a problema. Os povoados não es-quecem nada".

O que eu ia dizer acabou sendo ditopor outro oficial:

"Como isso é a problema? Pelo con-trário, isso é a nossa força. Se os povoadosse esquecessem, não estariam em luta".

"Isso", respondeu o primeiro oficial.Olhei para os Comandantes e

Comandantas. Não foi necessário per-

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guntar nada, prontamente me disseram:"Queremos que o Comando Geral investi-

gue para que se solucione a problema"."Tá bom", lhes disse.Dei instruções para que se buscasse

Elías Contreras e lhes passassem todosos dados que existiam.

Não passaram muitos dias quandochegou o informe de Elías.

Efetivamente, em uma dessas rarastemporadas de baixa pressão militar, ocomando de zona, prevendo que isso nãoduraria muito, propôs que se fizesse umacooperativa para ter algo quando voltas-se a apertar o cerco. O CCRP dessa zonaesteve de acordo e fez esta proposta a al-guns povoados, e este aceitaram. Chegou,efetivamente, o tempo da pressão militare tudo o que havia sido acumulado nacooperativa foi enviada aos povoados que

1. Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Co-mando Geral (CCRI-CG), órgão máximo de decisão doEZLN, composto por autoridades e anciãos das diver-sas etnias e comunidades que conformam o zapatismo,denotando assim, uma relação de representação bas-tante orgânica com as suas comunidades. (N.O)

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estavam recebendo os desalojados. Até aítudo limpo e sem problemas. Mas ... citoparte do informe de Elías Contreras:

"O problema, Sup, é que nem o comandonem os comitês informaram aos povoados. En-tão já passaram uns anos, nem muitos nempoucos, e os povoados recordaram disso e estãopedindo que o Comando Geral veja o que se pas-sou para que não aconteça como com ospriystasque fazem suas estupidez e não mais informam.

À parte te exponho minha opinião. Bem Sup,é claro que te digo que, como quem diz, que ca-garam, porque pode ser que às vezes não tenhamboa comida, ou não tenham roupas, ou não exis-tam remédios, ou, totalmente, parece que nãopassam o dia com todos os problemas que exis-tam, mas nunca lhes falta a memória".

Repartiram-se as provisões que cabiaa cada um, informaram aos povoados elhes deram indicações para que se fizes-se um censo de quem e quanto haviamcontribuído e se estabeleceu que, usan-do o fundo de guerra, lhes fossem resti-tuído o que haviam dado.

As comissões foram aos povoados emquestão. Ao pouco regressaram e infor-

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maram. Tudo se ajustou, menos no po-voado de San Tito. É que um companhei-ro, que já é de idade, se negou a receber arestituição do que havia contribuído. Lheexplicaram uma e outra vez e o compa-nheiro se zangou dizendo que não rece-bia e não. As comissões passaram três diascom suas noites e nada que o convences-se. Como tinham que regressar para osoutros trabalhos, deixaram com o res-ponsável do povoado o que correspondiaao companheiro, com a recomendação deque posteriormente o convenceria.

Perguntei o que tinha ocorrido aooficial que acompanhou a Comissão. Istofoi o que ele me disse:

"É o Chompiras. Não sei se você lembradele, Sup. Foi ele quem ajudou a tirar os feri-dos do mercado de Ocosingo, daquela vez em94. E logo, quando da traição de 95, lhes ma-taram dois filhos". Ele foi um dos primeiros a

2. Em fevereiro de 1995 o governo federal, de formaunilateral e sem comunicar aos zapatistas, cessa oacordo de paz que existia e tenta a resolução do con-flito chiapaneco pela via militar, com uma ascensão

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entrar na luta pelas bandas de cá. Ele lembramuito o Senhor Ik. Quase não fala. Sempre estácalado. Mas, urrr. Sup, quando nós o conta-mos, mandou parar. Até nos repreendeu. Bemque nos disseram que ele tem mais memóriaque qualquer um de nós. Que antipáticos me-ninos, nos disse (o oficial tem quase 30 anos).Que se por acaso não sabíamos que o Senhor Ikexplicou que a luta não acaba até que se acabee então tudo fique correto. Que ele não vai rece-ber nada porque o deu para a luta e a luta nãotinha terminado".

"E o que fizeram vocês?", lhe pergunteienquanto acendia o cachimbo.

"Nada, que iríamos fazer? Saímos corren-do porque nos botou para correr com o fa-cão. E disse que nos ia acusar contigo porquenão temos memória. Assim disse".

