monografia alexandre

Upload: alexandre-ramos

Post on 11-Jul-2015

336 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FUNDAO UNIVERSITRIA IBEROAMERICANA CURSO DE ESPECIALIZAO EM GESTO DE RECURSOS HDRICOS

Os Impactos Socioambientais da Poltica de Racionamento de gua em Assentamentos Precrios do Recife O Caso de Caranguejo-Tabaiares

ALEXANDRE SVIO PEREIRA RAMOS

Florianpolis, Santa Catarina. 2006

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FUNDAO UNIVERSITRIA IBEROAMERICANA CURSO DE ESPECIALIZAO EM GESTO DE RECURSOS HDRICOS

Os Impactos Socioambientais da Poltica de Racionamento de gua em Assentamentos Precrios do Recife O Caso de Caranguejo-Tabaiares

ALEXANDRE SVIO PEREIRA RAMOS

Monografia submetida ao Departamento de Engenharia Sanitria e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obteno do Grau de Especialista em Gesto de Recursos Hdricos. Orientadora: Professora Doutora Zuleica Maria Patrcio

Florianpolis, Santa Catarina. 2006

3

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FUNDAO UNIVERSITRIA IBEROAMERICANA CURSO DE ESPECIALIZAO EM GESTO DE RECURSOS HDRICOS

Os Impactos Socioambientais da Poltica de Racionamento de gua em Assentamentos Precrios do Recife O Caso de Caranguejo-TabaiaresALEXANDRE SVIO PEREIRA RAMOSEsta monografia foi aprovada pelo Departamento de Engenharia Sanitria e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obteno do Grau de Especialista em Gesto de Recursos Hdricos.

_______________________ Cesar Augusto Pompeo Coordenador do Curso Banca Examinadora

_______________________ Profa Dra. Zuleica Maria Patrcio Orientadora _______________________

_______________________

Florianpolis, Santa Catarina. 2006

4

DEDICATRIA

Para Seu Ramos e Dona Ziu, Neguinha, Jade, Pedro e Miguel, A comunidade de Campo Tabaiares.

5

AGRADECIMENTOS

Gostaria, inicialmente, de agradecer a Universidade Federal de Santa Catarina, a Universidade Federal de Alagoas e a Fundao Universitria Iberoamericana, pelo interesse e por abrirem esta possibilidade de formao que junta gente de todo Nordeste para pensar a realidade de nossas guas. Agradeo a oportunidade de ter sido selecionado e participado desta turma, ao Ncleo de Estudos da gua do Departamento de Engenharia Sanitria e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina, por ter tido o anseio, a iniciativa e a aplicao necessria ao bom andamento do Curso. Meus agradecimentos a Profa. Dra. Zuleica Maria Patrcio, por reascender em mim a possibilidade de ser pesquisador, por instigar e inspirar a preocupao com o Cuidado Holstico-ecolgico e por levantar a vontade de continuar no momento mais difcil. Tambm a Profa. Elizabeth de Siervi (Doutora de ltima hora), Prof. Dr. Cesar Augusto Pompeo, Prof MSC Ciro Loureiro Rocha e Prof. Dr. Vladimir Caramori, por suas dedicaes, pacincias, flexibilidades e humanidades, extremamente importantes para continuarmos trabalhando. Sou muito grato a Luiz Cunha, Hermelinda Rocha, Patrcia Amorim e Nara Corine, pelo companheirismo, participao, apoio e contribuio ao longo destes quase 02 anos de convivncia. Bem como a todas as alunas e alunos do curso, grandes achados, pela troca de experincias, conhecimentos e vivncias, bem como a continuidade de vnculos de amizade futuros. Meus agradecimentos francos a Lvia Miranda, doutoranda, companheira de sala e trabalho, quebra galho nas horas mais urgentes e difceis, amiga de planto. Tambm a FASE Pernambuco e sua equipe, pela possibilidade de trabalhar como educador, de debater e desvendar a problemtica do racionamento com vrias lideranas comunitrias, de ter encontrado as comunidades de Caranguejo-tabaiares e pela abertura para me dedicar a esta pesquisa.

6

Agradeo especialmente a Nice e Reginaldo, lideranas comunitrias que no pouparam empenho em apoiar e contribuir com a pesquisa, literalmente abrindo portas na comunidade e possibilitando o melhor andamento do levantamento de campo, pela energia positiva, animao e dilogo sincero. Gostaria ainda de agradecer a Dona Zez Bolacho e a Danarino, pela receptividade e a todas as lideranas de Caranguejo-tabaiares, pessoas combativas, atuantes e, antes de tudo, fortes para conviver e resistir ao processo de acomodao, to comum em nosso tempo. Enfim, gostaria de agradecer imensamente a todas as pessoas que participaram das entrevistas e colaboraram de alguma forma com a construo deste trabalho, a contribuio de todas e todos foi fundamental.

7

O Curso de Especializao em Gesto de Recursos Hdricos, Ps-Graduao Lato Sensu, foi realizado por intermdio de apoio financeiro concedido pelo Fundo Setorial de Recursos Hdricos, via CNPq, Edital MCT/CNPq/CT HIDRO N 03/2003, tendo sido aprovado pela Cmara de Ps-Graduao da Universidade Federal de Santa Catarina, segundo a resoluo nmero 090/CPG/2004, de 9 de dezembro de 2004.

O Curso de Especializao em Gesto de Recursos Hdricos, Ps-Graduao Lato Sensu, foi apoiado pela Fundao de Amparo a Pesquisa de Alagoas, FAPEAL.

O Curso de Especializao em Gesto de Recursos Hdricos, Ps-Graduao Lato Sensu, foi realizado com suporte tcnico de Campus Virtual e Tutoria a distncia da Fundao Universitria Iberoamericana, FUNIBER.

8

EPGRAFE

A gente J nasce sabendo gua e ar, nunca vo faltar. Isso a gente j nasce sabendo. o bsico, o comeo, o indispensvel, o sine qua non da vida. gua e ar, ar e gua. Tudo o mais difcil, tudo o mais uma conquista. O prprio parto j um parto. Tudo o mais se negocia. Alimento? At o leite do peito da me envolve uma negociao. Voc chora, ela d. Caminhar um empreendimento. Como caminhar complicado! Voc no sabe se conseguir, uma perna depois da outra ou ser o contrrio? Falar, ento, nem se fala. Falar uma pedreira. Depois vem todas as tratativas da infncia, quando voc descobre que o mundo est cheio de delcias, mas que preciso regatear. Quando voc descobre que a vida boa, mas no fcil. E, acima de tudo, no uma pechincha. Tudo tem seu custo, tudo uma conquista, tudo possivelmente precrio, tudo pode faltar. Menos a gua e o ar. Acontea o que acontecer, gua e ar nunca lhe faltaro. gua e ar no entram nas negociaes. gua e ar so para sempre, nem pense nisso. At que um dia lhe dizem o seguinte: a gua entrou para o rol das coisas complicadas. gua agora uma commodity, que precariedade em ingls. E de repente, voc se pergunta: isto que eu estou sentindo falta de ar? O ar tambm?! Luiz Fernando Verssimo (Verssimo, 2002:18-19)

9

RESUMOH duas dcadas a Companhia Pernambucana de Saneamento (COMPESA) implementou medidas de racionamento no abastecimento d'gua para os 14 municpios da Regio Metropolitana do Recife (RMR). Tal procedimento acontece ininterruptamente desde 1983 e est consolidado como uma poltica pblica de abastecimento, sendo assim incorporado na cultura e no cotidiano da populao. Este trabalho objetiva estudar o processo de implantao e consolidao do racionamento como elemento de uma poltica pblica estrutural, medindo seu impacto socioambiental em assentamentos precrios, a partir de um estudo de caso. Uma breve reviso nas prticas executadas nas dcadas de setenta (anterior ao racionamento) e oitenta (perodo de implantao) apontam a responsabilidade ao poder pblico estadual, concessionrio do servio, sendo o processo concebido pela COMPESA e notado o inexistente campo de atuao e participao do conjunto da sociedade atingida. Como resultado, no ambiente urbano, percebe-se a adequao e reformulao das medidas domiciliares s necessidades determinadas pelo gestor, fator de impacto socioambiental e degradao da vida social elementos que respondem falta de participao e controle dos usurios em seu processo de gesto. Procura-se buscar olhar o impacto socioambiental a partir de pesquisa qualitativa lastreada pelo paradigma holstico-ecolgico e se prope contribuir com elementos que justifiquem o aprimoramento de polticas pblicas, a formulao de subsdios mais concretos sobre os processos de gesto e direito cidadania dos usurios. Tambm com elementos para a reflexo junto a rgos como a COMPESA, analisando a importncia de suas contribuies para a melhoria da qualidade de vida na cidade.

