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Movimento libertário em Barcelona, o lado invisível Libertarian Barcelona, the invisible side Léa Guimarães Souki, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, [email protected]

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MovimentolibertárioemBarcelona,oladoinvisível

LibertarianBarcelona,theinvisibleside

LéaGuimarãesSouki,PontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais,[email protected]

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

Opropósito deste artigo é analisar o legadoda cultura anarquista e libertária emBarcelona noséculo XXI. A admiração que a tradição libertária barcelonesa vem despertando em parte dosjovensbrasileirospróximosaoanarquismo,hojeemcrescimentonosmovimentossociaisurbanosnasmaiorescidadesdoBrasil,fezdespertarointeressepelotema.Sempretenderexplicartodosos ingredienteseasprofundas raízeshistóricasdessa tradição,o texto traráumbreverecorridoaos primórdios da “Barcelona rebelde”, à afirmação de uma ordem laica através do anarco-sindicalismo e do pensamento racionalista presentes na cidade desde o século XIX. O projetorepublicano,doqualfaziaparteoanarco-sindicalismo,deapropriaçãoeressignificaçãodoespaçourbano,sefaziaatravésdapresençadaCNTnasruas,daslutasnasbarricadaseda“açãodireta”e“redes de afinidades” nos bairros barceloneses. Também serão tratadas amaneira e as formascomo a cidade hoje vive seu passado ácrata e as novas manifestações da cultura libertária.Finalmente será examinado o caso das Cooperativas de Sants, que se autorreconhecem comoanarquistas.

PalavrasChave:Barcelona,legadolibertário,espaçourbano.

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the legacy of the anarchist and libertarian culture inBarcelona in the 21st century. The admiration that Barcelona’s libertarian tradition has beenawakening in part of Brazilian youth close to anarchism, today growing among urban socialmovementsinthemajorBraziliancities,triggeredtheinterestinthesubject.Thisarticledoesnotaim to explain the deep roots of this historical tradition, but will briefly walk through thebeginnings of the "rebel Barcelona" and through the establishment of a secular anarcho-syndicalism order and of the rationalist thinking present in the city since the 19th century. Theanarcho-syndicalismwaspartoftheRepublicanproject,whichappropriatedandreinterpretedtheurbanspacethroughCNT’spresenceinthestreets, fightsonthebarricades,"directactions"and"affinitiesnetworks" in theneighborhoodsofBarcelona itself. Themannerand formswhich thecitytodayliveshisanarchistpastarealsocoveredinthisarticle,aswellasnewmanifestationsofthe libertarian culture. Finally, it will examine the case of Sants Cooperatives, self-proclaimedanarchist.

Keywords:Barcelona,libertarianlegacy,urbanspace

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INTRODUÇÃO

Opropósito deste artigo é analisar o legadoda cultura anarquista e libertária emBarcelona noséculo XXI. A admiração que a tradição libertária barcelonesa vem despertando em parte dosjovensbrasileirospróximosaoanarquismo,hojeemcrescimentonosmovimentossociaisurbanosnasmaiorescidadesdoBrasil,fezdespertarointeressepelotema.Sempretenderexplicartodosos ingredientes e as profundas raízes históricas dessa tradição em Barcelona, o texto trará umbreve recorrido aos primórdios da “Barcelona rebelde”, à presença do anarco-sindicalismo naRepública, à tensão vivida entre “fazer a revolução” ou “fazer a guerra”, e à presença daConfederacióNacional del Treball/CNTno espaço urbano. Também será tratada amaneira e asformascomoacidadehojeviveseupassadoácrataeasnovasmanifestaçõesdaculturalibertária.FinalmenteseráexaminadoocasodasCooperativasdeSants,autointituladasanarquistas.

Osanosdaditadurafranquistaeaestigmatizaçãodoanarquismo,seguidadeumatransiçãoondese pactuou também amemória, fizeram comque a cidade se tornassemais referência por suaarquitetura e esplendor do que por sua histórica rebeldia. A análise dessa tradição pretendeesclarecer, em alguma medida, os ingredientes do pensamento libertário reveladores de suapersistênciaemesmodeseurenascimentoemoutraspartesdomundo,especialmenteentreosjovens ativistas dosmovimentos sociais urbanos emdiferentes países. Sabe-se que seu aspectoexemplar se relacionamais especificamente coma experiência única do anarco-sindicalismo tersido governo na Espanha, através de ministros da Segunda República e especificamente emBarcelona,noperíodorevolucionáriocompreendidoentreadefesadacidadecontraosgolpistasem18dejulhode1936até17demaiode1937,quandotevequedisputarocontroledacidadecomoscomunistaseosrepublicanos.

Barcelonafoiaúnicacidadeemqueoanarquismofoigovernoeforçarevolucionáriaaomesmotempo. Esta dimensão é original, ser anarquista e ser governo, experiência contraditória edesafiante que a cidade viveu em seus espaços físicos, entre 1936 e 1937, e que ainda hoje élembradaesefazpresentecomopráticalibertáriaemalgunsbairrosenamemóriadesetoresdajuventude,deescritores,artistasejornalistas.Enquantomemória,emalgunsbairros,lembradademaneirapróximaepositiva,eemoutraspartescomoumaevocaçãosangrentaeinquietante.Pararesponderàsperguntas:oqueéoanarquismohojeemBarcelona,ondeseencontraecomoseexpressa, e estando a tradição libertária em geral e, particularmente, o anarco-sindicalismo,distribuídosnacidadeeespecificamentenosbairros,foramvisitadosestesespaçoseouvidosseusparticipantes. Como na tradição anarquista não há líderes, procurou-se ouvir aquelesfrequentadorespresentesquesedispuseramaserentrevistados.

Além da experiência coletivista do bairro de Sants, serão considerados também espaçosanarquistaselibertários–osateneus–originalmentelugardeformaçãoculturaleintelectualdostrabalhadores onde também se encontrammovimentos cooperativistas urbanos continuados epersistentes.Osateneus,quenopassadoforamreferênciadaculturaanarquista,hojesãoespaçosde convivência, onde se encontram movimentos de minorias, coletivos feministas, ecologistas,veganistasevegetarianos,defensoresdeanimaischamadosde“especeristas”,apoioarefugiados,grupos de caminhadas. Alguns deles se autointitulam anarquistas, emuitos outros se declaram

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libertários.1Aqui está se referindo tanto à tradição anarco-sindicalista como à libertária, nosentidoemqueaentendemalgunsteóricosácratas.Sobumaleituraatualpode-seresumi-lasdeacordo com um de seus intérpretes, Carlos Taibo (2015), que vê como ponto fundamental aconsciência profunda de que fazemos parte do mesmo sistema que queremos destruir, emcontraste com a esquerda tradicional que, entende a revolução como uma confrontação entrebons e maus, entre lúcidos e perversos. São cinco os pontos que podem resumir seusfundamentos:emprimeirolugar,oanarquismonãoéumacriaçãoartificialdaconsciência,éumresgate dos fatos vividos da experiência e dos sentimentos anticapitalistas, trata-se daautoemancipaçãosemvanguardismo,daíaimportânciadotrabalhocomaspessoascomuns;emsegundo, o anarquismonão é umdogma, a liberdade absoluta leva a desenvolver as ideias, demaneiraateramodéstiadenãoteraverdade;emterceiro,oanarquismonãonosdeveenganarcomlaivosderadicalismos,oanarquismonãosecolocaàesperadarevoluçãoradical,comoumaelucubraçãomental,elesemprepensanoquesedevefazeragora;emquarto,omundolibertárionãosecolocacomopuroapontodenãotoleraropositores,vistoscomo“inimigos”;emquinto,oanarquismocriticacomomesmorigorasditadurasdedireitaedeesquerda,celebrandohojeumaproposta,maisdoquenunca,atualefactível.

Do ladomais especificamente sindical, segundo um representante da Confederació General delTreball/CGTassimsedefineoanarquismohoje:

O anarquismo é uma corrente de pensamento e de ação que propugna ainstituiçãodeumasociedadeorganizadasemnenhuma formadeautoridadenem de estrutura hierárquica de poder (...) aspira à construção de umasociedadeautônomaeautogestionada,umasociedadedehomensemulhereslivrese iguaisnãosóaonível jurídico formal, comotambémaonívelefetivo(...) se há desenvolvido ao largo da história como uma corrente altamenteheterogênea, sem um corpo doutrinal ou teórico unitário e com visõesdiversaseplurais.A tradição libertária temsedestacadoparticularmentenaconstrução de alternativas da auto-organização popular, nos mais diversoscampos (...) Na perspectiva anarquista, os meios terão que ser semprecongruentes,aformadeatuareorganizarprefigurarãoeprepararãoaformade sociedade que se quer construir. (Garcia, 2016, p.3-5, tradução livre daautora).

