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1 Mudanças globais e locais – implicações para o futuro do enfoque territorial do desenvolvimento rural na América Latina Arilson Favareto e Julio Berdegué (texto a ser publicado em 2017/2018) Introdução 1 Uma das maiores inovações nas narrativas e nas teorias sobre desenvolvimento rural do final do século XX foi a emergência daquilo que viria a ser conhecido como enfoque territorial. De acordo com Veiga (2002-a), a origem desta abordagem, em solo europeu nos anos noventa resultava dos desdobramentos de três campos de reflexão. Primeiro, o desafio de fazer frente à tendência declinante da agricultura na composição setorial das economias e na geração de empregos, ocupações ou na formação das rendas das famílias rurais. Segundo, a economia espacial e a crítica à especialização, industrial ou agrícola, e a consequente aposta na diversificação intersetorial das economias locais como fonte de dinamismo e forma de inserção dos territórios na economia globalizada. E terceiro, o planejamento regional e a necessidade de sua reinvenção frente à falência dos modelos tipo top down típicos do período anterior. O enfoque territorial surgia como a concretização das convergências destes três campos e se traduzia na necessidade de olhar para as regiões rurais levando em conta elementos que permitissem ir além dos fenômenos agrícolas e agrários, operar com a complementaridade entre os distintos setores da economia e da vida social local, e fazê-lo mobilizando as forças vivas em torno de um projeto de futuro capaz de combinar dinamismo com coesão social. Território, em tal visão, não é, portanto, somente uma escala de aplicação de políticas públicas, mas um domínio intrincado de dimensões substantivas cujo entendimento e mobilização num certo sentido é o que permite ir além do economicismo ou do agrarismo que marcou a geração anterior de iniciativas para o desenvolvimento rural (Favareto, 2007). Pouco depois, na virada dos anos noventa para a década seguinte, este debate chega ao contexto latino-americano agregando aos desafios originais que estavam na base da emergência do novo enfoque alguns outros, relativos à história local e às especificidades regionais (Schejtman&Berdegué, 2003; Abramovay, 2003; Veiga, 2002-a). Diferente do contexto europeu, se trata agora de sociedades profundamente desiguais, com instituições e infraestruturas precárias e altos índices de pobreza e privação de bem estar. Mais que isto, são sociedades com uma urbanização precária, nas quais o peso do setor primário seja na vida econômica ou na vida política ainda guarda alto grau de importância, e marcadas por um contexto típico de democracias jovens, muitas vezes com instabilidades institucionais. O enfoque territorial é, então, reinterpretado e um significativo conjunto de estudos e de experiências de políticas públicas são postas em prática (Cliche, 2014; Graziano da Silva, 1997; Sepúlveda et al., 2003; Abramovay, 2000, Veiga et al., 2001; IICA, 2001; Pérez, 2001; Chiriboga, 2002; De Janvry y Sadoulet, 2002; Echeverri y Ribero ,2002; Schejtman y Berdegué, 2003 e 2004; Echeverría, 2003; Caron, 2005; Favareto, 2007).)). Nelas, outros temas ganharam mais 1 Estas páginas são a versão escrita de duas exposições sobre o mesmo tema realizada pelos autores durante o III Congresso Internacional Gestão Territorial para o Desenvolvimento Rural, realizado na Universidade de Brasília em Novembro de 2016. Por esta razão predomina um tom esquemático e coloquial do texto. Referências bibliográficas listadas ao final remetem o leitor a obras onde os temas abordados são tratados de maneira mais sistemática e aprofundada.

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Mudanças globais e locais – implicações para o futuro do enfoque

territorial do desenvolvimento rural na América Latina

Arilson Favareto e Julio Berdegué (texto a ser publicado em 2017/2018)

Introdução1

Uma das maiores inovações nas narrativas e nas teorias sobre desenvolvimento rural do final do

século XX foi a emergência daquilo que viria a ser conhecido como enfoque territorial. De

acordo com Veiga (2002-a), a origem desta abordagem, em solo europeu nos anos noventa

resultava dos desdobramentos de três campos de reflexão. Primeiro, o desafio de fazer frente à

tendência declinante da agricultura na composição setorial das economias e na geração de

empregos, ocupações ou na formação das rendas das famílias rurais. Segundo, a economia

espacial e a crítica à especialização, industrial ou agrícola, e a consequente aposta na

diversificação intersetorial das economias locais como fonte de dinamismo e forma de inserção

dos territórios na economia globalizada. E terceiro, o planejamento regional e a necessidade de

sua reinvenção frente à falência dos modelos tipo top down típicos do período anterior. O

enfoque territorial surgia como a concretização das convergências destes três campos e se

traduzia na necessidade de olhar para as regiões rurais levando em conta elementos que

permitissem ir além dos fenômenos agrícolas e agrários, operar com a complementaridade

entre os distintos setores da economia e da vida social local, e fazê-lo mobilizando as forças vivas

em torno de um projeto de futuro capaz de combinar dinamismo com coesão social. Território,

em tal visão, não é, portanto, somente uma escala de aplicação de políticas públicas, mas um

domínio intrincado de dimensões substantivas cujo entendimento e mobilização num certo

sentido é o que permite ir além do economicismo ou do agrarismo que marcou a geração

anterior de iniciativas para o desenvolvimento rural (Favareto, 2007).

Pouco depois, na virada dos anos noventa para a década seguinte, este debate chega ao

contexto latino-americano agregando aos desafios originais que estavam na base da emergência

do novo enfoque alguns outros, relativos à história local e às especificidades regionais

(Schejtman&Berdegué, 2003; Abramovay, 2003; Veiga, 2002-a). Diferente do contexto

europeu, se trata agora de sociedades profundamente desiguais, com instituições e

infraestruturas precárias e altos índices de pobreza e privação de bem estar. Mais que isto, são

sociedades com uma urbanização precária, nas quais o peso do setor primário seja na vida

econômica ou na vida política ainda guarda alto grau de importância, e marcadas por um

contexto típico de democracias jovens, muitas vezes com instabilidades institucionais. O

enfoque territorial é, então, reinterpretado e um significativo conjunto de estudos e de

experiências de políticas públicas são postas em prática (Cliche, 2014; Graziano da Silva, 1997;

Sepúlveda et al., 2003; Abramovay, 2000, Veiga et al., 2001; IICA, 2001; Pérez, 2001; Chiriboga,

2002; De Janvry y Sadoulet, 2002; Echeverri y Ribero ,2002; Schejtman y Berdegué, 2003 e

2004; Echeverría, 2003; Caron, 2005; Favareto, 2007).)). Nelas, outros temas ganharam mais

1 Estas páginas são a versão escrita de duas exposições sobre o mesmo tema realizada pelos autores durante o III Congresso Internacional Gestão Territorial para o Desenvolvimento Rural, realizado na Universidade de Brasíl ia em Novembro de 2016. Por esta razão predomina um tom esquemático e

coloquial do texto. Referências bibliográficas l istadas ao final remetem o leitor a obras onde os temas abordados são tratados de maneira mais sistemática e aprofundada.

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relevo quando comparado com o contexto de origem do enfoque territorial: o combate à

pobreza, o fortalecimento de instituições inclusivas (nos termos de Acemoglu e Robinson, 2012),

a construção de infraestruturas básicas, a afirmação de direitos de povos tradicionais e de

segmentos mais vulneráveis da população rural.

