monopólio das patentes

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Maio 1996 Revista Adusp 30 “ Que a lucidez e a têmpera se façam presentes em tempos de solerte imposição, rendição sem pudor e traição criminosa.” MONOPÓLIO DAS PATENTES J. W. Bautista Vidal Silvio Ferreira/Abril Imagens

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Monopólio Das Patentes

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Maio 1996 RReevviissttaa Adusp

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“ Que a lucidez e a têmpera se façampresentes em tempos de solerte

imposição, rendição sem pudor etraição criminosa.”

MONOPÓLIO DAS PATENTES

J. W. Bautista Vidal

Silvio Ferreira/Abril Imagens

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OBrasil esteve entre os dez países fun-dadores do Sistema Internacional dePatentes, em 1863, nele permanecen-do até hoje. Sem tradição secular nodomínio técnico-científico-industrial,como a maior parte dos beneficiários

desse sistema, não se explicam as razões dessa prema-tura adesão. Na realidade os marcos iniciais dessasatividades no Brasil somente vieram a ocorrer jáavançado o século XX. A Universidade de São Paulo- USP foi criada em 1934 e a Companhia SiderúrgicaNacional - CSN nos anos 40. Por isso, por mais de umséculo pagamos elevado preço pelo controle externodos monopólios das patentes.

Somente em 1971 o Congresso Nacional aprovouum Código da Propriedade Industrial que regulamen-tou essas concessões, excluindo do sistema os setoresquímico-farmacêutico e de alimentos, cujos privilégiosconcentravam-se nos princípios ativos, além de criarperigosa dependência para a vida dos brasileiros.

O Poder Executivo, ainda no governo Collor, enviouao Congresso projeto de lei que generalizava o mono-pólio das patentes a todos os setores produtivos, redu-zia drasticamente os mecanismos de proteção da socie-dade e das empresas não beneficiadas pelo monopólio,concedia privilégios a estrangeiros com efeitos legais re-troativos - “pipeline” - e atentava contra a vida conce-dendo patentes a microorganismos engenheirados.

Como os microorganismos não são objeto de inven-ções e sim de descobertas na natureza, o seu patentea-mento fere o princípio secular de somente concederpatentes a invenções novas, de utilidade produtiva.

A proposta inicial representou assim um claro en-durecimento da legislação brasileira em benefício dosdetentores dos privilégios. Este espírito não só foimantido, como acrescido ao longo dos cinco anos emque o projeto de lei está no Congresso. Ademais, nes-sa nova legislação desaparece praticamente a figuraoriginal do inventor ou de qualquer direito do pesqui-sador-empregado a benefícios do invento patenteado.Os direitos são dos empregadores, privados ou esta-tais, e incluem o período de tempo posterior à desvin-culação empregatícia.

O privilégio das patentes corresponde à práticamedieval pela qual o Estado concedia monopólio emtroca da produção interna de uma invenção nova.

Trata-se portanto da intervenção do Estado na econo-mia, criando custos adicionais para a sociedade emtroca de duvidosos benefícios - salvo para os premia-dos detentores de patentes. Até a condição essencialda produção interna do produto foi retirada do proje-to de lei e substituída por importações em regime demonopólio externo.

No caso de países de baixa capacidade tecnológica,esta prática resulta em grandes danos, como o de-monstra a experiência secular brasileira, no períodoentre 1863 e 1971.

Nesses países, o objeto do privilégio recai, em suaquase totalidade, em corporações transnacionais deorigem externa.

Nos países industrializados de grande poder tecnoló-gico, as patentes criam internamente privilégio de mo-nopólio para os grupos mais poderosos, além de reser-var mercados, também em regime de monopólio, nosdemais países; portanto, altamente vantajoso para eles.

Não existe nenhuma evidência real de que os mo-nopólios das patentes estimulem invenções ou pro-movam o desenvolvimento; pelo contrário, o congela-mento que provocam sobre determinado espaço pro-dutivo com proteção não justificada àquela invenção,reservando-lhe o mercado, em regime de monopólio,pelo longo período de 20 anos, impede que outras in-venções venham estimular o avanço e o progresso. Narealidade, as graves restrições da reserva de mercadoe do monopólio, no nosso caso de controle externo,impedem, por esse período, qualquer perspectiva deevolução tecnológica.

