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MORENO OU NEGRO? UMA ANÁLISE SOBRE OS DISCURSOS QUE PRODUZEM O AFRO-DESCENDENTE NA IMPRENSA DE VENÂNCIO
AIRES-RS1
Viviane Inês Weschenfelder2
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Resumo: Esta comunicação tem por objetivo analisar como o conceito de diferença tem operado na imprensa escrita de Venâncio Aires, município situado no Vale do Rio Pardo, na produção do sujeito afro-descendente. O material de análise selecionado é o jornal Folha do Mate, principal veículo de imprensa escrita do município. Uma sondagem inicial realizada entre os anos de 1970 e 1990 permitiu identificar a presença do afro-descendente no material estudado, embora apareça, por um grande período, chamado de “moreno”. Entendendo que os enunciados que circulam nas reportagens do jornal representam o pensamento da comunidade de Venâncio Aires acerca da população não-branca, o que problematizo, nesse caso, é o discurso que diferencia os afro-descendentes através do que chamamos de um esforço linguístico para apresentar-se como “politicamente correto”. Palavras-chave: Afro-descendente - diferença - politicamente correto Introdução
O debate atual acerca das identidades e da cultura tem aberto possibilidades para
novas articulações em torno dos processos de inclusão e exclusão sociais. Para Bauman
(2005) a Modernidade, por ser deslizante, coloca a identidade como um processo em
constante construção, o que causa fenômenos como a crise do multiculturalismo.
Positiva ou não, essa crise produz movimentos de intensa ressignificação da identidade,
sempre que se deslocam questões sociais e políticas. Em outras palavras, ampliam-se as
necessidades de estudos em torno da diferença, sobretudo de cunho étnico e cultural.
Esta mudança estrutural da Modernidade, de acordo com Stuart Hall (2003),
promove um deslocamento do sujeito, que acaba perdendo o sentido de si e de seu lugar
social. O que temos, desta forma, são sociedades marcadas pela descontinuidade e pela
diferença, onde não cabe mais o discurso essencialista, responsável por cristalizar as
identidades. Quando trazidas para a educação, essas questões tornam-se ainda mais 1 Este trabalho faz parte da pesquisa que resultará em uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS, sob a orientação da Prof. Dra. Eli Terezinha Henn Fabris. 2 Graduada em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e mestranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
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delicadas. As discussões que envolvem cultura(s) e educação, segundo autores como
Candau (2008), estão no bojo do multiculturalismo. A História de nossas sociedades,
nesse sentido, é fundamental para entender como ocorrem estes processos. “A nossa
formação histórica está marcada pela eliminação física do “outro” ou por sua
escravização, que também é uma forma violenta de negação de sua alteridade”
(CANDAU, 2008, p. 17).
Tendo como pano de fundo estas características das sociedades modernas (ou
pós-modernas, na visão de alguns autores), ressalto a relevância dos estudos de caráter
regional, sobretudo quando se tratam de questões étnicas, que variam de região para
região. Considerando o arranjo populacional que historicamente constituiu o Rio
Grande do Sul, importa, neste caso, entender como os fenômenos de in/exclusão sociais
interferem na produção dos sujeitos sociais, em especial os afro-descendentes.
O Rio Grande do Sul pode ser concebido como um caso específico de
hegemonia étnico-cultural em que as relações interétnicas encontram-se fortemente
relacionadas ao processo imigrantista iniciado a partir da segunda década do século
XIX. É preciso ressaltar que, nesse arranjo a partir do qual é entendida a constituição
populacional do Estado, algumas etnias, mesmo considerando-as do ponto de vista
essencialista, foram excluídas e/ou marginalizadas na composição da identidade cultural
do Rio Grande do Sul. A própria historiografia da região Sul do Brasil legitimou estas
narrativas apontando para características inatas de alguns tipos étnicos que compõem a
população do Estado, em especial os alemães e italianos.