***

Em uma das intervenções neste co-lóquio, na de Dom Jorge Alonso. nos foi

da espiral da violência, que foi frustrada pelo recuorápido das tropas zapatistas e pelas expressivas ma-nifestações por parte da "sociedade civil". (N.O)

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dito que não há um só enfoque para ana-lisar a realidade, e sim que existem dis-tintas formas de aproximar-se dela. Nósqueremos aproveitar a dupla proximida-de de Jean Robert e de John Berger, quealgo sabem sobre isso, para tomar essaacertada afirmação e falar sobre olhares.

Ou melhor, falar de dois grandes olha-res e dos privilégios de um sobre o outro.

Me refiro ao olhar aos zapatistas eao olhar dos zapatistas.

Pode-se atribuir à sua formação, à suahistória, à sua lucidez ou a essa estranhasensibilidade que logo aparece de tantoem tanto em algumas pessoas, mas háuma enorme diferença na maneira quevêem a nós zapatistas aquelas pessoas quetrabalham diretamente com comunidadesindígenas e àquelas outras que nos vêemde longe, quer dizer, de outra realidade.

Não me refiro à sua forma indulgen-te ou não, questionadora ou não,definidora ou não, de nos olhar. E sim aparte nossa que elegem para olhar e aatitude como olham.

Andrés Aubry, cuja história nos con-

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vaca aqui, tinha sua forma de nos olhar,quer dizer, elegia uma parte do que so-mos para ver-nos. As duas últimas vezesque o vi eu descrevo aqui:

Em uma, foi em uma reunião priva-da junto com Jérome Baschet, falamosde livros e outros absurdos.

Aubry estava desenvolto, eloqüente,como se estivesse com amigos.

Na outra, foi naquela mesa redonda'onde lançou uma das críticas mais severase certeiras que eu já havia escutado con-tra a academia, Andrés voltava uma e ou-tra vez até atrás, até suas costas, onde cen-tenas de companheiras e companheiros,autoridades autônomas, responsáveis porcomissões e comandos organizados dos5 caracóis, escutavam em silêncio.

3. o Subcomandante Marcos se refere a comunica-ção proferida por Andrés Aubry, Los intelectuales yel poder. Otra ciencia social, no seminário de dis-cussão política sobre o tema "Gerando Contra poder,desde abaixo e à esquerda", realizado no dia 03 dejaneiro de 2007, no CIDECI-Unitierra, em SanCristóbal de Las Casas. Este texto (bem como osdemais do seminário) foram publicados na revistamexicana Contrahistorias n. 8. (N.O)

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Andrés estava nervoso, inquieto,como se estivesse diante de severosjuízes ou bispos.

Do outro extremo da mesa, o olhei eo entendi.

Há quem se preocupe com asvalorações que na academia se faça de suasexplanações. Aubry não se preocupavacom isso. Era a valoração das zapatistas,dos zapatistas, o que o preocupava.

Era o mesmo Andrés Aubry que, na-quela Marcha da Cor da Terra" do calen-dário de 2001, não reparava nos galpõesque foram sucedendo na geografia quepercorremos. Tampouco às multidões

4. A Marcha da cor da terra ou Marcha da dignidade,foi realizada em 2001 pel@s zapatístas. que saíramde Chiapas e foram até a capital federal, mobilizan-do milhares de pessoas em seu trajeto, tendo porobjetivo que o Congresso sancionasse as leis de direi-to e autonomia indígenas, que haviam sido acorda-das anos antes como condição de paz. Porém essa leifoi deturpada pelo governo e aprovada sua contra-reforma por ambas as Câmaras do Congresso daUnião. Para ler os pronunciamentos dos zapatistasna época, ver BRIGE, Marco F.; DI FELICE, Mássimo(Org.) Votán-Zapata: a marcha indígena e a suble-vação temporária. São Paulo: Xarnâ. 2002. (N.O)

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que acudiam aos atos. Olhava, ao con-trário, aos pequenos grupos que, disper-so ao longo de caminhos e estradas, sesomavam para nos ver passar ou paramandar uma saudação.

Porém quando se estava no estica epuxa de conceder ou não a palavra noCongresso da União a uma mulher indí-gena sem rosto, Aubry acertou na mos-ca de um calendário posterior quandodisse, palavras mais, palavras menos, "amarcha, não esta, a marcha lá, nas serrani-as, nos pequenos povoados, nos que não fa-lam, vão acontecer coisas" ..

