mÚsica em sala de aula e ensino de histÓria

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MÚSICA EM SALA DE AULA E ENSINO DE HISTÓRIA Wagner José Silva de Castro Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior Stanley Braz de Oliveira As discussões sobre o ensino de história foram acirradas por educadores e pesquisadores em meados dos anos 1980. Nos idos dos anos 1990 com as traduções da Micro-História e da História Nova e suas novas perspectivas e abordagens, (ampliando as fontes e o conceito de documento) como sendo todo e qualquer objeto capaz de nos dar informações acerca de um passado, a escrita da história mudou, as produções am- pliaram-se, mas o lugar privilegiado dessas discussões, a sala de aula, não mudou nem a sua formatação de aula. Isso por- que os professores não acompanharam as novas perspectivas, as novas metodologias para o ensino de história. Para o historiador francês Michel de Certeau, há uma tendência do historiador de reviver um passado e de restau- rar um esquecimento de homens e das suas realizações dei- xadas. Encarar a história como operação historiográfica para Certeau seria, "de maneira limitada compreendê-Ia como re- lação de um lugar e de procedimentos, entendendo a com- binação de um lugar social, de práticas "Científicas" e de uma escrita/Eu; relação a um lugar social a ser pesquisado, Certeau faz a seguinte advertência: Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural". E continuou: "Implica um meio de elaboração que circuns- crito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, de artistas, etc." (grifo meu) I CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.66. ___ .,p.66. ~ 57

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Page 1: MÚSICA EM SALA DE AULA E ENSINO DE HISTÓRIA

MÚSICA EM SALA DE AULA E ENSINO DE HISTÓRIA

Wagner José Silva de CastroRaimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior

Stanley Braz de Oliveira

As discussões sobre o ensino de história foram acirradaspor educadores e pesquisadores em meados dos anos 1980.Nos idos dos anos 1990 com as traduções da Micro-Históriae da História Nova e suas novas perspectivas e abordagens,(ampliando as fontes e o conceito de documento) como sendotodo e qualquer objeto capaz de nos dar informações acercade um passado, a escrita da história mudou, as produções am-pliaram-se, mas o lugar privilegiado dessas discussões, a salade aula, não mudou nem a sua formatação de aula. Isso por-que os professores não acompanharam as novas perspectivas,as novas metodologias para o ensino de história.

Para o historiador francês Michel de Certeau, há umatendência do historiador de reviver um passado e de restau-rar um esquecimento de homens e das suas realizações dei-xadas. Encarar a história como operação historiográfica paraCerteau seria, "de maneira limitada compreendê-Ia como re-lação de um lugar e de procedimentos, entendendo a com-binação de um lugar social, de práticas "Científicas" e deuma escrita/Eu; relação a um lugar social a ser pesquisado,Certeau faz a seguinte advertência:

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugarde produção socioeconômico, político e cultural". Econtinuou: "Implica um meio de elaboração que circuns-crito por determinações próprias: uma profissão liberal,um posto de observação ou de ensino, uma categoria deletrados, de artistas, etc." (grifo meu)

I CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2000. p.66.___ .,p.66.

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São esses lugares separados pelo tempo, sem cair noanacronismo da produção socioeconômico, político e cultural,de ensino, de uma categoria de artistas que me levou a buscarpistas e uma leitura mais detalhada e mais criteriosa sobreas possíveis relações e produções no que diz respeito à arte,especialmente a música e do seu sentido educativo.

Alguns motivos podem explicar a ausência de conhe-cimento por parte dos professores: o não acesso à produçãohistoriográfica sobre o assunto, a profissão como "bico", a máformação dos estudantes no curso de história (e aí me incluoquando era aluno da Universidade) em relação às disciplinasde metodologia e de didática, ou seja, a um processo que de-veria obrigatoriamente existir na Universidade, um processocontinuado de formação de professores. Como a educação éum processo, seria aconselhável que tais disciplinas fossemministradas por professores que tivessem no mínimo dezanos de experiência no magistério no ensino médio, pois só ateoria não basta, pois o ensino é uma prática.

Há poucos anos um supervisar de uma escola privada(um homem culto e admirador da arte, especialmente a mú-sica) chamou-me e pediu a minha opinião a respeito de umlivro paradidático que ele pretendia adotar nas séries do lQ

e 2!l do ensino médio. Tratava-se do livro: Brasil Século XX:ao pé da letra da canção popular,de Luciana Salles Worms eWellington Borges Costa, prêmio Jabuti de 2003 de melhorlivro didático do ensino fundamental e médio.