Pesquisas realizadas no Vale do Rio Pardo, em especial no município de Santa
Cruz do Sul3, mostraram que o discurso triunfalista que exalta a etnia alemã, vista como
pioneira e responsável pelo desenvolvimento regional, acaba por promover narrativas
homogeneizadoras que subsumem as diferenças étnicas da região. Nestes locais, as
populações não-brancas, sobretudo os afro-descendentes, são invisibilizados enquanto
grupos que possuem narrativas identitárias próprias, e isso se faz presente também na
educação.4
3 Ver: NEUMANN, 2006, SILVA, 2007 e SKOLAUDE, 2008. 4 Pesquisa realizada no ano de 2009, junto às escolas de Santa Cruz do Sul, como bolsista PIBIC/CNPQ, resultando na monografia de conclusão de curso, intitulada “Sujeitos falhos: a influência do discurso
3
O desenvolvimento destes estudos nos possibilitou olhar também para outros
municípios que compõem o Vale do Rio Pardo. Embora todos sejam marcados pela
imigração européia, especialmente a alemã, alguns locais apresentam especificidades,
como é o caso do município de Venâncio Aires. Sua composição histórica e a forma
como a comunidade venâncio-airense se narra através dos meios de comunicação e dos
eventos que realiza apontam para uma identidade cultural que visibiliza o afro-
descendente, o que parece não ocorrer desta forma em outros locais.
Neste trabalho, utilizo como material de pesquisa o jornal Folha do Mate, a mais
importante imprensa escrita do município (e atualmente a única). Os jornais são, além
de veículos de informação, artefatos culturais, pois não são fabricações neutras, eles são
produzidos e produzem cultura. Desta forma, colaboram na formação de condutas e de
saberes que incidem diretamente na formação identitária dos seus leitores. Entendo que
o jornal é um campo de visibilidade dos enunciados (linguagem) e, por isso, é
constituído e constitui o pensamento da comunidade de Venâncio Aires. A Folha do
Mate, nesse caso, é um local privilegiado onde circulam discursos e práticas discursivas,
e uma análise destes discursos dará condições para visibilizar as tecnologias de poder e
a subjetividade do sujeito afro-descendente neste município.
Este artigo tem por objetivo problematizar o discurso da diferença através de
alguns enunciados que se manifestam na Folha do Mate nas décadas de 1970 a 1990,
mais precisamente entre os anos de 1974 e 1988. Em diversas reportagens o negro é
chamado de “moreno”, indicando um cuidado no uso da linguagem para se referir ao
afro-descendente. Considerando que tanto o termo “moreno” quanto sua utilização está
carregada de sentidos, importa analisar em que medida estes sentidos podem contribuir
para a constituição da subjetividade do sujeito afro-descendente de Venâncio Aires.
A diferença como fonte de todo o mal: a linguagem na produção do sujeito afro-
descendente
pedagógico-curricular na construção da identidade afro-descendente de Santa Cruz do Sul – RS”, defendida na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
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Agora, a irrupção do outro pode instaurar uma nova e original relação com a
mesmidade. Mas não uma relação tranqüila, transparente, consistente, nem
muito menos incondicional ou empática. A irrupção do outro é uma diferença
que difere, que nos difere e que se difere sempre de si mesma (SKLIAR,
2003, p. 45)
Ao tratar de alteridade e educação, Carlos Skliar (2003) nos mostra como a
fabricação do outro na sua exterioridade, como aquele que deveria ser anulado,
apagado, durante muito tempo foi importante para a manutenção dos processos
homogeneizadores das práticas pedagógicas. O fortalecimento dos estudos que
concebem a cultura como um campo de significados e de relações de poder, no entanto,
vem deslocando esse olhar para os fenômenos como os processos de in/exclusão sociais,
apontando a diferença como a “irrupção (inesperada) do outro, do ser outro que é
irredutível em sua alteridade” (SKLIAR, 2003, p. 43). Esta irrupção aponta para o
conflito, para a instabilidade, para a dinâmica daquilo que nos constitui enquanto
sujeitos sociais, desloca nosso olhar para o outro e ao mesmo tempo para nós mesmos,
pois é essa aproximação/distanciamento que constitui nossa identidade.