Palavras Chave: 1. Racionamento de gua; 2. impacto socioambiental; 3. poltica de abastecimento de gua.

10

ABSTRACTOver twenty years ago the Pernambuco Sanitary Company (COMPESA) introduced rationing of water supply in the 14 municipalities of the Recife Metropolitan Region (RMR). This procedure has been functioning uninterruptedly since 1983 and has been consolidated as a public supply policy, thus becoming part of the culture and day-to-day of the population. This work aims at studying the process of implantation and consolidation of rationing as an element of structural public policy, measuring its socioenvironmental impact on some precarious settlements, based on case studies. A brief review of the practices carried out in the 70s (previous to the rationing) and the 80s (the period of the implantation) shows that the responsibility for the service lay with the state public authorities, with COMPESA as having conceived the process and the notable absence of any participation in this field on the part of and sector of society. As a consequence, in the urban ambient, one can perceive the adaptation and reformulation of domestic measures to meet the needs thus created by the authorities, which have had a socioenvironmental and debasing impact on social life. This has arisen as a result of the lack of participation and control on the part of the users in the management process. The study seeks to look at the socioenvironmental impact based on a qualitative research weighted by a holistic/ecological paradigm and proposes to present elements that will justify the refining of public policies, the formulation of more concrete subsidies regarding the processes of management and the right to citizenship of the users. Also, with elements for reflection alongside bodies like COMPESA, analyzing the importance of their contribution in improving the quality of life in the city.

Key Words: 1. Rationing; 2. socioenvironmental impact; 3. policy as of water supply.

11

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ASA - Agente de Sade Ambiental BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CCO - Coordenao Controle Operacional CGO Coordenao de Gesto Operacional COHAB - Companhia de Habitao Popular de Pernambuco COMPESA Companhia Pernambucana de Saneamento ETA Estao de tratamento de guas FASE Federao de rgos para a Assistncia Social e Educacional GERE Grupo de Setorizao do Recife IDH ndice de Desenvolvimento Humano IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica LUOS Lei de Uso e Ocupao do Solo PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil PLANASA Plano Nacional de Saneamento PMSS Programa de Modernizao do Setor de Saneamento PNUD - Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PSF - Programa de Sade da Famlia RMR Regio Metropolitana do Recife SANEAR Autarquia Municipal de Saneamento SISGUA - Sistema de Informao de Vigilncia da Qualidade da gua para Consumo Humano UNOSP Escritrio de Servios para as Naes Unidas URB/Recife Empresa de Urbanizao do Recife ZEIS Zona Especial de Interesse Social

12

SUMRIO Introduo......................................................................................................................... 01 Captulo 01 A problemtica do racionamento no abastecimento de gua do Recife 1.1 Origens do racionamento..................................................................................... 05 1.2 Consolidao como poltica pblica.................................................................... 07 1.3 Situao atual e disponibilidade de gua no Recife............................................. 11 1.4 Condies tcnicas e polticas para o enfrentamento do problema..................... 15 Captulo 02 Trajetria metodolgica 2.1 Tipo de estudo......................................................................................................... 20 2.2 Entrando no campo................................................................................................. 20 2.3 Ficando no campo................................................................................................... 24 2.4 Saindo do campo..................................................................................................... 25 Captulo 03 O ambiente de estudo: a Comunidade de Caranguejo-Tabaiares 3.1 Aspectos fsicos ...................................................................................................... 27 3.2 Aspectos socioeconmicos..................................................................................... 29 3.3 Infraestrutura e a sade da comunidade................................................................. 30 Captulo 04 Resultados: Os impactos socioambientais do racionamento 4.1 Conceito de impactos socioambientais................................................................... 33 4.2 Resultados encontrados........................................................................................... 36 4.2.1 Situao e a percepo dos atingidos................................................................... 36 4.2.2 Percepo de outros atores................................................................................... 51 4.2.3 Impactos encontrados.......................................................................................... 55 4.2.4 Situaes de disputa e conflito............................................................................. 70 Consideraes finais Anlise dos impactos socioambientais do racionamento............................................... 71 Referncias Bibliogrficas................................................................................................ 75 Apndice............................................................................................................................ 78

1

INTRODUO H duas dcadas a Companhia Pernambucana de Saneamento (COMPESA) implementou medidas de racionamento no abastecimento de gua para os 14 municpios da Regio Metropolitana do Recife (RMR). Tal procedimento acontece ininterruptamente desde 1983 (COMPESA, 2003) e est consolidado como uma poltica pblica de abastecimento, sendo assim incorporado na cultura e no cotidiano da populao. Este trabalho possibilita o estudo do processo de implantao e consolidao do racionamento como elemento de uma poltica pblica estrutural, a partir de um estudo de caso. Uma breve reviso nas prticas executadas nas dcadas de setenta (anterior ao racionamento) e oitenta (perodo de implantao) apontam a responsabilidade ao poder pblico estadual, concessionrio do servio, sendo o processo concebido pela COMPESA e notado o inexistente campo de participao do conjunto da sociedade atingida, refletindo numahistrica dificuldade de gerar um amplo movimento de opinio do conjunto da cidadania face s caractersticas universais de baixa qualidade das redes de saneamento bsico. Isso levou a que o debate se circunscrevesse a setores tcnicos, profissionalmente propensos a pensar a partir das condies de oferta, valorizando essencialmente a questo da universalidade, e pouco atentos s caractersticas diferenciadas da demanda, o que permitiria enfocar a questo da eqidade (BITOUN, 2002: 09).

O processo de gesto dos recursos hdricos e a ausncia da participao da sociedade, resultante da medida foram determinados pelo referido rgo. Como resultado, no ambiente urbano, percebe-se a adequao e reformulao das medidas familiares s necessidades determinadas pelo gestor, fator de impacto e degradao da vida social elementos que respondem falta de participao e controle dos usurios em seu processo de gesto. Bitoun justape que:Face morosidade das polticas pblicas de saneamento bsico, todas as famlias recifenses desenvolvem estratgias para resolver individualmente a questo que as afeta. Quem tem mais condies financeiras, se protege mais facilmente; quem no as tem procura, ao longo da vida, equipar seu domiclio de canalizaes internas de abastecimento dgua, de caixa dgua, de fossas ou cava valas para evacuar o esgoto. Esforos permanentes que se verificam em comunidades de baixa renda, transformadas em milhares de canteiros de obras domsticas, conduzidas ao sabor das oportunidades e, obviamente sem nenhuma coordenao. Compelidos a usar estratgias individuais, os recifenses correm o risco de se tornar cada vez mais estranhos uns aos outros, cada vez mais desiguais, cada vez menos solidrios. E, conseqentemente, cada vez menos capazes de formular um projeto coletivo de recuperao ambiental, sanitria e de habitabilidade da cidade (BITOUN, 2004: 267).

Associam-se a estes fatores, a crise urbana resultante do aumento da populao e a ausncia de poltica estruturadora de gesto dos recursos hdricos e abastecimento que

2

antecipassem a inconstncia de precipitaes pluviomtricas, fato que agravou a situao em determinadas pocas. Outro fator relevante a inexistncia de um programa de avaliao da implantao, assim como o acompanhamento na consolidao da poltica de racionamento. Neste contexto de reflexo em que se dirige o interesse do estudo, quais so os impactos resultantes da implementao do racionamento de gua? Como foi o processo de planejamento, as formas de interao e dificuldades da sociedade quando da implantao e consolidao da medida? Quais os resultados alcanados e os impactos das alternativas criadas pelos usurios? Ao longo de duas dcadas, a Regio Metropolitana do Recife vive um racionamento no abastecimento de gua de no mnimo um dia com gua e um dia sem gua (em algumas reas e perodos, at 72 horas sem gua para 06 horas com gua). Apesar da oferta de gua bruta disponvel permitir a quantidade necessria, as cidades no possuem infra-estrutura para receb-la, assim este corte programado se estruturou como uma poltica pblica como apresenta Parente:Grande parte da gua que cai do cu desperdiada em todo o Estado. Audes assoreados sangram rpido, jogando o precioso lquido fora. Barragens que conseguem acumular muita gua, como o caso de Pirapama, permanecem sem nenhuma utilidade porque faltam adutoras e estaes elevatrias para levar o produto at as casas. A populao do Grande Recife morre de sede em frente ao aude por falta de um sistema de distribuio. Por esse motivo, sempre teremos racionamento (PARENTE, 2002: 02).