Passados aproximadamente quinze a vinte anos desde a introdução desta narrativa no contexto

latino-americano, e para pensar qual é o futuro do enfoque territorial, é preciso buscar respostas

para uma tripla pergunta. Quais são as principais mudanças que se projetam em escala global

no futuro próximo? Como a América Latina rural se posiciona nos marcos destas mudanças? E,

considerando a experiência recente de programas experimentados, segue o enfoque territorial

sendo uma resposta promissora? O objetivo deste texto, ao apresentar elementos que ajudem

a responder às perguntas acima, busca sustentar o seguinte argumento: no futuro próximo o

enfoque territorial do desenvolvimento de regiões rurais na América Latina seguirá sendo o

melhor caminho para fazer frente às mudanças em curso; mas para que possa atingir este

intuito, todavia, precisará assumir conteúdos inteiramente novos, dando forma a uma segunda

geração de estudos e políticas, superando os limites experimentados até aqui.

Para isto, as páginas a seguir estão organizadas nas seguintes partes, além desta introdução. A

próxima seção apresenta um conjunto de mudanças em curso no plano internacional e suas

repercussões para as tendências gerais do desenvolvimento das regiões rurais. Em seguida, são

introduzidas algumas mudanças específicas no contexto latino-americano. A seção seguinte

aborda a trajetória recente das políticas para o desenvolvimento territorial num breve balanço

crítico, voltado a situar os principais avanços obtidos, mas também, e principalmente, os

desafios a superar. Uma breve conclusão, ao final, sublinha as mensagens principais das seções

anteriores e os caminhos para fazer frente a estes desafios identificados.

1. Mudanças globais e suas implicações para o contexto latino-americano

Assim como a emergência do enfoque territorial na América Latina guarda relação com um

conjunto de mudanças estruturais, que afetavam as formas de inserção das regiões rurais, para

se entender as perspectivas futuras das políticas e possibilidades do desenvolvimento rural é

igualmente importante identificar as principais tendências em curso no plano regional e global.

. O tema, entretanto, é demasiado amplo. Daí a necessidade de priorizar certos vetores que

ajudem a compreender condicionantes da inserção dos países latino-americanos no contexto

das próximas décadas. Três vetores são aqui priorizados: as mudanças demográficas e suas

repercussões para a demanda global; as relações entre crescimento econômico e desigualdades

e como isto afeta a agenda dos Estados e dos agentes econômicos; mudanças climáticas e seus

efeitos para as formas de se pensar a relação entre as economias e a base de recursos naturais.

A escolha por estes três temas se justifica pela sua importância atual e futura. As formas de

inserção internacional sempre foram um tema sensível na formação dos países latino-

americanos, marcados pela inserção subordinada na ordem internacional em todas as etapas de

sua história. A relação entre crescimento e desigualdade se projeta como um dos grandes

desafios do mundo contemporâneo, marcado pelo desemprego estrutural e pela dificuldade de

financiamento das políticas de bem-estar. E as mudanças climáticas representam o mais

delicado conflito e que afeta as bases das formas como até hoje se deram as relações entre

sociedade e natureza. A agenda dos países e, portanto, do mundo acadêmico, político e

econômico será inevitavelmente marcada pela busca por respostas nestes três domínios.

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Mudanças demográficas

Começando pelas mudanças demográficas, o passado recente tem sido marcado por uma

explosão demográfica. Para se ter uma ideia, no século XVIII a população mundial cresceu em

397 milhões de pessoas. No século XIX o planeta passou a ter 563 milhões de pessoas a mais.

No século XX este acréscimo foi de nada menos que 4,5 bilhões de habitantes. Isto é, em apenas

cem anos a população mundial praticamente quadruplicou. Diante deste número não é difícil

entender a magnitude das mudanças climáticas e de conflitos socioambientais envolvendo a

base de recursos naturais do planeta. As projeções das Nações Unidas (UN, 2015-a) falam em

um possível novo acréscimo no decorrer do século XXI, novamente na casa dos 4 bilhões de

pessoas. Neste novo número, como se vê, a tendência já não é mais de continuidade da explosão

demográfica. Há um arrefecimento na curva de crescimento populacional e um dos cenários

considerado o mais plausível aponta para uma estabilização da população mundial entre 9,5 e

11 bilhões de habitantes no decorrer deste século. Ainda é muito, mas é algo significativamente

diferente da tendência experimentada até aqui.

Esta tendência geral se manifesta de maneira diferenciada nos distintos continentes e mesmo

dentro dos continentes. Em termos de diferenças entre continentes, o crescimento já vem se

concentrando principalmente nos países da África e, em menor medida em termos relativos, na

Ásia , justamente onde estão os maiores índices de pobreza. Enquanto os países mais ricos já

têm seu contingente populacional estabilizado, os países de renda média, nos quais se

concentrou o crescimento das décadas recentes, já caminham para esta estabilização nas

próximas décadas. A partir de então, o crescimento se dará sobretudo nos países mais pobres,

destacadamente na África. O mundo será ainda mais “asiático e africano”, com uma

concentração da população nos países de renda média, mas com o crescimento se dando

sobretudo nos países mais pobres. É o que mostram os gráficos 1 a 3.

Gráfico 1

Fonte: Alves (2015), com base em UN (2015-a).

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Gráfico 2

Fonte: Alves (2015) com base em UN (2015-a)

Gráfico 3

Fonte: Alves (2013) com base em UN (2012)

Outro aspecto relevante a ser destacado é que estas tendências demográficas não vêm sendo

acompanhadas, como muitas vezes imagina o senso comum, de uma hipermetropolização do

mundo. Uma vez mais recorrendo às projeções dos estudos demográficos das Nações Unidas

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(UN, 2013), as tendências projetadas apontam que em 2030, 40% da população mundial ainda

seguirá vivendo em áreas consideradas rurais; outros 23% estarão vivendo em centros urbanos

com menos de 300.000 habitantes, e outros 4% em cidades com menos de 500.000 habitantes.

Considerando as limitadas estimativas existentes sobre a distribuição da população rural e os

dados urbanos acima citados, Berdegué et al (2014) estimam que 75% da população mundial

vive na “porosa interface entre o urbano e o rural”, formada pela população urbana de cidades

pequenas e médias e pela população rural próxima destas localidades. Não chegará a um terço

da humanidade o contingente de pessoas que estará vivendo em metrópoles com mais de um

milhão de habitantes.

Quais são as consequências destas tendências em curso e das projeções para o futuro da

América Latina e em especial para a porção rural da região? Uma primeira possível consequência

é que a demanda por commodities, que representou um dos principais vetores de crescimento

da região na década passada deve enfrentar um cenário distinto. A demanda quase certamente

seguirá alta, por conta do crescimento asiático e africano e das necessidades de consumo destes

países. Isso significa um incentivo para o aprofundamento da dependência das exportações

latino-americanas concentrada no setor primário. Porém, embora possa ocorrer, é difícil

imaginar a volta dos patamares de preços relativos experimentados nos anos 2000,

impulsionados pelo crescimento asiático, sobretudo chinês, que agora já é mais moderado. Uma

segunda consequência importante para América Latina é que os espaços rurais seguirão sendo

muito importantes, não só em termos estratégicos, mas também em termos simplesmente

numéricos. O crescimento demográfico puxado pelas grandes metrópoles, típico dos anos

oitenta aos anos noventa já dá lugar a um novo dinamismo puxado pelas cidades de porte médio

e tudo o que isto significa como possibilidade de uma relação fecunda com as áreas rurais de

seu entorno. São novas hierarquias urbanas e novas tramas espaciais que representam uma

enorme oportunidade para o planejamento territorial e para a internalização de circuitos

econômicos.