É também ao falar de alteridade que Duschatzky e Skliar (2001) apontam o
século XX como o período em que o outro foi concebido como fonte de todo mal.
Segundo eles, a Modernidade foi responsável pela “demonização do outro: sua
transformação em sujeito ausente, quer dizer, a ausência das diferenças ao pensar a
cultura [...]” (2001, p. 121). Entendendo o quanto a diferença é fundamental para pensar
a cultura e com isso promover a “irrupção” do outro, daquele que possui consigo uma
marca, que abala a pureza do mundo, procuro aqui mostrar como ela foi por muito
tempo vista como um problema, algo que deve ser ocultado. Passar por cima da
diferença e contorná-la através da linguagem são atitudes por muito tempo consideradas
viáveis, mas que hoje não são passiveis de convencer de sua neutralidade. Ao colocar
estas supostas verdades em xeque, apresento algumas definições para explicitar de onde
parto ao falar de cultura, de diferença e da própria linguagem.
Segundo Stuart Hall (2003), cultura é o terreno real, sólido, das práticas, das
representações, línguas e costumes de qualquer sociedade. Não se pode negar que nunca
esteve tão em voga falar sobre cultura e seus desdobramentos, como identidade cultural,
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diversidade cultural, diferença cultural, entre outros. Não só pelo caldeirão semântico
que este termo tem assumido, mas por se tratar de um estudo em torno das práticas
culturais e das relações de poder que constituem os sujeitos sociais. Nesse sentido,
Tomaz Tadeu da Silva (2000) entende a cultura como um campo de luta, um local de
produção de significados e de significações em torno da identidade. A identidade, por
sua vez, se constitui a partir da diferença. Elas “são o resultado de um processo de
produção simbólica e discursiva” (SILVA, 2000, p. 80). Por isso estão sempre em
conexão com as relações de poder. São fronteiras móveis, que estão em movimento, se
(re)significando a todo tempo.
Podemos dizer que onde existe diferenciação – ou seja, identidade e
diferença - aí está presente o poder. A diferença é o processo central pelo
qual a identidade e a diferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de
outros processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela guardam
uma estreita relação (SILVA, 2000, p. 81).
Silva (2000) ainda segue mostrando que o poder está presente em outras marcas
sociais e culturais, como o ato de incluir/excluir, classificar como normais/anormais,
puros/impuros, na alteridade, firmando as fronteiras entre nós e eles. Desta forma, se
por um lado a identidade dos indivíduos está calcada na diferença, por outro lado um
dos fatores que mais diferencia estes indivíduos enquanto grupo é a etnicidade. Para os
afro-descendentes, ser diferente muitas vezes representa também ser inferior, o “outro”
como alguém que se tolera, tanto socialmente quanto culturalmente.
Mas se a invisibilidade do negro é um fenômeno que ainda se apresenta em
determinados locais, como pesquisas já apontaram, precisamos entender como opera o
processo de diferenciação destes indivíduos. Os processos de inclusão e exclusão
sociais podem ser mais uma estratégia de análise e compreensão. A perspectiva
foucaultiana nos incita a ir além do fenômeno, buscar as regularidades para pensar quais
as condições que possibilitaram tal acontecimento. Mais do que isso, Foucault nos
permite entender quais são e como operam o conjunto de significados que fazem
emergir o discurso que diferencia o sujeito afro-descendente.
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Ao utilizar como material de pesquisa o jornal Folha do Mate, pretendo olhar
para este artefato cultural e entender quais os discursos que circulam em torno do afro-
descendente e como eles constituem a subjetividade destes sujeitos sociais. As práticas
discursivas se apresentam em diversos locais através dos enunciados. Para Foucault, os
enunciados são fundamentais para entender como os discursos circulam, pois são eles
que estabelecem os regimes de verdade de determinado período. Veiga-Neto (2007, p.