Andrés Aubry não nos olhava comooutras pessoas que trabalham em comuni-dades ou com indígenas, quer dizer, comoa imagem dos perpétuos evangelizados.como eternas crianças, sem se importarcom os calendários que passem, como asfilhas e filhos que envergonham ou orgu-lham aos pais, ou como espelhos que, deuma mesma, de um mesmo, se pendurampara tapar a própria vida dos outros, dasoutras, com quem nos contatamos. espe-lhos que se mostram ou não, dependendo

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do auditório ou da conjuntura, com umanova espécie de oportunismo. Aqueles,aquelas que escutam alguma intervençãocerteira ou uma análise lúcida de uma com-panheira e de um companheiro, e, comcotoveladas cúmplices ao vizinho ou aber-tamente, dizem: "À essa, à esse nós, nos uni-mos (assim, em masculino), não aos zapatistas".

Não, Aubry nos olhava como se ospovos indígenas fossem um severo pro-fessor ou tutor. Como se fosse conscien-te de que a história pudesse virar de ca-beça pra baixo a qualquer momento, oucomo se nas comunidades zapatistas jáhouvesse ocorrido isto, onde foram osindígenas os evangelizadores, os profes-sores, e frente a isto não valeram os dou-torados no estrangeiro, a alta pilha delivros escritos, o ar descuidadamenteeuropeu ou propositalmente missioná-rio da vestimenta e atitude.

Ontem se disse algo aqui que deve terfeito Andrés Aubry se remexer na terraque o hospeda. Disse-se que nossos po-vos são ignorantes. Não sei como fica-mos nós que nos reconhecemos como

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alunos destes povos "ignorantes". Vol-tarei logo mais sobre isso.

Creio que (quando eu o ver lhe per-guntarei), Andrés Aubry via a parte dospovos zapatistas que está voltada paradentro. Como se este povo tivesse deci-dido revirar o mundo, mas também suapercepção, e tivesse feito com que suaessência, o que o define, fosse olhada pordentro, não por fora. Como se opassamontanhas fosse uma armadura demúltiplos usos: fortaleza, trincheira, es-pelho externo e, ao mesmo tempo, co-bertura de algo em gestação.

Em outros e outras também reconhe-cemos esta forma de nos olhar: Ronco,Dom Pab lo , Jorge, Estela, Felipe,Raymundo, Carlos. Eduardo, outro, ou-tra, ninguém, para mencionar só alguns.Desculpem-me se só aparece um nomefeminino, mas parece que nesta formade olhar não há quota de gênero.

Nem todos os olhares que nos olhamsão de tal maneira de reconhecer e agra-decer como a de Aubry.

Também existem os olhares para os

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quais somos, quem diria em plenoneoliberalismo! uma possibilidade de lu-cro a curto, médio ou longo prazo. Sãoos olhares do agiota político, ideológico,cientista, moral, jornalístico. Dessas for-mas de nos olhar falarei depois.

Todos estes tipos de olhares, tão dis-tintos uns dos outros, tão diferentes naforma de eleger a parte nossa que obser-vam, têm, contudo, algo em comum: sãoolhares de fora.

Além disso, é preciso dizer, esses olha-res têm o privilégio de ser os difundidose conhecidos em outras geografias e emoutros calendários.

Nosso olhar, nosso olhar para eles epara elas, tem o inconveniente (e ao mes-mo tempo a vantagem, mas disso falareidepois) de só ser conhecida pelo outro defora se vocês decidem ou permitem.

Se nosso olhar é de agradecimento,de reconhecimento, de admiração, derespeito, ou coincide com os que nosolham, então aí sim, que seja difundido,que se faça conhecer, que se destaque asabedoria, lucidez, pertinência.

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Mas se pelo contrário, se é de críticae questionamento, não importam as ar-gumentações e razões que se dê, entãoaí é preciso calar este olhar, tapá-Io.ocultá-Io.

Então aí se assinala nossa falta de re-ferência, nossa intolerância, nosso radi-calismo, nossos erros.

Bom, não "nossos", e sim" os errosde Marcos", "o mal do passamontanhasde Marcos", "a intolerância de Marcos","o radicalismo de Marcos".

Em uma das apresentações do livro"Noites de Fogo e Desvelo" uma jornalis-ta me explicava o feroz repúdio e a reite-rada calúnia contra nossa palavra em lu-gares antes abertos e tolerantes, dizendo"é que não entendem isso de ser conseqüentes".

Enfim, o que quero assinalar é quenos últimos três anos, é o olhar de vocêssobre nós que é mais conhecido.

Foram feitas fotos, documentários,gravações, reportagens, entrevistas, crô-nicas, artigos, ensaios, teses, livros, con-ferências, mesas redondas com seusolhares olhando-nos.