Oaspectoquesequerressaltaréaimportânciadaaçãodireta,quesendoumvaloreummétododeaçãoémuitomaisdoqueumadoutrina,estaúltimaconsideradapelosanarquistascomoumaconstruçãoartificialàqualnãorecorrem.Aideiadasociedadequesequerconstruirsefaznaaçãodireta, sem dogmas, o único princípio que nãomuda é a experiência prática da solidariedade,respeitandoaautonomiaindividualecoletiva.Quantoaosvaloresmorais,essestêmadimensãoantissistemanamedidaemquepraticamasolidariedade,atolerânciaeaaversãoàcompetiçãoeaoindividualismo.Hoje,Barcelonatem59ateneusregistradosnaPrefeituradacidade.Duranteapesquisaquesustentaoartigoforamvisitadosoitoateneus,duascooperativas, livrariaseforamentrevistadosintelectuais,ativistasejornalistas.Operfildosentrevistadosvariouentreativistaseestudiososdotema,oqueseráexplicitadonamedidaemqueseusdepoimentossetornamobjetodeanálise.

1Acategoria“libertária”,aqui,estásendoutilizadaparaincluirdiferentestiposdeanarquismos,assimcomocertotipodecultura que neles têm sua origem. Ainda que em Barcelona ela tenha o sentido preciso de evocação de toda umaexperiênciahistórica,otermoperdeuprecisãoapartirdesuautilizaçãopelaextremadireitanorte-americana,os“liberaislibertários”queproclamamaliberdadeindividualabsolutaeoEstadomínimo.

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AORIGINALIDADEBARCELONESA

Umadasexplicaçõesmaisinteressantessobreaforçadarebeldiabarcelonesa,quehojeencontraressonânciaentrealgunsobservadorescomoOriolPiCabanyes (2016),GuillemMartínez (2009),Cris Ealham (2005, 2010),Manuel Delgado eManel Aisa – estes dois últimos entrevistados pormimem2016noâmbitodaspesquisasqueoriginaramesteartigo– temalgoavercomo fato,valendo a explicação para toda a Catalunha, do Estado central estar distante emesmo ausentepara cumprir seu papel de aglutinador da sociedade. Ao tecer o fio condutor que explica a“BarcelonaRebelde”,Martínez (2009) situao inícioda rebeldiana tensãocomoEstadocentral,desdeaIdadeMédia,amesmanaturezadetensãoserepetindoaoseintegrar,naIdadeModerna,Barcelona ao Estado da monarquia catalã-aragonesa. A particularidade da Barcelonaindependente,jánoséculotreze,semanifestaranacriaçãodoConselldeCent,espaçodedecisãocompostoporcidadãos,queposteriormenteseestabeleceramepersistiramhistoricamentecomofamíliaspoderosas.Assumiramtodaaadministraçãodacidade,desdeajustiçaeourbanismoatéo preço dos alimentos, além de sua defesa e a relação com amonarquia. Apesar de todo estecontrole,aconexãocomaigrejaeramaisconflituosa.Dopontodevistadosagenteseconômicos,a figura do “mercader”, que correspondiamais oumenos ao que era o “cavalheiro” nas outrascidadesàmesmaépoca,dáàBarcelonaumaoriginalidadenoqueeraoestilodevidaeconômicaesocial urbana. Além de trânsito e reconhecimento próprio dos aristocratas, ao exercer asatividadesqueenvolviamlucroo“mercader”nãoasviacomconotaçãomoral.NoséculoXVIII,oConsell deCent liderouumaguerra civil contra FelipeV, rei da Espanha.A cidade foi derrotadapelos Bourbons, época emque o invasor já havia proibido o uso do idioma catalão, restauradoposteriormente.DestafricçãocomoEstadoCentral,esendoacidademaisindustrializadadetodooMediterrâneo,nasceunoséculoXIXumaculturalibertáriaoriginal.

(...)lagranoriginalidaddeBarcelona,sugranespecialidadeslafricciónconelEstado, ha sido su cultura libertaria, adquirida a lo largo de un siglo XIXespectaculareincreíble.Barcelonaesdehecholaciudadcuyarebeldíamenosy más tarde ha recurrido, por ejemplo, al marxismo. Y la única del mundomundialqueha realizadoenel sigloXXuna revoluciónanarquistaconciertaestabilidad y duración y con algún textobásicodel anarquismo, comoopinaChomsky. La tradición libertaria,demasiadodescomunalparadesparecerdelcerebrocolectivobarcelonéstanrápido,comoenefecto,hadesaparecido(…).(Martinez,2009,p.14)

Sob a industrialização, a fama de “cidade rebelde” já se encontrava registrada na famosaafirmaçãode F. Engels, de 1873: “Barcelona, la ciudad industrialmás grandede España, ciudadcuya historia registra más luchas de barricadas que ninguna otra villa del mundo”. SendoBarcelona um dos polos da industrialização, o único em todo oMediterrâneo e superando emmuito Gênova, foi nela também que se deram os mais altos níveis de exploração da força detrabalho.Nestecontextodesuperexploraçãofoiquesedesenvolveuaexperiênciahistóricamaiscontinuadadaslutasanarco-sindicalistasquechegaram,duranteaIIRepública(1936-39),aocuparoaltoescalãodogovernoaonívelnacional.ApresençadeministrosanarquistasdaCNT,atésuaquedaem1939comavitóriadofranquismo,podeserconsideradaaúnicaexperiênciaanarquistadegovernonahistória.

Em que sentido se pode atribuir à experiência histórica do anarquismo algo especificamentebarcelonês,umavezquea lutadeclassesacirradasedeutambémemoutrospaíseseuropeuseemoutrascidadessemquecomissooanarquismotenhafincadoraízestãofortesepersistentes?Em entrevista, o antropólogo e escritor barcelonês Manuel Delgado deu sua particularinterpretação: “O anarquismo é o nosso líquido amniótico. Aqui se pode ser anarquista emais

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qualquer outra coisa, temos de tudo: anarquista-monárquico, anarquista-maçon, anarquista-católico,anarquista-comunista.”(M.D.,entrevistaconcedidaàautoranaUniverstatdeBarcelona,em14jul.2016)2

Quaisseriamasexplicaçõesplausíveisparaaextensãoepersistênciadessaexperiência?Háqueseconsiderar que houve e ainda existe tradição anarquista em várias outras comunidades naEspanha,demodoaconsiderarqueoanarquismonãoéalgoespecíficodaCatalunha,emboraaísejaareferênciamaispersistenteecomexpressãohistóricadesproporcionalemrelaçãoàAragão,PaísBasco,Madrid,Andaluzia,mesmoconsiderandooanarquismoagráriodestaúltima,noiníciodoséculoXX.

Aexplicaçãoestaria,emmuito,relacionadacomaformacomosedeuaacumulaçãodocapitalnaindústria, a exploração damão de obra industrial, o desemprego, a imigração, as condições dehabitação emoradia, os longos períodos de fome, a truculência do uso da violência direta porparte do Estado sobre os trabalhadores e a incapacidade de negociação dos capitalistas. Osespaçosdacidade,adistribuiçãoedisposiçãodasgrandes fábricasnesseterritório, tambémsãofontes de explicação da capacidade de organização e aglutinação que estas forças coercivas ecriadoras de pobreza provocaram nos trabalhadores. O exemplo do bairro de Sants, cujaexperiência de cooperativa atual será tratada neste artigo, é um caso em que a espacialidade,pertodaferrovia,oacessoaoporto,aconcentraçãoterritorialdefábricas,teriamsidofatoresque,aposteriori,podemserumafontedeexplicação.Outrofatorquenãopodeseresquecido,porquedesempenha um papel fundamental na explicação da particularidade e persistência doanarquismo barcelonês, foi o surgimento das lideranças dos trabalhadores do porte deDurruti,Oliver e Ascaso. O reconhecimento de que desfrutavam chegou a ultrapassar as fronteiras daprópriaCatalunhae tiveramumprotagonismonacionalduranteaGuerraCivil.Pode-se terumaideiadapopularidadedestasliderançasatravésdadescriçãodeumcontemporâneo:

Loscompañerosteníanunamaneradesergregariaencuantoabares.Bastabaquevieranaunosentadoenunveladordecaféparaquetomasenasientoasulado. Luego pasaba otro con el mismo resultado, hasta que formaban ungrupo.(...)LaTranquilidadsehizocélebrecomopuntodeconcentracióndelomás florido del anarquismo barcelonés y muchos novatos concurríanexpresamente a aquel bar, situado al lado del Teatro Victoria y frente a laBrechadeSantPedro,sóloparaverdecercaaDurruti,AscasooGarcíaOliver,el“tríodelabenzina”quesolíallamárseles.(Dalmau,Miró,2010,p.62,nota74)

Os pontos de encontro eram os bares e os ateneus, e em períodos de muita repressão ascaminhadas dominicais, onde os trabalhadores se reuniam para discutir e se instruírem. Ascooperativas também desempenharam um importante papel nos períodos em que as prisõesestavam abarrotadas de trabalhadores e suas famílias, na miséria. O Estado se fazia presentemuitomaisemseucaráter repressivoemilitardoquepelacapacidadedeapresentarserviçosecanaisderesoluçãodosproblemasnamiserabilidadedodiaadia.Contandocomacumplicidadeda autoridade da igreja, entendida e vivida pelos trabalhadores como uma força reacionária àmudança e repressiva nos seus cotidianos, por parte dos trabalhadores foi difícil entender oreformismocomocaminhoparaajustiçasocial.

2Aregrageraldereferênciaadotadanotextoédeapresentariniciaisdosentrevistados,exceçãoparaosentrevistadosqueocupamcargosemateneus,fundaçõesouarquivos,bemcomopesquisadoreseestudiososdotema,casoemqueapareceonomejuntoàdeclaração.