94) esclarece melhor o conceito de enunciado em um trecho que vale a pena ser
transcrito:
O enunciado é um tipo muito especial de um ato discursivo: ele se separa
dos contextos locais e dos significados triviais do dia-a-dia, para construir
um campo mais ou menos autônomo e raro de sentidos que devem, em
seguida, ser aceitos e sancionados numa rede discursiva, segundo uma
ordem – seja em função do seu conteúdo de verdade, seja em função daquele
que praticou a enunciação, seja em função de uma instituição que o acolhe.
Os enunciados do jornal Folha do Mate que por algum motivo se referem aos
afro-descendentes durante o período analisado (1970-1990) apontam para um
travestismo discursivo (DUSCHATZKI e SKLIAR, 2001), pois fazem uso do termo
“moreno” para disfarçar o possível conflito que emerge ao falar do afro-descendente. Se
não há como negar a diferença, ao menos se recorre a palavras que possam contorná-la.
Veiga-Neto (2001), por sua vez, chama esse fenômeno de “proteção lingüística”, um
recurso que está presente em boa parte dos discursos que pretendem ser politicamente
corretos. Nas suas palavras, é “como se quisesse expiar uma culpa, passando por cima
dessa questão [...] e jogando para baixo do tapete a violência que se põe em movimento
nessas práticas” (VEIGA-NETO, 2001, p. 108).
Percebe-se então, o quanto a linguagem é importante para a constituição da
subjetividade dos sujeitos. Semprini (1999, p. 66) diz que “a linguagem é um
instrumento que afeta profundamente o nosso conhecimento e representações de
mundo”. É através da linguagem que damos sentidos às coisas, pois ela é constitutiva do
nosso pensamento. (VEIGA-NETO, 2007, p. 89). Esse cuidado em dizer, que Veiga-
Neto (2001) chama de “proteção linguistica” e que Duschatzky e Skliar (2001) chamam
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de “travestismo discursivo” apontam a diferença como algo negativo. Este esforço
lingüístico que contorna a diferença através do discurso que faz uso do politicamente
correto para evitar que a sensibilidade ou a auto-estima dos afro-descendentes “possam
ser ofendidas ou humilhadas [...], de modo a induzir ou reforçar na pessoa em questão
uma visão desvalorizada ou culpabilizante dela mesma” (SEMPRINI, 1999, p. 62).
O uso do termo “moreno” pelo jornal Folha do Mate pode ser visto como um
dispositivo diferencialista que procura quebrar a rigidez e o peso que o termo “negro”
acarretaria. Situando-se entre o negro e o branco, o termo “moreno” contorna o conflito.
A diferença de ser negro nesse caso é negativa, mas poderia ser amenizada com uma
linguagem politicamente correta. Os enunciados que visibilizam estes discursos valem a
pena ser aqui analisados, pois possibilitam entender a dinâmica de poder existente no
processo de constituição do sujeito negro de Venâncio Aires.
O “moreno” e a busca do “politicamente correto”: enunciados que circulam no
jornal de Venâncio Aires
De acordo com o dicionário, “pardo” significa, entre outras possibilidades,
“branco sujo, duvidoso”. No curso de um estudo sobre identidades raciais e a
imposição de categorias censitárias binárias na América Latina,
pesquisadores americanos experimentaram substituir “pardo” pela opção
“moreno”. [...] Poucos anos depois da publicação da pesquisa, organizações
do movimento negro do Brasil engajaram-se na produção das idéias de que
“pardos” e “pretos” devem ser classificados como “negros” e de que os
“negros” devem se enxergar como “afrodescendentes” (MAGNOLI, 2009, p.
156-157).
