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MUDANÇAS CLIMÁTICAS: APORTES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA CIÊNCIA E DA
TECNOLOGIA
JEAN MIGUEL1
MARKO_MONTEIRO 2
Resumo: O trabalho reflete sobre recentes contribuições dos Estudos Sociais da Ciência e da
Tecnologia (ESCT's) para a discussão das questões de mudanças climáticas. Discute os
efeitos performativos e as políticas das ciências exatas e naturais nos processos
governamentais do clima. Destaca-se que a relação entre ciência e política das mudanças
climáticas caracteriza-se pela concentração da produção de conhecimento em ciências
“duras”, como a modelagem computacional do clima, cujos resultados pretendem informar
processos políticos centralizados no Estado. Argumenta-se que tais processos pretendem
constituir-se em “tecnopolíticas” estatais das mudanças climáticas por meio de relações pouco
abertas à participação e reflexividade das ciências humanas e da sociedade em geral. A falha
ou sucesso dessas tecnopolíticas resulta na “despolitização” das mudanças climáticas; efeito
problemático, pois trata-se de situações de transformação socioambiental que envolvem risco
e grandes incertezas.
Palavras-chave: Mudanças Climáticas; Ciências Sociais, Estudos Sociais da Ciência e da
Tecnologia;
INTRODUÇÃO
Desde o estabelecimento do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC) em 1988, os potenciais impactos das mudanças climáticas globais chamaram a
atenção da comunidade científica e se tornaram um tópico importante nas agendas políticas
internacionais. Na medida em que as causas e consequências dessas mudanças se tornaram
evidentes, os cientistas sociais sentiram-se chamados a contribuir para o entendimento
científico a respeito do papel das sociedades humanas na mudança do clima (RAYNER e
MALONE, 1998).
Inicialmente, a relação entre ciências naturais e sociais nos estudos de mudanças
climáticas globais foi teorizada como sendo de mútua contribuição das agendas de pesquisa.
Enquanto cientistas naturais poderiam contribuir para as ciências sociais identificando as
atividades humanas que são as maiores causadoras das mudanças ambientais e prever os
possíveis impactos nas atividades humanas, os cientistas sociais, por sua vez, poderiam
1 Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Política Científica e Tecnológica, Brasil. E-mail:
[email protected] 2 Universidade Estadual de Campinas/ Departamento de Política Científica e Tecnológica, Brasil. E-mail:
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contribuir para as ciências naturais iluminando quais alterações ambientais diretamente
afetam o bem-estar humano de diferentes grupos sociais. Contudo, esse tipo de contribuição e
relação com as ciências naturais é apenas uma parte da agenda de pesquisa em ciências sociais
sobre mudanças climáticas.
Uma área de pesquisa social que têm contribuído significativamente para as pesquisas
sobre esse tema são os ESCT's. Esses estudos dedicam-se à compreensão da ciência e da
tecnologia a partir de um olhar dirigido a sua gênese social, iluminando as formas de
produção e validação do conhecimento científico e tecnológico e seu envolvimento em
decisões políticas e práticas sociais diversas (SISMONDO, 2010).
Ao elaborar um renovado número de questões às Ciências Sociais e às suas disciplinas
correlatas, a discussão feita pelos ESCT em torno das mudanças climáticas procuram
compreender como as pesquisas científicas em clima historicamente transformaram noções
básicas de natureza e fundamentaram as políticas climáticas internacionais (DEMERITT,
2001; MILLER e EDWARDS, 2001; MILLER, 2004; EDWARDS, 2010); quais os diferentes
modos pelos quais a ciência pode informar a política nas questões climáticas e quais são os
limites dessa relação (JASANOFF e WYNNE, 1998; WYNNE, 2010, HULME, 2009; BECK
e FORSYTH, 2015); como diferentes comunidades científicas produzem e validam
conhecimentos sobre mudanças climáticas e como diferentes países e ambientes
socioculturais podem perceber e valorizar diferentemente o papel da ciência nesses assuntos
(SHACKLEY, 2001, HULME, 2009; JASANOFF 2010; MAHONY, 2014); como e com
quais consequências alguns tipos de conhecimento sobre o clima se tornam predominantes nas
agendas científicas e políticas nacionais e internacionais e quais conhecimentos científicos
não recebem o mesmo prestígio nessas agendas (LAHSEN, 2002, 2005; SHACKLEY, 1997;
PETTINGER, 2007, HULME, 2013, MAHONY, 2014); como conhecimentos tradicionais e
indígenas – frequentemente considerados menos relevantes do que o conhecimento científico
– podem enriquecer o conhecimento climático-ambiental e ajudar a perceber os limites
heurísticos e instrumentais das tecnociências modernas aplicadas as políticas climáticas
(HEATHER, 2007, CRATE e NUTTALL, 2009; TADDEI, 2013; HASTRUP e
SKRYDSTRUP, 2013). De um modo geral, tais questões interrogam de maneira crítica e
reflexiva os modos de produção de conhecimentos e suas interrelações sociais e políticas,
dirigindo um novo olhar a essas relações, e gerando oportunidades para que as decisões
públicas que envolvem conhecimentos específicos se tornem mais participativas.