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A rua era o espaço da CNT, os trabalhadores e desempregados desenvolviam maneiras de semoveremesearticularemmesmoemperíodosemquevigoravamostoquesderecolhereaLeiMarcial.Nosbairrosfoisendoformada,apartirdevariadasexperiências,umaculturaacumuladaemlutade“açõesdiretas”geradoradeumconjuntodeconhecimentos,umamaneirapersistenteequasenaturaldedefenderseusdireitos,apontodepodersefalar,comosustentaChrisEalham,deuma“contraculturaessencialmenteanarquista”(Ealham,2005,p.190)emBarcelonano iníciodoséculovinte:

Firmes partidários da auto-expressão espontânea das massas, ycompletamenteopostosaossocialistas,quefaziamumaclaradistinçãoentreo revolucionário e o “criminoso”, os libertários ressaltavam o direitoinalienável dos pobres e necessitados a proteger sua existência, o “direito àvida”,porqualquermeioqueestivesseaoseualcance,legalouilegal.Tambémapoiavam os atos ilegais de caráter popular, como comer sem pagar nosrestaurantes, atividade habitual entre desempregados e grevistas. (Ealham,2005,p.81)

Sob a influência dométodo da “ação direta”, uma originalidade da CNT em Barcelona era suapresença territorial nos bairros, onde, ao mesmo tempo em que introduziam e afirmavam osvalores anarquistas de liberdade e autonomia, também aprendiam e se alimentavam dasexperiênciasjáexistentesnaculturalocal.Estaretroalimentaçãopropiciouquefosseformadaumaculturaondemesclavamformasde lutamodernase formastradicionais,nas fábricasenasruas.Emumambienteemqueospatrõesnãosedispunhamanegociarcomossindicatosenemcriarespaçosinstitucionaisdenegociação,aCNTpassouacriareconquistarespaçosefrentesdelutamaisamplos,paraalémdasfábricas.Nesseprocessopassouautilizarmétodosnão legais,comonegociareforçarobarateamentodosaluguéisedosalimentosecriarescoltaarmadaparagrupode mulheres operárias que requisitavam comida nas lojas em períodos de greve ou dedesemprego. Nos bairros, em relação à polícia, também eram utilizados métodos nãoconvencionaiscomolutacorporal,ouhostilizá-la jogandoobjetosdassacadasquandochegavamparaalgumaaçãorepressiva.

Os “grupos de afinidades”, a principal forma de estruturação das atividades da CNT, eramcompostosdecertonúmerodepessoasquevariavadeummínimodequatroanomáximovinte,evisavam a conscientização e a formação de práticas cotidianas de solidariedade, liberdade eautonomia. Reuniam-se em bares e cafés, que diferentemente da tradição socialista que elesdesaprovavam, conviviam com setoresmarginalizados em um ambiente onde eram valorizadasqualidades pessoais comoheroísmo, rebeldia e resistência à ética do trabalho e aos valores docotidianodasociedadecapitalista.Nessesespaçosdeculturaderesistênciareceberamainfluênciadoanarco-sindicalismofrancêsque,noiníciodoséculo,eraumaformadeorganizaçãodecarátermaisurbanaqueexpressavaarealidadedaeraindustrial.Apromessadesseprojetoeraumavidabaseada nos “três oito”: oito horas de trabalho, oito horas de sono, oito horas de diversão eeducação,propostaentendidacomoumaetapaparaadestruiçãodoEstadoeaconquistadeumasociedadesemclasses.

Em Barcelona, ao mesmo tempo em que a força de trabalho era explorada em proporçõesanteriormente desconhecidas, outromovimento renovador iluminista e laico, nascido no séculoXIX, mobilizava setores esclarecidos da classe média através de intelectuais e pensadores que,sendo críticos da igreja e afins às ideias republicanas de origem francesa como parte de seusprojetosemancipadoresparaaCatalunha,militavamporumaeducaçãonão-religiosaeuniversal.TendoainquisiçãonaEspanhaduradoaté1834earevoluçãocientíficamodernasidorechaçada,opensamento racionalista encontrou dificuldades para se consolidar, marcando uma espécie de

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entradadramáticadaEspanhanamodernidade.AlaicidadedoEstadosemprefoiumadimensãoproblemática, incluindonelaaeducaçãoemancipadoraeuniversalnobojodeumprojetomaiorde afirmaçãoda identidade catalã e republicana. Para certas correntes catalãs do ateísmo, se aautoridade do rei se origina em Deus, lutar pelo ateísmo era lutar em primeiro lugar contra amonarquia. A dimensão política do ateísmo era algo explícito em Barcelona: no ambiente detensão social, de desigualdade extrema e privilégios da igreja, o ateísmo era uma questãoexplosiva. Comoexpressãodessas correntesmerecematençãoduas tradições barcelonesas quealimentaramesteprojeto,aEscolaModernadeFerreriGuardiaeamaçonaria.

A presença damaçonaria na República está longe de ser inexpressiva, e figuras comoRamón yCajal,prêmioNobeldeCiência1906,eAndreuNin,ograndelíderdoPartidoOperáriodeUnidadeMarxista/POUM, foram personagens que marcaram a história da Espanha moderna ecompartilhavam as ideias maçônicas de racionalidade e emancipação humana. Em entrevista,ViçensMolina,seusubdiretor,esclarecesobreasraízesdopensamentodaEscolaModerna,comoa cientificidade e o republicanismo. A Escola Moderna de Ferrer i Guardia, em Barcelona,representavaoquehaviademais avançadoemeducaçãonaépoca, oque fez comquemuitosanarquistasnãosósimpatizassemcomsuapedagogiacomopassassemafrequentá-laeentendê-lacomopartedeseuprojetodeeducação.Ela,porsuavez,duranteváriosanosofereceuespaçoparaaformaçãodeseusquadros,educadossobaperspectivadaluz,daigualdadeedaliberdade.Muitas vezes Ferrer i Guardia foi identificado com o anarquismo, fato que está ligado à suaexecuçãoem1909,sobojulgamentodeumtribunalmilitar.HojeaFundaciónFerreriGuardia,emBarcelona,desenvolveatividadespedagógicas,naspalavrasdeseudiretor:

ParaFerreriGuardiaaemancipaçãohumanatemavercomasinstituições.Eledecepcionacomasorganizaçõesetemumcorte,entre1894e1895,passaavercomosolução“pensardeformalivre,seminfluenciasautoritárias—atravésdaeducação”.Em1901eleafirmaqueacriançajáéumcidadãoeassimdeveser tratado como alguém que tem capacidade própria de discernimentoquanto a valores e responsabilidade. Sobre o anticlericalismoo pensamentodamaçonariabarcelonesaéclaro,écríticadoobscurantismo,danegaçãodaemancipação humana via conhecimento e felicidade. A dominação viaeducação autoritária praticada nas escolas confessionais e toda a pregaçãocombase na culpa, na submissão e na dor, faz da igreja católica o principalalvo do pensamento iluminista catalão. (Entrevista concedida à autora naFundacióFerreriGuardia,em28abr.2016)

Ferrer i Guardia foi preso e executado, sob o protesto de vários países da Europa.Responsabilisado pelo o atentado contra o Rei Alfonso XII, quandomorreram 113 pessoas, foijulgadoporum tribunalmilitare condenao semprovas. Em1909havia seposicionadocontraaGuerradoMarrocoseoassociaramaMateoMorral,antigobibliotecáriodaEscolaModerna,queatirou a bomba. Ainda que as figuras de Ferrer i Guardia e da Escola Moderna tenham sidoassociadasaoanarquismo,seusseguidoreshojenãoseautointitulamcomotal.

OESTIGMA.QUEIMARIGREJAS

Que o anarquismo, ainda hoje, continua seduzindo os idealistas antissistemas, os jovens, osecologistas, feministasdeváriaspartesdomundo,não sepodenegar.Contudo,permaneceumestigma que às vezes torna difícil para alguns barceloneses se reconhecerem como tais. EmBarcelona, por exemplo, pode-se encontrar ativistas libertários, ecologistas, pacifistas, idealistasdeváriastendênciasque,nãoseautodefinindocomoanarquistas, têmemcasanoconjuntodasfotosdosfamiliaresumretratodeKoprotikine.Alémdarazãoóbviadaassociaçãocomaguerrae

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como uso da violência, de onde viria o estigma?Háque se recordar quepara essas pessoasoanarquismo não é algo vivido através da literatura, ao contrário, tiveram pais e tios que osalertaram para a guerra como uma experiência dramática – a perda de parentes próximos, oembate na vizinhança, no bairro, dentro da família, os bombardeios, asmortes diárias, os doisladosarmados.Seháadmiraçãopelosrepublicanos,elavemsemoromantismoquenormalmenteenvolve o observador estrangeiro. São vários os sentimentos que o anarquismo deixou de seupassadonomomentopresenteemBarcelona.Nosbairros,osanarquistassãovistosmuitasvezescommuitasimpatiapeloaspectopacifistaeconstrutivoquedemonstramemseucotidiano,comoéocasodaViladeGràcia,consideradoumbairrodetradiçãorepublicana.