Destaca-se a ausncia de aes e projetos que minimizem tal efeito sobre a populao, bem como de campanhas educativas e aes pelo uso responsvel dos recursos hdricos. Desta forma, importante enfatizar que a reao da sociedade aconteceu a partir da adequao particular a tal poltica, sem organizao social que reivindicasse a resoluo do problema, a participao e o controle social na gesto dos recursos hdricos e abastecimento dgua. Em conseqncia a todas as informaes at agora mencionadas, a pesquisa tem por objetivo analisar os impactos socioambientais dos usurios da COMPESA em um assentamento precrio do Recife, em virtude da implementao de medidas de racionamento no abastecimento d'gua na Regio Metropolitana do Recife. Para tanto, faz-se necessria caracterizao do processo de implantao e consolidao da poltica de racionamento para conter a escassez de gua, haja vista que no foi encontrada

3

documentao sobre o assunto. Tambm necessrio identificar elementos de adequao dos usurios ao cotidiano do racionamento e dimensionar os impactos socioambientais na vida das pessoas. A monografia faz-se necessria, uma vez que, aps vinte e quatro anos, estamos no limite j alcanado por este procedimento de racionamento, sendo realizada a partir da anlise crtica do processo de implantao, consolidao e manuteno destas medidas, enfatizando seus impactos no componente socioambiental. Assim, a proposta justifica-se tendo em vista a necessidade de aprofundar o conhecimento e anlise sobre a apropriao dos usurios neste processo, a fim de conhecer as solues desenvolvidas pelos gestores e pela populao, uma vez que, ao longo deste perodo de racionamento, no foram realizados ou divulgados estudos que avaliassem seus impactos em qualquer aspecto. Esta pesquisa visa contribuir com elementos que justifiquem o aprimoramento de polticas pblicas, a formulao de subsdios mais concretos sobre os processos de gesto e direito cidadania dos usurios, espera-se ainda mensurar a efetividade de uma poltica e fomentar estratgias de exigibilidade da sociedade pelo direito gua. Tambm com elementos para a reflexo junto a rgos como a COMPESA, analisando a importncia de suas contribuies para a melhoria da qualidade de vida na cidade. Diante do exposto, a monografia est estruturada em quatro captulos e consideraes finais. O primeiro captulo destaca a problemtica do racionamento no abastecimento de gua do Recife, dirigindo-se contextualizao e ao entendimento sobre a questo. Para a compreenso sobre o assunto, este captulo versa sobre as origens do racionamento e sua consolidao como poltica pblica, tambm trata dos caminhos para sua soluo, destacando a situao atual e disponibilidade de gua no Recife e as condies tcnicas e polticas para o enfrentamento do problema. No captulo dois, apresentada a trajetria metodolgica da pesquisa, abordando os caminhos percorridos da pesquisa qualitativa, seus aspectos ticos, seu processo de construo, a preparao para ida ao campo, bem como o trabalho de campo. Neste captulo, destacada a afinidade da pesquisa com o Referencial do Cuidado HolsticoEcolgico como mtodo de entende que a qualidade das relaes humanas no cotidiano com o seu meio interfere na qualidade de vida coletiva e individual, instiga e fortalece a

4

pesquisa participante, buscando, alm da produo de conhecimentos tericos, contribuir com a transformao da realidade atravs de um processo educativo. O terceiro captulo situa o ambiente de estudo: a Comunidade de CaranguejoTabaiares, assentamento espontneo e popular que apresenta precariedades estruturais nos aspectos fsicos, socioeconmicos, na infraestrutura e na sade da comunidade. Neste, apresentada uma caracterizao socioambiental da comunidade com destaque a infraestrutura existente e o abastecimento de gua em particular. O captulo quatro busca organizar a percepo sobre os impactos socioambientais do racionamento, fundamentando um conceito de impacto socioambiental e suas relaes com o comportamento humano. Este captulo apresenta os resultados encontrados, a situao e a percepo do racionamento pelos atingidos com a medida, a percepo de outros atores, os impactos encontrados e as situaes de disputa e conflito. Nas consideraes finais, so construdas as anlises dos resultados e a perspectivas de outros estudos complementares que ampliem a anlise dos impactos socioambientais do sistema de racionamento.

5

CAPTULO 1 A PROBLEMTICA DO RACIONAMENTO NO ABASTECIMENTO DE GUA DO RECIFE 1.1 Origens do racionamento Observando-se as transformaes da paisagem brasileira a partir do milagre econmico, percebemos que seu perfil foi bastante alterado: a maioria da populao do pas passa a ocupar as cidades. Segundo Ribeiro o urbano tornou-se um problema, definido pelo crescimento excessivo da populao das grandes cidades (RIBEIRO, 1997: 27). Enquanto que Figueiredo Ferraz destaca que o formato de nossa urbanizao o maior e um dos mais srios desafios da sociedade e, para a soluo, necessria coragem, determinao, atitudes e aes imediatas. Monstros urbanos j surgiram, outros na eminncia de surgir e todos acabaro certamente com a maior parcela do seu trabalho, tal o montante para sua sustentao (FIGUEIREDO FERRAZ, 1976: 09). Com este crescimento destaca-se a impossibilidade de ampliao da oferta de servios urbanos no ritmo ditado pela expanso das cidades, mesmo assim novas ligaes continuaram ampliando a rede de abastecimento de gua sem associao ao aumento do sistema de captao, tratamento e aduo. Dias adiciona que:Um acrscimo populacional, sem planejamento, em qualquer parte do mundo, representaria a gerao de problemas graves na estrutura e dinmica de uma cidade, comprometendo a qualidade e at mesmo a operacionalizao de seus servios essenciais transporte, educao, segurana, lazer, sade, saneamento e preservao por sobrecargas. Desta forma, so frustradas todas as tentativas de polticas de gesto ambiental urbana, arrebentadas que so pelos nmeros explosivos que inviabilizam qualquer planejamento, notadamente pela grave e crnica limitao de recursos financeiros destinados ampliao e melhoria dos servios essenciais das cidades, quadro comum na Amrica Latina (DIAS, 2002: 123).

Ao resgatar as origens do racionamento no Recife, dois momentos merecem destaque: a criao do PLANASA (Plano Nacional de Saneamento) e a fuso de 03 empresas de saneamento em Pernambuco, que faz surgir a COMPESA. Em 1971, o Governo Federal constitui o PLANASA como estratgia para desenvolver os servios de saneamento bsico a partir modelo centralizador. No momento inicial, o Plano prope a eliminao do dficit no abastecimento de gua num perodo de 10 anos, cuja participao dos municpios estava condicionada a concesso dos servios de saneamento subsidiria estadual (VASCONCELOS, 1998: 26). Surge assim a COMPESA, em 1974 priorizando as aes de abastecimento de gua, com a implantao de grandes sistemas de produo de gua (Tapacur, Botafogo e Suape), principais sistemas implantados at os dias atuais.

6

Vasconcelos acrescenta que neste momento a COMPESA era basicamente uma empresa de construo, priorizando grandes obras de captao, tratamento e aduo e se despreocupando com os aspectos de operao, medio, faturamento, cobrana e relao com os usurios (VASCONCELOS, 1998: 38). Neste momento, a Companhia constri o Plano Diretor de Abastecimento do Recife, concludo em 1978, setorizando a cidade em distritos alimentados por grandes anis. Para cada distrito foi elaborado um projeto executivo de abastecimento, constando anis secundrios, alimentadores, macro-medio, micro-medio, controle de perdas, dentre outras aes. Segundo gestor da COMPESA, nenhum dos 48 distritos foi implantado em sua totalidade, muitos apenas foram construdos os anis secundrios e parte das redes de distribuio. Com a falncia do PLANASA a partir de 1982 e conseqentemente fim dos recursos federais, at os dias atuais no houve investimentos para implementao do plano de abastecimento. Em 1987, um programa de democratizao da gua promove o acesso de cerca de 250.000 pessoas moradoras dos morros do Recife (VASCONCELOS, 1998: 38), no previsto no plano inicial e que sobrecarregou ainda mais o sistema. De fato, o Recife nunca conviveu com situaes satisfatrias quanto ao abastecimento de gua, o contexto anterior ao processo de implantao do Plano de Abastecimento, era de regularidade na maioria dos bairros da plancie recifense, mas com muitas localidades sem acesso gua. Ao iniciar o processo de execuo do plano de abastecimento, bem como das grandes obras de captao, tratamento e reservao, houve um aumento considervel de ligaes domiciliares que, associado no implantao integral do Plano e dos projetos de abastecimentos dos distritos, manteve a precariedade no abastecimento com riscos freqentes de desabastecimento. Em 1983 se inicia o sistema de racionamento vigente at os dias atuais, que, segundo gestores da COMPESA, no se sabe ao certo o motivo do incio neste ano, to pouco existem documentos na Companhia que revelem o assunto. aceitvel a associao entre o incio do sistema de racionamento com o perodo de estiagem vivido no incio da dcada de oitenta, entre 1979 e 1983, segundo Batista, quando houve uma diminuio significativa das precipitaes pluviomtricas (BATISTA, 2005: 01). Neste momento o corte no abastecimento era representado por 24 horas com gua e 24 horas sem gua.