Trata-se, portanto, de um cenário marcado por um incentivo à inserção internacional

especializada na exportação de bens primários, mas sem as mesmas expectativas de ganhos do

período recente. Mas é também um cenário marcado por novas possibilidades internas à

moldagem da configuração das regiões rurais num sentido diferente daquele visto até agora.

Resta ver como o planejamento governamental e a dinâmica dos atores privados irão se mover

entre estas restrições e possibilidades, dando a feição da América Latina rural das próximas

décadas.

Mudanças econômicas

O século passado foi marcado também por significativo crescimento econômico. Este

crescimento foi puxado pelos países do Atlântico Norte no período do Pós-guerra, mas perde

intensidade, ali, no final do século passado. Desde então o eixo do crescimento mundial se

desloca para o Oriente. Países asiáticos –China em destaque – se firmam como motores do

crescimento econômico mundial. Em 2015 a Ásia cresceu 6%, seguido da África Subsahariana

com 4,5%, da África do Norte e do Oriente Médio com 4,1%. No mesmo ano a América do Norte

cresceu 3,2%, a América Latina 2,4% e a Europa Oriental 2,1% e a Europa Ocidental meros 1,4%

(FMI).

No caso Europeu, o ritmo de crescimento mais moderado e seu estilo baseado em economias

com alto grau de tecnologia incorporada tem gerado dois problemas. Um é a ausência de

empregos, sobretudo para as populações mais jovens (na Espanha o desemprego total está na

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casa dos 20% e entre os jovens o percentual fica acima dos 40%; em países como a França ou a

Inglaterra, embora com percentuais um pouco mais moderados o problema e a tendência se

repetem). Outro é a dificuldade em seguir financiando os gastos sociais condizente s com o

Estado de bem-estar social. Como resultado, aponta o influente estudo de Thomas Piketty

(2015), nas últimas três décadas a desigualdade voltou ao mesmo patamar do início do século

XX, jogando por terra todos os avanços em termos de coesão social conquistados em todo o

período anterior. No caso latino-americano, após uma década de crescimento econômico e

redução da pobreza, muitos países começam a experimentar um refluxo, em alguns casos com

estagnação e recessão e com um arrefecimento ou mesmo reversão da tendência de queda na

pobreza. E no que diz respeito à desigualdade, apesar de progressos na década passada os

indicadores seguem sendo muito altos (Cepal, 2016-a).

Em termos globais há uma grande novidade em relação à trajetória de longo prazo do

desenvolvimento humano. Enquanto o crescimento do produto bruto mundial segue positivo,

ainda que com as variações regionais mencionadas, os indicadores de bem-estar global, medidos

por exemplo pelo Índice de Progresso Genuíno, estão estagnados (Comissão Sen, Stiglitz,

Fitoussi, 2012). Se somarmos isso à perspectiva de estabilização populacional, também

mencionada acima, significa que a Humanidade está entrando numa condição inédita: o

montante da riqueza mundial continua a crescer, mas não cresce mais o número de pessoas

para quem é necessário dividi-lo. Isso somado ao fato de que já há uma parte do crescimento

econômico que não se converte em bem-estar, se traduz num excedente da produção de

riquezas que pode ser redirecionado para o bem-estar global. Uma vez mais, a desigualdade se

impõe como tema central da agenda futura.

Outra novidade é que o ciclo da financeirização - sucedendo os ciclos da expansão da produção

de bens de consumo de massa e, depois dele, da microeletrônica - parece mostrar certos limites,

como o demonstra a crise desencadeada em 2007/2008. Os moderados índices de crescimento

econômico nos países mais ricos, ou a dificuldade em oferecer um horizonte de inclusão das

pessoas ao processo produtivo levam à pergunta sobre qual será o novo driver de crescimento

da economia global nas próximas décadas. Três respostas são apontadas pela literatura a esta

indagação. Para uns, será justamente a expansão das commodities o novo vetor de crescimento,

em resposta ao crescimento asiático. Para outros, o vetor seria uma nova onda de

manufaturados, agora adaptada às condições de consumo dos países de renda média ( como

carros de 2 mil dólares, equipamentos portáteis de tecnologia de saúde avançada, entre outros).

Para outros, ainda, a aposta é um conjunto de atividades ligadas à descarbonização da matriz

produtiva mundial, de forma a também fazer frente à crise ambiental.

Deste cenário surge nova consequência das mudanças globais para América Latina, somando-se

às duas anteriores relacionadas às tendências demográficas: o crescimento econômico seguirá

sendo decisivo em termos globais, regionais, nacionais e locais, mas com demandas

diferenciadas daquelas que direcionaram as opções de investimento públicos e privados no

século passado, seja em termos da base material do crescimento econômico, com importância

cada vez maior dos recursos bioenergéticos em relação aos materiais fósseis, seja pela

necessidade de encontrar estilos de crescimento que possam reduzir as desigualdades em vez

de aumenta-las. Entre a especialização na exportação de commodities e a industrialização

tradicional surge a necessidade por um novo caminho, mais ligado a uma nova economia da

natureza e do conhecimento.

A tudo isso é preciso acrescentar que, no caso específico da agricultura, o processo de

mecanização e de introdução de modernas tecnologias só irá intensificar a expressiva poupança

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de trabalho que se verifica desde a chamada Revolução Verde. No momento atual já ocorre uma

transição na qual milhões de pessoas que deixam a agricultura passam a se dedicar a um setor

de serviços que é cada vez mais importante nas regiões rurais. Porém, se desde o começo deste

processo de modernização até hoje os empregos que desapareciam com a introdução das

inovações na agricultura eram compensados por oportunidades menos demandantes em

capacidades e conhecimentos das pessoas, o mesmo não irá ocorrer no futuro. Estas

oportunidades tendem a ser cada vez mais escassas, uma vez que a automação chega

gradativamente também ao setor de comércio e serviços . As oportunidades mais restritas que

existirem tenderão a ser mais intensivas em conhecimento e capacidades. Como as regiões

rurais e suas populações poderão se preparar para este novo cenário?

Mudanças climáticas

Esta consequência apontada no tópico anterior se reforça quando se observa que todos as

projeções apontam para uma intensificação das mudanças climáticas (IPCC, 2014) É verdade

que o uso de energias renováveis nunca foi tão amplo. Também é verdade que o uso de

materiais recicláveis cresceu significativamente. E é inegável que máquinas e equipamentos

hoje funcionam com muito mais eficiência energética e no uso de materiais (Abramovay, 2012).

Ainda assim a pegada ecológica de países e da economia mundial segue crescendo (GEF, 2014).

Hoje a humanidade já utiliza uma vez e meia a biocapacidade do planeta, comprometendo a

possibilidade de recomposição dos ecossistemas de onde são retirados os recursos necessários

à vida humana. O cenário inercial aponta que se chegará ao uso do dobro da biocapacidade

planetária já em 2030. E que para iniciar uma trajetória de reversão seria necessária uma

redução de 30% nas emissões de Carbono. É, portanto, cada vez maior o impacto sobre a

natureza da retirada de recursos naturais sob a forma de matérias primas ou de fontes de

energia, ou no sentido inverso sobre a forma de poluição e rejeitos da atividade econômica.

Dados da Ocean Conservancy (2016) relatam que os oceanos recebem um caminhão de plásticos

por minuto. O resultado é que, para cada três kg de peixe nos oceanos já existe um kg de

plástico. Proporção que deve ser paritária em trinta anos, se continuar o ritmo atual. Noutro

exemplo, 20% da área total da Amazônia já foi devastada e outros 20% encontra-se em processo

acelerado de degradação (Nobre, 2015). Cientistas estimam em 40% o percentual de perda de

cobertura florestal para que se atinja o ponto de não retorno, a partir do qual seria inexorável o

processo de savanização daquele bioma, com tudo o que isto implica para o equilíbrio de outros

ecossistemas correlatos e, por extensão, para o equilíbrio do ecossistema global.