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Não vou me deter em assinalar deta-lhes como o fato de algumas pessoas es-creverem livros inteiros sobre o zapatismosem ter ido para além de San Cristobal deLas Casas, que algumas se apresentamcomo se estivessem vivendo em comuni-dades quando na realidade viviam nestafria e soberba Jovel, ou o caso extremode Carlos Tello Díaz, que escreveu umasuposta história do EZLN com materiaisproporcionados pelo serviço de inteligên-cia do governo e que, me permitam di-zer' não são nada inteligentes.

Quero, ao contrário, assinalar queseu olhar não só é de fora, e não só elegeuma forma de nos olhar (um enfoque,disse Dom Jorge), mas também elegeolhar só uma parte do que somos.

Ontem assinalei que nós reconhece-mos que não somos capazes (nem o que-remos ser) de abranger todo o espectrodo movimento anti-sistêmico no México.

Me parece que seu olhar olhando-nosdeveria reconhecer que não é capaz deabranger tudo o que foi, é, significa erepresenta nosso movimento.

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Não lhes pedimos humildade (ainda quecreio que para alguns não cairia mal receberum curso sobre o tema), e sim honestidade.

O olhar de vocês. cientistas sociais, in-telectuais, teóricos, analistas, artistas, é umajanela para que outras, outros, nos olhem.

No geral não se tem sido conscientede que essa janela está mostrando ape-nas uma pequena parte da grande casado zapatismo. assim que não cairia maladvertir àqueles que nos olham atravésde seus olhares.

Faz alguns anos, uma companheiracitadina fazia seu próprio reconto da his-tóría do zapatismo desde o primeiro de ja-neiro de 1994 e dizia: "se tem estado em tudo!".

Não era correto. Por sua conta esque-ceu de especificar que só apareciam os fatose atividades externas públicas do zapatismo.

Não estavam coisas e fatos que não têmpalavras para ser descritas: a resistênciacotidiana e heróica nas comunidades, ateimosia paciente das tropas insurgentes,o silencioso ir e vir por nossos territóriosdas autoridades organizativas. Ozapatismo então, aquele que sustenta e

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dá sentido ao que se olha, escuta, toca,degusta, fala, pensa e sente.

Sei que minha posição como Sup medá um lugar privilegiado para olharolhando-nos. Mas lhes sou sincero: nãoconsigo abranger todos os detalhes e,como nos confessou Ronco esta manhã,não deixo de me assombrar e de me ma-ravilhar, uma e outra vez, com o poucoque consegue abranger um coração mal-tratado, cheio de remendos e de cicatri-zes que, afortunadamente, não cessam.

Então vos digo com esse coração namão: no zapatismo o olhar não é um pri-vilégio individual e sim coletivo.

E acrescento que em nosso olharolhando-os, temos sempre nos esforçadopor tentar entendê-Ios, não por julgá-Ios.

"Por quê?" é a pergunta que anda emnosso olhar quando olhamos vocês.

"Por quê dizem isso, por quê pensam as-sim, por quê fazem assim?".

A verdade é que quase sempre nos-sas perguntas ficam sem respostas, mascontinuamos, aos trancos e barrancos,em altos e baixos. Depois de tudo há a

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segurança de que conosco sempre aca-bam existindo mais perguntas e dúvidasdo que certezas e respostas.

É o que vos digo, mas não para pedirreciprocidade. Creiam-me, na maioriados casos, além de respeito, lhes deve-mos gratidão.

É só para que olhem tudo o que in-clui, e exclui, em um olhar.

***

Se erro aí me corrigem, mas creio quefoi Paul Eluard quem disse que "Le mon-de est blue commme une oranqe", que meufrancês de sans papier traduz como "omundo é azul como um laranja".

Tem se visto também algumas dessasfotos tiradas do mundo a partir do espa-ço. A terra se olha, efetivamente, azul,mas bem poderia ser uma laranja.

Às vezes, nas madrugadas que me en-contram perambulando sem repousopossível, me pego trepado em uma espi-ral de fumaça e, lá de muito alto, nos olho.

Creiam-me que o que se consegue ver

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é tão belo que dói olhar.Não digo que seja perfeito, nem aca-

bado, nem que careça de vãos, irregula-ridades, feridas por fechar, injustiças porremediar, espaços por liberar.

Mas é algo que se move.Como se todo o mal que somos e car-

regamos, se mesclasse com o bom quepodemos ser e o mundo inteiroredesenhasse sua geografia e seu tempose refizesse com outro calendário.