Ao analisá-Io,disse-lhe: 'O livro é excelente, pois abordaa história do Brasil a partir das canções, assim os alunos sesentirão seduzidos e com certeza, ao ouvirem e interpretaremas letras, irão interessar-se mais pela história daquele período ..Pode e deve adotá-Ia'. No meio ano do segundo semestre doano letivo, ele chamou-me outra vez e disse: 'Os professores

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estão achando o livro muito ruim e o pior é que dizem quenão sabem trabalhar em sala com música e história, pois nãoconhecem nem mesmo algumas canções e do que tratam asletras. E disse: 'quero que você me ajude',

Daquele dia em diante, percebi a gravidade do proble-ma e, não posso negar; a partir de então passei a acreditar naideia que eu não levava muito a sério, aformação de profes-sores. Em verdade não era uma resistência deliberada (gratui-ta); tampouco preconceito com o ideário dos pesquisadores--educadores que a defendiam, mas pela minha trajetória aoaprender de forma empírica os procedimentos e métodos deensino no dia em que me determinei a levar o violão para asala de aula, pelas experiências passei a entender qual o mo-mento ideal para trabalhar a música na aula.

Mas o dia o qual me determinei a levar o violão e tocarem sala, nunca esquecerei. Foi em uma sala de cursinho comcerca de duzentos e cinquenta alunos. Eu estava trabalhandocom a turma o período recente da História do Brasil, conheci-do como regime civil-militar. Ao chegar com o violão, o coor-denador perguntou para onde eu ia com aquele violão. Disse--lhe: 'Vou tocar para os alunos'. E ele disse: 'De jeito nenhumisso vai dar confusão'. O supervisor que me conhecia, ao pre-senciar a cena, disse-lhe: 'Pode deixar ele sabe o que faz'.

Depois de explicar por 20 minutos o período e as ques-tões envolvendo militares (censura, prisões. exílios, tortura eartistas), pedi que abrissem a apostila para cantar a canção,Cálice de Chico Buarque e Gilberto Gil para analisar a letradepois. A música não tem uma execução simples. Quando co-mecei a cantar, os alunos acompanharam, então, subitamen-te, no meio da canção faltou energia no colégio e a sala ficoutotalmente escura. Pensei por um instante, vai acontecer o .que o coordenador prognosticara; vai dar confusão. Mas não

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parei de tocar e cantar e, para a minha surpresa, os alunos nãogritaram ou vaiaram como é mais ou menos comum nessas si-tuações em sala de aula, Ao contrário, cantavam com emoção.Devo admitir que fiquei arrepiado, e pensei: de hoje em dian-te não deixarei mais de levar o violão, quando for pertinente,para a sala.

Obviamente, hoje estamos trocando experiências comoutra geração que têm outras referências musicais e, portan-to, outras audições. E, dependendo da escola e seus equipa-mentos como multimídias e lousas digitais, as canções podemser trabalhadas não só apenas pela execução do professor oude um aluno, mas também pela imagem dos artistas interpre-tando as canções.

No entanto, a música parece encontrar-se ainda nessedesajuste no processo ensino-aprendizagem. De fato, os livrosdidáticos têm melhorado bastante, sobretudo por não abor-darem apenas as questões meramente políticas e econômicasda história, mas trabalhando uma visão mais social e cultural,todavia muito deve e precisa ser melhorado no que concerneàs outras áreas do conhecimento como a música, a poesia, oteatro e o cinema no ensino de história.

O artigo pretende oferecer algumas indicações aos pro-fessores sobre como trabalhar a música e a História do Brasilcom os alunos em sala. O presente artigo busca dar indicaçõessobre o ensino, música e História do Brasil em fins dos anos1950 e das décadas de 1960 e 1970.

Tratar-se-á, assim, esse artigo de experiências, movi-mentos e músicas que tiveram início em fins dos anos 50 enos idos dos anos 70. no âmbito da cultura brasileira.

O governo do presidente Juscelino Kubistchek che-gou ao poder em 1955. De modo genérico, ensina-se que seugoverno se caracteriza pela política do nacional-desenvolvi-

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mentismo, ou seja, a união do capital nacional com o capitalestrangeiro. Pela entrada de capital estrangeiro, que não es-tava presente apenas na indústria automobilística, mas que opresidente orgulhava-se da diversidade dos automóveis quetransitavam nas poucas ruas do Brasil (Rural Willys, Kombi,Candango, Jeep, JK-FNM, Simca-Chambord etc). Dá-se ênfa-se ao processo inflacionário que assolou o país.