Trata-se, desse modo, de benefícios para uns pou-cos, em geral corporações transnacionais, resultantesde brutal (no caso dos fracos) intervenção do Estadona economia, com sérias restrições à livre concorrên-cia e ao desenvolvimento tecnológico. Um exemplodisso é um maior avanço daquelas atividades não sub-metidas a patentes, como as técnicas e métodos cirúr-gicos e terapêuticos, por exemplo.

Como afirmado em 1974 pela Corte Suprema dosEUA, no caso entre a Kumanee Oil Co. e a BicronCo.: “A patente é a negação da livre concorrência”.Ademais, pelos custos adicionais que ocasiona para asociedade e para os consumidores, decorrentes do re-gime de monopólio, sua prática corresponde à impo-sição pelo Estado de incalculáveis e arbitrários subsí-

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dios, de difícil comprovação, em benefício de privile-giados produtores que, no caso do Brasil, são, em suaquase totalidade, estrangeiros.

No projeto de lei de patentes, em fase final deaprovação em abril de 1996 na Câmara dos Deputa-dos, após sua aprovação no Senado, o Estado, ao fa-zer valer sua intervenção, penal, no qual o ônus daprova cabe ao suposto infrator.

Evidentemente, subsídios e privilégios dessa natu-reza distorcem a economia, criando odiosos monopó-lios privados, na prática, em benefício de interessesexternos, resultado, do ponto de vista ideológico, deum planejamento central do Estado, porém sem cen-tro e sem plano - ao arbí-trio de corporações pre-miadas, baseado na su-posta vantagem de uminstantâneo conhecimen-to inovador.

Pelas circunstânciaspráticas de nossa realidadeatual, após longo períodode recessão e de políticaseconômicas que a promo-vem, as patentes privile-giam um restrito clube, doqual estão excluídas as em-presas de capital nacional.Trata-se desse modo de enérgica intervenção do Esta-do que objetiva entregar setores inteiros de nossa eco-nomia ao controle externo, especialmente aqueles queenvolvem a segurança de vida dos cidadãos, como ofarmacêutico e o alimentar; ademais, pelo patentea-mento de microorganismos, essa entrega extender-se-áa setores potencialmente estratégicos de peso mundial,como o energético da biomassa, único caminho univer-sal para a substituição do petróleo, em exaustão no pla-neta, e dezenas de outros.

Como a patente cria reserva de mercado monopó-lica durante vinte anos, no nosso caso de controle ex-terno, fica sem objetivo o esforço tecnológico nacio-nal, posto que o mercado a que se destina estará re-servado para os que detêm concessões de patentes.Como justificar então inversões que podem exigir mi-lhões de dólares para um desenvolvimento que temseu uso bloqueado em favor de corporações externas?

No caso específico da indústria farmacêutica, poderepresentar a destruição das poucas de capital nacio-nal que sobraram, além da estagnação tecnológicaque isso implica. As dificuldades que lhe foram im-postas até aqui já fizeram grande estrago. Das seis in-dústrias de capital nacional de antibióticos implanta-das nos anos 70, somente sobrou uma. A nova lei,sem dúvida, promoverá a erradicação dessa atividadeessencial para a vida dos brasileiros, salvo evidente-mente aquelas empresas que sejam toleradas pelosgrupos transnacionais ou seus agentes.

Com a saturação da química de síntese, a indústriafarmacêutica internacional caminha na direção dos

medicamentos e fármacosde origem natural, cujopatrimônio genético bási-co encontra-se nos trópi-cos - cerca de 90%, con-forme avaliação de órgãoespecializado do Conse-lho de Ministros da UniãoEuropéia. A patente dosmicroorganismos visa in-diretamente apoderar-sede modo gratuito desseincalculável patrimônio,em regime de monopólio.

Segundo Noam Cho-msky, professor do MIT, organismo de comércio in-ternacional da Casa Branca, essa legislação de paten-tes, uma vez aprovada, implicará um aumento do flu-xo de recursos financeiros do Sul para o Norte (EUA)da assustadora ordem de 61 bilhões de dólares porano, o que, necessariamente, irá acarretar a trágicaelevação da miséria no País.