Vá, como se outro mundo fosse possível.Venho depois aqui e escuto, então,

que alguém disse que nossos povos sãoignorantes.

Eu encho de tabaco o cachimbo, oacendo e então digo:

Caralho! Que honra poder ser alunode tanta e tão rica ignorância!

Gracias de novo

Subcomandate Insurgente Marcos.San Cristobal de Las Casas, Chiapas,

México.Dezembro de 2007.

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VII - Sentir o vermelhoOcalendário e a geografia da guerra

'.;4diferença entre o irremediável e onecessário é que para o primeiro não épreciso se preparar. E só a preparaçãofaz possível determinar o segundo".

Dom Durito da Lacandona

Antes, não só neste colóquio, mastambém nele, temos assinalado o cará-ter belicista do capitalismo.

Agora queremos acrescentar que aguerra não é só uma forma, é certamen-te a essência pela qual o Capitalismo seimpõe e se implanta na periferia.

É também um negócio em si mesmo.Uma forma de obter lucros.

Paradoxalmente, é na paz onde é

* Participações de Naomi Klein, Pablo GonzálesCasanova e Subcomandante Insurgente Marcos,na tarde de 16 de dezembro.

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mais difícil fazer negócios. E digo "pa-radoxalmente" porque se supõe que ocapital necessita de paz e tranqüilidadepara desenvolver-se. Talvez isso tenhasido antes, não o sei, o que vemos é queagora ele necessita da guerra.

Por isto a paz é anticapitalista.Tem se falado pouco disso, menos ain-

da no México, mas o peso econômico daindústria militar e seus gigantescos lucros(que obtêm cada vez que o supostamenteagonizante poder norte-americano deci-de "salvar" o mundo democrático de umaameaça fundamentalista ... que não seja asua, é claro), não são nada desprezíveis.

Nos aspectos teóricos, tal como assi-nalou há horas Jean Robert, e conformenosso entender é necessário questionar"os solos" sobre os quais se fincam ospés na terra uma concepção científica.Pensamos que o conceito de "guerra" dosanalistas teóricos anti-sistêmicos pode aju-dar a solidificar solos ainda pantanosos.

Contudo, não se trata apenas de umaquestão teórica. Robert Fisk, por um lado,e Naomi Klein, por outro, contribuem

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enormemente para tirar o véu que oculta-va a encenação da guerra no Iraque. Nãode um escritório ou a frente de ummonitor que administra a informação dosgrandes monopólios midíátícos. e sim sedirigindo pessoalmente ao lugar dos fatos,ambos chegam às mesmas conclusões.

Palavras mais, palavras menos, elesnos dizem: "Vá! Acontece que não se está li-bertando o Iraque da tirania de Hussein, e sim,simples e sensivelmente, está se fazendo negó-cios. E, inclusive, o aparente fracasso da in-vasão é também um negócio".

Vou lhes recomendar um livro: É este.'A doutrina do choque. A ascensão do capitalis-mo de desastre", de Naomi K.lein. É um des-ses livros que vale a pena ter em mãos. Éainda um livro muito perigoso. Seu perigoreside no fato que se entende o que ele diz.

Quando escrevo isto suponho queNaomi K.lein tenha enfocado os eixoscentrais do exposto em seu pensamen-to, assim que não repetirei. Só assinaloque se trata de aspectos do funciona-mento capitalista que são passados poralto ou ignorados por não poucos teóri-

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cos e analistas de esquerda no mundo.Dom Pablo Gonzáles Casanova é ou-

tro dos que avança no desmonte das ve-lhas e novas realidades do capitalismo noMéxico e no mundo, com um olhar ge-neroso no tempo e respeitoso na análisede nosso ir e vir como zapatistas.

Temos aqui dois dos representantesde duas gerações de analistas do sistemacapitalista, sérios, sérias, brilhantes, e,além disso, com algo que se costuma es-quecer no meio teórico e intelectual: são

~ pedagógicos, ou seja, se fazem entender.Dom Pablo Conzáles Casanova é um

homem sábio. É o único intelectual, quevi, em que os companheiros e compa-nheiras falam com confiança. Eu, quetenho mais de vinte e tantos anos viven-do com nossos povos, sei o quanto é di-fícil ter sua confiança.

Presenteamos Naomi Klein, junto comDom Pablo, com esta muriequita com umcaracol. O caracol em nossos povos é comose convoca as pessoas para o coletivo.Quando os homens estão nos milharais eas mulheres nos trabalhos, o caracol os

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convocam para se reunirem em assembléiae é daí que se fazem coletivo. Por isso di-zemos que ele é o "chamador do nós".