7

Os

perodos

de

estiagem,

que

causaram

diminuio na oferta de gua, associados ao aumento da populao e das ligaes domiciliares, com efeito no aumento da demanda, consolidaram uma ao que deveria ser pontual, em poltica permanente de racionamento no abastecimento de gua. Tais fatores resultaram em oscilao na programao do abastecimento (tabela 01), destacando que entre maro de 1988 e julho de 1990 houve o menor intervalo do perodo, 16 horas com gua e 08 sem. J entre abril e agosto de 1999, apresentou o maior perodo: 20 horas com e 216 horas (09 dias) sem gua, enquanto que entre 02 anos (julho de 1998 a julho de 2000) no houve nenhum momento com corte inferior a 02 dias (48 horas).

Tabela 01 programaes do racionamentoANO 1983 1988 1990 1991 1993 1993 1993 1993 1994 1994 1998 1998 1998 1998 1999 1999 1999 2000 2000 2003 INCIO RODZIO setembro 24 x 24 maro 16 x 8 julho 14 x 10 outubro 12 x 12 abril 24 x 24 junho 20 x 28 outubro 14 x 10 dezembro 20 x 52 abril 30 x 42 maio 20 x 28 abril 30 x 42 maio 20 x 28 julho 24 x 48 dezembro 20 x 72 janeiro 20 x 96 abril 20 x 216 agosto 20 x 168 maio 20 x 96 julho 24 x 48 outubro 20 x 28 Fonte: COMPESA, 2003.

Para alguns gestores da COMPESA, no existe racionamento no abastecimento de gua, existe um calendrio de abastecimento para garantir gua com racionalidade para toda a populao, pois a Companhia no consegue produzir gua para suprir a demanda da Cidade. Todavia, para o setor responsvel (GERE Grupo de Setorizao do Recife), existe racionamento e ele caracterizado pelo corte programado no abastecimento, atualmente com 20 horas de gua para 28 sem, devido administrao do nvel do reservatrio principal que, aps 20 horas, apresenta nvel mnimo e a incapacidade de distribuio plena por conta da falta de estrutura das redes de distribuio j que o Plano Diretor de Abastecimento do Recife no implementado efetivamente. 1.2 Consolidao como poltica pblica Apesar do propagado crescimento populacional da Regio Metropolitana do Recife, importante relevar a ausncia de planejamento do setor que suprimisse sua expanso necessria e que resultou em investimentos pontuais e aplicao de tecnologias tradicionais, insuficientes resoluo do processo de planejamento em curso. Hogan esclarece que:O fator ambiental mais importante em si, em nvel do domiclio, a qualidade da gua. (...) Melhorias durante os anos 70 e 80 tiveram como conseqncias diretas o declnio das taxas de

8 mortalidade infantil. (...) a infra-estrutura sanitria no acompanhou o crescimento da cidade e problemas seculares de sade no foram resolvidos. Ao contrario, eles encontraram novas fontes de propagao no meio urbano-industrial. Os problemas ambientais de cidades modernas so combinados com aqueles do subdesenvolvimento. Na ausncia de polticas de distribuio de renda ou investimentos maiores em saneamento, moradia e sade, tais processos garantem que o nus ambiental ser carregado principalmente pelos pobres (HOGAN, 1995: 151).

Vale ser destacado, neste processo de racionamento, que a escassez de gua nos reservatrios em alguns momentos dos ltimos vinte anos, se apresenta na inconstncia dos fatores climticos, resultantes, em maior escala, do fenmeno El Nio, associada ausncia de uma poltica florestal estadual que protegesse as matas ciliares e as reas de proteo dos mananciais e que garantissem a proteo da produo de gua, bem como o descontrole de gesto no armazenamento deste bem, fez oscilar criticamente o nvel dos reservatrios. Houve casos de registro de racionamento de nove dias sem gua para cada dia com gua em algumas reas. Nos perodos de 1992/1993 e 1998/1999, Pontes destaca a diminuio das precipitaes pluviomtricas, quando choveu a tera parte da mdia histrica em cada ano desses. Nestas ocasies, a disponibilidade de guas superficiais chegou a valores crticos tais que apenas 3,5 m3/s eram possveis de serem fornecidos. No momento crtico de 1998/1999, a COMPESA adotou o rodzio de um dia com gua e nove sem. Aps a normalizao dos reservatrios de superfcies, o esquema passou a ser de 24h com gua e 72h sem (PONTES, 2003: 47). Em pesquisa realizada em 2001 (Brasil, 2002), o Programa Nacional de Modernizao do Setor Saneamento afirma que 19% das instituies que operam o abastecimento de gua no Brasil trabalham com interrupes de seis a 12 horas no funcionamento dos sistemas; 14%, de 12 a 24 horas; e 9%, com perodos de interrupo maiores que 24 horas. Demonstrando a ineficincia e a falta de prioridade dos gestores para o saneamento. Enquanto a populao pobre do Recife buscava se adequar quantidade reduzida de gua fornecida, a classe mdia e rica buscou alternativas ao abastecimento pblico.Constata-se que, ao longo dos anos, a sociedade urbana brasileira desenvolveu prticas individuais para conviver com essa crise (socioambiental), lanando mo de solues de adaptao s suas manifestaes, mais ou menos eficientes, dependendo dos meios desiguais disposio das famlias para se proteger. Assim sendo, esses meios levam a experincias e vivncias to diferenciadas que poucos acabam reconhecendo o carter abrangente e universal da crise, materializada na mediocridade generalizada das redes de infra-estruturas, o que dificulta a mobilizao da opinio pblica para super-la (BITOUN, 2004: .256).

9

Pontes remete a uma situao de escassez que determinou um significativo aumento de poos particulares rasos e profundos, bem como da captao de guas subterrneas para venda em carro-pipa (PONTES, 2003: 47). Drumond (2000) acrescenta que, no auge do racionamento da dcada de 90, a quantidade de carros-pipa na RMR foi superior a mil unidades pertencentes cerca de 70 empresas. Em alguns prdios da Avenida Boa Viagem e de outras reas nobres, Valadares afirma que, mesmo sendo clientes da COMPESA, estes usam o recurso dos carros-pipa e poos artesianos. Muitos preferem comprar gua a empresas privadas porque acham mais barato. Outros reclamam da presso e constantes reparos de manuteno na rede gerenciada pelo rgo, o que interrompe o abastecimento por alguns dias (VALADARES, 2005). Outro fator relacionado foi o aumento do consumo per capita de gua mineral engarrafada, a Regio Metropolitana do Recife apresenta ndices 04 vezes maior que a mdia nacional, alcanando 55 litros por ano, apontando Pernambuco como o segundo maior produtor de gua mineral do Brasil. Tal consumo reflete a necessidade de segurana hdrica em quantidade e qualidade, demonstrando descrdito com a gua do abastecimento pblico (tambm se observa na COMPESA o consumo de gua mineral engarrafada). Sobre o mercado de gua e a situao de escassez, afirma Mello:O mercado de recursos ambientais trabalha com informaes incompletas sobre os interesses sociais e empresariais (demandas) e a escassez (disponibilidades), operando numa situao imediata de relao de competio pelos bens e sem considerar a sustentabilidade dos recursos. Neste mercado livre dos recursos ambientais existem trs caractersticas econmicas principais que ferem a igualdade de acesso aos recursos ambientas: 1. os recursos ambientais so passveis de posse privada, mesmo em escala de monoplios; 2. os benefcios do uso dos recursos so exclusivos do proprietrio, dele podendo fazer o uso que desejar para aumentar seu valor de mercado das funes obtidas do recurso ambiental; 3. o proprietrio dos recursos ambientais pode negociar livremente a posse dos mesmos (MELLO, 2005: 08).

Destaca-se ao longo do perodo de implantao, a centralidade das aes para a COMPESA que, como concessionria, no se relacionou com o municpio (poder concedente) assumindo a interveno no abastecimento para adequar os usurios a esse novo sistema. Para isso, segundo funcionrios da Companhia, no houve aes educativas especficas para adequao das pessoas ou para o uso responsvel da gua. No entanto, nos momentos de implantao e reprogramao do calendrio de racionamento, existiu um apoio da mdia na divulgao ampla dos calendrios.