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Não obstante, apesar da crescente reivindicação de que as ciências sociais devem
adquirir maior espaço nas questões climáticas, sua efetiva incorporação na formulação de
políticas climáticas internacionais e nacionais ainda não foi alcançada (VICTOR, 2015). Tão
pouco, é contemplada a discussão dos ESCT's sobre a produção de uma ciência mais
democratizada e de uma produção de conhecimento mais participativa, na qual as ciências
naturais e exatas – que massivamente predominam em painéis científicos sobre clima –
estejam abertas ao debate (BECK; FORSYTH, 2015). Nesse sentido, não se concretiza na
produção da ciência e da política climática a proposta de uma comunidade ampliada de pares
para pensar e tratar questões climáticas, ou seja, não se observa seriamente a condição “pós-
normal” das mudanças climáticas na qual “os fatos são incertos, os valores, controvertidos, as
apostas, elevadas e as decisões, urgentes” (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 219).
Esse trabalho discute criticamente a produção de Ciência e Tecnologia (C&T) a partir
de contribuições de ESCT na área de clima. Discute-se a predominante definição das
mudanças climáticas e dos riscos associados pelas ciências naturais e exatas, que em nossa
visão restringe as possibilidades políticas e tornam menos democráticas as escolhas de
conhecimento e ações locais. Destaca-se o caráter performativo das ciências naturais e exatas
em relação ao horizonte criado para as decisões públicas em mudanças climáticas.
Argumenta-se que esse caráter “tecnopolítico” das mudanças climáticas conduz: a) à
manutenção de um modo de inteligibilidade e interpretação das mudanças climáticas que é
unidimensional, que ignora outras formas de entender e viver no clima; b) à insistente relação
linear na qual a autoridade da ciência deve preceder a efetiva decisão política; c) à
centralização do processo decisório no aparato burocrático – administrativo do Estado.
Para essa discussão, o texto está organizado em 4 sessões que incluem essa introdução
e a conclusão. Em um primeiro momento são destacados alguns aspectos da predominante
definição tecnocientífica das mudanças climáticas nas redes de governança global do clima.
Posteriormente, discute-se aspectos performativos das ciências naturais e exatas,
particularmente, da modelagem computacional do clima: tecnociência central na produção de
conhecimento nessa área. Finaliza-se retomando o argumento da importância dos ESCT's para
um novo olhar sobre os processos de produção de conhecimento e tomada de decisão em
mudanças climáticas.
GOVERNANÇA CLIMÁTICA E PREDOMÍNIO DA DEFINIÇÃO TECNOCIENTÍFICA
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Dizer que as questões climáticas atuais estão profundamente associadas à C&T não é
nenhuma novidade. Sabe-se que as causas das mudanças climáticas são atribuídas às emissões
antropogênicas de carbono que são produzidas majoritariamente pela queima de combustíveis
fósseis, principal fonte de energia das sociedades industriais. Com efeito, o paradigma
tecnológico baseado na queima desses combustíveis se configura como o problema central
das questões climáticas contemporâneas (ORESKES; CONWAY, 2010).
Além disso, a C&T é fundamental para que possamos compreender as mudanças
climáticas e agir em resposta as suas causas e efeitos. Na história de como entendemos o
clima e suas mudanças, é marcante a presença do conhecimento científico como uma
autoridade que testemunha a verdade sobre as causas e efeitos desse fenômeno (FLEMING,
1998; DEMERITT, 2001; WEART, 2008; HEYMANN, 2010). Com efeito, nas negociações
climáticas internacionais, a confiança no poder de pesquisas científicas estratégicas para
influenciar e orientar políticas, tradicionalmente, tem sido o meio pelo qual se tenta alcançar
decisões mais adequadas e obter consenso entre as nações (JASANOFF e WYNNE, 1998;
HULME, 2009; KELLER, 2009; BECK e FORSYTH, 2015). A C&T, portanto, possui um
papel decisivo no processo de elaboração das possíveis soluções e na ação política diante das
questões que surgem com as mudanças climáticas.