Nossa admiração e respeito coletivopara Dom Pablo, também são pessoais.Eu só posso dizer que, quando eu cres-cer, quero ser como Dom Pablo GonzálesCasanova. Devo acrescentar ainda que eleé um desses que nos provoca recaídaschauvinistas e nos faz dizer que é umahonra ser mexicano.

Dom Pablo, lhe presenteio com estelivro de Naomi Klein. Contém novos ele-mentos para entender novos caminhosque o capitalismo está seguindo. Se eu opresenteio é porque já tenho outro.

***

Quero aproveitar a ocasião para co-municar-lhes algo.

Esta foi a última vez, ao menos emum bom tempo, que saímos para ativi-dades deste tipo, me refiro ao colóquio,encontros, mesas redondas, conferênci-as, além de, obviamente, entrevistas.

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Algumas pessoas, que moderaram es-tas conferências coletivas, me apresenta-ram como o porta-voz do EZLN, e hoje demanhã li que alguém se refere a mim, alémde porta-voz, como "ideôloqo" do zapatismo.Óra! "Ideôloqo", e isso dói muito?

Observem, o EZLN é um exército. Bemdiferente, é verdade, mas é um exército.

E, além da parte que vocês queremver do Sup (quero dizer, além de suasbelas pernas), como porta-voz,"ideólogo" ou seja o que for, creio quejá têm idade para saber que o Sup é, alemdisso, o chefe militar do EZLN.

Como há tempo não ocorria, nossascomunidades, nossas companheiras ecompanheiros, estão sendo agredidas.

Já havia ocorrido antes, é verdade.Mas é a primeira vez desde aquela

madrugada de janeiro de 1994 que a res-posta social, nacional e internacional,tem sido insignificante ou nula.

É a primeira vez que estas agressõesprovêm descaradamente de governossupostamente de esquerda, ou que seperpetram com o apoio sem dissimula-

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ção da esquerda institucional.No jornal de hoje se pode ler que o

personagem representativo dos fazendei-ros chiapanecos que lhes falei ontem, osenhor Constantino Kanter, acaba de sernomeado funcionário no governoperredista de Juan Sabines ', em umaposição onde os recursos financeirospoderão ser destinados sem problemaspara os grupos paramilitares.

Esta é também a primeira vez que en-contramos fechados, à Flor e Canto, os es-paços onde as pessoas comuns se inteiravamdo que se passava com nosso movimento,com nossas reflexões e nossos chamados.

E não é só.Faz uns meses, por ocasião de uma

das mesas redondas que participamos naCidade do México, uma pessoa dessasque formam filas nas modernas "cami-sas pardas" do lopezobradorismo (e que têm

1. Licenciado em Ciências Políticas e AdministraçãoPública na Universidade Iberoamericana, governadorde Chiapas pelo PRD eleito em2006, ex-filiado ao PRIe filho de Juan Sabines Gutiérrez, que foi governadorde Chiapas, senador e deputado federal. (NT)

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como autoridades midiáticas cretinos ecaga tintas da estirpe de Jaimes Avillés, dojornal La Jornada), interpelou a nószapatistas (estávamos a ComandantaMíríam, o Comandante Zebedeo e eu) per-guntando, com tom petulante e inquisidor,palavras mais, palavras menos, por que nãodeixávamos que a "gente progressista destepaís avançasse na democratização do Mé-xico". Assim disse. Nós acabávamos dedetalhar uma série de fatos que fundamen-tavam nossa distancia do PRD e dolopezobradorismo que, certamente, a bemvestida senhora não escutou.

Aos argumentos que empuxernos. oscinco ou seis personagens enviados respon-deram primeiro com mentiras (que AML02

havia se afastado do governador Sabines edemais personagens que haviam se alinha-do com Felipe Calderón, que a CND eraanticapitalista, e coisas do gênero) e logocom suas palavras de ordem, "é um horror,estar com obrador". O Comandante Zebedeome perguntou depois o que estávamos fa-

2. Sigla usada para referir-se a Andrés ManuelLópez Obrador (PRD). (NT)

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zendo ali e quem era essa gente que nemsequer escutava o que dizíamos.

Uns dias depois, o bichano (com per-dão dos gatos) que preside o Partido daRevolução Democrática, Leonel CotaMontario. nos acusou de ter provocado,com nossas críticas, a derrota eleitoral(assim disse) de López Obrador nas elei-ções presidenciais de 2006.