10

A GERE, (Gerncia de Setorizao do Recife), foi instituda no incio da dcada de 80 para implantar a setorizao definida no Plano de Abastecimento, porm por ser conhecedora em detalhe da setorizao e funcionamento hidrulico dos grandes anis, apresentou uma proposta de racionalizao desta gua, tornando-se gestora do racionamento at os dias atuais, apesar de no ser esse objetivo da Gerncia. A esta, coube planejar, executar, monitorar e reprogramar o calendrio de abastecimento, que varia ampliando o racionamento de acordo com a estao do ano (no vero o consumo aumenta), com o nvel das barragens e o ndice de precipitaes pluviomtricas, com a manuteno nas adutoras e reservatrios, bem como as situaes adversas de danos na estrutura, como os rompimentos ocasionais nas adutoras. Com esse sistema de racionamento, relacionam-se diversas polticas estaduais como: a estruturao da COMPESA para se adequar ao sistema e a fiscalizao e monitoramento dos poos e carros pipas e proibio de perfurao em algumas reas j sobrecarregadas da Cidade. Tal ao tambm repercute nas polticas municipais de habitao (aumentando o custo das unidades produzidas pelo superdimensionamento dos reservatrios) e de sade, atravs das aes de controle sanitrio, ambiental e de endemias e de programas deBR-232

ITAPISSUMA

Jaguaribe

ARAOIABA IGARASSU

ITAMARAC

Forte OrangeBR-101

Maria Farinha

ABREU E LIMA CAMARAGIBE PAULISTAPau Amarelo Janga

BR-4

SO LOURENO DA MATA

08

Casa Caiada

Porto do Recife

construo do Mapa de Risco da gua, com indicadores de intermitncia e regularidade, doenas relacionadas com a gua, a partir destes dados, resultando num trabalho mais sistemtico nos bairros de alto risco (monitoramento, distribuio de hipoclorito, implantao de unidades de monitoramento de diarrias agudas, monitoramento da clera).

01 -1 BR

Gaibu Cabo de Sto. Agostinho

IPOJUCAPE -6 0

Porto de Suape

Porto de Galinhas

0Serrambi

Escala 4 8

O CE A12km

Figura 01 - Municpios e malha urbana da RMR, Fonte: UFPE /FASE-PE. (Alheiros, 1998).

NO

Secretaria de Sade Municipal possibilitou a

Barra de Jangadas

CABO DE STO. AGOSTINHO

ATLN

exemplo. A precariedade da situao para a

JABOATO DOS GUARARAPES

TICO

monitoramento da qualidade da gua, por

Boa Viagem

MORENO

11

1.3 Situao atual e disponibilidade de gua no Recife A Regio Metropolitana do Recife, paisagem da poltica de Racionamento, possui 14 municpios e uma populao de 3.339.616 habitantes, concentrados principalmente na faixa litornea (figura 01).14 municpios com notveis diversidades: culturais, ambientais, econmicas, sociais e, tambm, desigualdades sociais que se apresentam atravs das desigualdades espaciais. A populao rica morando em reas consolidadas, enquanto que a populao carente ocupando os ambientes frgeis: alagados, encostas e manguezais, por exemplo. Onde cerca de metade da populao vive em situao de pobreza absoluta, morando mal em menos de 10% da rea das cidades e onde, ao longo dos sculos, os pobres j nasceram com um destino: lutar por um pedao digno de cho. O Grande Recife que se consolidou ao longo dos sculos ocupando os manguezais e os morros, da ocupao impelida da populao sada da escravido nestes ambientes frgeis, que j foi considerada a terra dos mocambos, da resistncia histrica da populao, o mesmo espao de disputa com os construtores da cidade formal. Que instituiu a Liga Contra os Mocambos, que alugava o cho para a populao expulsa dos mocambos, que evacuou as populaes tradicionais para reas distantes em outras cidades da Regio Metropolitana, duplicando a populao destas cidades sem ofertar saneamento adequado e facilitando a expanso do mercado imobilirio especulativo na Capital. Nos dois casos destaca-se a ausncia de polticas de saneamento, de aes estruturadoras e de planejamento do setor de saneamento para o atendimento destas demandas (RAMOS, 2005: 01).

Este conjunto de problemticas encontrado de forma mais direta na capital Recife que concentra quase metade das necessidades habitacionais da RMR. Havendo necessidade de 47.327 novas habitaes e 44% dos domiclios recifenses localizam-se em reas com condio inadequada de infra-estrutura (ALVES, 2005: 04). Entre os anos de 1991 e 2000, o abastecimento de gua atravs de poos dobrou na RMR e multiplicou por quatro na Capital, como identificado na tabela 02.

12

Tabela 02 Comparativo dos domiclios por forma de abastecimento de gua.Unidade geogrfica Forma de abastecimento Total de domiclios Total de domiclios urbanos Rede geral (RG) RG sem canalizao interna Poos e nascentes (PN) PN sem canalizao interna Outras formas (OF) OF sem canalizao interna Total de domiclios Total de domiclios urbanos Rede geral (RG) RG sem canalizao interna Poos e nascentes (PN) PN sem canalizao interna Outras formas (OF) OF sem canalizao interna Total de domiclios Total de domiclios urbanos Rede geral (RG) RG sem canalizao interna Poos e nascentes (PN) PN sem canalizao interna Outras formas (OF) OF sem canalizao interna Total de domiclios Total de domiclios urbanos Rede geral (RG) RG sem canalizao interna Poos e nascentes (PN) PN sem canalizao interna Outras formas (OF) OF sem canalizao interna 1991 absoluto 34.734.715 27.157.268 23.846.914 1.786.470 2.785.601 971.120 1.214.410 1.080.795 1.586.682 1.158.586 1.041.786 169.062 168.499 146.646 375.397 361.070 668.332 634.375 589.170 97.421 36.569 25.064 42.593 38.418 305.901 305.901 289.551 47.669 6.211 2.570 10.139 8.853 percentual 100,0% 78,2% 68,6% 5,1% 8,0% 2,8% 3,5% 3,1% 100,0% 73,0% 65,6% 10,7% 10,6% 7,4% 23,7% 22,6% 100,0% 94,9% 88,2% 14,6% 5,5% 3,8% 6,4% 5,7% 100,0% 100,0% 94,7% 15,6% 2,0% 0,8% 3,3% 2,9% 2000 absoluto 44.795.101 37.334.866 34.859.393 2.193.349 6.976.877 2.434.429 2.958.831 2.319.916 1.968.761 1.552.529 1.388.529 159.823 246.452 142.234 333.780 298.864 859.657 837.051 728.182 73.644 92.064 24.640 39.411 31.488 376.022 376.022 330.750 32.717 36.073 3.137 9.199 7.456 percentual 100,0% 83,3% 77,8% 4,9% 15,6% 5,4% 6,6% 5,2% 100,0% 78,9% 70,5% 8,1% 12,5% 7,2% 17,0% 15,2% 100,0% 97,4% 84,7% 8,6% 10,7% 2,9% 4,6% 3,7% 100,0% 100,0% 88,0% 8,7% 9,6% 0,8% 2,4% 2,0%

Brasil

Pernambuco

RMR

Recife

Fonte: Censos Demogrficos 1991 e 2000, IBGE.

Vale tambm destacar no quadro que, apesar da diminuio de domiclios sem instalaes hidrulicas internas no Recife (de 59 mil para 43 mil em 10 anos), a quantidade ainda muito elevada (11%), com mais de 30 mil destes ligados rede de abastecimento em condies inadequadas ao gerenciamento domstico da gua. Outro dado relevante apresentado no Quadro 01 a queda de 6,7 pontos percentuais na quantidade de domiclios ligados rede geral no Recife e 3,5% na RMR, demonstrando por um lado, que a COMPESA no conseguiu acompanhar o crescimento das cidades e, por outro, que a populao buscou alternativas ao abastecimento formal racionalizado.Assim, produz-se historicamente uma cultura poltico-administrativa na gesto e intermediao de interesses que tem como conseqncia a privatizao da coisa pblica, a excluso social e a negao de qualquer forma politizada de participao na gesto da agenda pblica. Esta rede clientelista e corporativa, ao mesmo tempo em que bloqueia o processo decisrio sobre as demandas sociais do conjunto da sociedade, torna-se extremamente permevel aos jogos de interesse particularistas e resistentes a qualquer tipo de mudana na estrutura de gesto da coisa pblica (SEIBEL, 2005: 08).