Não é necessário detalhar a natureza dos efeitosnegativos que a patente das sementes irá provocarna agricultura brasileira, setor importantíssimo danossa economia; ao contrário do setor industrial, aagricultura está ainda em grande parte em mãos debrasileiros. Com essa legislação, o seu controle pas-sará às mãos de umas poucas corporações transna-cionais de sementes, agrotóxicos e fertilizante e, evi-dentemente, acentuar-se-á a dependência que temde banqueiros e agiotas. As indústrias de álcool, dequeijos, de pães, etc., entrarão em fase de grande

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Essa legislação de patentes, uma vez

aprovada, implicará um aumento

do fluxo de recursos financeiros

do Sul para o Norte (EUA)

da assustadora ordem de

61 bilhões de dólares por ano.

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vulnerabilidade com a patente de microorganismos.Os danos dessa legislação para o País são ilimita-

dos, ainda que seja difícil avaliar com antecipação averdadeira dimensão dos estragos por vir. Um verda-deiro suicídio!

Cerca de 300 instituições universitárias, estudantis,de profissionais liberais, de trabalhadores e associa-ções de indústrias nacionais agregaram-se no Fórumpara a Liberdade do Uso do Conhecimento com o ob-jetivo precípuo de combater os inúmeros aspectos ne-gativos dessa nova lei.

A Igreja Católica, por meio de suas mais altas hie-rarquias, tem rejeitado energicamente o patenteamen-to da vida, e a última encícli-ca papal, “Evangelicum vitaegeneticae”, reage aos “ma-quiavélicos efeitos da enge-nharia genética”e da “cultu-ra da morte”.

O Parlamento Europeu,após cinco anos de debates,recusou pela diferença de80 votos a patente sobre avida. A Suprema Corte daAlemanha opôs-se tambéma tal despropósito.

Tais são as resistênciasmundiais ao patenteamentoda vida que o próprio Congresso americano condi-cionou a aprovação da Rodada Uruguai do GATT,que criou a Organização Mundial do Comércio e asnovas leis de propriedade intelectual, ao acompa-nhamento de uma junta de magistrados. Se em trêsocasiões, a critério da junta, os interesses norte-ame-ricanos forem prejudicados, os EUA retiram-se daOrganização.

Tais são as suspeitas e intranqüilidades que o pa-tenteamento da vida vem provocando, que a própriaOrganização Mundial do Comércio já admite a revi-são desse tema num prazo de quatro anos. Comoadmitir então a aprovação de uma lei quando seuspróprios proponentes já admitem sua revisão emcurto prazo?

Conforme informa a revista científica Nature, emseu número de abril de 1996, entre os anos 1981 e1995 foram concedidas em todo o mundo 1175 paten-

tes para seqüências de DNA humano. Cada uma de-las relativa a um pedaço do código biológico de umser humano. Três quartos delas foram concedidas aempresas privadas, sendo metade japonesas e as res-tantes divididas entre norte-americanas e européias.Aquelas patentes concedidas a instituições públicasestão nos EUA. Dentro do quadro ético das grandesreligiões, é muito difícil saber aonde querem chegarcertos Estados com o patenteamento da vida, o queimplica a mercantilização da vida em regime de mo-nopólio, como são de sua natureza as patentes.

“Corporações transnacionais da área farmacêuticaestão recorrendo a bancos de cultura de microorga-

nismos para patentear aque-les que oferecem potencialcomercial. No AmericanType Culture Collection (-ATCC), no qual estão regis-trados (1994) 258 microor-ganismos isolados no Brasil,15 deles aparecem já paten-teados, conforme a Funda-ção Internacional para oAvanço Rural, instituiçãocanadense, a saber: Patentede J. C. Burton nº 33.845;Patente nº 31.351 da DowChemical, produz enzima

que ajuda na quebra da molécula de glicose; Patentesnº 15.422, 31.906 e 21.393 de Bristol Laboratory,Warner-Lambert/Parke Davis e Lapetit Lab., utiliza-das respectivamente na produção de antibióticos; Pa-tente nº 76.735 de Kaken Pharmaceuticals, utilizadasna produção de substâncias antitumorais, etc. Evi-dentemente, trata-se de usurpação de nossas matri-zes biológicas, impondo criminoso monopólio sobremicroorganismos que fazem parte da biodiversidadedo planeta e cuja apropriação é crime de lesa huma-nidade, em afronta direta ao Tratado de Biodiversi-dade, aprovado por todos os chefes de Estado e degoverno presentes à ECO-92, com exceção do presi-dente George Bush, dos EUA.” (Bautista Vidal, J.W., O esfacelamento da nação, Vozes, 1994).