O recente Acordo de Paris (UN, 2015-b) é uma sinalização da disposição dos países em fazer

deste um tema forte no decorrer das próximas décadas. A consagração dos Objetivos do

Desenvolvimento Sustentável ainda está longe de significar uma estratégia clara para orientar

investimentos públicos e privados, mas não há dúvida de que representa uma grande

oportunidade nesta direção. Neste momento organismos multilaterais passam em revisão seus

programas e diretrizes de atuação. Governos ensaiam agendas para fazer frente aos

compromissos assumidos. Organizações ambientalistas e setores empresariais mais

progressistas buscam a formação de coalizões para contribuir com a consecução das metas

firmadas. A literatura científica sobre os ODS tem se concentrado, até aqui, em melhorar as

formas de medir e monitorar cada meta/ODS. Mas parte da literatura (Constanza et al. 2015)

chama a atenção para a necessidade de pensar as interdependências entre os ODS. Mesmo

antes dos Acordos de Paris governos e organizações sociais afirmavam o caráter universal e a

importância de um enfoque integral cobrindo o conjunto de dimensões em negociação na escala

global (IRF, 2012). Isto é, não se trata somente de perseguir bons indicadores em cada tema,

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mas sobretudo de formular novas narrativas sobre o desenvolvimento mundial que permitam

fazer convergir os objetivos sociais, econômicos e ambientais ali expressos.

A quarta e última consequência apontada nesta seção para os cenários de inserção das regiões

rurais latino-americanas podem ser sintetizados nesta passagem de Ricardo Abramovay (2016).

Segundo ele, “...é na produtividade da natureza que se encontra o caminho mais promissor da

economia do Século XXI (...). A ideia central é que a base de recursos das sociedades modernas

vai transitar de fósseis para materiais biológicos (...). Ora, o conhecimento necessário à gestão

dos recursos materiais, energéticos e sobretudo bióticos de um território é necessariamente

local. Aqui também trata-se de um tema estratégico não só para cada território, mas para os

caminhos do crescimento econômico de regiões biologicamente megadiversas em direção ao

desenvolvimento sustentável. É o caminho, em última análise para transformar a maldição dos

recursos naturais em trunfo estratégico do processo de desenvolvimento”. Esta opção e a

transição nela contida será muito intensiva em ciência e tecnologia. Uma base de conhecimento

certamente muito diferente do padrão tecnológico dominante, mas também distinta da simples

sistematização de conhecimentos locais ou de experimentações de pequena escala. Se trata

mesmo de uma transição na qual o desafio é construir novos padrões tecnológicos e novas

portas de entrada para agriculturas familiares e pequenas e médias empresas nesta etapa futura

da economia mundial.

2. A América Latina e suas regiões rurais

Os países latino-americanos experimentaram trajetórias diversas nos anos recentes quando se

olha para um conjunto selecionado de indicadores económicos e sociais, destacadamente nas

suas regiões rurais (Cepal, 2016-a; Cepal, 2016-b; Rimisp, 2015; Fida, 2016). Um processo de

transformação rural acelerada acompanhada de melhoria nos indicadores de pobreza,

desigualdade e bem-estar é o que se viu, por exemplo, no Brasil, no Chile e no Uruguai. Um

processo de transformação também bastante acelerado, mas aqui sem a melhoria em

indicadores sociais foi a condição de países como Costa Rica, Guatemala, México e República

Dominicana. Por outro lado, um processo de transformação rural lenta e com inclusão social

também lenta foi a situação vista na Bolívia, na Colômbia, no Equador, e também em El Salvador,

Honduras, Nicarágua, Panamá, e Paraguai. Finalmente, no Peru houve um processo de

transformação rural lenta, mas com inclusão social rápida (Fida, 2016).

Esta diversidade mostra que as tendências globais não atingem a todos de uma única maneira.

Tais processos de transformação foram o resultado não antecipado de dinâmicas

socioeconômicas e políticas que envolvem duas dimensões: um lento, mas sólido, processo de

mudanças na morfologia das regiões rurais; e, junto disso, um conjunto de políticas públicas e

estratégias de Estado. Como se vê, na América Latina a transformação rural em muitos casos é

socialmente excludente, mas praticamente não há avanços significativos e rápidos em inclusão

social que sejam desacompanhados de uma transformação rural acelerada.

Sobre as mudanças na morfologia das regiões rurais (transformação rural)

A série de tabelas apresentada a seguir ilustra três mudanças em curso que estão fazendo com

que as gerações atual e futura dos habitantes das regiões rurais latino-americanas vivam num

mundo que é significativamente distinto daquele que foi conhecido pelos seus pais ou seus avós.

Estabilização da participação da agricultura no PIB dos países e o processo de

desindustrialização precoce das economias latino-americanas – Mesmo na década marcada

pela valorização das commodities e sua repercussão para as exportações latino-americanas, o

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que se observa é que a participação da atividade agropecuária no produto bruto dos países da

região se manteve praticamente estável, e num percentual bastante baixo: 6% em 2000 contra

5% em 2010. Ainda que se possa argumentar que este valor representa somente a produção

primária, agregar o setor de manufaturas não muda significativamente o quadro, já que a

participação das atividades secundárias no PIB também está caindo, neste caso, de 18% para

14% em média na região, considerado o mesmo período. O que estes dados combinados

mostram é um perigoso processo de desindustrialização precoce, para usar a expressão de Dani

Rodrik (2014), com o aumento de um setor terciário distinto daquele que predomina nos países

ricos e que surgiu à esteira do mundo industrial. Por aqui trata-se de um segmento pouco

intensivo em tecnologia, desvinculado de atividades de transformação, e em muitos casos

fortemente dependente da circulação monetária viabilizada pelas políticas sociais.

Tabela 1

Participação da agricultura na composição do PIB dos países latinoamericanos

Agricultura, % del PIB

Países 2000 2014

Argentina 5 8

Bol ivia 15 13

Bras il 6 5

Chi le 6 4

Colombia 9 6

Costa Rica 9 6

Cuba 8 ..

Ecuador 16 9

El Sa lvador 10 11

Guatemala 15 11

Honduras 16 14

México 4 4

Nicaragua 20 19

Paraguay 16 21

Perú 9 7

Rep Dominicana 7 6

Uruguay 7 8

Venezuela 4 5

América Latina y el Caribe 6 5

Fonte: Banco Mundial, World Development Indicators 2015

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A tendência declinante da ocupação e do emprego agrícola e a diversificação das fontes de

renda das famílias rurais – Coerente com o dado sobre produção apresentado acima, dados

publicados pela OIT (2016) e baseados em séries históricas desde os anos 50 até o período atual

confirmam que a ocupação e o emprego em atividades agrícolas vêm caindo sistematicamente,

e que este espaço vem sendo ocupado pelas atividades no setor de comércio e serviços. Mas,

como já foi mencionado, não se trata de um setor de comércio e serviços dinâmico e vinculado

a atividades intensivas em tecnologia, e sim empregos precários, de baixa qualificação e

remuneração, muitas vezes impulsionados por transferências de renda a populações mais

pobres e delas dependentes. Tomando apenas o período mais recente, na América Latina, em

2005 o setor terciário já respondia por 57% das ocupações, contra 21% para o setor primário e

outros 21% para o setor secundário. Em 2015 o percentual do setor terciário já representava

62% contra 15% dos outros dois setores. É certo que quando consideradas exclusivamente as

áreas rurais há mudanças significativas: no mesmo período o percentual de ocupados no setor

terciário evoluiu de 21% para 27%, os ocupados na indústria aumentaram de 11% para 13%, e

os ocupados no setor primário ainda são maioria, mas diminuíram de 67% para 59%,

confirmando a tendência geral. Mais que isso, a primeira das duas tabelas a seguir evidencia que

na região os domicílios rurais com estratégias baseadas em rendas agrícolas variam de 26% do

total em países como o México, até um máximo de 59% na Bolívia. No Brasil este percentual é

de 46%, número próximo do Chile que aparece com 43%, ou do Paraguai, com 42%. E a tabela

seguinte mostra como o emprego rural agrícola, especificamente, apresenta queda em todos os

países considerados.