13

Segundo dados da COMPESA (2003) a populao atendida no Recife de 1.325.756 habitantes/usurios (91%), restando ainda 125.696 pessoas sem ligao com o sistema de abastecimento. Destes usurios uma parte no contabilizada encontra-se inativa por utilizar gua de poos particulares e 69% so hidrometrados. A produo de gua na Regio Metropolitana do Recife da ordem de 10 m3/s, quando o necessrio para suprir a demanda seria 14 m3/s (PONTES, 2003: 47) o que resulta em um dficit de 4 m3/s. Associado ao crescimento da populao, destaca-se a precariedade na manuteno do sistema, dados da COMPESA dizem que as perdas fsicas em relao gua tratada atingem 48% da produo (DIRIO DE PERNAMBUCO, 1998) e segundo gestores da Companhia, a perda no faturamento da ordem de 62% e a perda total atinge o patamar de 70%. Cairncross in Mello afirma que em todos os pases os governos subsidiam deliberadamente o desperdcio de recursos naturais, especialmente gua, energia eltrica, agricultura e silvicultura. Tais subsdios podem ser meios para ineficcias, falta de transparncias, privilgios e corrupes (MELLO, 2005: 22). Se por um lado, a produo de gua no suficiente, as perdas agravam a situao, determinando que dos 10 m3/s produzidos, apenas 5,5 m3/s atinjam os domiclios (38% do necessrio Regio Metropolitana, segundo dados oficiais da COMPESA), perpetuando o estado de racionamento e estabelecendo situaes de conflito de destinao do uso e de disponibilidade quantitativa da gua. SANTANA e PEREIRA (2005: 16-17), classificam os conflitos de uso das guas em conflitos de destinao de uso (quando a gua utilizada para outros fins alm do determinado por decises polticas, fundamentadas ou no em anseios sociais), conflitos de disponibilidade qualitativa (tpico de uso em corpos de gua poludos) e conflitos de disponibilidade quantitativa (pelo esgotamento da quantidade devido ao uso intensivo), Em conjunto com esses conflitos ocorrem incrementos das demandas hdricas devido ao aumento populacional, agravando o problema de abastecimento. Para o abastecimento da Regio Metropolitana do Recife, 72% da oferta de gua tratada depende de 03 grandes sistemas descritos na tabela 03:

14

Tabela 03 principais sistemas de abastecimento da RMRsistemas Botafogo 19% da produo de gua da RMR Captao Barragem Botafogo A fio dgua A fio dgua A fio dgua A fio dgua A fio dgua Tapacur 43% da produo de gua da RMR Alto do Cu 10% do volume de gua distribudo Barragem Barragem Barragem A fio dgua Manancial Catuc Cumbe Pilo Tabatinga Conga Arataca/Jardim Tapacur Duas Unas Vrzea do Una Capibaribe Recife, So Loureno, Camaragibe e Jaboato dos Guararapes parte do Recife, parte de Olinda e parte de Paulista Localidades abastecidas Igarassu, Cruz de Rebouas, Abreu e Lima, Paulista, Praias da Zona Norte, Navarro e Olinda Dimetro adutora (mm) 1.000 / 1.200 600 400 500/600 400/600 600 1.600 800 600 Vazo (m3/s) 1,8 0,6 0,2 0,3 0,2 0,42 2,00 1,00 0,54 Estao de tratamento de gua Dados tcnicos Projetada para 4 mdulos capacidade 3 floculadores 3 decantadores 6 filtros rpidos Aduo de gua Tratada capacidade 8 floculadores 8 decantadores 16 filtros rpidos Aduo de gua Tratada capacidade 2 floculadores 4 decantadores 08 filtros rpidos Aduo de gua Tratada capacidade 1,5 mdulos implantados 2,2m3/s 2,7 m3/s 2,7 m3/s 1,6 m3/s 1,7 m3/s 4,0 m3/s 2,7 m3/s 2,7 m3/s 1,6 m3/s 4,0 m3/s 1,0 m3/s 0,95 m3/s 0,74 m3/s 2,0 m3/s 1,0 m3/s

A fio dgua A fio dgua A fio dgua

Pitanga/Utinga Paratibe Beberibe

1000 400

0,7 0,25 0,3

Fonte: COMPESA, 2004.

Quanto s informaes do quadro 03, importante acrescentar que os mananciais possuem vazo suficiente para a possibilidade de ampliar as captaes, que parte das estruturas de aduo, tratamento e reservao foram projetadas prevendo ampliao e algumas o projeto bsico no foi totalmente implantado, portanto com capacidade de ampliao da oferta de gua para o abastecimento pblico. Alm destes sistemas existem sistemas secundrios e complementares de menor capacidade, a partir da captao de outros mananciais superficiais e subterrneos, construdos como paliativos em situaes crticas de abastecimento. A totalidade da produo de gua est caracterizada na tabela 04. Tabela 04 Produo de gua para a RMR/RecifeContribuio mensal para % de contribuio para o Recife RMR Recife Tapacur 4,053 3,824 61,10 Alto do Cu 1,047 0,991 15,84 Botafogo 1,484 --Gurja 0,837 0,823 13,15 Suape 0,726 --Caixa Dgua 0,198 0,198 3,16 Dois Irmos 0,108 0,108 1,73 Poos 1,430 0,303 4,84 Jangadinha 0,011 0,011 0,18 Sistemas Complementares 0,325 --Total 10,219 6,258 100 Fonte: CCO/CGO COMPESA Mapa de Produo, 2003. sistema

15

1.4 Condies tcnicas e polticas para o enfrentamento do problema MIRANDA NETO (2001: 08) afirma que para nos alcanarmos uma poltica de saneamento integral precisamos preservar o meio ambiente, que ponha em prtica os objetivos de bem estar social, desenvolvimento econmico e sade pblica.O social deslocado enquanto assunto a ser tratado nas esferas particulares e privadas das relaes sociais, isto , no mbito da caridade ou das relaes de mercado. Outra conseqncia perceptvel a desordem institucional que se processa. O Estado se desresponsabiliza de vrias funes, jogando a gesto de demandas sociais para um vcuo institucional, sem a definio pblica de responsabilidades, ou reagindo s presses populares pelo mecanismo de represso, de forma cada vez mais sistemtica. O prprio Estado desconstri ou desqualifica o aparato gestor de polticas sociais (SEIBEL, 2005: 32-33).

Se por um lado o poder pblico estadual, gestor do sistema, adotou a medida do racionamento para rebater a escassez de gua, de outro a populao em geral, usurios do sistema, sofreu os impactos diretos do processo e, por sua vez, no construram alternativas coletivas ou intervenes nas polticas pblicas. Seibel acrescenta que o processo de seletividade produz, portanto, a excluso de demandas e necessidades que atravs do jogo de estratgias e filtros, so remetidas ao mbito dos particularismos, mas tambm da no visibilidade pblica que desloca as demandas para o exterior da dimenso, compreenso ou conhecimento da opinio pblica (SEIBEL, 2005: 13). Sobre a questo da intermitncia no abastecimento dgua, Bitoun explica que:No alcana um status central porque muitos recifenses moradores de edifcios, dotados de poos e reservatrios, ou de casas equipadas com caixas dgua a ignoram. Mas, para outras famlias, que no dispem desses equipamentos domsticos ou cujo abastecimento e feito por uma pena dgua no terreno, a intermitncia e as estratgias de armazenamento de gua quando chegam provocam desconforto, perda de tempo e riscos sanitrios vividos no cotidiano. Essas famlias vivem o problema. As outras convivem com ele sem sentir plenamente seus efeitos. Mas, por isso, deveriam ignor-lo e se acomodar, sem exigir para a cidade onde moram um sistema seguro e continuo? (BITOUN, 2002: 08).

As respostas dos usurios, notadas sumariamente, em um primeiro momento so traduzidas em economia de gua, principalmente resultado de divulgao massiva na mdia local, seguidas de um estado de acomodao e rotina sobre os processos de conteno do seu uso. Estes culminaram na busca por solues alternativas que, para as classes mdia e alta, vo desde a instalao e ampliao dos reservatrios domiciliares, at a perfurao descontrolada de poos, causando impactos negativos ao lenol de guas subterrneas, passando pelo superdimensionamento dos reservatrios em novas obras, o corte programado nos condomnios e a instalao de bombas na rede de abastecimento, que causa queda de presso para a coletividade.

16 Os instrumentos econmicos de gesto da gua devem contemplar suas finalidades de induo de mudanas no uso da gua, pela racionalizao e reduo de perdas, sem perder de vistas a questo de justia social. Aqueles que esto economicamente desfavorecidos no podem ficar segregados do acesso s condies mnimas de sobrevivncia e dignidade, devendo o Estado garantir as condies para suas sobrevivncias e seus desenvolvimentos sociais e econmicos. Para tanto, todo cidado inadimplente com os pagamentos de custos da gua deveria ter uma cota mnima de abastecimento garantida, independente de sua capacidade de pagar pelo recurso. As tarifas de cunho social tambm so outras formas de subsidiar indivduos e grupos excludos e assim garantir suas possibilidades de reinsero social e econmica (MELLO, 2005: 90).