Adesconfortávelmemóriado“queimar igrejas”provocaumareaçãoautomáticae irrefletidademal-estar. Nas palavras de um escritor e jornalista, “o estigma vem não só da direita, vem,sobretudo,doscomunistas,foramelesquemaisestigmatizaramosanarquistas,aCNTeFAI”.Doestigmasevaleuesealimentouaditadurafranquistaduranteostrintaeoitoanosemqueteveque dominar e submeter a “cidade rebelde”. Com a expressão “queimar igrejas” pretende-sesintetizar aquilo que se refere ao estigma atribuído ao anarquismo barcelonês. O primeiromomento – ainda que os episódios incendiários tenham ocorrido desde o século XIX – foi naSemana Trágica, em 1909, quando esta prática tomou proporções antes desconhecidas. NocontextodaGuerradoMarrocosempreendidapelogovernoespanholnatentativadesalvarsuaúltima colônia, somenteospobres, trabalhadoresoudesempregadoseram recrutados,umavezqueasfamíliascomdinheiropodiampagarumaquantiacorrespondemaisoumenosadoisanosdetrabalhodeumoperário,seismilpesetas,e livrarseusfilhosdorecrutamento.Semesquecerquea Igrejadefendiaaguerracomoumacruzadacontraos infiéis, sendoquemuitasparóquiasconclamavamaspopulaçõespobresasealistarem.Aviolênciacomeçaemumdiadeembarque:diante das celebrações da alta burguesia catalã entregando flores, mimos e escapulários aoscombatentes, os soldados se rebelaram, ao que se seguiu a repressão da polícia, o que foiacompanhadopelasmulheresdobairrooperáriopróximo,oRaval,queenfrentaramarepressão.Apartirdaí se iniciaaescaladadaviolência,eageografiadacidade facilitavaoenfrentamento.Sendoaigrejaoprincipalalvodarevolta,osaldodeinstituiçõesreligiosasqueimadasfoide80:33escolas, 14 igrejas paroquiais, 11 instituições benéficas (orfanatos, asilos para idosos, casas decorreção), oito residências religiosas masculinas, oito conventos de clausura e seis círculos deoperários. A igreja era proprietária de grandes fortunas em ações nas companhiasmineiras doMarrocos e empregava, em regime de trabalho precário, mulheres e crianças em pequenasindústriasdasparóquias;alémdisso,tinhaomonopóliodaeducaçãoexclusivaparaaclassemédiae alta burguesia. Muitos dos sacerdotes, ao serem retirados das igrejas e desvestidos de seushábitos,tinhampresosaosseuscorposostítulosdepropriedadedasminasdoMarrocos,sendoaordemjesuítaaquetinhamaisinvestimentoseamaisvisadapelosincendiários.

SãomuitoconhecidasasfotosdeBarcelonaardendonaSemanaTrágica.Emtermosdeliderançapode-se afirmar que foi aí, também, o grande protagonista, o líder do Partido Radical, Lerroux,populistaeagitador,queorganizou,selecionoueincitouapopulaçãoaosaque.Tendocentradooódiode classe contra a igreja, napráticadeslocouo focoda grandeburguesiabarcelonesa. Poroutro lado, os incendiários, com pouca educação formal e incapacidade de decifrar todos osaspectosdadominaçãoaqueestavamsubmetidosforamlevados,muitasvezes,aultrapassaremarevolta política. Chamou a atenção o fato de que as igrejas muito importantes e situadas emlugares bastante visíveis não fossem tocadas, estando de frente da casa do conde de Comillas,umadasmaioresfortunasdaCatalunha.Àépocadojulgamento,LerrouxseencontravaexiladonaArgentina.Foramcondenadas150pessoas,muitaspenascomutadasenofinalficaramcincoqueforam fuzilados.Umdeles foiFranciscoFerrer iGuardia, criadordaEscolaModerna, libertáriaepróximaàmaçonaria,semqueestivessenacidadeduranteosacontecimentos.

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OsegundomomentofoioperíododaGuerraCivil,1936a1939.Emboraomaterialdepesquisaeaproduçãoliteráriasejamextensos,podehaveraindaalgumacontençãoemexaminarosfatos.Aosolhos de um historiador britânico como Chris Ealham (2005), a interpretação dos traumáticosacontecimentoshistóricossemanifestouemumaextensapesquisasemospruridosqueo temacostuma provocar nos barceloneses. Ele vê a repressão religiosa como um aspecto singular darevolução espanhola, na medida em que a chamada “criação destrutiva” do movimentorevolucionário de Barcelona foi focada, em grande medida, contra as instituições religiosas.Sustentaatese,baseadaemobservadoresestrangeirosenativos,queaaçãochamada“jornadasde justiça fumegantes” era de natureza calculada e deliberada. Não se tratava de uma paixãoanticlerical, mas de uma decisão de transformar os espaços religiosos em espaços cívicos. Aescolhadequaisigrejasseriamqueimadaseradeliberadaemassembleiaspopulares,demaneiraquenãosetratavadeseapossardeobjetosdevalor,masdeaplicarumconteúdomoralepolíticoaossaques.Adiciona:“PorelhechodequeCNT,desdeel21dejuliohubierarprohibidolaventade bebidas alcohólicas se puede suponer que la multitud tuviera control de sus impulsos”. Asavaliaçõesdosobjetoseram feitasporComissõesTécnicas criadasparaesse fim.Os comitêsdebairros, sindicatos ou partidos tinham a intenção de ressignificar o espaço eclesiástico com afinalidadede“superaroespaçododéficitconstruído”eaomesmotempodaraeleumconteúdomoral.Anovaordemrepublicanatransformavaesseslugaresemespaçosondepudesseexercerasatividadespúblicas,espaçodesociabilidadeedeorganizaçãodanovasociedadeedaguerraqueestava sendo travada. A igreja significava terra, espaço físico, condições de exercer as práticasrepublicanas,seuespaçopassavaasercinema,osconfessionáriosbancasderevistaseascriptasdasigrejas,abrigoscontrabombardeiosaéreos.Tratava-sededestruirabaseideológicaburguesadestruindosuaprincipalbasedesustentaçãodaopressãoobscurantista,substituirestesespaçospor lugares onde fossem desenvolvidos os valores republicanos e racionalistas. (Ealham, 2005,p.293-294)

É muito provável que o papel da igreja como autoridade ficasse exacerbado, na visão derepublicanos e anarquistas, pela incompetência do estado central fazer-se referência da nação.Assim,aigrejasetornavaumpontomuitovisívelcomoforçaopressoranocotidianodospobresetrabalhadores, o que se somava às experiências anteriores da revolta anticlerical da SemanaTrágica e dos anos de 1830. A igreja era a maior dona de terras e um dos maiores poderesfinanceiros,eencarnavadiretamenteaopressãoatravésde instituiçõescomoescolas,hospitais,asilos, orfanatos e casas de correção para menores. A ânsia por uma educação universalpropagada pela Escola Racionalista e pela Escola Moderna deixava claro para os setoresprogressistaseparaosanarquistasanecessidadedequefosseretiradodaigrejaomonopóliodoensino,aquesótinhamacessoosricoseaclassemédia.Poroutrolado,asprofanaçõesdetumbasdereligiosos,práticajáexercidanaSemanaTrágica,esuaexposiçãonasportasdasigrejas,eraumespetáculo insólito que ficou definitivamente marcado na memória da guerra civil. Apesar dosrituais anticlericais, alguns deles macabros – como de abrir as antigas tumbas de religiosos ecoloca-lasnasportasdas igrejas–Ealhamsustentaquenocasoda2ªRepúblicanãohaviaumapaixão religiosapor partedos republicanos e nemdaCNT.ARepública necessitavade espaços,tantoparaas funçõesde sociabilidade comodeorganizaçãodaguerra, e a igreja tinha terraseequipamentos urbanos, aos quais os republicanos procuraram dar outra função e outrosignificado,tantoporquestõespráticascomocomsentidomoral.Segundoodepoimentodeumatestemunhaocular:“ElsociólogoalemánFranzBorkenaudescribió laquemadeuna iglesiaenelcentrodeBarcelonacomounasuntoadministrativo,conelcuerpodebomberoscercaparaevitarqueel fuegosepropagasea losedificioscontiguos (...)muypocas iglesias fuerondestruidas (uninforme gubernamental de 1937 concluía que sólo 13 de las 236 estructuras eclesiásticas deBarcelona habían sido demolidas.” (Ealham, 2005, p. 293). Contudo, este balanço poucocorrespondeàsimpressõesregistradasnamemóriadaesquerdaedadireitabarcelonesa,queos

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consideramuitomaiores.Estedadopodeserrelativizadoaoseconsideraronúmerodemortos:acifratotaldevítimasemtodaaCatalunha,entrejulhode1936efevereirode1939,foide8.352,sendode2.441osreligiososassassinados,oquecorresponderiaaquasetrintaporcento.