Tabela 2

Domicílios rurais com estratégias baseadas em rendas agrícolas (em %)

País Domicílios rurais com estratégias baseadas em rendas agrícolas (%)

Costa Rica, 2008 21

Rep. Dominicana, 2008 26

México, 2008 26

Panamá, 2008 37

Paraguay, 2008 42

Guatemala, 2007 43

Chile, 2006 43

Brasil, 2008 46

Honduras, 2007 47

Ecuador, 2009 55

Uruguay, 2008 55

Bolivia, 2007 59

Fonte: M. Dirven, 2011

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Tabela 3

Taxa média de crescimento anual do emprego na agricultura – 1990-2010 (em%)

País Taxa média de crescimento anual do emprego na agricultura, 1990s-

2010s (%)

Bolivia -1.38

Brasil -1.44

Chile -2.97

Guatemala -0.09

Honduras -0.16

México -3.00

Paraguay -2.31

Perú -0.88

Média 16 países -0.92

Fonte: Dirven (2011)

Diminuição das diferenças culturais entre famílias rurais e urbanas e o aumento da

conectividade física e virtual das regiões rurais – As defasagens entre as zonas rurais e urbanas

na América Latina seguem sendo um traço marcante da região. É algo que se pode observar em

indicadores de educação como o acesso ao ensino médio, ou em indicadores de saúde como

saneamento básico. Mas em vários domínios estas diferenças vêm diminuindo. Em muitos

países, por exemplo, a acesso a energia elétrica está perto da universalização. Mesmo a

utilização de telefonia e de internet vem se ampliando gradativamente. Parte disto se deve à

maior proximidade com infraestruturas antes restritas às cidades. Estimativas mencionadas por

Berdegué (2016) mostram que no México, 60% da população rural vive em localidades situadas

a no máximo uma hora de distância de centros urbanos com 15 mil habitantes ou mais. Na

Colômbia 85% da população está a meia hora de distância de centros com 25 mil habitantes, e

66% a menos de trinta minutos. Esta extensão da urbanização tem trazido consigo o que Pierre

Bourdieu chamava de unificação dos mercados de bens simbólicos antes tipicamente urbanos

ou rurais: as aspirações das famílias rurais se aproximam daquelas das famílias urbanas, hábitos

de consumo e acesso a informações se tornam em grande medida similares. Mas,

principalmente, torna-se residual a ideia de espaços rurais isolados e fechados numa lógica

autônoma. Ao contrário, são cada vez mais fortes os vínculos e as interdependências entre

espaços rurais e espaços urbanos. O gráfico a seguir mostra a distribuição da população da

região de acordo com os tipos de aglomeração para enfatizar o alto percentual concentrado nas

áreas marcadas por este tipo de dinâmica, em vez da imagem tão presente no senso comum de

metropolização acompanhada de um rural absolutamente periférico.

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Gráfico 3

Distribuição da população por tamanho da aglomeração – 2015

Fonte: Berdegué (2016), estimativas com base em UN (2014).

O significado maior destes processos de transformação rural, ainda que com graus variados nos

diferentes países da região, é a forte desagrarização das economias e dos territórios rurais. Não

se trata de dizer que a agricultura ou a dimensão fundiária não têm mais importância nas regiões

rurais. O que se quer dizer é que se antes era possível compreender as várias dimensões da vida

social local a partir do que se passava no setor primário e nas formas de posse e uso da terra,

hoje há um conjunto mais amplo de domínios críticos que precisam ser tomados em conta para

explicar os bloqueios e as possibilidades do desenvolvimento na América Latina rural.

Sobre as políticas e estratégias de Estado

Além desta lenta e incremental mudança na morfologia das regiões rurais, o processo de

transformação resulta também das políticas e das estratégias adotadas pelos governos locais no

decorrer do período recente. Como já foi dito nas páginas anteriores, um dos principais vetores

da dinamização econômica dos países latino-americanos foi a expansão da exportação de

commodities, num processo que levou à reprimarização da pauta de exportações dos países e a

ascensão de um setor de serviços descolado de atividade industrial: a chamada

desindustrialização precoce. O outro vetor foi a expansão do mercado consumidor interno

alcançado com medidas voltadas à redução da pobreza por meio de políticas sociais, valorização

salarial e dos empregos, e investimentos em infraestruturas, tudo isso favorecido justamente

por um modelo de financiamento baseado em endividamento ou na alta das commodities. Com

o fim da alta de preços de commodities muitos países passaram a viver problemas fiscais com

consequências para os níveis de investimento e emprego e em alguns casos mesmo uma volta

da pobreza. Os processos de inclusão social arduamente alcançados se revelam hoje

relativamente vulneráveis a esta mudança de contexto e mesmo sob ameaça de retrocessos.

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Em muitos casos os países se encontram hoje com o debate público dominado por duas

narrativas. De um lado aquelas mais identificadas com o ideário liberal e nas quais a prioridade

recai sobre o controle dos gastos públicos como condição para a estabilidade e a volta do

investimento público e privado. O risco implícito nesta narrativa é a interrupção de um ciclo de

políticas sociais que vinha apresentando resultados significativos tanto para os níveis de renda

e bem-estar das famílias como, no agregado, para o impulso à dinamização de economias de

regiões rurais ou interioranas. De outro lado, há as narrativas identificadas com as várias formas

de desenvolvimentismo, para quem a prioridade é manter o gasto público na expectativa de que

o aumento da demanda social resulte em incentivo para a volta do investimento privado e, com

ele, o reequilíbrio da condição de emprego, do consumo e da arrecadação governamental. Neste

caso o risco consiste em ignorar que as condições de financiamento do gasto público não são

mais as mesmas da década passada e que tal trajetória pode ser insustentável quando projetada

no médio prazo. Se trata, a rigor, de narrativas já experimentadas e cujos êxitos e limites são

conhecidos e que pouco dialogam com as três ordens de mudanças em curso destacadas na

seção anterior. O espaço para a emergência de novas narrativas não só permanece aberto, como

se mostra urgente e necessário.