Poucos professores enfatizam em suas aulas a invasãoda cultura, especialmente norte-americana no Brasil naque-le momento (óculos ray-ban, jaquetas de couro, coca-cola), ocinema e atrizes como Doris Day e Grace Kelly e na música orock and roll. Além disso, pelo que tenho obervado, a maio-ria dos professores não abordam que no ano de 1955 surgiu oISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros).Para os ise-bianos, os intelectuais seriam os elaboradores de um projetode desenvolvimento para o país, o qual só seria viabilizadopela tomada de consciência do povo conceber um movimentode inspiração marxista aos intelectuais.

Em 1956,0 XX Congresso do Partido Comunista in-fluenciará muitos artistas e intelectuais brasileiros. Foi assimque surgiu o Teatro Novo, o Cinema Novo e os políticos deGlauber Rocha e a Bossa Nova, inspirada no movimento devanguarda, chamado concretismo, na musicalidade do jazz ena música clássica europeia. A canção que tocou no rádio epopularizou a Bossa Nova foi a canção, Chega de Saudade deTom Jobim e Vinícius de Moraes.

Vai minha tristezaE diz a ela que sem ela não pode serDiz-lhe numa preceQue ela regressePorque eu não posso mais sofrerChega de saudade

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,"

A realidade é que sem elaNão há paz não há belezaÉ só tristeza e a melancoliaQue não sai de mimNão sai de mimNão saiMas, se ela voltarSe ela voltar que coisa linda!Que coisa louca!Pois há menos peixinhos a nadar no marDo que os beijinhosQue eu darei na sua bocaDentro dos meus braços os abraçosHão de ser milhões de abraçosApertado assim, colado assim, calado assim,Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fimQue é pra acabar com esse negócioDe você viver sem mimNão quero mais esse negócioDe você longe de mimVamos deixar esse negócioDe você viver sem mim

I"

o professor pode começar a sua aula sobre o governoJK a partir da arte, especialmente com a canção explicandoque, apesar do romantismo das letras, os bossanovitas nãoeram alienados, mas que havia divergência entre os jovens:alguns diziam que era uma música de vanguarda; outros, queera uma música alienada e alguns universitários que era ummimetismo de jazz e da música clássica.

Em 1961, foi fundado, no Rio de Janeiro o CPC (Cen-tro Popular de Cultura), órgão cultural da União Nacional dosEstudantes. A ação filosófica dos cepecistas está diretamentevinculada ao pensamento dos isebianos, ou seja, os cepecis-tas desenvolveram uma concepção leninista segundo a quala vanguarda de esquerda e artística levaria à conscientização

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dentro de uma ação política, abordando a problemática dacultura popular, especialmente a questão envolvendo folcloree cultura popular.

Com o golpe civil-militar de 1964, alguns artistas deuma vertente da Bossa Nova como Carlos Lyra, Edu Lobo eNara Leão, deixam a versão das canções de temas sobre "amor,violão e flor" para comporem músicas políticas para o teatroengajado de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Oduval-do Viana Filho. O teatro Opinião com Zé Keti, João do Valee Nara Leão (que abandona o rótulo de princesinha da Bos-sa Nova) para fazer uma arte política. Com problemas vocais,Nara deixa o espetáculo e indica Maria Bethânia, que dá umainterpretação densa e forte para a canção, Carcará de João doVale.

CarcaráLá no sertãoÉ um bicho que avoa que nem aviãoÉ um pássaro malvadoTem o bico volteado que nem gaviãoCarcaráQuando vê roça queimadaSai voando, cantando,CarcaráVai fazer sua caçadaCarcará come inté cobra queimadaQuando chega o tempo da invernadaO sertão não tem mais roça queimadaCarcará mesmo assim num passa fomeOs burrego que nasce na baixadaCarcaráPega, mata e comeCarcaráNum vai morrer de fomeCarcaráMais coragem do que home

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CarcaráPega, mata e comeCarcará é malvado, é valentãoÉ a águia de lá do meu sertãoOs burrego novinho num pode andáEle puxa o umbigo inté matáCarcaráPega, mata e comeCarcaráNum vai morrer de fomeCarcaráMais coragem do que homeCarcará

o professor pode começar com a canção tomando al-guns trechos para explicar as ideia de reforma agrária doPCB, a concepção dos i ebiano da tomada de consciência dopovo pela condição social de miséria do sertanejo exposta naletra, da função da arte política do cepecistas na interpretaçãoforte de Maria Bethânia ao cantar carcará, pega mata e come;uma crítica direta às prisões e orturas praticadas pelo regime.

A reação truculenta do militares não tardou no meioartístico com mais censura, p . ões, exílios e tortura. Emmarço de 1968, no Rio de Janeiro em protesto contra a máalimentação que era servida no r taurante universitário Ca-labouço, foi morto a tiro pela polícia o estudante secunda-rista Edson Luis. Cinquenta mil p oas (estudantes, artistas,intelectuais, entre outro ) foram ao enterro do secundarista,numa grande passeata de pro esto contra o regime militar.