No regime de monopólio privado, preços e lucrospotenciais não mais dependem de fatores de produ-ção, de custos e riscos, mas do poder de arbítrio do

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No regime de monopólio privado,

preços e lucros potenciais não

mais dependem de fatores de

produção, de custos e riscos, mas

do poder de arbítrio do detentor

do monopólio.

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detentor do monopólio. As conseqüências dessa lógi-ca não são de difícil previsão. Não é por acaso que emsociedades ricas, como os EUA, o regime de monopó-lio decorrente das patentes vem subtraindo parcelascrescentes da população do uso de medicamentos -cerca de 30% - e levando setores inteiros da econo-mia à inviabilidade, como o agrícola devido à patentede sementes.

A afirmação de que o arbítrio nos preços decor-rente do monopólio permite ao beneficiário cobrir oscustos tecnológicos da inovação é falsa. Nada impedeque esses custos sejam justamente cobertos pelos pre-ços de uma saudável livre concorrência. Isso é verda-de em todos os outros setores da produção em quenão existe patente do produto final - inclusive setoresde alta competitividade e de rápida obsolência tecno-lógica, como os setores aeronáutico e eletrônico, porexemplo. Por que não é possível, então, a mesma sau-dável dinâmica do setor farmacêutico? Por que paraeste privilegiado setor é necessário o monopólio? Evi-dentemente, por tratar-se de produtos dos quais de-pende a vida das pessoas, o seu controle monopólicotem outras implicações muito mais graves, como o fa-to de poderem ser usados como armas de guerra.Qual é o país que pode resistir algumas semanas comfalta de insulina, por exemplo? Foi o que aconteceucom a Argentina na Guerra das Malvinas: antibióticose insulina foram usados como arma.

Todos os ressarcimentos justos que decorrem deinvestimentos tecnológicos, bem como a garantia dosigilo dos conhecimentos inovadores envolvidos naprodução, são normalmente objeto de cláusulas con-tratuais universalmente adotadas nos contratos deuso de pacotes tecnológicos. Para que então a necessi-dade do monopólio e da reserva de mercado impostospelas patentes, em indevida intervenção estatal? Evi-dentemente é para fugir da livre concorrência o Esta-do impondo à sociedade e ao cidadão um absurdomonopólio privado e tudo o que ele implica. Ade-

mais, visa também impedir que os países não hegemô-nicos, especialmente aqueles com grandes mercadospotenciais, possam desenvolver-se e, um dia, ganhar aindispensável autonomia tecnológica nesse crucial se-tor que envolve a vida de seus cidadãos.

Se existem portanto cláusulas de sigilo tão rigoro-samente especificadas nos contratos de uso tecnoló-gico, como falar-se então em pirataria? Por que a pi-rataria é exclusiva do setor farmacêutico? Ou estãoexaltando e promovendo, pelo poder de intervençãodo Estado, um absurdo sistema econômico constituí-do exclusivamente de monopólios privados? Nessesistema, qualquer concorrente potencial passa a ser,por definição, um pirata... Por que a pirataria é res-trita aos nacionais, envolvendo coação do exterior so-bre o Estado nacional? Por que empresas que cum-prem as leis do país, e que seguem as regras interna-cionais na área de patentes, são pública e impune-mente acusadas de piratas? Circunstâncias de similargravidade levaram o Congresso argentino a conside-rar o embaixador norte-americano persona non gratapor ter emitido esse tipo de falso e irresponsável jul-gamento sobre a legislação daquele país. O que sepoderia dizer da intenção formalizada de apoderar-se, a troco de nada, de nosso portentoso patrimôniogenético? Classificar essa operação de banditismo ereal pirataria seria o mínimo. O que é de lamentar,posto que fruto de traição, é que esse projeto de lei éimposto pelo Executivo por meio de pressões de todaordem e é aceito por um Congresso venal, que nãorepresenta os interesses mais cruciais da sociedadebrasileira. Ademais, é um atentado à vida, ainda con-siderada sagrada pelo espírito religioso de nosso po-vo e uma profunda ilegitimidade legal. Sem dúvidainconstitucional e criminosa, no que comprometetambém o Poder Judiciário.