Osanarco-sindicalistasprocuravamsalvarosobjetosartísticosdevalor,especialmenteemouro,com a finalidade de financiar equipamentos bélicos; os sinos das igrejas eram confiscados edissolvidosparaseremtransformadosemcanhões.Aoconfiscodossinosdasigrejas,umativistaeambientalistaentrevistadoadicionaoutroconteúdo:“Lascampanaseranlavozdela iglesiaydetodo que ella conllevaba, por el toque de la campana que anunciaba las celebraciones, lasobligaciones,ladisciplina,lasdiferenciasdeclase.Poreltoquesepodríasaberenunfuneralsobrelaclasesocial,elprestigioyelpoderdequiénestabasepultado,entoncessetratabade impedirque la iglesia fuese la voz de la ciudad.” (J.B., entrevista concedida a autora no Centre CulturalCaseOrlandai,em03jun.2016)

OESPAÇOURBANODIVIDIDO

Teria havido em Barcelona um projeto urbano de uma cidade revolucionária? Seria difícilcontestar,mas,nadistribuiçãodoespaçourbanoépossívelentenderocrescimentoeconômicoea estrutura de classes manifesta na cidade que é hoje celebrada como uma das mais belas earrojadasexpressõesdomodernismo.Apartirdoséculodezenove,maisprecisamente1850,partedaselitesbarcelonesassupôsterencontradoespaço,apósaderrubadadamuralhamedievalquecercavaacidadeemtornodoporto,pararealizaremoidealprogressistaespecificamentecatalãode uma cidade moderna e integrada. O Plano Cerdá, projetado em 1859 sob a liderança doarquitetoprogressistaIldefonsCerdá,entendiaquearenovaçãourbanaeaplanificaçãodaáreadaCidade Velha, com seus traçados irregulares, trariam condições de habitaçãomais integradas ejustas, compatíveis com omodelo de cidade vanguardista que eles entendiam como algomaiscatalãodoqueespanhol.RompidaamuralhamedievalqueacolhiabairrosdeterioradoscomooRaval,umanovaárea,aEixample,deacordocomoprojetodeCerdá,facilitariaanovafunçãodacidadeantesemuralhada: seriaaáreaplanificadaondeconviveriamasdiferentesclasses sociaissob um sistema de igualdade social e unidade cívica. O plano igualitário de Cerdá, ao sersubordinadoaosinteressesdaburguesiacatalã,aqualseadaptaraaoEstadocentral,foiportantoinviabilizadocomoidealdejustiçaeintegração.

Aocontráriodoidealizadopelosarquitetosprogressistas,aExposiçãoUniversalde1888facilitouaspropostasde intelectuaisorgânicosdaburguesianacionalistade culto à “GrandeBarcelona”,projetadacomesplendorparaseraParisdosul.Aesteplanoeaseusidealizadoresfaltouanoçãodequeocrescimentoporsinãopromoveriaa integraçãodeclasses.No fimdoséculoXIX, teveinícioo fenômenoda imigraçãoparaBarcelona,queatraiu trabalhadoresde todaapenínsula,aponto da cidade ser comparada à Califórnia do Mediterrâneo. Por volta dos anos de 1920 apopulaçãodeBarcelonachegavaaserde35%denãocatalães.Acidadenãotinhainfraestruturaurbanaparaacolherapopulação,semhabitaçõesdignas,“haviapensõesquealugavamcamasporhora e trabalhadores que pagavam para dormir em pé, amarrados em cordas em quartoscoletivos.” (Ealham, 2005, p.39). As favelas começarama aparecer em fins do século dezenove,não eram construções espontâneas dos trabalhadores, eram construídas por proprietários deterrenos próximos às indústrias, não longe do centro. Os donos, conhecidos como “caseros”,construíamcommaterialprecárioebaratoparaseremalugadasparaimigrantes,emcondiçõesdehigieneecomodidadesmuitodébeis.

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Pelaprimeiravez,em1929,eemrazãodaExposiçãoUniversal,ogovernotomoua iniciativadeconstruircasaspopulares,“casesbarates”pararetirarasfavelasdamontanhadeMontjuic,paraliberar a vista dos pavilhões da exposição. As casas eram construídas rapidamente em terrenobaldioecommaterialdemáqualidade,muitosemelhanteaopadrãodasfavelasjáexistentes.Pormeio desse projeto de moradia a população que nelas vivia foi empurrada para territóriosmarginalizados,naperiferiasemiurbanadacidade,ondefaltavatransporte,escolaecomércio.Amaneira como foram projetadas também cumpriu uma função repressiva, e a ideia de que oprogresso traria a integração social foi claramente desfeita com a segregação espacial que seseguiuaestaintervençãourbanística.Empurradosparaforadoespaçourbano,deleseparadasporum cordãode terras cultivadas, projetadas em fileiras parecidas a quarteis ouprisões, pôde-se,preventivamente, propiciar que fossem também isoladas pelas forças da ordem em caso dequalquerreaçãocoletiva.Quandoarepúblicafoiproclamadaem1931,acriseeconômicade1929jáhaviaprovocadoa retraçãoda indústriaedoemprego, inviabilizandoapromessadogovernorepublicanodaEsquerraRepublicanadaCatalunha/ERC,cujafundaçãosedeuapartirdegruposantimonarquistas e nacionalistas de esquerda e de direita. Com uma atitude política deaproximação e mostrando alguma intenção de reparar as injustiças sociais, a cerimônia defundaçãosedeunobairrooperáriodeSants, lugardaresistênciaoperáriaduranteaditaduradePrimo de Rivera. O políticomaismoderado que o substituiu, Berenguer, viabilizou a aliança daburguesiacatalãcomamonarquia,nomeandoparaprefeitoocondeJ.A.Güell,representantedaburguesiabarcelonesa.

SobaditaduradePrimodeRivera,diantedoaumentododesemprego,nemoEstadoouaigrejaeram capazes de prover o mínimo de beneficência pública. É neste contexto que se aliaram,republicanosemovimentosindical.ACNT,anarco-sindicalista,pordefiniçãoeraantipolítica,nãoacreditavano caminhooferecidopelas eleições, negando-se a participar deumacordoeleitoralcom a ERC; contudo, não proibiu seus filiados de votar, o que criou um clima favorável aosrepublicanos nos bairros. A ERC tinha um projeto de construir uma cidade republicana ondefossemgarantidasas liberdades individuaisecoletivas. Isto incluíaareformulaçãodascondiçõestrabalhistaseumarevoluçãonasmoradias,ondetodosostrabalhadorestivessemumacasaeumpequenojardim.EssaspromessasconseguiramatrairoapoiodegrandepartedefiliadosdaCNT,emborasuainviabilidademanifestou-sequandoajovemRepúblicatevequearcarcomasdívidasdogovernoanterior.Oapoiodadoaosrepublicanosnosbairrosexplicariaosresultadosfavoráveisnaseleiçõesde14deabrilde1931.Das50cadeirasmunicipais,osrepublicanosganharam38eaLigamonárquica12.EstefatofezcomqueaCatalunhaproclamasseaRepúblicaantesdeMadrid,noespaçopúblicoemblemáticodaPlazaSanJaume,emBarcelona.

AconvivênciadaCNTcomaERCnuncafoilinear.NoiníciodaRepública,ogovernocatalãoteve,através de Companys, uma política de aproximação com a CNT que era a força nas ruas maisestruturada em Barcelona. Para se entender sua importância, faz-se necessário registrar queforamaCNTeaFAIquegarantiramaderrotadoscomandosmilitaresgolpistasqueserebelaramna cidade, em 1936. Asmilícias antifascistas dos anarquistas eram as únicas forças organizadascapazesdedeterogolpemilitarmente,eofizeramnasruas.Combateramruaarua,quarteirãoaquarteirãoemtornodasseisouseteunidadesmilitares.Enfim,asruaseramoespaçodosanarco-sindicalistasmuitomaisquedaburguesia.NaspalavrasdeumativistadaCooperativadeSants:

En 1936 Hombres de Acción paran el golpe militar, se hace el 80% decolectivizaciónenBarcelona,enelgobiernode laRepública.Son tresgruposcomponen el gobierno: Grupos de Defensa (organizan los comités), ComitéMilitar y el Comité Anti-fascista (a cargo de CNT), en estos últimos losmásimportantes son los Comités de Colectivizaciones en los barrios. En julio de1936, la pequeña burguesía catalana se asusta con CNT y crea el PSUC. Se

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puededecirqueenBarcelonaelAnarquismoesunaexpresiónteóricadeunaorganización social. (I. M. Diretor da Cooperativa de Sants, entrevistaconcedidanalivraria“CiutatInvisible”,emCanBatlló,em22abr.2016)

Sobreos combates nas ruas, o historiador inglês Chris Ealham (2005) sustenta a ideia deque aapropriaçãodoespaçourbanonãoeraumaondadecomoçãoexplosiva,protagonizadaporumamultidãoenlouquecidaemêxtaserevolucionário,masfoipartedeumprojetopensado.Asforçasque se manifestaram nesse espaço urbano barcelonês, especialmente no período que vai dadefesadacidadeeproclamaçãodaRepública,em julhode1936,atémaiode1937, imprimiramumaprofunda transformaçãourbanaemBarcelona. Foramdois os agentes dessasmudanças: oprimeiro, a ação de combate das forças revolucionárias (a CNT anarco-sindicalista, a FAIanarquista,eoPOUM,dissidentecomunista)que,articulandoumaconcepçãoeumapráticado“urbanismo revolucionário,” se apropriarame ressignificaramo espaçourbano; o segundo foi aculturadosbairros,osquais,tendoumasólidatradiçãode lutaeaçãodiretadesde1830,foramatores cotidianos importantes em suas redes de afinidades e solidariedade ao conseguiremimprimirsuaconcepçãodoqueseriaa“cidadeproletária”.