Como indicação o prof or pode utilizar o depoimen-to do compositor Márcio Borges obre a canção, Menino par-ceria de Milton nascimento e Ronaldo Bastos para explicar oconflito envolvendo estudantes que partiram para a luta ar-mada como solução, dos que optaram pelo teatro, dos que op-

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taram pela música contra o autoritarismo dos militares. Sobrea canção e o ambiente político da época, o compositor MárcioBorges fez o seguinte relato:

"Menino" mexeu comigo. Era um tributo ao estudanteEdson Luís, morto no Rio de Janeiro durante manifes-tação na porta do "bandejão" universitário. Chorei aocantar aqueles versos escritos em letra miúda, num pa-pel que Ronaldo segurava com mão trêmula, enquantoBituca virava um lamento vindo lá do fundo, voz e violão.Essa música ficou guardada durante anos, só para nossoconsumo interno. O tema era doloroso demais e nenhumde nós queria parecer oportunista. Qnanto a Ronaldo,estava envolvido demais. Atrás da Cara de Anjo estavaum cara destemido. Talvez precisasse dar um tempofora do Brasil, se as coisas piorassem.3

Quem cala sobre teu corpoConsente na tua morteTalhada a ferro e fogoNas profundezas do corteQue a bala riscou no peitoQuem cala morre contigoMais morto que estás agoraRelógio no chão da praçaBatendo, avisando a horaQue a raiva traçou no tempoNo incêndio repetidoO brilho do teu cabelo

Bituca, como era conhecido Milton Nascimento entreos amigos, já havia se destacado nos festivais da canção e eraum nome importante na MPB. Na passeata dos Cem Mil, pri-meira reação organizada da sociedade civil contra a ditadura,Milton estava lá de braços dados com outro nome importanteda música, Chico Buarque.

3BORGES, Márcio. Os sonhos Ilão envelhecem: histórias do Clube da Esquina.2. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1996. p. 180

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PERGAMUMUFC/BCCE-------------------------------------------~

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Antes, em 1967, por ocasião do JII Festival de MPB daTV Record ou O Grande Festival de 1967 acontecerá a invençãoda MPB (Música Popular Brasileira). As gravadoras passarama interferir diretamente na estrutura do festival, especialmentede olho nos novos intérpretes e, assim, o mercado estimulavaos patrocinadores e, obviamente, a própria emissora.

Porém, a utilização de guitarras no festival causou umaquerela entre os artistas: de um lado, os artistas que encabe-çavam a passeata da Frente Única da MPB; de outro lado, osartistas que defendiam o Manifesto do iê-iê-iê contra a ondade inveja. Partindo do Largo São Francisco ao Teatro Para-monunt, no dia 18 de julho de 1967, os artistas defensores daFrente Única da MPB - Elis Regina, Edu Lobo, Jair Rodri-gues, Gilberto Gil dentre outros, que, inicialmente buscavampromover o novo programa Noite de MPB,da TV Record, aca-baram formando uma passeata de caráter ideológico contra oiê-iê-iê e contra a utilização de guitarras elétricas no festival.

Mesmo com discussão e passeata, as guitarras foramutilizadas no festival, especialmente por Caetano e Gi1. O re-sultado do festival ficou assim: 1º lugar Ponteio (Edu Lobo/ Capinan); 2º lugar Domingo no Parque (Gilberto Gil); 3ºlugar Roda Viva (Chico Buarque); 4º lugar Alegria, Alegria(Caetano Veloso) e sº lugar Maria, Carnaval e Cinzas.

Com o fim do festival, surge o Tropicalismo e, a partirdesse momento, a música brasileira não seria mais a mesma.Seu caráter estético, anárquico, transgressor, e as apresentaçõesespalhafatosas no programa Divino Maravilhoso escandalizavaparte dos civis conservadores e dos militares da linha dura. Maso Tropicalismo teve vida curta de 1967 a dezembro de 1968.

Como indicação, pode-se pontuar que, além das ima-gens dos tropicalistas apresentando-se no programa, o pro-fessor pode se utilizar de um trecho do livro Tropicália: a

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história de uma revolução musical de Carlos Calado e a in-terpretação da canção, Boas Festas para explicar o AI-S e ofatídico final de 1968.