A justificativa atual do racionamento no abastecimento de gua, segundo gestor da COMPESA, deve-se a quantidade de gua produzida, associada baixa capacidade de reservao da gua tratada, que no possibilita a manuteno dos nveis de reservao. Assim, aps 20 horas de abertura do sistema, os nveis dos reservatrios encontram-se em grau mnimo, sendo necessrias 04 horas por dia sem abastecimento para realimentar os reservatrios. Outros fatores so resultantes das deficincias nas redes de distribuio, o elevado ndice de perdas e a falta de capacidade de distribuio uniforme, que resultaram na diviso da cidade em 02 partes (central-leste e oeste) para racionalizao do volume reservado/produzido e abastecer alternadamente estas 02 partes (01 a cada dia). A partir da, existe um calendrio de manobra (horrio de abertura e fechamento das vlvulas) e calendrio de abastecimento (horrio de chegada da gua na casa do usurio). Nas localidades prximas das vlvulas, os calendrios de manobra e abastecimento se aproximam, enquanto que nos pontos mais distantes, deve-se esperar a pressurizao da rede para a gua atingir os pontos mais distantes. Assim, apesar da tentativa de cumprimento da programao, apresentada como 20 horas com gua e 28 sem gua, as localidades do distrito mais distantes da vlvula possuem um perodo menor de abastecimento. Atualmente, a COMPESA divulga em sua pgina na Internet o calendrio de abastecimento para cada bairro, indicando os horrios de fornecimento com 20 horas de abastecimento. Tal calendrio fictcio, pois em parte significativa de localidades o tempo de fornecimento menor. Nos distritos de abastecimento com maior nvel de implantao do projeto de setorizao, a regularidade maior. O descumprimento com os horrios descritos se agravam nos pontos crticos da cidade: onde o projeto do distrito no foi implantado, onde a rede est caduca ou subdimensionada. Existem tambm variaes decorrentes do nvel baixo de reservao resultante de flutuaes no consumo e sazonalidade das chuvas. Por tudo isso, mesmo com os reservatrios em plena capacidade

17

e at vertendo, a gua no consegue chegar at as torneiras, enquanto que funcionrio da COMPESA afirma que no Recife existe racionamento (quando no vero os nveis dos mananciais esto baixos) e racionalizao (quando no inverno tem-se gua em abundncia, mas a populao no tem acesso). De outro modo, no so identificadas atividades educativas e informativas referentes ao racionamento, os entrevistados da COMPESA no conseguiram identificar tais atividades ou campanhas. A relao com a sociedade construda a partir de um nmero 0800 e da divulgao dos calendrios na mdia quando existem alteraes, funcionrios afirmam que a COMPESA sempre chama a imprensa para dar transparncia ao processo, pois a reao da populao intensa e imediata. Sempre a imprensa apia. O dimensionamento do calendrio atualmente, de acordo com gestor da COMPESA, emprico, construdo a partir da simulao da condio de funcionamento do reservatrio principal na ETA Castelo Branco, pelo levantamento das vazes de sada e entrada monta-se os ciclos de abastecimento. Para a gesto da gua e do racionamento no Recife, a COMPESA centraliza as aes na GERE para administrao e controle operacional. Esta Gerncia conta diretamente com 07 pessoas (03 engenheiros, 02 nvel mdio e 02 administrativos) e indiretamente articula vrios setores da COMPESA, coordena ainda 04 equipes diurnas e 02 noturnas para operar a abertura e fechamento das vlvulas em cada distrito da cidade, alm de um planto permanente para situaes de emergncia. Esta condio permanente de desabastecimento no Recife resulta em grandes problemas operacionais para a Companhia como: aumento na necessidade manuteno nas redes, vazamentos por fadiga do material, dano constantes nas vlvulas que quebram devido abertura e fechamento 02 vezes ao dia e estouramento das tubulaes por sobrepresso. Segundo gestor da COMPESA, o principal vilo contra a qualidade da gua o racionamento, pois com a despressurizao da rede acontecem infiltraes, resultando em excessiva quantidade de cloro adicionada gua ainda na ETA, para garantir qualidade nas pontas de rede. Bitoun assegura que durante parte do dia os canos de distribuio ficam vazios, propensos infiltrao de esgotos e submetidos a tenses que os tornam frgeis quando a gua volta. Tambm afirma que, em funo do corte no abastecimento, toda a rede oferece um servio descontnuo e pouco seguro (BITOUN, 2004: 264).

18

De fato, no decorrer destes 23 anos de racionamento, no houve os investimentos necessrios para elimin-lo, enquanto que a populao continuou aumentando e demandando mais gua. De acordo com gestor da Empresa, a COMPESA no gosta de racionamento, a meta sempre foi acabar com o racionamento, aumentando a produo de gua a partir da instalao dos subsistemas de Vrzea do Una para abastecer os municpios de So Loureno da Mata e Camaragibe, desafogando o sistema Tapacur, a complementao de algumas captaes a fio dgua e o aumento da capacidade de produo dos poos da Zona Norte do Recife e do subsistema Caixa Dgua. Quanto melhoria das redes de distribuio, foi implantado o anel do Ara, desafogando alguns distritos da zona sul da Cidade, bem foram executados reforos na rede de alguns distritos mais crticos. Ainda assim, de acordo com gestor da COMPESA,o sistema de abastecimento necessita de muitos investimentos para a concluso das distritaes, substituio de redes, implantao de sistema de automao eficiente, sistema de controle de perdas, reviso dos projetos dos distritos de abastecimento, reviso e reestruturao dos grandes anis, estudo para os grandes empreendimentos imobilirios previstos para o Recife, construo de planejamento para atender o crescimento da cidade e o acrscimo da gua vinda da barragem de Pirapama. Esto previstas como prximas aes a implantao dos distritos de Cajueiro (21), Encruzilhada (17b), Arruda, Casa Amarela (15) tudo com recursos do Prometrpole. E com recursos do BNDES, os distritos da Madalena e Torre (26), Prado (29), Cordeiro (5), Casa Forte. Ainda existem estudos internos para os distritos 52, 45, 49 sem recursos externos. Tambm o planejamento de combate s perdas e um estudo de demanda de gua para o Recife.

A COMPESA, como empresa constituda na poca do milagre econmico, se estabeleceu at os dias atuais com tradio e cultura de execuo de grandes obras. Para ela as solues para as situaes crticas se apresentam a partir de grandes obras de captao, aduo e reservao. Vasconcelos certifica que a COMPESA era, basicamente uma empresa de construo, cujas preocupaes estavam voltadas para a implantao dos grandes Sistemas de Produo, envolvendo obras para as unidades de captao (geralmente barragens de grande porte), bombeamento, tratamento e aduo. Era uma poca em que existia uma relativa abundncia de recursos, onde a construo de grandes sistemas, preconizados pelas provveis economias de escala, se justificavam em si (VASCONCELOS, 1998: 38).

19

Contudo, apesar da COMPESA afirmar a necessidade de produo de mais 04 m3/s para eliminar o racionamento, a partir do funcionamento de nova captao de uma grande barragem (Pirapama) j construda, em documento recente do PMSS (Programa de Modernizao do Setor de Saneamento) em parceria com a COMPESA, afirmado que a RMR necessitaria apenas de 07 m3/s para suprir a demanda de gua, afirmando que nas condies consideradas, com uma operao eficiente (coeficiente de retorno de 20%) a COMPESA atenderia com fornecimento contnuo totalidade da populao metropolitana (PMSS/COMPESA, 2006: 34).

20

CAPTULO 02 TRAJETRIA METODOLGICA 2.1 Tipo de estudo Ao reconhecer as populaes afetadas pelo processo a ser pesquisado bem como suas representaes sociais, a pesquisa se permitiu como um processo dinmico de construo e sistematizao de conhecimento e de aprendizado, estimulando reflexes e aes comunitrias sobre as condies de acesso gua. Deste modo, a pesquisa possuiu carter qualitativo pelo pblico e pela situao especfica abordada, pelas respostas particulares procuradas e pela impossibilidade de generalizao de seus resultados. Tal processo de pesquisa est baseado no Referencial do Cuidado Holstico-Ecolgico que permite o enfoque dialtico da investigao admitindo a condio humana em constante construo pela histria particular-coletiva num dado ambiente natural e cultural em mltiplas conexes, explcitas e implcitas (PATRCIO, 2005: 19).O Referencial do Cuidado Holstico-Ecolgico tem como base princpios ticos e estticos que orientam processos de conhecer e de cuidar da vida humana, tendo como concepo que cuidar cultivar a vida em todas as suas dimenses, naturais e culturais, at mesmo antes de nascer e aps a morte (PATRCIO, 2005: 18).

Este referencial, que entende que a qualidade das relaes humanas no cotidiano com o seu meio interfere na qualidade de vida coletiva e individual, instiga e fortalece a pesquisa participante, buscando, alm da produo de conhecimentos tericos, contribuir com a transformao da realidade atravs de um processo educativo.Este mtodo d conta de descrever, interpretar e compreender toda a beleza e complexidade da subjetividade dos significados humanos, bem como as condies originadas desse contexto: - seu ambiente natural e construdo; - sua cultura expressada em suas crenas e prticas, em seus valores, conhecimentos e mitos e em suas metforas; - seus sentimentos, expressados em seus desejos e suas expectativas e em suas emoes de prazer e de dor, de felicidade e de insatisfaes construdos no decorrer de sua histria de vida, em todos os contextos de seu processo de viver. (PATRCIO, 2005: 33).