3. As políticas de desenvolvimento territorial em um mundo rural latino-americano em

transformação

Desde a virada do milênio a região foi palco de uma nova geração de estudos rurais e de políticas

de desenvolvimento rural. A adoção do enfoque territorial foi a principal inovação discursiva e

normativa deste período. Este campo de estudos foi aberto com o balanço e crítica das

experiências anteriores de análise e prática do desenvolvimento rural (Chiriboga, 1998) e com

as pesquisas sobre a crescente importância das rendas não agrícolas (Graziano da Silva, 1997;

Berdegué et al, 1999). Avançou com a retórica da nova ruralidade (Echeverri y Ribero, 2002;

Wanderley, 2001; Veiga, 2002-b) e a demonstração da crescente interdependência entre

espaços rurais e urbanos (Schejtman, 1999; Veiga 2002-b). E culminou na afirmação e

sistematização da abordagem territorial (Veiga, 2001; Abramovay, 2000; Schejtman&Berdegué,

2003; DeJanvry&Sadoulet, 2002) e seus significados perante a tradição dos estudos e formas de

conceber o desenvolvimento dos espaços rurais (Favareto, 2007) . Já à luz das primeiras

iniciativas de adoção do novo enfoque vieram estudos analisando o caráter parcial da adoção

do novo enfoque (Favareto, 2010) ou a formulação de teorias e análises aplicadas à

interpretação de dinâmicas de desenvolvimento típicas dos territórios rurais latino-americanos

e voltadas a qualificar as análises e as políticas produzidas em coerência com o novo enfoque

(Berdegué et al., 2015). Ao longo deste período, várias têm sido as experimentações no âmbito

das políticas públicas. Para mencionar apenas alguns, é o caso do programa Territórios da

Cidadania, no Brasil, as iniciativas no âmbito da Rede Ecadert, na América Central, ou outras em

países como Colômbia, Chile e México.

O que era a essência conceitual do enfoque territorial de acordo com esta literatura? Se tratava

antes de tudo de uma definição que coloca o acento na construção social do território, mais do

que tomá-lo como mera unidade geográfica como muitas vezes se fez, tanto em estudos como

em políticas. Aplicado às políticas públicas, desenvolvimento territorial implicava a busca por

um crescimento econômico com inclusão social num processo de transformação que, para dar-

se, precisaria operar nove critérios, a seguir apresentados esquematicamente.

Simultaneidade das transformações produtiva e institucional – O desenvolvimento territorial

implica melhorar as condições materiais de existência de um amplo contingente de habitantes

das zonas rurais, em muitos casos por meio do fortalecimento de seu potencial produtivo. Isto

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passa por acesso a terra, água ou recursos florestais, a insumos e técnicas mais adequadas aos

requisitos de uma produção sustentável, e muitas vezes passa também pelo acesso a mercados.

Mercado de trabalho que lhe permita diversificar suas fontes de ingressos, mercado para a

produção familiar. Estas transformações produtivas são indissociáveis de mudanças

institucionais que alterem as regras e os incentivos que modulam as interações entre os agentes

econômicos e sociais das regiões rurais e entre eles e os agentes do mundo urbano. O

desenvolvimento territorial não acontece como resultado de programas isolados ou de

melhorias pontuais, mas sim deste processo simultâneo de transformação produtiva e

institucional.

Um conceito ampliado do rural – Enquanto a agricultura é uma categoria setorial, associada a

um tipo de atividade econômica, o rural é uma categoria espacial. Este espaço se concretiza

como forma territorial de um tipo específico de vida social. Esta especificidade pode comportar

uma ou, como acontece em geral, mais atividades econômicas. Três são as dimensões

definidoras do rural: proximidade e maior peso relativo da natureza, relativamente baixa

densidade populacional, e formas de complementaridade com os espaços urbanos. Na etapa

anterior da história dos espaços rurais fazia sentido pensar o rural como oposto do urbano e

limitado aos processos sociais agrícolas e agrários. Na etapa atual da história só faz sentido

pensar o rural em suas interdependências com o mundo urbano. Não faz mais sentido usar um

enfoque dicotômico, que vê no rural o contrário do mundo urbano. Tampouco faz sentido usar

o enfoque do continuum urbano-rural, segundo o qual o rural é mera extensão, resíduo ou

espaço ainda a ser alcançado pelas dinâmicas que emanam do urbano. Estas foram as duas

abordagens consagradas em cem anos de sociologia e economia rural. Hoje é preciso um

enfoque relacional, que coloque a ênfase nas interdependências entre os dois espaços, algo que

só se torna possível com a afirmação complementar do que é específico de cada um deles, mas

que apenas pode existir na relação com seu polo contrário.

Território envolve uma base de recursos e as formas de controle e uso sobre estes recursos – A

literatura sobre territórios é muito antiga, mas sua associação com a ideia de desenvolvimento

é mais recente. Território envolve uma base determinada de recursos e as formas de controle e

uso sobre tais recursos. Onde há controle, há formas de dominação e exercício de poder. Pensar

as perspectivas dos territórios implica, portanto, desvelar a formação destas estruturas

históricas que resultam em distribuição desigual dos recursos e em formação de regras que

garantem ao largo do tempo estas formas de dominação. Projetar uma trajetória futura de

crescimento com coesão social e sustentabilidade ambiental envolve construir acordos sobre

como desarmar ou minimizar estes bloqueios favorecendo processos de transformação

inclusiva. Conflitos e dominação são parte constitutiva dos territórios e precisam ser operados

por projetos territoriais.

Território como espaço de identidade e com um projeto de desenvolvimento socialmente

concertado – Se os territórios são uma unidade entre uma base de recursos e as formas sociais

de uso destes recursos, então sempre há uma identidade que distingue este território de outros.

Esta identidade pode ser dada por fatores geográficos, econômicos, culturais, físicos ou

biológicos. Tais fatores geram identidade territorial em procesos relativamente largos de tempo.

Uma identidade territorial pode também ser criada, a partir de algum atributo específico destes

domínios: um traço histórico, um produto específico, uma prática cultural. Esta identidade

territorial pode mudar à medida que seus elementos constitutivos surgem ou desaparecem, se

fortalecem ou são debilitados, o que por sua vez está associado à composição social e às

dinâmicas relações entre os distintos atores. Como se pode ver, a formação da identidade

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territorial é algo muito distinto de um processo de branding ou de marketing. O que importa é

que na fase atual do capitalismo não existe mais a expectativa de que os territórios passarão por

um processo de homogeneização. Isto ocorre, é verdade, sobretudo nas áreas que passam a ser

exploradas com a produção de commodities, para as quais atributos locais não importam. O que

mostra a literatura é que no mundo contemporâneo os territórios precisam buscar formas de

diferenciar-se e, por aí, a um só tempo, valorizar os fatores locais e buscar nichos ou

necessidades específicas dos mercados. A formulação de projetos de desenvolvimento deve

servir para sinalizar aos agentes privados e ao poder público qual é a direção na qual seus

investimentos devem convergir. Desta forma se favorece a complementaridade entre estes

investimentos e se projeta um horizonte de futuro que mobiliza as energias e as expectativas

individuais e sociais. Por isso este projeto não pode ser algo voltado ao curto prazo, nem pode

ser obra de apenas um setor da sociedade local, ou um plano formal para acessar uma política

pública. Precisa representar um acordo local.

No território uma pluralidade de agentes se converte em ator coletivo – A ideia de um território

como construção social e a noção de concertação permitem transformar uma pluralidade

conflitiva de agentes em um ator coletivo. Não se trata de minimizar os conflitos e as

contradições, como aponta parte dos críticos do enfoque territorial. Ao contrário, se trata

justamente de trazer os conflitos e as contradições para o campo das definições em torno das

quais se darão os investimentos públicos e os incentivos aos investimentos privados. Se existe

algo que se possa chamar de sociedade local, então é necessário favorecer formas de que esta

sociedade local posa pôr sobre a mesa estes conflitos e construir acordo em torno deles. Não

significa dizer que todos ganharão igualmente, mas sim que os espaços públicos devem tornar

explícito qual é o horizonte de futuro com o qual a maior parte desta sociedade local está

comprometida, algo com o quê o poder público também deverá, pois, comprometer-se.