O Acordo de Paris, e todos seus ajustes posterio-res, garantiram aos países o direito soberano de esco-lher os setores em que se concederia o privilégio das

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A afirmação que o arbítrio nos preços decorrente do monopólio permite ao

beneficiado cobrir os custos tecnológicos da inovação é falsa. Nada impede que esses

custos sejam justamente cobertos pelos preços de uma saudável livre concorrência.

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patentes. Talvez por isso o sistema tenha durado tan-to. Como então classificar de piratas aqueles paísesque não reconhecem patentes em determinados seto-res? Cada um, naturalmente, ajusta a lei de patentes asuas necessidades e interesses. Japão, Suíça e Itália,por exemplo, só adotaram patentes farmacêuticas jáavançada a década de 70, mais de um século após acriação desse sistema internacional; o Japão, quandoas indústrias japonesas já supriam 80% da demandanacional, e a Suíça, quando ocupava a posição privile-giada de terceira potência farmacêutica mundial. Co-mo é possível, por isso, acusá-los de praticarem pira-taria! Valesse esse critério, poder-se-ia acusar os EUAde serem uma naçãopirata durante todo oséculo XIX. Só quan-do suas indústrias sedesenvolveram e elesse tornaram impor-tantes exportadores,passaram a interes-sar-se por uma rigo-rosa lei de proteçãode sua criatividade ede eliminação daconcorrência externa.A Itália e a Espanha,por exemplo, emborarepresentem situa-ções muito distintasdaquelas brasileiras,passaram a adotarpatentes farmacêuticas dentro de uma ampla negocia-ção de benefícios compensatórios correspondentes asuas respectivas entradas na ex-Comunidade Euro-péia, hoje União Européia. A China e a Índia, compolíticas nacionais consistentes de defesa de seus legí-timos interesses, resistem bravamente, criando meiosde defesa impensáveis pelos legislativos brasileiros.

A queixa das corporações farmacêuticas norte-americanas de que perdem dinheiro naqueles paísesonde não podem gozar do privilégio do monopóliopara seus produtos e processos também não é verda-deira. Não se pode perder o que não se tem. Na piordas hipóteses, deixam de ganhar o que não lhes é le-galmente devido. Na realidade, queixam-se de não

deter o monopólio por concessão de Estado inter-ventor que elimine qualquer tipo de competição elhes garanta polpudos subsídios e poder de arbítrioinaceitável. Para conquistar a privilegiada situação,queixam-se de fantásticas falsas perdas, que a im-prensa venal brasileira divulga como verdades, en-ganando a população.

A indústria farmacêutica de capital nacional de-senvolveu-se e dominou 85% de nosso mercado atéa Segunda Guerra Mundial, exportando vacinas emedicamentos para os EUA e a Europa. Nossas in-dústrias, todas privadas, dispunham de centros dedesenvolvimento tecnológico próprios, como Vital

Brasil e outros. Como modelo de cresci-mento econômicodepende das políticasde atração do capitalestrangeiro, as indús-trias brasileiras fo-ram inicialmente in-viabilizadas e depoiscompradas por cor-porações estrangei-ras, como descreve orelatório preparadopelo senador FrankChurch, do Congres-so dos EUA, sobre opapel dessas corpo-rações norte-ameri-canas no Brasil e no

México. Hoje, a participação dessas empresas de ca-pital nacional mal alcança 13 do mercado de medi-camentos e é quase zero no dos fármacos. Quem,de fato, está exercendo pirataria no mercado brasi-leiro de remédios? Com a nova lei de patentes, nemessas sobreviverão! Nessas condições, resta questio-nar duramente o papel do Estado (Executivo, Legis-lativo e Judiciário) como interventor contrário aosinteresses nacionais.

Nos países industrializados, as licenças de exclu-sividade das patentes, concedidas por outras razões,e as dinâmicas de fixação de preços não resultam,como vimos, do livre mercado, mas das expectativasdos protegidos pelo monopólio. As conseqüências

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negativas dessa concessão do Estado no que se ref-ere aos preços ao consumidor poderia ser contra-posta com uma regulação dos mesmos. Os EUA,por exemplo, que mantêm um rigoroso sistema depatentes e, ao contrário da maioria dos países doocidente, não exercem controle sobre os preços,têm o mais elevado custo farmacêutico para a popu-lação que qualquer outro país na história. Hoje,30% da população americana não têm acesso a me-dicamentos.