Depoisde resistirà invasãodeBarcelona,CNT/FAIdeixaramclaroaosaliados republicanosquecontrolavamoespaçourbano,nasruas,nosbairrosenasfábricas.Quantoao18dejulhode1936,o antropólogo e urbanista barcelonêsM. D., em entrevista, assinala: “Era verano y vacacionesescolares, la ciudad estaba vacía, las clasesmedias y burguesia estaban fuera. La defensa de laciudad se hizo por la lucha armada formada por las barricadas de barrios bajo el liderazgodisciplinado de la CNT.” (Manuel Delgado, entrevista concedida à autora na Universitat deBarcelona,em14jul.2016)

Oelemento fundamentalque iráadefinira formadourbanismorevolucionário foiaconstruçãodasbarricadas, tradição federalistacatalã.Portanto,oespaçourbanoerao lugardeseuprojetopolítico e a organização e continuidade de sua ocupação estava emmãos da CNT-FAI. Mesmoapós, no dia seguinte, ao convocar a volta ao trabalho, a CNT manteve as barricadas quecontrolavam as entradas e saídas da cidade e aquelas que poderiam obstruir os transportesurbanos.No bojo da reorganização do espaço urbano, a vida cotidiana foi se proletarizando namedida em que o gosto burguês foi sendo substituído por roupas padronizadas de inspiraçãoproletáriaemiliciana.Quantoàeliminaçãofísicadosinimigosdeclasse,aigrejafoidefinidacomoprincipalalvo3eamaioriadasmortes contraas forças conservadorasduranteaGuerraCivil emBarcelonaforamfeitasdeformaorganizadasoboconhecimentodeautoridadesrepublicanas.Noque se refere ao espaço da produção, “não havia um projeto para eliminar a burguesia comoclasse” (Ealham,2005,p.158).A ideiaeratrazerosantigosdonosdas fábricasparadentrodelasemcondições similaresàsdos trabalhadores,oqueaconteceuemalgunsespaços coletivizados.EstatendênciafoienfraquecidaquandooscomunistasrepublicanosdoPartitSocialistaUnificatdeCatalunya/PSUC,que formavampartedaaliançaantifascista,passaramaprotegeroselementosdapequenaemédiaburguesiabarcelonesa,momentoemqueosácratastinhamnoestalinismooprincipalinimigo,sendoarecíprocaverdadeira.

3“Eluniversoculturaldelaclaseobreralocalseformópormediodelainteraccióndinámicadelosprocesoscognitivosydelaexperienciaduranteunlargoperiododerepresión,quedieronlugaraloquePierreBourdieudescribiócomo“sociologíaespontánea”.Laidentidadproletariadelosbarriosalimentóunprofundosentimientode“nosotros”,alavezquedefiníaunaseriedeenemigossocialesypolíticoscomo“intrusos”.EstaricaculturadelaclaseobreraylosresiduosanterioresdelamemoriasocialfuerondestiladosypolitizadosporeldiscursodelaCNT,queidentificabaalosenemigoscomoun“otro”inmoralyparásitoquevivíadelsudordeltrabajodelosobrerosyquedebían“limpiarse”porel“biendelasaludpública”,dichodeotromodo,porelbiendelacomunidad.”(Ealham,2005,p.159).

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Aculturadeaçãoautônomadaclassetrabalhadora,pormeiodasbarricadas,aindaqueestivesseligadaàCNTcostumavaseguirdiretrizes locais, sendooscomitêsdedistritosoúnicoorganismogenuinamente revolucionário formado em julho de 1936. Um decreto do governo republicano,baixadoemoutubrode1937,extinguiuoscomitêslocaisdaCatalunha;osmaisfortesignoraramodecreto e os comitês de bairros sobreviveram algum tempo. A desconfiança em relação aosorganismos estatais da ordem pública, uma herança catalã, viu-se reforçada quando daincapacidade da Segunda República de defender a classe trabalhadora dos inimigos dademocracia, debilitando as conquistas históricas dos trabalhadores, os mesmos que haviamdefendido a cidadeda invasãodos fascistas em1936.Diante do progressivo acordodos líderesanarquistas com a república, a favor de fazer a guerra e não a revolução, os comitês de bairroforam se enfraquecendo, o que debilitou o poder dos comitês locais e comprometeu o projetourbanístico revolucionário de apropriação e ressignificação do espaço urbano. Coerente com oprojetodacidaderepublicana,paraaCNTaformadeapropriaçãodoespaçopertencenteaosricosdacidadetampoucotinhaomerosentidodeapropriaçãomaterial; tratava-sede imprimiroutrosignificadoaoslugaresdeexclusão,dandoconotaçãopúblicaàquiloqueeratiradodopovo,oqueeracompatívelcomamoralanticonsumoeantimaterialistadaCNT.Oabastecimentofoifocodasintervençõestantonoquesereferiaàapropriaçãodeestoquesparadistribuiçãocomoàcriaçãode uma rede de restaurantes populares. Em Barcelona, o Hotel Ritz foi convertido em HotelGastronómico, um restaurante comunitário que servia àsmilícias e aos pobres, trabalhadores eexcluídos.OscasosmaisemblemáticosdeapropriaçãodosespaçosdosricosforamaocupaçãodoedifíciodoBancodeEspanhaeadasededaFederaçãoPatronalCatalã,quepassouasechamar“CasaCNT-FAI”,enaViaLayetana,emplenocentro,aocupaçãodeondehaviasealojadoasededapolícia,deamargamemóriaparaostrabalhadores.

Asruas,queemBarcelonaeramumlugarmuitomaisvividoefamiliarparaostrabalhadoresdoque para as elites e autoridades, agora se tornavam mais que nunca o lugar onde a vidarevolucionáriasedesenvolvia.Comoareformaurbanadoiníciodoséculohaviaexpulsadoaclassetrabalhadora das favelas para espaços marginalizados da cidade, ocupar o espaço público esinalizaraocupaçãosignificavaapropriar-sedele.Oshábitosdevestuáriotambémmodificaramapaisagemurbana,podia-sever,naRambla,cenetistaspasseandocommacacõesazuisdasmilícias,easroupasusadasnormalmentepassaramaserquasecomouniformes,utilizadostambémpelaselites,queporcuidadoerecatoprocuraramvestirroupaspróximasouiguaisaosmacacõesazuisdasmilícias.Outraformadesinalizaçãodapresençadostrabalhadoresnoespaçopúblicoeramasbandeiras vermelhas e negras colocadas nos edifícios e nos veículos apropriados agora com asinscriçõesCNT-FAI.Onúmerodeempresascoletivizadaschegoua300,especialmenteaquelasnasquais os donos haviam sido assassinados ou fugido da cidade. Outra iniciativa por parte daslideranças anarquistas era a aproximação do espaço de trabalho e de vida da comunidade. Astentativas de integrar esses dois espaços foi a criação de creches, bibliotecas nas fábricas,programas educativos de cultura e línguas estrangeiras nas horas de descanso. Estas iniciativasforamenfraquecidasnamedidaemquealógicadaguerra,emdetrimentodalógicadarevolução,foiforçandoaaceitaçãodeumaperspectivaprodutivistaporpartedaCNT-FAI.

Enfim,tudooqueficouconhecidocomo“destruiçãocriativa”tinhaporfundamentoumaculturaderesistênciaedestruiçãodalógicaespacialdaculturaburguesa,ancoradanas lutasanteriores.Outros temas tambémocupavamonovo significadoda cidade revolucionária, comoas atitudesmachistas, que pareciammudarmais lentamente.Mesmo tendo aministra FedericaMontsenygarantido a igualdade legal entre os sexos, ainda assim havia cartazes republicanos quemanifestavam preconceitos contra as mulheres, atribuindo-lhes por exemplo a transmissão dedoenças venéreas. Pode-se concluir, através dos relatos feitos posteriormente, quemuitas das

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questõesdedireitosdasmulheresforamadiadas,aindaqueaLigaFeministatenhatidoexpressãoemBarcelona.

ANARQUISMOBARCELONÊS.CONTINUIDADEEDESCONTINUIDADE

Oquesepodedepreender,apartirdasentrevistasedasvisitasaosateneusecooperativas,équehojeemBarcelonaexistemmuitasmaneirasdeseranarquista.AministracenetistadogovernodaRepública, FedericaMontseny,devoltadoexílio, ementrevistaaoprograma televisivo LaClaveem 8 de junho de 1984, lembrou aos jovens entrevistadores que as bandeiras recentes e asliberdadesqueelesdesfrutavamforam,nopassado,bandeirasanarquistas.Oamorlivre,adefesadaecologiaqueapareceunaFrançaenaEspanha,os verdesnaAlemanha,o vegetarianismo,odireitoaoaborto,onaturismolibertário,valoresebandeirasqueforamimpregnandoasociedadeatual,haviamnascidodaspráticasevaloresanarquistascujasorigensnãosãodesconhecidasparaajuventude.Sehojeacidadeconvivecomateneuseformasdeorganizaçãodeaçãodireta,gruposde afinidades, uma malha associativa de inspiração libertária, parte dela declaradamenteanarquistaeparteque,emboranãoseautodeclare,nelaseinspira,suasraízesficaramapagadasou censuradas pela ditadura franquista e, segundo simpatizantes, sobretudo pela propagandacomunista.Hoje,emBarcelona,amaioriadosateneus–que,segundoregistrodaPrefeitura,sãoem número de 59 – se declara libertários. Pode-se supor que se trate de uma linha decontinuidadenotempo,quetendosobrevividoclandestinaesilenciosanos38anosdeditadura,permaneceu,emparte,erenasceuemdiferentesgeraçõesnacidade?