Escolhi esta citação da obra “Uma gota de Sangue” de Demétrio Magnoli ao
iniciar esta análise para mostrar o quanto a questão racial no Brasil apresenta-se como
uma teia de significações em um campo semântico repleto de relações de poder. Ao
direcionar meu olhar para o sujeito afro-descendente, automaticamente este tema de
trabalho recai sobre a questão política que tem sido discutida internacionalmente, o uso
dos termos raça e etnia. No Brasil, esta discussão ganhou fôlego a partir dos anos 70,
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com o fortalecimento do Movimento Negro. Atualmente, o Ministério da Educação e
Cultura - MEC tem publicado seus documentos utilizando o termo étnico-racial. As
diretrizes para a aplicabilidade da Lei 11.645, que define a obrigatoriedade do ensino da
história e da cultura afro-brasileira e indígena no currículo das escolas brasileiras
justifica o uso desta linguagem. Ao utilizar o termo raça/etnia ou étnico-racial, o MEC
procura dimensionar os afro-descendentes e indígenas para além do termo biológico (até
que porque esta diferenciação já caiu por terra), mas apontar para um conjunto de
práticas culturais específicos, como religiosidade, dança, idioma, tradições, entre outros.
Construo, desta forma, as balizas no que se refere ao uso do termo raça/etnia.
Sem entrar nessas querelas, pois a discussão destas questões conceituais não é o
objetivo deste artigo, importa dizer que a mestiçagem foi vista num primeiro momento
como elemento negativo pela maioria dos eugenistas do século XIX e, posteriormente,
ela passa a ser constitutiva da identidade brasileira. Não há como negar que nesse
contexto encontra-se arraigado o discurso da “democracia racial”, construída a partir
dos anos 1930, após a publicação de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Assim
como o MEC hoje utiliza uma denominação específica, nada garante que ela não
mudará conforme as discussões políticas do uso da linguagem forem sendo travadas,
principalmente entre a comunidade acadêmica e o Movimento Negro.
Para a análise dos enunciados que se apresentam na linguagem apresentada no
jornal em questão, é importante salientar que o uso do termo “moreno” vem carregado
de sentidos, pois para além da própria linguagem, ele se refere a um determinado grupo,
à comunidade afro-descendente de Venâncio Aires. De acordo com Peter Fry (2005),
categorias como “moreno” e “mulato”, vistas como resultado das ideologias da
democracia racial e do branqueamento, são consideradas armas para ocultar a
verdadeira “identidade negra”.
Considerando que a identidade e a diferença são produções sociais e culturais e,
portanto criação lingüística, o que se problematiza, nesse caso, é: como são produzidas
as diferenças que constituem o sujeito negro? Como o conceito da diferença opera no
jornal Folha do Mate? Quais os enunciados, sentidos, linguagens que operam no
discurso do afro-descendente através deste artefato cultural? Qual o sentido dado pelo
Movimento Negro neste processo?
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Tendo essas questões como plano de fundo, a primeira sondagem que realizei
junto ao acervo de jornais da Folha do Mate permitiu visualizar algumas questões
interessantes. A primeira questão que precisava ser respondida era se o afro-descendente
estaria ou não presente na imprensa. Por isso, em edições aleatórias, mas procurando
seguir alguns meses específicos, como janeiro, fevereiro, maio e novembro5, busquei
todas as reportagens em que o negro fosse visibilizado, fotografando-as. Ao olhar para
estas imagens com mais atenção pude perceber as recorrências no uso do termo
“moreno”, como no anuncio que segue:
Figura 1 – Anúncio de jogo entre brancos e negros
Fonte: Folha do Mate, 10 jan. 1975.
Este jogo entre brancos e negros foi por diversas vezes assistido pela
comunidade venâncio-airense. Alguns anos mais tarde, quando o Clube Guarani passou
a aceitar jogadores negros, essa espécie de jogo deixou de existir. Destaco a frase
“acusando sempre a vitória dos morenos”, onde o texto já anuncia que são os
recorrentes ganhadores deste enfrentamento.