Nas últimas décadas, a interação entre ciência e política das mudanças climáticas foi
dominada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Encarregado
de oferecer o conhecimento científico para os Estados-Nação signatários da Convenção
Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC), o IPCC tem exercido um
considerável poder epistemológico definidor das questões climáticas globais. Os relatórios de
avaliação do conhecimento científico produzidos pelo painel constituem o fundamento
científico sobre o qual se constata que mudanças climáticas em escala global estão em curso.
Essa constatação, por sua vez, legitima as reivindicações de ações políticas em escala global
que são feitas, por exemplo, pelas agências da ONU e pelos movimentos ambientalistas em
todo o mundo (DEMERITT, 2001; MILLER, 2004; BECK e FORSYTH, 2015).
Apesar da predominância e legitimidade da tecnociência reunida pelo IPCC, as
mudanças climáticas colocam desafios sem precedentes para as normas e práticas científicas e
os modos como se fazem políticas globais tendo como base esses conhecimentos. A
pretendida relação linear na qual a autoridade da ciência deve preceder a efetiva decisão
política não tem alcançado até o momento a consolidação das políticas globais para a redução
das emissões de carbono (WYNNE, 2010; BECK e FORSYTH, 2015). Entretanto, a
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ineficácia dos acordos é geralmente percebida como uma controvérsia eminentemente política
na qual a racionalidade do conhecimento científico foi bloqueada pelos interesses econômicos
e políticos em jogo. A discussão a respeito dos motivos da ineficácia dos acordos globais
frequentemente excluí do problema a C&T que dá substância a essas negociações tentando
manter as controvérsias exclusivamente na esfera econômica e política (HULME, 2009).
Dessa maneira, a C&T é preservada como a última cidadela na qual está guardada a razão
pois se percebe que sem a objetividade e neutralidade científica toda possibilidade de acordo
internacional poderia estar condenada à ruína. Mas o estabelecimento dessa condição pode ser
visto ele mesmo como um processo de disputa e, portanto, tornar-se um objeto de análise
social e política (JASANOFF e WYNNE, 1998).
TECNOPOLÍTICAS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
A composição de redes internacionais como a UNFCCC e o IPCC ocorreu através de
um processo histórico de mútua construção da ciência e da política climática global
(MILLER, 2004; EDWARDS, 2010). Trata-se de uma forma singular de política ontológica
do clima global que não está voltada para a multiplicidade das percepções e vivências no
clima, mas para uma concepção unidimensional e sistêmica do ambiente constituída,
principalmente, por meio das ciências naturais e da modelagem computacional da dinâmica
do sistema terrestre (LOVBRAND; STRIPPLE; WINAN, 2009). Essas práticas científicas
estão estreitamente ligadas à concepções singulares de como governar as mudanças
climáticas.
Para citarmos um exemplo dessa relação pretendida entre tecnociência e tomada de
decisão vejamos o Plano Nacional sobre Mudanças Climáticas (PNMC) elaborado pelo
governo brasileiro. Nesse documento declara-se:
Quando se considera a questão de mudança no clima no Brasil, depara-se com o
problema da falta de cenários confiáveis do futuro possível do clima no país
[…]Para a elaboração desses estudos há a necessidade de desenvolvimento de
modelos de mudança de clima. […] a partir daí, poderão ser elaborados projetos de
adaptação específicos com o embasamento científico apropriado, possibilitando uma
alocação mais racional de recursos públicos (BRASIL, 2007, p.87).
Trata-se do incentivo ao desenvolvimento de modelos e simulações computacionais
para prever mudanças climáticas no Brasil. Nas negociações internacionais das políticas
climáticas, os modelos computacionais do clima se tornaram peças centrais que, de maneira
mútua, reforçam a autoridade dos formuladores de política e a hegemonia epistêmica da
simulação computacional como modo de produzir conhecimento sobre o clima global
(SHACKLEY, 1997; HULME, 2013). Tais projetos das ciências exatas e naturais têm
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recebido grande parte dos recursos públicos e incentivos de políticas científicas para a área de
clima no Brasil, os quais são justificados pela declarada necessidade de produzir
conhecimento científico para orientar a tomada de decisão. A “necessidade de modelos de
mudanças de clima” – conforme declarado no PNMC – segue uma tendência global que
considera que a ciência capaz de orientar a decisão política deve ser aquela de caráter
preditivo, produzida por meio de onerosas infraestruturas supercomputacionais capazes de
simular como será o clima no futuro, possibilitando, assim, que tomadores de decisão possam
antecipar ameaças e, de maneria “racional”, planejar medidas de adaptação a essas mudanças.