Noespaçobarcelonês, após amortede Franco, sobalguma liberdadedeexpressão, trazendoamemória da guerra e tudo que ela envolveu, entre os novos libertários renasceu oquestionamento interno à CNT, sob o famoso lema: “Ni Deus, Ni Amo, Ni CNT”. Na transição,especificamente em seu início, foi vertiginoso o ressurgimento do anarco-sindicalismo emBarcelona.Em1977,doisanosapósamortedoditador,aCNTchegouatersóemBarcelonaemtornode200.000pessoas.Onovoanarco-sindicalismo,alémdeterumingredientederenovaçãogeracionaltraziaumanovaformadeviverepensaratradiçãolibertária.As“JornadasLibertáriasde1977”quetiveramlugarnoParqueGüell,assimcomoarevista“Ajoblanco”,sãoaexpressãodochoquedegeraçõesedevisõesdiferentesdoqueeraa vida libertárianosanos setenta.Muitomais individualistas do que seus antecessores do anarco-sindicalismo, as novas geraçõescenetistas procuravam praticar o princípio da ortodoxia anarquista segundo o qual “no hayderechos, se ejercen” de uma maneira muito mais individualista e próxima aos padrões dajuventudepós-1968donortedaEuropa.

Já nas primeiras eleições celebradas na transição à democracia, renascida da clandestinidade aCNT reafirmou seuantipoliticismoenãoparticipoudopleito. Tampoucoparticipoudaseleiçõessindicais em Barcelona, e não reconheceu os Comitês de Empresa ou aceitou as subvençõesestataisouempresariais.Entre1976e1978,seucrescimentoemBarcelona foisuperioràsnoveprovíncias catalãs, dispondo de hegemonia frente à Confederación Sindical de ComisionesObreras/CCOO, o sindicato comunista, e à Unió General de Treballadors de Catalunya/UGT,socialista.Emjunhode1977realizouoencontromaispungentedetodaatransiçãoàdemocraciaemBarcelona,o“mitingdeMontjuic”,quechegouaserestimadoemummilhãodepessoas.Nomesmo ano se seguiram as greves das gasolineiras, a primeira das quais foi considerada umavitóriaparaostrabalhadoreseparaaCNT.Aocrescimentoeavançosnocampotrabalhistasefezsentir o anti-cenetismo nas declarações dos empresários assustados com o poder da CNT e otemor de que se restabelecera sua força dos anos da República. Se de um lado há a expulsãocoletiva dos jovens libertários, em choque com o estrito moralismo dos anarco-sindicalistas

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históricos, de outro a CNT sofreu um desastre quando teve sua imagem criminalizada e foiresponsabilisada por um atentado com vítimas mortais em um salão de festas no centro deBarcelona,o“casoScala”,em1978.Apartirdesteperíodoelaperdesua força,ehojeaCNTsededica a tratar de casos trabalhistas e defesa de direitos com expressão incomparavelmentemenorqueadopassadonacidade.

Nosanos1970,asnovasgeraçõesquese filiaramàCNT,aobuscaremuma formadeexpressãolibertária, se chocaram com o puritanismo do anarco-sindicalismo, culminando com expulsãocoletivadamaioriadeles.Onovopadrão,cujamanifestaçãosefezsentirapartireespecialmenteapósasJornadasLibertárias Internacionais–quandoseacercaramdaCNTemtornode200.000jovens – e os Atos Culturais celebrados no Parque Güell em 1977, se chocou contra o estritomoralismodepartedaCNT.Essanovageraçãoprovavaasdrogas,oamorlivreetampoucoestavadisposta a aceitar relações hierárquicas, questão sobre a qual tinham uma hipersensibilidade.Pode-se dizer, segundo um ex-militante expulso em 1977, que “éramosmais libertários do queanarquistas”.Segundointelectualeex-militante:

No hay continuidad en el anarquismo. La CNT ha crecido en la transiciónporqueestabafueradelospartidos,lasnuevasgeneracionesentendieronquelos partidos tradicionales de izquierdas o los republicanos e nacionalistasestabanlejosdeponerenjaqueelordenjerárquico.(...)Hoylasconeccioneslibertariasestánenlosbarriosyenlosateneus,sonespaciosdeconvivencia.Elanarquismoesunlugardeencuentro,nohayuncuerpocentraldelateoría,sepuedeseranarquistademuchasmaneras.Despuésdel15MtodohamudadoenEspaña. (entrevistaconcedidaàautoranoAteneuBarcelonés,en18abr.2016)4

ParaTaibo(2015),hojeoanarquismonaEspanhaseapresentabasicamentecomduascaras:umasob a bandeira do “municipalismo libertário”, cuja matriz teórica se encontra em MurrayBookchin;aoutrasobabandeirada“açãodireta”,queseencontraemalgunsateneus,livrariaseocupações em bairros barceloneses. Quanto ao “municipalismo libertário”, é a experiência doPartidodosTrabalhadoresdoKurdistão/PKKaquetementusiasmadoeinfluenciadoquasecomouma moda a juventude libertária espanhola, configurando-se como a experiência maisemblemática das teses deMurray Bookchin, formulador da “ecologia social” adotada pelo PKK.FundadonoKusdistãoNorte,territóriodentrodaTurquia,oPKKdesenvolveueadotouoprojetode Bookchin do “municipalismo libertário”. Essa experiência tem sensibilizado a juventudelibertária tantonaEuropacomonoBrasil. Segundocompilação, feitanaEspanha,dos textosdeAbdullah Öcalan, líder do PKK, suas ideias principais se expressam no “confederalismodemocrático”,cujoseixossãooecologismoeo feminismo.Comodetalhe,osconfederalistasdoKurdistãodeletaramapalavramasculino,passouaexistirfemininoefeminina,aspectoreveladordaimportânciaquedãoàsuperaçãodadominaçãodoshomenssobreasmulherescomocondiçãoparaaemancipaçãohumana.

4O “Movimiento 15M”, também conhecido comomovimentodos “Indignados”, nasceu espontaneamente nodia 15 demaiode2011emMadridenodiaseguinteemBarcelona,comoumaondadeprotestospacíficosqueaglutinoumultidõesde jovens nas mais importantes praças públicas das cidades da Espanha. Tinha uma pauta ampla de reivindicações,basicamentecríticosdobipartidarismoquealternaopodernaEspanha,financiamentodeeleições,afavordademocraciaparticipativa,contraacorrupçãoeasexpulsõesdemoradores,os“deshausios”,comhipotecasvencidas.Comoalternativaaos partidos convencionais formaram novos partidos, sendo que “Podemos”, nas eleições de 2014, elegeu cincoeurodeputados para o Parlamento Europeu. Contra os desahucios também se formaramemBarcelona outros partidos,cujacoligaçãoelegeucomoprefeitadeBarcelona,em2015,AdaColau,ex-líderdomovimentoOkupa.

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OANARQUISMOBARCELONÊSHOJE

Já foiditoquehoje,emBarcelona, sepodeseranarquistadeváriasmaneirasequeosateneuspodem ser entendidos como espaços de convivência. Também se afirmou que se de um ladoexistem experiências de “ação direta” e “redes de afinidades” dos que hoje se autodeclaramanarquistas, ainda se expressam e fazem-se presentes militantes e associações que, não sedeclarando anarquistas, se inspiram nesta fonte e a praticam de modo a se auto declararemlibertários.O casodas “Cooperativas dobairro de Sants” corresponde aos que se autointitulamanarquistas. Apresentam-se como “um espaço de encontros e intercooperação de iniciativassocioeconômicas transformadoras, comcooperativas,entidadesdeeconomiasociale solidáriaeprojetosdeautogestãocomunitária” (SANTSCOOPS,2016).O ImpulsCoop reúneabagagemdoBarri Cooperatiu, projeto de promoção de cooperativismo impulsionado em Sants entre 2009 e20013 pela Federació de Cooperatives de Treball de Catalunya e La Ciutat Invisible. Foramentrevistados dois dirigentes do projeto: Ivan Miró, coordenador e diretor da Livraría CiutatInvisibleediretordoprojeto,eJoanCosta,coordenadordasoficinascoletivas.

AentrevistacomIvanMirófoirealizadaem22deabrilde2016eteve lugarnaLivraria“CiudadInvisible”, Barrio de Sants, em Barcelona. Segundo ele, sobre Can Batlló são dois os aspectos aseremconsiderados.Emprimeirolugar:

[…] desde el punto de vista histórico el anarquismo fue muy fuerte enCataluña, no teniendo un Estado fuerte, la sociedad se proyecta en elmercado,CataluñaesunacolectividadnacionalsinEstado.Nohaylatifundio,no hay un tejido agrario y tampoco hay terratenientes. La Cataluña esindustrial, en el siglo XIX la idea que se tenía para Cataluña es de unaRepública Federativa. Se puede decir que la matriz social de Cataluña esfederalista, laorganizaciónsocial, lamaneracomolasociedadseorganizaesfederalista. En Sants había un nuevo proletariado, era una sociedad deresistencia.En1855,laasociaciónestabaprohibida,sinembargoenSants,enla primera Huelga General, 1855, los trabajadores declararon: “Associació omort”.