Distintas rotas de saída da pobreza – Uma das diferenças do enfoque territorial na América

Latina quando comparado com o seu contexto de origem, a realidade europeia, é que aqui o

enfrentamento da pobreza segue sendo um dos grandes desafios. O enfoque territorial deve

admitir que existem distintas rotas de saída da pobreza, e não afirmar uma única visão sobre

que tipo de atividades devem ser favorecidas. Cada sociedade local possui bloqueios históricos

que dificultam a saída da pobreza. Cada território tem trunfos ou possibilidades que o difere dos

demais. Não é possível modular estas rotas. É preciso reconhecer estes bloqueios e

possibilidades e mobilizar os recursos que ajudem os territórios a pactuar as formas de transição

para a superação da condição atual em direção a uma transformação inclusiva.

Uma construção com horizontes de médio e longo prazo – Superar bloqueios históricos e

organizar uma transição em direção a uma transformação inclusiva requer uma reestruturação

das economias locais concomitantemente a um processo de transformação institucional. Não é

uma obra que se possa fazer no horizonte de um mandato de governo, muito menos no espaço

de um ano de orçamento de um programa ou política pública. Por isso é tão importante projetar

cenários e horizontes de médio e longo prazo. Somente assim é possível ir além das demandas

conjunturais tão necessárias e que pressionam as decisões de alocação de recursos,

organizando-as em função de algo maior e mais estrutural. Um projeto territorial é, sobretudo,

um processo de transformação de médio e longo prazo.

Uma nova e complexa arquitetura institucional – Para algo com esta ambição é necessária uma

arquitetura institucional nova e complexa. Nova porque a tradição das políticas de

desenvolvimento rural é setorial e produtivista. Ou, nas décadas mais recentes, adquire um

contorno de política social. O enfoque territorial, ao contrário, considera que a dimensão

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produtiva e a dimensão social precisam ser combinadas. A elas se agregam outras como a

conservação ambiental, a garantia e valorização de direitos, a extensão de infraestruturas e

equipamentos públicos, a orientação dos investimentos privados. É algo necessariamente

multidimensional, que não pode ficar confinado a um ministério ou secretaria de governo. É algo

que implica em complementaridades entre o setor público e o setor privado. É algo que envolve

a esfera econômica e a esfera da natureza. Esta complexa arquitetura institucional precisa fazer

da coordenação e da complementaridade uma palavra chave. E precisa fazer algo que não é

comum entre as políticas públicas: projetar resultados e formas de monitoramento para além

de um mandato ou de um ciclo de programas e políticas.

A afirmação da heterogeneidade dos espaços rurais por meio de abordagens ascendentes –

As formas de interdependência entre o rural e o urbano podem se dar sob ampla variedade. Da

mesma forma, a afirmação de identidades territoriais deve valorizar o que é específico de cada

território. Daí a dificuldade em pensar estratégias únicas (top down) para esta diversidade. Não

basta também simplesmente reconhecer esta heterogeneidade. É preciso tratá-la

afirmativamente por meio de abordagens ascendentes (bottom up), a partir das quais a

valorização de atributos locais e a expressão de acordos construídos entre as forças vivas destes

territórios possam encontrar formas de apoio por parte do Estado ou dos agentes de mercado.

Mas sem cair na tentação de apenas disponibilizar recursos e deixar aos territórios a atribuição

de mobilizá-los, porque as capacidades locais também são diferenciadas. Estratégias bottom up

que não se relacionam com tendências extralocais ou supraterritoriais não serão mais do que

exercícios de engenharia social com limitadas chances de sucesso. Os processos ascendentes

devem ser uma aproximação, segundo a qual os atores de um território identificam processos

ou janelas de oportunidade no contexto extralocal mais amplo e buscam aproveitá-los. Os

territórios rurais, sobretudo os mais pobres, têm pouca autonomia e frágeis capacidades

instaladas, de forma que acessar estas oportunidades e combinar os interesses locais com

recursos que estão fora do território é o que pode gerar melhores resultados e ampliar

possibilidades. Aos governos cabe atuar sobre estas oportunidades, ajudando a construir

capacidades locais e diversificando seus instrumentos de apoio. Desta forma se dá ênfase às

abordagens ascendentes, mas sem incorrer em outra dicotomia que deve ser evitada: aquela

que muitas vezes se faz entre enfoques ascendentes e descendentes.

As experiências de desenvolvimento territorial ao largo dos últimos quinze anos lograram operar

com estes nove critérios? Aparentemente a resposta a esta pergunta é negativa. Mas é difícil ir

além das aparências e impressões pelo simples fato de que não existem boas e sistemáticas

avaliações sobre estas políticas e programas. O que se pode dizer é que as experiências

produzidas são de três tipos distintos.

Um primeiro tipo de experiências de adoção do enfoque territorial reúne programas e políticas

públicas que passaram por algum tipo de espacialização ou territorialização. Se até os anos

noventa era muito raro ouvir a expressão territorial associada a políticas públicas, desde então

é muito comum que esta seja uma preocupação presente no desenho destas iniciativas. Neste

caso, territorialização é tomada como a adoção de algum grau de diferenciação espacial nestas

políticas, em geral sob a forma de prioridades diferenciadas para certas regiões. Ou com o

estabelecimento de formas de controle social local, territorializado, destas políticas. Assim, há

casos de territorialização da política de saúde (na qual certos problemas ou enfermidades

ganham mais atenção a depender da sua maior incidência em certas áreas), ou de políticas

culturais (na qual certos tipos de manifestação cultural serão priorizados a depender de sua

importância para as sociedades locais). Há aqui um ganho evidente: a busca por adaptar políticas

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e investimentos a contextos locais. Mas é algo muito distante da ideia de projetos territoriais

como projetos de transformação inclusiva destes espaços.

Um segundo tipo envolve o que parte das experiências chama de invest imentos públicos

baseados em matrizes territorializadas. Nesta versão, se admite que é no plano local que devem

ser definidas as prioridades de uma política. Os ministérios ou secretarias oferecem então um

cardápio possível de investimentos previamente desenhados e oferecem aos territórios a

oportunidade de apontar quais destes investimentos fazem ou não sentido à luz da realidade e

dos projetos locais. Em muitos casos se estimula a formulação de projetos de desenvolvimento

territorial para que eles sejam a referência a partir da qual os atores locais possam apontar as

prioridades. É uma situação intermediária, na qual elementos do enfoque territorial estão mais

presentes, mas ainda não se trata de uma política fortemente baseada em projetos territoriais.

Ela depende de que, de um lado, existam previamente bons projetos territoriais desenhados e

pactuados, o que é raro. E de outro, depende de que os investimentos públicos previamente

desenhados sejam coerentes com o que os territórios necessitam. Pode haver necessidades fora

do cardápio dos ministérios e secretarias. Mas há ainda um outro limitante: pouco existe de

coordenação neste tipo de experiências. Ao contrário, o ponto de partida é a fragmentação

entre áreas de governo, com a expectativa de que os terri tórios possam integrar o que vem de

cada área no plano local. É, todavia, muito difícil que se consiga integrar na aplicação algo que

não é desenhado para ser integrado: os tempos e os requisitos de cada política costumam

transformar-se em obstáculos de difícil transposição pelos territórios, reforçando a pulverização

em detrimento da convergência.

Um terceiro e último tipo seria a aplicação dos nove objetivos mencionados anteriormente. Uma

situação na qual uma estratégia territorial por parte dos governos leva à afirmação da

heterogeneidade espacial. Aqui os governos buscam formar capacidades e diminuir as

diferenças entre territórios para melhorar as condições de que se pensem projetos territoriais.