ARtes, praticamente desde o arran-que da Sexta Declaração da Selva Lacandona,o Iopezobradorismo ilustrado encontrouabertos os espaços para nos atacar, aomesmo tempo em que nos fechavam emnós mesmos, se fechavam para nós.

Foi nos dito de tudo ao longo destecalendário. Parafraseando EdmundoVala dez, "a merda teve permissão" e nachamada intelectualidade progressista ede esquerda se disseram, desenharam eescreveram coisas que envergonharam amais reacionária imprensa de nosso país,mas que na esquerda institucional e emseus satélites foram festejadas.

Nas palavras de um intelectual de"esquerda", depois da fraude eleitoral de

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2006: "por essa não vamos perdoar Marcos".Estou assinalando um fato simples e

constatável. Um fato que previmos in-clusive desde antes de 19 de junho de2005, momento em que tornamos pú-blica nossa Sexta Declaração da SelvaLacandona, e para o qual nos preparamos.

Ocorreram também incidentes, so-bretudo no último percurso que fizemospara o Encontro de Povos Indígenas daAmérica, realizado em Vican, Sonora, quenos advertem e nos previnem.

Sabemos e entendemos que pensemque só ocorram coisas se os meios ou ummeio específico de comunicação às in-formam. Lhes digo que não é assim, jáfaz tempo que ocorrem muitas coisas quesão caladas ou ignoradas.

Entendemos que nossas posições nãosejam recebidas com a mesma aberturae tolerância de anos atrás.

Entendemos que se apóie e publique umavisão e uma posição política, e que se faça"casamentos" para deixar de fora qualquerquestionamento ou posição dissidente.

Entendemos também que para al-

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guns meios de comunicação só sejamosnotícia quando estamos matando oumorrendo, mas, pelo menos por hora,preferimos que fiquem sem suas notíci-as, e nós trataremos de seguir adiante emconsolidar o esforço civil e pacífico quese chama ainda A Outra Campanha, e, aomesmo tempo, estaremos preparadospara resistir somente com reações àsagressões sofridas por nós, sejam feitaspor exército, polícias ou paramilitares.

Nós, que temos estado em guerra,aprendemos a reconhecer os caminhospelos quais ela se prepara e se aproxima.

Os sinais de guerra no horizonte sãoclaros.

A guerra, como omedo, também tem odor.E agora já se começa a respirar seu

fétido odor em nossas terras.Nas palavras de Naomi Klein, deve-

mos nos preparar para o choque.Ademais, nestes dois anos que temos

estado fora, nossa produção teórica, re-flexiva e analítica tem sido mais abun-dante que nos 12 anos anteriores. O fatode que não tenham aparecido nos meios

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públicos habituais não significa que nãoexistam. Aí estão nossas concepções,caso alguém se interesse em discuti-Ias.questioná-Ias ou confrontá-Ias com o queagora ocorre no mundo e em nosso país.Talvez, se derem uma pequena olhada,verão aí, como advertência, o que hoje érealidade. Enfim, assim está. Talvez agorase entenda o tom como de "aí vos encar-rego" que nossas participações tem tido.

***

Quando as zapatistas, os zapatistasfalam, colocamos adiante o vermelhocoração que bate em coletivo.

Entender o que dizemos, fazemos efaremos é impossível se não conseguesentir nossa palavra.

Eu sei que os sentimentos não têmlugar na teoria, quanto menos na queagora anda aos tropeços.

Que é muito difícil sentir com a ca-beça e pensar com o coração.

Que não são menores as masturbaçõesteóricas que o apresentar desta possibili-

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dade criou e que as estantes de livrarias ebibliotecas então cheias de tentativas fali-das ou ridículas disto que vos digo.

O sabemos e entendemos.Mas insistimos que esta concepção é

correta, o incorreto é o lugar em que seestá querendo solucionar.

Porque para nós zapatistas. o proble-ma teórico é um problema prático.

Não se trata de promover o pragmatismoou de voltar às origens do empírismo, e simde assinalar claramente que a teorias não sónão devem isolar-se da realidade, mas, quepelo contrário, devem buscar nela os maçosque às vezes são necessários quando se en-contra um beco sem saída conceitual.

As teorias redondas, completas, aca-badas, coerentes, são boas para apresen-tar exame profissional ou para ganharprêmios, mas costumam virar cacos como primeiro vendaval de realidade.

Temos escutado nesta mesa luzes elampejos que, a nós zapatistas. nos dãoânimo e coragem.