Cassiano Gabus Mendes fez o que pôde para amenizara violência daquela cena, exibida durante o programa Divino,Maravilhoso na noite de 23 de dezembro, antevéspera do atalde 68. Cantando a marchinha Boas Festas, uma das preciosida-des musicais do baiano AssisValente, Caetano Veloso apontavaum revólver, engatilhado, para a própria cabeça e cantava+

Anoiteceu, o sino gemeuE a gente ficou feliz a rezarPapai Noel, vê se você temA felicidade pra você me darEu pensei que todo mundoFosse filho de Papai NoelE assim felicidadeEu pensei que fosse umaBrincadeira de papelJá faz tempo que eu pediMas o meu Papai Noel não vemCom certeza já morreuOu então felicidadeÉ brinquedo que não tem

A brutalidade da cena havia sido inspirada no filmeTerra em Transe, de Glauber Rocha e provocou indignaçõesna tradicional família brasileira e telespectadores de cidadesdo interior que reagiram enviando cartas à emissora, no caso,a TVTupi.

OAto Institucional nQ S havia sido imposto numa sexta--feira, 13; eliminando os direitos individuais e dando plenospoderes ao Executivo. Assis Valente, negro, ex-menino de rua

4 CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. 2. ed. SãoPaulo: Ed. 34, 1997. P·250-251

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o. Depois de duas ten-na Bahia e bissexual. chE~{J,U

tativas, Valente se suicidou o .Assis Valente. alcoólatra, numa noite

de Natal em um mo - ão, ao sair pelas ruas aobservar os pobres ceias de natal, compôsa canção, Boas Fest ente tornou-se o hino daatmosfera natalina e o. Ob erve que o programaaconteceu no dia 23 e 1968, ou seja, dez diasapós o famigerado . -5. Aproveitando a atmosfera natalina, aforte cena apresen . as não apenas busca-va afrontar a tradicio síleira, mas, ao apontar orevólver para a sua ca fazia uma ferrenha críticaaos militares pelas 'p .- - e exílios) deixando filhos,filhas, mães e pais 10 ias na noite de Natal.

Em verdade. o -o tinha muita audiência,mas muitos poliei . entavam o auditório daTV Tupi. Resultado opicalista, o programaDivino, Maravilho-nas e já no dia 2 de dezembro,-se presos em duas ceExército, no Rio de Jan .

Presos em celas SJ_~p'L"'2la.aLS e i comunicáveis, por doismeses, para os ami 0-. G o estariam mortos. Naprisão, enquanto Cae o - e discutia e se exaltavacom os policiais, Gil spectivo, tornou-se vege-tariano e mudou a reli ·-0.

Por indicação, a . -o e do processo criativoda canção, Aquele Abraço e G rto Gil, o professor poderápela experiência do ft e e er a história do Brasil da-quele momento e compree e que a música não é história,mas que a música faz parte dela. obre sua prisão e o processocriativo da canção, vale a pena a narrativa de Gil:

o ar apenas cinco sema-LaIlOe Gil encontravam-

mmuscmas no quartel da polícia do

68 ~ WAGNERJOSÉ SILVA DE) STANLEY BRAZ DE OUV

UWIl'llD() [UI,O DE PAULA VASCONCElOS JÚNIOR·

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Meses depois de solto, em vim ao Rio tratar da questãoda saída do Brasil com o Exército. a manhã do dia da minhavolta para Salvador, fui visitar Mariah Costa, mãe de Gal; ali,na casa dela, eu ideei e comecei. Aquele Abraço. Finalmenteeu ia poder ir embora do país e tinha que dizer "bçe, bye";sumarizar o episódio todo [...]. Que outra coisa para um com-positor fazer uma catarse senão uma canção. o aviao mes-mo eu terminei a música, escrevendo a letra num papel qual-quer, um guardanapo e mentalizando a melodia. [...] Quandoeu cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei; já estavacomprometido afetivamente com a canção. Aquele Abraço,Gil! - Era assim que os soldados me saudavam no quartel,com a expressão usada no programa do Lilico, humorista emvoga na época, que tinha esse bordão. [...] Mas eu aprendi asaudação com os soldados. Eu não tinha televisão na prisão,evidentemente [...]. O reencontrar a cidade do Rio na manhãem que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getúlio Var-gas ainda com a decoração de carnaval foi o pano de fundoda canção. Na minha cabeça, "Aquele Abraço" se passa numaQuarta-Feira de Cinzas; é quando o "filme" da música é emmim mentalmente locado.s

o Rio de JaneiroContinua lindoO Rio de JaneiroContinua sendoO Rio de JaneiroFevereiro e marçoAlô, alô, RealengoAquele Abraço!Alô torcida do FlamengoAquele abraço