5 No mês de janeiro ocorre a festa de São Sebastião Mártir, padroeiro de Venâncio Aires; fevereiro é geralmente o mês do carnaval; 13 de maio é a data da Abolição da Escravatura e 20 de novembro, o dia da Consciência Negra.
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Na edição de agosto de 1981 a Folha do Mate publicou uma reportagem especial
sobre João Generoso dos Santos, personagem que muito se destacou pelo seu trabalho
junto a comunidade de Venâncio Aires, especialmente por ter fundado o “Négo Futebol
Clube”, conhecido como o clube dos negros. A matéria pode ser conferida a seguir:
Figura 2 – Reportagem sobre João Generoso dos Santos
Fonte: Folha do Mate, 21 ago. 1981.
Nesta reportagem é possível perceber diversos enunciados que apontam o
cuidado lingüístico existente ao falar de João Generoso, sujeito negro que aqui está
sendo homenageado. Logo no início do texto, ao caracterizar a vida do personagem, o
jornal nos diz: “Moreno de olhos azuis, passa parte do seu tempo na área de sua
residência, tocando acordeon”. Em destaque aparece a foto de João, ao lado de sua
esposa, com o instrumento musical em mãos. Em seguida, a reportagem realça o fato de
João Generoso falar alemão, dizendo: “Não é muito comum encontrarmos uma pessoa
morena falando o idioma alemão. Entretanto o Sr. João fala perfeitamente, e foi por este
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motivo que veio a Venâncio Aires”. Aqui novamente aparece o uso da palavra
“moreno”, destacando o idioma alemão como algo positivo, pois é característica da
região de colonização alemã. Mais do que isso, o fato do Dr. Generoso falar alemão
pode ser considerado um passaporte para sua inclusão na comunidade venâncio-airense.
Segundo o jornal, “sempre foi uma pessoa muito querida de brancos e morenos e por
isso mesmo todos o respeitavam”.
Sobre o fato de ter fundado o Nego, a Folha do Mate nos relata:
João Generoso, como era de cor, sentia uma insatisfação muito grande a
respeito da separação das raças. O moreno não era benquisto na sociedade e
por isso muitas vezes revoltava-se e havia um desentendimento muito
grande entre eles. Resolveu então unir todos estes morenos em torno de uma
sociedade. (FOLHA DO MATE, 21/08/81).
O uso do termo “moreno” para se referir ao afro-descendente, como pode ser
visto nestas duas reportagens, se faz presente no jornal Folha do Mate até o final dos
anos 80. Na dissertação de mestrado defendida por Jair Luiz Pereira, venâncio-airense
atuante do Movimento Negro do município, o pesquisador apontou para o preconceito
sofrido pela população negra de Venâncio Aires, principalmente a partir das entrevistas
realizadas com afro-descendentes da comunidade local. Segundo Pereira (2005, p. 123),
Em área de colonização teuto-brasileira, que é o caso do município de
Venâncio Aires, tornou-se corrente identificar a população afro-descendente
genericamente como “brasileiro” ou mais especificadamente “moreno”. Em
situações de cordialidade, o teuto-brasileiro, que representa o grosso da
população local, referia-se aos afro-descendentes e luso-brasileiros com o
termo “moreno” ou “brasileiro” na intenção de identificá-la como nacionais.
Já em situações conflituosas, utilizavam o termo “negro” ou “swatz”, para os
primeiros e “plawa” para os segundos, termos estes que carregavam certo
grau de preconceito e discriminação étnica.