Entretanto, tornar central uma tecnologia como a modelagem global do clima para
prever futuros climáticos e planejar políticas climáticas é algo que possui efeitos
extremamente limitadores da participação pública nesses processos. O primeiro deles, diz
respeito ao fato de que apenas um número seleto de países no mundo possui recursos para
construir esses modelos computacionais globais. A modelagem computacional demanda
recursos para a compra de supercomputador e para a formação de recursos humanos altamente
especializados para desenvolver modelos computacionais de alta complexidade. Assim sendo,
quem possui condições para liderar a produção desse tipo de conhecimento são países
desenvolvidos, que acabam se tornando os maiores contribuintes dos futuros climáticos
incluídos nas bases do IPCC (MONTEIRO, 2014; MIGUEL, 2016; MIGUEL; ESCADA;
MONTEIRO, 2016).
Além disso, em termos dos usos dessa tecnociência para orientar políticas públicas,
uma questão permanece latente: nós podemos confiar nos modelos computacionais para
basear nossas ações em relação à questão das mudanças climáticas? Essa questão é difícil de
responder com um simples e sonoro “sim”, principalmente, quando se esclarece que os
modelos não fazem declarações “verdadeiras” ou “falsas” sobre a natureza, mas são
ferramentas úteis ou não para um propósito específico (MULLER, 2010).
O sociólogo Brian Wynne (2010), por exemplo, através de estudos empíricos
realizados em projetos de modelagem na Europa, argumentou que a grande questão sobre se
os modelos computacionais do clima atualmente podem prever o futuro ainda não tem
resposta: “The original perfectly explicit founding question is long-term climate prediction
scientifically do-able? Has been answered by default, and is no longer explicity posed”
(WYNNE, 2010, p. 292).
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Tratando-se especificamente da incerteza na produção do conhecimento científico,
tem sido argumentado que os modelos não podem ser verificados no mesmo sentido em que
as teorias nas ciências naturais são verificadas, isto é, através de experimentos que atestam
sua veracidade (ORESKES, et. al. 1994). Identificar erros nos modelos é particularmente
difícil no caso de simulações de sistemas complexos como o clima terrestre, principalmente,
quando essas simulações são realizadas em uma escala temporal de centenas de anos no
futuro. Não há, portanto, a possibilidade de haver uma observação daquilo que foi simulado
como ocorre nas simulações para a previsão do tempo que é calculada em dias.
Por essas razões, os modelos climáticos raramente são submetidos à revisão por pares.
Estudos de modelagem de larga escala nunca são replicados inteiramente por outros cientistas
porque isso requer igual capacidade de pesquisa e idênticos modelos conceituais (LAHSEN,
2005). Desse modo, a replicação no campo da modelagem climática, assim como em outras
ciências, nunca reproduzirá os mesmos resultados obtidos mesmo que sejam usados os
mesmos modelos e as mesmas condições iniciais para rodá-los (MULLER, 2010,
EDWARDS, 2010). Por essas razões torna-se difícil o processo de validação dos modelos
climáticos, bem como, a obtenção de maior transparência a respeito de seus resultados.
Ainda, modelos computacionais são formas de conhecimento extremamente redutoras
da complexidade com que o clima e suas mudanças podem ser percebidos e vivenciados. A
antropóloga Anna Tsing (2005), ao conhecer a prática da modelagem climática, confessou ter
ficado surpresa com o fato de que na modelagem “a escala global tem precedência, pois é a
escala do modelo” (idem, p. 103). Seu espanto ocorreu, pois, a modelagem produz um
conhecimento que parte de uma visão “de fora da Terra” que pretende produzir
conhecimentos e substanciar políticas em escalas locais. Segundo a antropóloga “é difícil
compreender e aceitar que o local seja deduzido de uma matriz global, pois isso implica em
uma simplificação e redução extrema das múltiplas localidades e suas diferentes
temporalidades e espacialidades” (Ibidem, p. 104). Em sua análise a antropóloga indica que o
status ontológico do clima global pode auxiliar na construção de uma ideia poderosa de que os
problemas climáticos na atualidade devem ser entendidos e governados prioritariamente a
partir de uma escala global, na qual os Estados-Nação tornam-se atores preponderantes. De
fato, autores têm demonstrado que tal concepção do clima tem se expressado de maneira
contundente na desconsideração de conhecimentos “locais”, considerados “não-científicos”
que são subjulgados nesse processo de constituição e governo de uma realidade global dos
riscos ambientais (HEATHER, 2007, CRATE e NUTTALL, 2009; TADDEI, 2013;
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HASTRUP e SKRYDSTRUP, 2013); e que isso tem conduzido à centralização das ações
políticas no Estado (MAHONY, 2014; O'LEAR; DALBY, 2015).