5 RENNó, Carlos, (Org), Gilberto Gil: todas as letras. São Paulo: Companhia dasLetras, 1996. p.rio.

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Chacrinha continuaBalançando a pançaE buzinando a moçaE comandando a massaE continua dandoAs ordens no terreiroAlô, alô, seu ChacrinhaVelho guerreiroAlô, alô, TerezinhaRio de JaneiroAlô, alô, seu ChacrinhaVelho palhaçoAlô, alô, TerezinhaAquele Abraço!Alô moça da favelaAquele Abraço!Todo mundo da PortelaAquele Abraço!Todo mês de fevereiroAquele passo!Alô Banda de IpanemaAquele Abraço!Meu caminho pelo mundoEu mesmo traçoA Bahiajá me deuRégua e compassoQuem sabe de mim sou euAquele Abraço!Prá você que me esqueceuRuuummm!Aquele Abraço!Alô Rio de JaneiroAquele Abraço!Todo o povo brasileiroAquele Abraço!

Ironicamente, Aquele Abraço foi uma das músicas maispopulares e tocadas e o segundo mais vendido compacto deGilberto Gil.

WAGNER Jost SILVA DE CASTRO· RAIMUNDO ElMO DE PAULA VASCONCELOS JÚNIOR·70 ~ STANLEY BRAZ DE OLIVEIRA

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Com os exílios de Chico e Gil para a Inglaterra, outrosse seguiram, Vinícius de Moraes, Toquinho e Chico Buarqueque partiram como um rabo de foguete para a Itália. Talvezpor músico e ser e não letrista e não ter uma participação noâmbito da política, os militares permitiram o retorno de To-quinho ao Brasil. Ano 1969, mas antes de partir Toquinho fezuma visita a Chico Buarque em seu apartamento na Itália,mostrando-lhe uma composição (samba) sem letra a qual ex-pressava o sentimento de saudade da terra natal. "Chico es-creveu os versos finais aproveitando o portador: Diz como éque anda / Aquela vida à toa / E se puder me manda/Umanotícia boa.6 Vinícius se tornou parceiro de Toquinho e Chico,em Samba de Orly (nome do aeroporto de Paris, cidade dosexilados) inserindo os versos que a censura não gostou: Pedeperdão / Pela Omissão / Um tantoforçada. Barrada pela cen-sura, Omissão teve de virar duração e Um tanto forçada vi-rou dessa temporada.

Vai, meu irmãoPega esse aviãoVocê tem razão de correr assimDesse frio, mas beijaO meu Rio de JaneiroAntes que um aventureiroLance mãoPede perdãoPela duração dessa temporadaMas não diga nadaQue me viu chorandoE pros da pesadaDiz que vou levandoVê como é que andaAquela vida à toa

6 WORMS, Luciana Salles; COSTA, Wellington Borges.Brasil Século XX: ao pé daletra da canção popular. Curitiba: Nova Didática, 2002, p. 114

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E se puder me mandaUma notícia boaPede perdãoPela omissão um tanto forçadaMas não diga nadaQue me viu chorandoE pros da pesadaDiz que vou levandoVê como é que andaAquela vida à toaSe puder me mandaUma notícia boa

Impossibilitada pelo AI-S do exercício dos direitos de-mocráticos alguns grupos de esquerda, como o MR-8, a VPRe a ALN, radicalizaram optando pelo luta armada urbana, se-questrando diplomatas e assaltando bancos. O PC do B, poroutro lado, inspirado na re olução chinesa, optou pela guerri-lha rural tendo como foco a região do Araguaia. O Partido ti-nha como estratégia a politização dos camponeses e a marcharevolucionária partindo do campo para a cidade para derru-bada do regime civil-militar.

Mas, o Brasil não se resumia à arte do futebol, de can-ções e de festivais; nem tudo era divertimento, embriaguez ealegoria. Outros jovens enveredaram pela política e, em par-ticular, pela luta armada. Foram perseguidos, presos, tortu-rados e pagaram com a própria vida, ao lutarem, de algumaforma, por causas diversas contra o regime civil-militar. Tal-vez o evento mais marcante tenha sido a resistência estudan-til contra a ditadura militar. Esse e ento aconteceu em 12 deoutubro de 1968, e reuniu entre 800 e 900 estudantes de todoo país em Ibiúna, um sítio no interior de São Paulo, para oCongresso da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Aresistência estudantil não se resumia apenas aos jovensdo sudeste e sul do país. Representando o recém- eleito DCEda

WAGNERJOSt SILVA DE CASTltO· RAJ U DO EUoIO DE PAUtA VASCONCElOSJUNIOR·72 ~ STANLEY BRAZ DE OLIVEIRA

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Universidade Federal do Ceará, foram o vice-presidente, Faus-to Nilo, estudante de Arquitetura, e o presidente da chapa, JoséGenoíno. Participaram, também, desse Congresso, o estudantede Química da Universidade Federal do Ceará, Bérgson Gurjão;Pedro Albuquerque, membro do Partido Comunista do Brasil eMércia Pinto, ex- integrante do CPCem Fortaleza, militante doPC do B, formada em Serviço Social e, em 1968, estudante doCurso Superior de Música do Conservatório Alberto Nepomu-ceno, e o dominicano cearense que morava em São Paulo, Titode Alencar Lima. A repressão reagiu contra aquele grupo deestudantes, prendendo-os. João de Paula, na época, estudantede Medicina, dividiu a cela com Fausto Nilo com os quais maistrinta pessoas dividiram um cubículo por dez dias.