Oentrevistadorealçaaspectosqueconsideraimportantesparaseentenderodesenvolvimentodaluta dos trabalhadores. Recorda que em 1918, período de crescimento da CNT “tiene lugar el’Congreso de Sants’, cuando se crean los sindicatos cívicos. Após a greve da Canadence, laCompanhiaLightandPowerdeCanadá,apareceo‘pistolerismo’,miliciasprivadasdapatronal,eem 1931 a CNT és considerada insurreccional e não sindical, os pistoleros passam a matar oslíderescenetistas”.Buscandoresponderàpreguntaformuladaporelemesmo,qualseja,“Decualmanerasehacelacadenadetransmisión?”,relembraquena2ªRepúblicaoanarco-sindicalismo,comCNTeFAI,eramuitoforte,tantopoliticamentequantomilitarmente,tendosidoelasque,em1936,atravésdos “HombresdeAcción”,pararamogolpemilitar.Apartirdessa força são feitas80% das coletivizações em Barcelona, no governo da República. Na composição do governorepublicano são trêsos grupos: “GruposdeDefensa (organizan los comités), ComitéMilitar yelComitéAnti-fascista (a cargodeCNT), enestosúltimos losmás importantes son losComitésdeColectivizaciones en los barrios”. A criação do PSUC, comunista, é uma reação da pequenaburguesiacatalãàforçadaCNT,emjulhode1936.

Diante da questão do que é o anarquismo hoje, Ivan Miró explica: “Se puede decir que elAnarquismo es una expresión teórica de una organización social horizontal, no jerárquica ycooperativa”.Hojesãodoisoselementosanarquistashistóricos:primeiro,aquelesgruposqueseautointitulamanarquistasequeseencontramnosateneusenaFAI;e,segundo,osmovimentos

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de cultura libertária e os cooperativistas. Sobre o caminho que essas forças têm tomando emBarcelona,Miróafirma:

En 1990, hubo una implosión de grupos de izquierdas. Nascen no porideologías,grandes ideas,sinoporprácticas.LaCNTahoraesunacaricatura,esmoralistaychocaconlasformaslibertarias.EnBCNlaideadeterritorioesimportante,recuperóelmovimientodebarrio.LosOKUPAempezanenlos90,una representación simbólica, copian ideas interesantes de cada tradiciónteórica.

Ele esclarece que, como na Espanha a democracia veio junto com a crise econômica e aprecarização do trabalho, nessa nova realidade os sindicatos perderam força e passaram a nãorepresentarosinteressesdostrabalhadores.Comoexemplocitaanegociaçãofeitaem1994pelaCCOOcomapatronalparaqueosjovenstivessemsaláriosmenores,istoé,osvelhospromovendoadualizaçãodotrabalho.Em1992aPaxOlímpicasignificouadestruiçãomassivadosmovimentossociais, e em 1994 as coisas mudam. De um lado aparece Chiapas e o Kusdistão, que sãoreferênciasnacionais;deoutroa“insumisióndeconsciencia”aoExércitolevaosjovensàprisão–tudoissofazcomqueascoisasmudem.Conclui:“Bajoennombredeanarquistas,laIdea,nohaymás.Ahorasólohayeltrabajoconanarquistas,laideaesotra”.

A história da ocupação de Can Bartlló foi narrada em entrevista com Joan Costa, diretor dasoficinas, ativistadeprimeirahorae testemunhade suaocupaçãoe construção.O relatoque sesegue é baseado em seu depoimento, colhido no Pavilhão 11 de Can Batlló, em 27 de abril de2016.

AhistóriadoBairrodeSants,anteriormenteoutracidadenãopertencenteàBarcelona,estáligadaàgrandeindustrializaçãodeBarcelona,especialmenteaindústriatêxtil,eàslutasdeorganizaçãoeassociaçõesderesistência,desdeoséculoXIX.DuranteaGuerraCivil,aCNTsocializouafábricadeCanBatlló.Em1976,apósamortedeFranco,ressurgeemBarcelonao“MovimientoVecinal”,oantigoquetomounovasformasequenocomeçoeraformadodecomerciantesque,porestaremassociadosàsluzesdeNatal,eramchamadosde“bombillos”,nomequesedánaEspanhaàsluzesdeNatal.Oshabitantesdobairro,chamados“vecinos”,foramseinfiltrandonessasassociaçõesealgumasdelasforamsendolegalizadaspoucoapouco,tratandodetemasqueserelacionavamaourbanismo, feminismo, educação e trabalho. Por outro lado, em 1976, o Plan GeneralMetropolitano, na época do prefiro Porcióles, previa uma reserva do solo como de “FunciónSocial”, o que implica em declarar Can Batlló como “Zona Verde y de Equipamiento Social”. OCentroSocialdeSantshaviasidofundado1974nocontextodasmanifestaçõespelaautonomiadaCatalunha e na luta pela anistia, época em que os “vecinos” começam a pedir, timidamente, arecuperação de Can Batlló. Após a morte de Franco, Can Batlló ocupava um espaço de oitohectares, convivendo com dois interesses contraditórios: ao mesmo tempo que era umapropriedade privada, tinha sido declarada de interesse social. A fábrica havia sido comprada,depoisdaGuerraCivil,em1943,porummilionário,JulioMunizRomanet,quetinhafeitofortunarapidamenteduranteofranquismo.Quandoem1962sedesfaza indústriatêxtil,osespaçossãodivididosepassamaseralugadosparapequenasempresas.

AindasegundoorelatodeJoanCosta,aCNTtinhasidorefundadanaParóquiadeSanMedir,emSants, muito próximo ao espaço da Fábrica. Isso mostra que parte da igreja não se moviainfluenciadapelomitodaCNTcomodestruidoradeigrejasequeobairrodeSantsmostravaterasforçassociaisintegradas,poucomarcadapelaslutasdopassado.Natransição,aEspañaIndustrialTêxtil começou a reivindicar Can Batlló, lembrando que Sants era um centro industrial muitoimportante na Cataluña – além da indústria têxtil, os perfumes franceses eram fabricados em

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Sants.SobreatradiçãohistóricadeSants,Costarecorda:“Lasmurallas,cuandofueranhechas,lahicieranparabombardear la ciudad,no sepodría construir fuera, Santseraotropueblo, estabafuerade lasmurallas.Erauna regióndondeseencontraba lagran industria”.Em1992,houveapropostadeconstruiraVilaOlímpicaemCanBatlló,eatravésdeumaAssociaçãoentreempresas,prefeiturae trabalhadoresse fariaaconstruçãodascasas.Depoisde2000,apropostaparaCanBatllóeraa construçãode600casas sociaisevinteeumequipamentos.Em2008, comabolhaimobiliária,aconstruçãoentraemcriseeasoluçãoéadiada.A“AsociacióndeVecinos”passaaexigirumcalendárioeameaçacomocupaçãocasoosprazosnãosejamdefinidos.Em2009cria-seum clima de espera em Can Batlló. Havia cerca de trinta pessoasmobilizadas com o apoio doCentroSocialdeSantseComisionesdeVecinosdeBordet,umbairropróximo.Apartirdissoforamsendo criados espaços de amigos e se saltou para duzentas as pessoas envolvidas. O PSUC semanifestou afirmando que as ocupações não tinham base legal; já o prefeito, Trías, disse queapesardelegítimonãoeralegal.NaspalavrasdeJoanCosta:

En el once de julio de 2011, sábado, entramos en Can Batlló.Ofrecieran unedificio industrial NAVE. La Asociación de Padres yMestres, ANIPA, semanahabía recibido una llamada de la familia Nuñez Romanet. La ocupación fuefestiva,alasdocehoraslascampanasdelaIglesiadeSanMedirempezaronatocar.ElprimerequipamientofuelaBiblioteca,conloslibrosdonadosporlosvecinos.

Segundo Joan Costa, a situação foi favorecida por algumas casualidades que se somaram: asassociaçõesdevizinhos,aconjunturaeleitoraleamídia.UmanotíciadaTVitalianamostrouuns“loucos”queocuparamumaantiga fábrica, lembrandoqueaocupaçãodos indignados tinha sepassadoummêsantes.Assim,“Undíaantesdeterminarelplazolaalcaldíaaceptó,losabogadosdeloshijosdeRomanetllamaranalteléfono.ElalcaldeHereufirmó”.

As unidades de auto-gestão distribuídas no bairro são quarenta e qutro em funcionamento,divididas em atividades de “Tallers i mobilitat” (seis), “Habitar” (três), “Finances” (três)“Alimentació” (dez),“Educació” (cinco),“Comunicació iTIC” (seis),“Cultura i restauració” (cinco)“Espaissociais”(seis).ÉumaexperiênciainéditahojeemBarcelona,etalveznomundo,naqualasrelações hierárquicas foram substituídas por redes horizontais, sendo criado o espaço dos“comuns”,possibilitadoemgrandemedidapelopassadofederalistaeassembleáriobarcelonês.

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