Essa mescla explosiva de conheci-mento feito de sentimento com o que nos

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deslumbrou e comoveu John Berger;o questionamento lúcido e sem con-

cessões de Jean Robert;a análise concretamente implacável

de Sergio Rodríguez;a serena clareza das reflexões de

Francois Houtart;a honesta história do que se passou e

passará com um movimento que nós nãosó respeitamos, mas também admiramos,o do MST, contato pelo companheiroRicardo Gebrim;

o pensamento rico e abarcador de Jor-ge Alonso;

a entusiasta descrição de Peter Roset;a brilhante referência que Gilberto

Valdez fez das discussões teóricas que seprocessam agora na Cuba revolucionária;

as proveitosas provocações teóricasde Gustavo Esteva;

a nobre lucidez de Sylvia Marcos;os avanços teórico-analíticos de

Carlos Aguirre Rojas;a luz de grande entusiasmo de

Immanuel Wallerstein;e há apenas uns momentos, a sapi-

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ência irmã e companheira de Dom Pablo,e a inquietante iluminação sobre o ci-nismo capitalista de Naomi Klein.

Saudamos também as companheirase companheiros que moderaram as ses-sões deste colóquio.

Meu respeito àqueles que trabalha-ram na tradução das apresentações, eminhas desculpas sinceras pelos proble-mas que devem ter provocado os "mo-dos" de falar zapatista do senhor Coru-ja, Dezembro, Magdalena e Elías Contreras.

Há, contudo, algo mais que se vê queestá, porque se vê o que se faz.

Me refiro às companheiras e aoscompanheiros que dizemos vibrantes eluminosos, e, sobretudo, a todas as jovense todos os jovens indígenas que estudame trabalham aqui no CIDECI com o Dou-tor Raymundo Sánchez Barraza'.

3. A Universidade da Terra (UNITIERRA) e o Cen-tro Indígena de Capacitacion Integral FrayBartolomé de Ias Casas (CIDECI), onde foram rea-lizadas essas conferências, são coordenados porRaymundo Sánchez Barraza. A UNITIERRA e oCIDECI realizam uma formação pautada na cren-ça de que "outro mundo é possível", aqui e agora,

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Já que falamos em olhares, creio queo mínimo que podemos fazer é não só verseu trabalho (fundamentalmente forameles que tornaram possível este colóquio),mas também vê-los, a eles e a elas.

Agradeço também, e muito especial e ca-rinhosamente, a equipe de apoio da ComissãoSexta do EZLN.Gradas Julio. Gradas Roger.

Eu sei que estão estranhando o fato de es-tar dizendo isto, sendo que ainda falta a ho-menagem a Andrés Aubry que será amanhã ea declaração-advínha de seu doutorado.

Para isto, prevendo o dia de amanhã,chegarão minhas chefas e meus chefes doComitê Clandestino Revolucionário Indí-gena da zona Altos, junto com autorida-des autônomas e comissões de trabalho daJunta de Bom Governo de Oventik.

Elas e eles terão então nossa palavrae, como agora pela minha, por sua voz

e exercem uma educação comunitária, os cursossão gratuitos e atendem, inclusive, pessoas nãoescolarizadas, a maioria delas indígenas da regiãode Chiapas, que retomam posteriormente para suascomunidades como promotores de educação,agroecologia etc. (NR)

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falaremos o todo que somos.

***

Como última parte de nossa estendidaintervenção neste colóquio, quero explicaro que queremos assinalar com o título ge-ral, esse "Nem o centro, nem a periferia".

Nós pensamos que não se trata só deevitar as armadilhas e concepções, teó-ricas e analíticas neste caso, que o cen-tro põe e impõe à periferia.

Tampouco se trata de inverter e ago-ra mudar o centro gravitacional para aperiferia, para daí "irradiar" ao centro.

Acreditamos, ao contrário, que essaoutra teoria, da qual alguns dos traçosgerais foram apresentados aqui, deveromper também com essa lógica de cen-tros e periferia, deve então ancorar-se emrealidades que irrompem, que emergem,e, assim, abrir novos caminhos.

Se é que este tipo de encontro se re-pete, creio que estarão de acordo comi-go que a presença de movimentos anti-sistêmicos, como agora o do Movimento

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dos Sem Terra do Brasil, são particular-mente enriquecedores.

Bem, creio que é tudo.Ah!, antes que me esqueça: aí vos

encarrego.Muchas gracias a todas, a todos.

Subcomandante Insurgente Marcos.San Critóbal de Las Casas, Chiapas,

México.Dezembro de 2007.