Pode-se perceber, através dos enunciados do jornal e do que nos apontou Pereira
(2005), que a atividade do movimento em favor de comportamentos politicamente
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corretos, além de combater o uso de termos marcados negativamente, se caracteriza
também por propor a substituição de tais termos por outros, que seriam “neutros” ou
“objetivos” (POSSENTI, 2004, p. 44-45). Nesse caso, no entanto, o “politicamente
correto” se expressa muito mais através da linguagem e de gestos específicos. O que
está marcado aqui é o sujeito negro, pois a cor não nega a diferença, ela é visível.
Procura-se então contornar esta diferença, como algo que pudesse ser causadora de
conflito, fonte de algum mal, ou “de todo mal” como já nos apontou Skliar (2003).
Ao mesmo tempo em que o uso do termo “moreno” passa a ser substituído pela
palavra “negro”, percebe-se o fortalecimento do Movimento Negro de Venâncio Aires,
anunciando através do jornal sua articulação enquanto grupo político. A primeira vez
que se pôde visualizar uma reportagem sobre este grupo foi no ano de 1985, mais
precisamente no dia 19 de novembro, destacando o dia 20 de Novembro como o “Dia
Nacional da Consciência Negra”. O texto inicia com a seguinte frase: “A data de
amanhã, dia 20 de novembro, é muito importante para os homens de cor, pois faz
lembrar o grande chefe guerreiro negro “Zumbi” [...]”. Em seguida, informa que esta
reflexão está sendo realizada também em Venâncio Aires,
pois no último dia 7 de novembro foi criado neste município um grupo de
conscientização Negra que pretende, entre os seus objetivos, estudar as suas
raízes, fazendo um apanhado geral de sua história, recuperar a cultura e
analisar a realidade do negro hoje (FOLHA DO MATE, 19/11/85).
Depois de 1985, praticamente durante todos os anos o jornal em questão destaca
as datas de 13 de maio e 20 de novembro, ou pelo menos uma delas, como é o caso da
reportagem do ano de 1991, que segue:
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Figura 3 – Movimento Negro não comemora o dia “13 de maio”
Fonte: Folha do Mate, 14 mai. 1991.
É visível o quando a articulação do Movimento Negro foi importante para a
afirmação da identidade dos afro-descendentes de Venâncio Aires. O sucesso e a
continuidade do Clube Nego, criado no ano de 1935, pode ser um exemplo disso.
Segundo Pereira (2005, p. 168),
O clube criado pela população afro-descendente de Venâncio Aires serviu
como um importante fator para a construção e afirmação de identidade
social positiva para a população afro-descendente em área de colonização
teuto-brasileira, que é o caso de Venâncio Aires. A partir da criação do clube
de lazer (esportivo e dançante), os líderes do referido grupo étnico passaram
a selecionar critérios sócio-culturais e políticos que servissem ao propósito
de construção de visibilidade social positiva.
A edição de 13 de maio de 1988, centenário da Abolição da Escravatura, vem
repleta de reportagens sobre o afro-descendente, inclusive no editorial. Nesse caso, fica
claro como a edição do jornal Folha do Mate se posiciona contra o preconceito
existente. A data também é lembrada na reportagem sobre o desfile da Festa Nacional
do Chimarrão – FENACHIM, no festival de dança afro e na personagem de Viviane
Lopes, jovem negra que se destacou em Venâncio Aires pelos diversos títulos de beleza.
Na entrevista, Viviane fala do preconceito que muitas vezes teve que enfrentar por ser
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afro-descendente. Ao tratar desta questão, percebe-se o cuidado do jornal com o uso das
palavras, embora não utilize mais o termo “moreno”.