Enquanto o vice-presidente Fausto Nilo volta-se para olado cultural, musical como letrista; por outro lado, o presi-dente do DCE, José Genoíno, e os estudantes de química, Bér-gson Gurjão e Pedro Albuquerque, embrenham-se na guer-rilha rural do Araguaia. Ednardo relatou que Bérgson Fariasera seu primo segundo e, depois de morto, haviam-no decapi-tado e usado sua cabeça como bola de futebol e que Genoínotinha sido um dos poucos sobreviventes.

Conversando com Ednardo acerca da ditadura, movi-mento estudantil e da guerrilha, foi-lhe perguntado se a suacanção Araquaia seria uma homenagem à guerrilha, que levaesse nome. Segundo ele, foi a primeira música gravada no Brasilque falava, explicitamente, o nome da guerrilha a qual os milita-res ocultavam dos noticiários. Contou que se lembrava muito deJosé Genoíno porque era líder estudantil e havia feito algumasdisciplinas com ele na faculdade. Relatou que certa vez, ao ter-minar a aula, Genoíno teria pedido carona para deixar um tra-balho na casa de um amigo. Ao chegar à praça José de Alenearcom seu velho e bom fusquinha 68, Genoíno pediu que paras-

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sem o carro, dizendo que voltaria logo. De repente, Genoíno vol-tou correndo, entrou no carro e pediu que Ednardo saísse, umavez que a polícia o estava procurando. Assim narrou Ednardo:

Que loucura Genoíno o que esta acontecendo? [...] Eufiquei apavorado. Meti a primeira no carro e arranquei.Porque naquela época de repressão quando você recebeum aviso desse, é bom acreditar. [ ...] Porra! O que vocêfoi fazer? "Fui fazer um discurso rápido numa mani-festação estudantil. Gritei, abaixo a ditadura! Ele fezum discurso rápido, mas muito inflamado, aí a políciarealmente veio atrás dele e de mim, que estava dirigin-do. Parecia aqueles filmes. Então, quando chegamos naesquina da Duque de Caxias o sinal estava vermelho:passei e dobrei a esquerda. Impedido pelos outros carroo camburão da polícia não conseguiu alcançar a gente."

Em um ônibus fazendo o translado entre Rio de Janeiroe São Paulo, por intermédio de um amigo estudante de Forta-leza, Ednardo soube que José Genoino estava na clandestini-dade, na guerrilha do Araguaia. Sabendo desse fato, o artistapensou em fazer uma canção sobre essa guerrilha, ao gravar odisco "Ednardo", ele incluiu a canção Araguaia.

Quando eu me banho no meu AraguaiaE bebo da sua água sangue friaBichos caçados na noite e no diaBebem e se banham eles são comigo

Triste guerrilha companheiro mortoSuor e sangue, brilho do corpoMedo sóMas se o corpo desse pó é póUm círio da luz dessa dorViolento amor há de voar"

7 Entrevista com o cantor e compositor Ednardo em um hotel na Praia de Iracemaem Fortaleza no dia 21.03.2003, p. 98 EDNARDO. Sony Music. Compact Disc, Remasterizado. Faixa 10, "Araguaia",música e letra de Ednardo.

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Ai> expressões, banho no meu Araguaia / bebo da águade sangue / triste guerrilha companheiro morto, evidencia-vam o desconforto, a critica e o mal-estar do cantor com abrutalidade dos militares para com os estudantes. Como erade se esperar, a música foi censurada, e o disco levou mesespara ser liberado ao mercado fonográfico.

Em uma entrevista concedida por Ednardo a Revista Do-mingo do Jornal do Brasil em 1987, quando indagado sobre aPadaria Espiritual, "Ednardo se dirigiu à estante e trouxe um li-vro sobre o movimento e aponta um trecho: Olha só que barato:Artigo 26 - São considerados, desde já, inimigos naturais dospadeiros: o clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum padeiro deveperder a ocasião de patentear o seu desagrado a essa gente."?