As patentes vêm a se constituir, portanto, nestescasos, em abusivo sistema de privilégios, mantidos pe-lo Estado, em garantia da falta de desejo das corpora-ções farmacêuticas de competirem livremente, au-mentando continuamente seu poder, por meio de vas-to subsídio retirado indiscriminadamente da socieda-de, graças ao regime de monopólio. Os cursos poten-ciais de um sistema de patentes sem restrições sãoportanto uma ameaça à sociedade.

As conseqüências de tudo isto são, como vimos,ainda mais graves no caso brasileiro, porque em suaquase totalidade o Estado privilegia interesses exter-nos ao País. A patente estrangeira extensiva e indis-criminada é insuportável para a estrutura produtiva epara a nação. Nenhuma sociedade resiste por longoprazo a tal vulnerabilidade.

“Enquanto o sistema de patentes tem deformadoseriamente o mercado farmacêutico dos EUA - dizMichael Davis, professor de direito da UniversidadeEstadual de Cleveland -, a aplicação de uma forteproteção patentária em países menos desenvolvidosresultará em desastre.” E acrescenta: “Aqueles paísesque adotarem as políticas de patentes dos mais desen-volvidos podem ter a certeza de que sairão perdendo,em todos os sentidos”.

Assim, a adoção de regras internacionais de pa-dronização ou, como são chamadas, de “harmoniza-ção”, como as do Acordo TRIPS da Rodada Uruguaido GATT, que criou a Organização Mundial de Co-mércio, conduzirão necessariamente ao congelamen-to do atual desequilíbrio mundial entre as nações he-gemônicas e as periféricas, retirando destas últimas apossibilidade de defesa pela concentração monopóli-ca do saber mundial nas primeiras. “Harmonização”,no caso, serve como designação dessa operação im-positiva, subjugatória. Quando um país mais desen-

volvido insiste em que suas leis de propriedade in-dustrial - que são apropriadas apenas para um eleva-do nível de desenvolvimento industrial - são adequa-das para países menos desenvolvidos, o que está de-sejando não é outra coisa senão subjugá-los a umaforma sofisticada de imperialismo, como esclarece oprofessor Michael Davis.

Na medida em que a produção da riqueza mundialdepende cada vez mais do trabalho intelectual, o con-trole do que resulta desse poder torna-se o grandeinstrumento de dominação.

A lei das patentes é a institucionalização do pro-cesso que congela o status quo do desequilíbrio depoder atual, que se acentua por falta de instrumen-tos de resistência. Corresponde em seus efeitos, pa-ra o futuro, ao papel que teve o Tratado de Me-thuen, em 1703, imposto pela Inglaterra a Portugal,e que nos afastou da Primeira e da Segunda Revolu-ção Industrial e nos transformou em colônia de umacolônia.

O referido projeto de lei, já aprovado pelo Senadode modo vergonhoso, encontra-se nesta data de voltaà Câmara dos Deputados para ser votado em regimede urgência urgentíssima.

Esperamos que, assim como até aqui um dedicadogrupo de brasileiros conseguiu retardar por cincoanos a aprovação desse projeto, apesar de compro-missos de pronta aprovação, assumidos pelo entãopresidente Collor com o presidente Bush, ainda antesde assumir a presidência da República, essa resistên-cia, associada sempre ao debate sério e digno de bra-sileiros com compromissos com seus filhos e com oPaís, venha a impedir que tal crime de “lesa humani-dade” seja consumado.

Os docentes da Universidade de São Paulo e dasdemais universidades brasileira têm, certamente, nes-se esforço de dignidade profissional, um papel impor-tantíssimo a desempenhar.

J. W. Bautista Vidal foi secretário de Tecnologia Indus-trial do Ministério da Indústria e do Comércio, e profes-sor da Universidade de Brasília.

Para maior aprofundamento de inúmeros aspectos da vida nacional,impossíveis de abordadar neste ensaio, relacionados com a famige-rada “lei das patentes”, recomendo a leitura do capítulo III do nossolivro O Esfacelamento da Nação, Editora Vozes, de dezembro de1994, sob o título “Lei das Patentes: A chantagem do século”, da pá-gina 151 à 216.

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