O que pretendo destacar aqui, a partir desse movimento discursivo que pode ser
percebido nas reportagens do jornal Folha do Mate são as relações de poder que estão
imbricadas sempre que falamos de um determinado grupo social, especialmente em
relação à sua etnicidade. Embora nestes primeiros passos de pesquisa não tenha sido
possível entender como se constitui o sujeito afro-descendente de Venâncio Aires, é
possível apresentar algumas condições de possibilidade para a emergência dos discursos
que circulam e colocá-los em tencionamento, dando vazão aos movimentos discursivos
que emergem através dos enunciados. Segundo Veiga-Neto e Lopes (2007),
Cada comunidade – se quisermos, cada cultura -, tendo criado suas redes,
tanto pode procurar manter determinadas regiões de significados mais
estáveis (fixas), quanto pode alterar outras regiões. Mas, ao promover
alterações, está mexendo, ainda que indiretamente, nas regiões que quer
conservar mais estáveis. Tudo isso se dá segundo lutas (por imposição de
significados e sentidos), estratégias (ofensivas e defensivas) e acordos
(tácitos e explícitos). E não esqueçamos que tudo isso está atravessado por
relações de poder.
Considerações que encaminham para novas problematizações
A chamada teoria pós-estruturalista do currículo direciona o olhar para a
identidade e a diferença, ampliando as perspectivas do campo pedagógico. Na
perspectiva da cultura, a Pedagogia não está apenas nas escolas, mas ela é produzida e
se constitui em outros campos discursivos. A mídia é um exemplo disso.
Utilizar o jornal Folha do Mate como material de pesquisa permite olhar para um campo
discursivo, repleto de relações de poder, que pode apontar para diferentes caminhos, em
especial as regularidades, as descontinuidades, as teias discursivas em torno do sujeito
afro-descendente, que é o objetivo deste trabalho. A partir dos enunciados analisados e
aqui apresentados, é possível inferir que o Movimento Negro exerce em Venâncio Aires
um papel muito importante para a constituição do sujeito negro, mas o que ainda
problematizo é em que medida esse grupo articula-se com os outros grupos étnicos,
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corroborando para a firmação da identidade dos afro-descendentes a partir da diferença,
ou firmando a diferença a partir da identidade negra. Problematizo também os discursos
étnicos e linguísticos que circulam na Folha do Mate para apresentar-se como
politicamente correto, e uma forma de relação destes discursos com o negro que não o
invisibiliza, mas que cria práticas que o colocam em uma posição de tolerância em
relação à outras etnias, como é o caso da alemã.
Mesmo que trabalhos como o de Pereira (2005) tenham apontado o preconceito
de cunho étnico sofrido pelos afro-descendentes em Venâncio Aires, uma característica
do Vale do Rio Pardo, destaco a importância que essa questão merece, a ponto de se
produzirem novas pesquisas, embora sob outros olhares. Assumo, desta forma, a não
neutralidade que esta questão necessita, pois aquilo que produzo, faço a partir de uma
visão de mundo, uma teorização que torna possível visualizar determinadas
problemáticas (VEIGA-NETO, 2007). Segundo Macedo (2006), “a construção do outro
se dá num processo de negociação em que a cultura e a identidade cultural estão em
contínua efervescência, como espaços inscritos e como história de autores sociais dentro
de uma temporalidade”.
Além disso, retorno ao ponto inicial ao afirmar que Venâncio Aires apresenta
algumas peculiaridades, que podem ser percebida em diversos momentos de sua
constituição histórica, como o fato da primeira princesa da FENACHIM, realizada em
1986 ser negra; o destaque da beleza da mulher “de cor”; a importância dada pela
comunidade ao carnaval, a participação de afro-descendentes no cenário político e
educacional, entre outros. Ciente das lacunas com as quais este texto encerra, quero
ainda destacar uma imagem da Folha do Mate, do ano de 1981, que faz transparecer
muito bem o quanto as questões étnico-raciais estão carregadas de sentidos e de relações
que merecem a realização de estudos específicos. A confraternização que se apresenta
na fotografia mostra que, mesmo havendo conflitos em torno da etnicidade, elas são
passiveis de serem amenizadas, desde que possamos olhar para a diferença como aquilo
que constitui nossa identidade social e cultural.
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Figura 4: Confraternização Futebol Juventude de Santa Tecla
Fonte: Folha do Mate, 13 mai. 1981.
Referências
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