Com efeito, vários estudos têm indicado que questões ambientais como as mudanças
climáticas, ao serem percebidas em uma escala global e traduzidas em termos de ameaça à
vida humana e às demais formas de vida, constroem-se como uma oportunidade para que os
Estados-Nação demonstrem sua capacidade de “fazer viver” estabelecendo estratégias
centralizadoras de conhecimento e poder (TADDEI, 2013; BRAUM, 2014; TURHAN,
ZOGRAFOS, KALLIS, 2015). Na expectativa de mudanças ambientais e sociais de grande
proporção, exige-se que o Estado seja preditivo e detenha condições próprias para antecipar
ameaças climáticas (MAHONY, 2014). Tais condições são construídas com o
desenvolvimento tecnocientífico que produz enquadramentos específicos dos riscos futuros
como, por exemplo, os cenários climáticos modelados. Tais enquadramentos produzidos pela
ciência constituem a ótica geométrica e sinótica do Estado; que são sua forma de
interiorização da intangível realidade das mudanças climáticas em rotinas administrativas e
burocráticas. Trata-se, portanto, da constituição de “tecnopolíticas das mudanças climáticas”
(MIGUEL, 2016) cuja pragmática possui efeito “despolitizador” dos processos decisórios
pois fortalece exclusivamente a racionalidade governamental do Estado (SWYNGEDOUW,
2011).
“POLITIZAR” A TECNOCIÊNCIA CLIMÁTICA
Na perspectiva dos ESCT, trazer à luz do debate a própria constituição do
conhecimento científico e sua maneira específica de definir as questões climáticas e
influenciar a política se torna necessário para que a reflexão sobre os constrangimentos e
possibilidades de uma efetiva ação política possam ser melhor compreendidos. Para isso,
precisa-se compreender melhor e discutir quais conhecimentos científicos têm sido centrais
para orientar a formulação das políticas climáticas; como tais conhecimentos ganham e
exercem tal autoridade; qual a participação e os efeitos de diferentes ciências no processo de
formulação de política e tomada de decisão; quais as condições materiais, recursos e custos
exigidos para produzir tais conhecimentos; quem os produz e com quais orientações; o que a
predominância da ciência nesses processos nos permite entender e o que excluí do campo da
nossa visão.
Nesse trabalho argumentamos que a predominante definição das mudanças climáticas
e dos riscos associados pelas ciências naturais e exatas restringe as possibilidades políticas, e
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tornam menos democráticas as escolhas de conhecimento e ações locais. Tratam-se de
“tecnopolíticas das mudanças climáticas” (MIGUEL, 2016) que têm como endereço ações
centralizadas no Estado, que são de caráter administrativo, burocrático e despolitizador das
questões climáticas. Ao contrário, é preciso “politizar” a tecnociência climática, isto é, deve-
se trazê-la efetivamente para o âmago dos debates políticos que podem ser mais participativos
e democráticos. Para tanto, as contribuições das ciências sociais e dos ESCT's podem ajudar a
problematizar a pretendida relação linear na qual as ciências exatas e naturais querem “dizer a
verdade ao poder”: plano que tem se demonstrado falho pois carece de robustez social e apelo
político.
Politizar a tecnociência climática também envolve questionar a concentração do
planejamento e das ações climáticas no Estado por meio do embasamento exclusivo na
produção tecnocientífica das ciências. Com isso, quer-se interferir no processo de
fortalecimento mutuo entre essas tecnociências e o Estado, acrescentando dimensões humanas
à compreensão das mudanças climáticas. Isso envolve trazer a multiplicidade das diferenças
culturais; desigualdades econômicas e sociais; e diferentes formas de pensar e sentir as
transformações ambientais em curso para o centro do processo decisório.
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