Estes projetos territoriais são elaborados e, principalmente, pactuados entre formas sociais

locais como horizontes de futuro, no qual se projeta um processo de transformação que serve

como referência para investimentos públicos e para incentivos aos investimentos privados. Este

terceiro tipo, contudo, é o que menos ocorreu na região.

O que mais ocorreu quando se tentou aplicar o novo enfoque? Algumas características são

bastante recorrentes nas experiências que se conhece. Uma delas é a identificação muito forte

entre programas de desenvolvimento territorial rural e programas para a agricultura familiar ou

camponesa. São iniciativas que, mesmo com o adjetivo territorial, se limitam a uma perspectiva

claramente setorial. Muitas vezes o adjetivo se aplica em termos meramente geográficos,

sinalizando uma unidade espacial de maneira normativa, ou muitas vezes político-administrativa

do território. No que diz respeito aos critérios antes mencionados se observa que muitos

projetos territoriais representam na verdade listas de demandas, justas e necessárias é verdade,

mas pouco há neles de estratégico. Há muita participação social, mas pouca negociação de

conflitos. Há muitos investimentos pontuais, mas pouca coordenação de políticas. Há muitas

iniciativas setoriais e de curto prazo, mas poucas ações voltadas à reestruturação e

diversificação das economias destas regiões rurais.

O balanço mostra então que a prática do desenvolvimento territorial parece estar ainda distante

do que a retórica sinalizava como importante. Seria, então, o caso de abandoná-la? Mais uma

vez a resposta parece ser negativa. A análise das mudanças nas sociedades rurais entre nos anos

setenta e noventa foi a principal inspiração para a construção do enfoque territorial. Estes

processos têm se acelerado e se aprofundado e nada indica que esta tendência vai mudar no

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futuro, como se tentou demonstrar nas seções anteriores. O que ocorre é que a prática da

abordagem territorial se tornou limitada perante o diagnóstico realizado. Por isso é preciso

constatar que o desenvolvimento territorial, tal como se praticou até aqui, será, no futuro,

crescentemente estéril. Em vez de abandonar esta retórica, é preciso se apoiar nas lições do

período ainda em curso e inaugurar uma nova geração de políticas e programas de

desenvolvimento territorial que aborde centralmente, a tarefa de internalizar no desenho

destas iniciativas os processos de transformação que a vida social das regiões rurais vêm

experimentando e construindo ao lardo dos últimos trinta anos. O enfoque territorial é mais do

que nunca uma necessidade, mas só levará aos resultados esperados se assumir conteúdos

inteiramente novos.

Cinco desafios chave se projetam para que seja possível inaugurar esta nova geração de políticas

de desenvolvimento territorial:

a) Tripla coordenação – O caráter multidimensional e estratégico do desenvolvimento

territorial voltado a transformação inclusiva das regiões rurais requer que se mobilizem

recursos e capacidades que estão dispersas em um conjunto de agentes públicos e privados.

Três tipos de coordenação precisam ser organizados para esta finalidade. A coordenação

intersetorial, envolvendo distintos ministérios ou secretarias de governo. A coordenação

intergovernamental, envolvendo diferentes níveis de governo, da escala nacional à escala

local passando por escalas intermediárias onde for o caso. E a coordenação entre Estado,

sociedade e mercado, pois o desenvolvimento territorial não é somente uma obra de

política pública, mas deve envolver o setor privado e os cidadãos de forma complementar.

b) Relações com as cidades – O cotidiano da vida social e econômica dos espaços rurais já vem

produzindo formas de relações com as cidades muito mais intensas do que aquelas que

existiam uma ou duas gerações atrás. Isto se observa sob a forma de deslocamentos diários

para trabalho, acesso a serviços. Se observa também sob a forma de acesso a mercados.

Estes novos vínculos rural-urbano, para além do papel tradicional das áreas rurais de

exportar bens primários, precisam ser reconhecidos e mais valorizados. Há novas funções

que os espaços rurais vêm desempenhando para além da produção agropecuária: a

conservação ambiental, a valorização da paisagem e da cultura, a realização de um conjunto

diversificado de atividades econômicas. Uma estratégia de desenvolvimento territorial

precisa explorar melhor estas interdependências entre os centros urbanos e as áreas rurais

de seu entorno para que estes vínculos se deem de maneira fértil, e não esterilizando ou

explorando de forma unilateral um dos dois polos.

c) Diversificação das economias locais – Os dados disponíveis sobre a realidade rural latino-

americana deixam evidente que não se pode reduzir os processos sociais e econômicos à

dimensão agrária e agrícola que marcou a geração anterior de políticas. Mais ainda, a

tendência declinante da agricultura na formação das rendas e das famílias e na ocupação e

trabalho torna obrigatório pensar em formas de diversificar as economias locais. O

fundamental é ampliar as oportunidades das pessoas, criar encadeamentos locais às

atividades realizadas nas áreas rurais, e não apostar única e exclusivamente na

especialização na produção de alimentos que, se bem continuará sendo uma das vocações

prioritárias das áreas rurais, não pode ser a única função destes espaços nem a única fonte

de oportunidades promissoras, sobretudo para os mais jovens.

d) Novas formas de uso dos recursos naturais – Para além da produção de commodities os

recursos naturais das áreas rurais devem ser valorizados para diferentes necessidades das

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sociedades humanas. A crise ambiental e o sentido das inovações em curso têm aberto

novas possibilidades sobretudo no campo das biotecnologias, sem falar no tema

controverso da produção de biomassa para energia. A valorização da biodiversidade, que

coloca os países latino-americanos em posição de destaque, deve ser vista como um trunfo

e uma vantagem comparativa fundamental para a economia do século XXI.

e) Conhecimento e inovação, além do alternativo - Estas novas funções dos espaços rurais e

esta nova base econômica da transição para uma economia de baixo carbono exigem uma

estratégia intensiva em conhecimento e inovação. Não basta para isso sistematizar saberes

tradicionais que são, sem dúvida, uma dimensão muito importante. Para os desafios postos,

será preciso uma revolução tecnológica similar àquilo que representou a chamada revolução

verde para a produção de alimentos, mas agora privilegiando não somente a elevação da

produtividade, e sim uma série de outros requisitos sociais e ambientais.

Conclusão

Ao longo das páginas anteriores de buscou mobilizar evidências de que as mudanças em curso,

seja na escala global, seja na escala local, projeta sobre os espaços rurais latino-americanos um

conjunto de desafios que não podem ser enfrentados com a velha geração de políticas de

desenvolvimento rural. Deve ter ficado claro também que o enfoque territorial, embora tenha

representado a mais importante inovação dos anos recentes no âmbito dos estudos e das

políticas para o mundo rural, ainda segue muito marcado por elementos e práticas mais

coerentes com a geração anterior de políticas, de forte viés setorial. Nos encontramos num

momento de transição de paradigmas. É preciso acelerar esta transição, tomando em conta os

aprendizados das experiências em curso. Para o futuro, o enfoque territorial segue sendo a

narrativa mais aderente ao processo de transformações em curso. Mas para levar aos resultados

esperados, será preciso introduzir um conjunto de temas e de formas de fazer as coisas

inteiramente novos. O êxito na ascensão e disseminação da narrativa do desenvolvimento

territorial se deve em grande medida ao fato de ter sido o resultado de uma ampla colaboração

de pessoas e organizações, mobilizando diferentes vertentes teóricas e experiências, e que

souberam dialogar com inteligência, franqueza, respeito e generosidade. No próximo período

será preciso algo similar para evitar a inércia de um resultado alcançado até aqui que, se por um

lado é positivo, ainda não está à altura das transformações rurais da América Latina.

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