Eis a letra da canção, Artigo 26

Olha o padeiro entregando o pãoDe casa em casa e entregando o pãoMenos naquela, aquela, naquela, aquela nãoPois quem se arrisca a cair no alçapão?Pois quem se arrisca a cair no alçapão?Anavantu, anavantu, anarriêNêpa dê qua, nêpa dê qua, padêburrêIgualitê, fraternitê e libertêMercibocu, mercibocuNão háde queRua formosa, moça bela a passearPalmeira verde e uma lua a pratearUm olho vivo, vivo, vivo a procurarMais uma idéia pro padeiro amassarAnavantu, anavantu, anarriêNêpa dê qua, nêpa dê qua, padêburrêIgualitê, Fraternitê e liberteMercibocu., mercibocuNão há de queVocê já leu o artigo 26

9 Revista Domingo do Jornal do Brasil, 1987

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Ou sabe a estória da galinha pedrêsE me traduza aquele rock para o portuguêsA ignorância é indigesta pro freguêsA ignorância é indigesta pro freguêsAnavantu, anavantu, anarriêNêpa dê qua, nêpa dê qua, padêburrêIgualitê, fraternitê e libertêMercibocu, mercibocuNão háde que

Você queria mesmo, é ser um sanhaçuFazendo fiu e voando pelo azulMas nesse jogo lhe encaixaram, e é uma loucuraLá vem o padeiro, pão na boca é o que te curaLá vem o padeiro, pão na boca é o que te curaAnavantu, anavantu, anarriêNêpa dê qua, nêpa dê qua, padêburrêIgualitê, fraternitê e libertêMercibocu, mercibocuNão há de que 10

Ao ser perguntado se havia uma relação direta da can-ção, Artigo 26 com a Padaria Espiritual e do seu caráter anár-quico, o artista comentou:

O espírito é mais amplo que este na canção: "Artigo26" e, em outras como "Berro", "Abertura", "PadariaEspiritual", do disco que gravei em 1976, mas não exa-tamente "anárquico"; neste mesmo disco tem cançõesromânticas e outras líricas. Para realizar músicas eletras, não me aliei de forma incondicional a algumtipo de pensamento político / existencial. Percebi quesempre é necessário ir além disso; Ao pinçar do estatutoda Padaria Espiritual- o Artigo 26 - realizei uma pontecom os tempos que estávamos vivenciando de repressãopolítica e artística, mas não só isto, tem também a sinali-zação de outras formas de ver o mundo. A concepção daletra, a meu ver, bem-humorada, vai mais pelo "drible"ao index repressivo da época, você já pensou em plena

10 Disco, "Berro'jEdnardo. ReA, 1976.

WAGNER JOSÉ SILVA DE CASTRO· RAIMUNDO ElMO DE PAULA VASCONCElOS JÚNIOR·STANlEY BRAZ DE OLIVEIRA

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ditadura cantar "igualdade fraternidade e liberdade"e falar de um movimento de jovens que contestavamo poder estabelecido no século XIX, usei da estratégiade foco em outro século passado, pois já haviam proi-bido a música "Do Boi só se perde o Berro" e tambémtinha a música "Passeio Público", e os censores federaispodiam ser obtusos, mas não eram burros. o ano dolançamento do disco "Berro" - 1976, realizei um showem TabubajCeará, ao cantar "Artigo 26" fui preso "deforma relâmpago" ao sair do palco. 11

A canção Artigo 26 foi executada em todo o país. Sobre oshow do MAM e do repertório, segundo o jornal, o artista vooupara os braços do público e consolidou a sua carreira. O JornalO Globo, assim fez menção ao show:

o cearense mostrou um trabalho bonito, maduro eequilibrado, sem que represente qualquer acomodaçãoou aburguesamento criativo (grifo meu). [...] Além deum repertório amplo e inquieto e com momentos deintensa luz."

Além da referência direta à Rua Formosa, sede da cria-ção da Padaria e da alusão às palavras libertárias da RevoluçãoFrancesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), no mesmodisco o ex-universitário revela mais do seu conhecimento, outalvez do seu encantamento, a respeito da Padaria Espiritualem outra canção do disco, "Padaria Espiritual".

Ao tentar compreender as origens das músicas, seus es-paços de criação e a partir de suas letras as relacionando ascondições políticas, econômicas, sociais e culturais do perío-do, penso com as indicações oferecer uma contribuição par-cial e provisória a respeito do ensino de história e música nasala de aula.

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11 EDNARDO, Op. cit., p. 2

12 o Globo. 03.05.1977

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WAGNER JOst SILVA DE CASTRO· RAIMUNDO ELMO DE PAULA VASCONCELOSJÚNIOR·STANLEY BRAZ DE OLIVEIRA

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