2.2 Entrando no campo O processo de aproximao com o objeto de estudo foi facilitado devido o conhecimento prvio da comunidade pelo pesquisador, onde desenvolveu alguns trabalhos educativos na localidade. Este momento de aproximao necessitou de um aprofundamento no conhecimento socioeconmico e demogrfico da comunidade atravs de levantamento de dados em documentos pr-existentes e em pesquisas do IBGE. Tambm, houve a necessidade do levantamento dos grupos comunitrios e

21

conseqentemente o contato com lderes comunitrios locais. O acmulo e sistematizao destas informaes resultaram no reconhecimento mais aprofundado das condies socioambientais, econmicas e culturais que possibilitou a percepo de vrias realidades quanto forma de abastecimento de gua decorrente do processo de racionamento. Diante das distintas realidades encontradas, para a anlise do impacto do racionamento, foi construda uma amostra que destacou 03 grandes pblicos quanto ao acesso gua na comunidade: Moradores, subdivididos em (i) famlias sem acesso ao abastecimento de gua, (ii) famlias apenas com pena dgua no lote, (iii) famlias com instalaes hidrulicas e sem reservatrio elevado e (iv) famlias com instalaes e reservatrio elevado. Para cada um desses grupos, foram levantadas as condies de 02 famlias distintas, que possibilitaram a comparao e confrontao dos dados entre realidades prximas e resultando em um universo de 08 famlias pesquisadas; Estabelecimentos comerciais locais, observando novamente condies distintas de acesso gua (um abastecido por pena dgua e sem reservatrio elevado e outro com canalizao interna e sem reservatrio elevado); Equipamentos comunitrios, representados pela Escola Municipal Mrcia de Albuquerque, o posto de sade da comunidade e a Unio dos Moradores de Caranguejo-tabaiares. Alm das observaes, do levantamento de dados e de entrevistas na localidade, fez-se necessrio o levantamento de informaes com rgos pblicos, visando perceber suas vises sobre o racionamento, seus impactos socioambientais e complementando os dados obtidos na comunidade. Desta forma traaram-se 03 categorias de representantes do poder pblico: (i) os gestores municipais (da Secretaria de Sade, do Distrito Sanitrio IV e da Autarquia de Saneamento da Prefeitura do Recife), (ii) os gestores estaduais (da COMPESA e da Secretaria Estadual de Sade) e (iii) os parlamentares (Vereador e Deputado Estadual). Ainda quanto ao universo de pessoas a serem pesquisadas, o estudo foi dimensionado a partir da possibilidade de entrevistas tambm com 02 famlias de classe mdia, de modo a comparar a dimenso dos impactos do racionamento com as condies

22

do assentamento precrio objeto do estudo. Tal possibilidade no foi levada a diante, devido exigidade do tempo para o trabalho de campo e a sistematizao dos dados. Quanto seleo do pblico comunitrio, ocorreu a partir da participao do pesquisador em reunio do Clube de Idosos Unidos Venceremos (figura 02). A escolha deste grupo aconteceu por sua atuao comunitria, bem como a facilidade de obter um resgate histrico do abastecimento na comunidade (memria viva). Na ocasio a pesquisa foi apresentada resultando, em seguida, num pequeno debate sobre a condio de abastecimento em Caranguejo-tabaiares, a indicao voluntria para participao na pesquisa e o agendamento das entrevistas na comunidade. Figura 02 - Reunio do Clube de Idosos

Para a indicao dos representantes dos equipamentos comunitrios, na Unio de Moradores foi indicada uma ex-presidente e fundadora ainda atuante, havendo dificuldade de agendamento com os gestores da escola e do posto de sade. Quanto escola, buscou-se um vigilante e controlador dos nveis dos reservatrios de gua. Quanto ao posto de sade, necessitava-se de solicitao e liberao formal da entrevista com gestor do posto por parte da Secretaria Municipal de Sade, o que ocorreu depois de quase 02 semanas de apelos. s entrevistas com os gestores municipais decorreram sem dificuldades a partir de contatos. Desta forma ocorreram entrevistas com uma assessora da Secretaria de Sade Municipal, uma assistente da Diretoria de Educao Sanitria e Ambiental da Autarquia de Saneamento da Prefeitura do Recife e uma gerente operacional de vigilncia sanitria, epidemiolgica, ambiental do distrito sanitrio. As 03 com atuao direta sobre a temtica do abastecimento de gua. Para os gestores estaduais, a indicao e o contato aconteceram com muitas dificuldades. Na COMPESA, houve vrias tentativas de contato com a direo tcnica, gerncias, bem como ex-gestores. Faltando poucos dias para a concluso da pesquisa, foi encontrada uma gerncia que trata da setorizao, do calendrio de racionamento e concentra todas as informaes sobre o assunto, a GERE (Grupo de Setorizao do Recife), inexistente no organograma cedido por eles. Na Secretaria Estadual de Sade, o

23

contato estabelecido no proporcionou o encontro com gestores relacionados ao tema. Quanto aos parlamentares, no Municpio a pesquisa deu-se a partir de um membro da Comisso de Meio Ambiente da Cmara Municipal e na Assemblia Legislativa, a indicao era de um deputado que j presidiu a Assemblia e foi secretrio de Habitao e Desenvolvimento Urbano de Pernambuco. Este ltimo sem possibilidades de contato, com a justificativa possvel da proximidade do perodo eleitoral. Ressalta-se que todas as entrevistas e contatos com o pblico alvo aconteceram em conformidade com as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Resoluo 196 de 10/10/96 do Conselho Nacional de Sade). A pesquisa foi desenvolvida a partir do Consentimento Livre e Esclarecido dos Participantes (apndice) e a partir da apresentao de todos os esclarecimentos necessrios a fim de garantir o livre arbtrio dos participantes, respeitar a privacidade e preservar o anonimato destes. Em seu processo de realizao, a pesquisa se props tambm a evitar a interveno no meio estudado, preservando a integridade do pesquisado e seu meio, promovendo a reflexo crtica e informao que possibilite o exerccio da cidadania e a exigibilidade dos direitos. Quanto aos roteiros de entrevista, foram desenvolvidos a partir de algumas questes norteadoras: O que racionamento no abastecimento de gua (impresso, funcionamento e grau de satisfao); Quais as lembranas do processo de implantao deste sistema; Quais as medidas tomadas ao longo dos anos para adequao ao racionamento; Descrio dos impactos sentidos por conta do racionamento de gua (no espao fsico e sanitrio da moradia, no ambiente social, nas prticas individuais e coletivas no cuidado com a gua e os conflitos e disputas existentes); Construo de uma linha do tempo, levantando o cotidiano da famlia durante 48 horas, buscando descrever os momentos (com fidelidade temporal) e as relaes deste cotidiano com o abastecimento de gua, comparando os momentos, hbitos e prticas durante o abastecimento regular e quando h o corte programado.

24

2.3 Ficando no campo Durante o processo de levantamento de dados, o pesquisador participou de 02 reunies comunitrias que favoreceu o processo de interao com os pesquisados e a comunidade. A primeira reunio, do Clube de Idosos, aconteceu na escola municipal, favorecendo tambm o contato com a comunidade escolar, professoras e alunado, que possibilitou maior abertura na comunidade. Essa abertura era necessria devido localidade possuir altas taxas de criminalidade. No primeiro dia de pesquisa de campo, aconteceu a primeira dificuldade: tratava-se dia com gua do abastecimento pblico na comunidade, conseqentemente ningum queria parar suas atividades domsticas e perder o dia de gua para as entrevistas. No primeiro dia foi possvel obter informaes de apenas 01 pessoa. Desta forma o pesquisador levou mais de 01 semana para entrevistar todos os comunitrios. Neste processo ressalta-se a dificuldade de entrevistas no incio do dia e depois das 16h, devido violncia na comunidade. Outra dificuldade foi referente a uma parte do contedo, pois, no geral, ningum desejava falar sobre aspectos sanitrios e de higiene de sua casa e famlia. Apesar do acesso gua ser precrio e estar visvel o impacto na questo sanitria, as pessoas afirmaram que a falta de gua e o racionamento no trazem problemas nas questes sanitrias, nas relaes com o meio e com as pessoas do entorno, ou mesmo conflitos. Foi necessrio inserir perguntas que tratavam de conflito na vizinhana, onde todas as pessoas entrevistadas citaram vrios, sempre ocorridos entre terceiros. Desta forma alguns dados colhidos foram detectados a partir da observao e do estudo das fotografias, pois as informaes visuais so mais expressivas e, por vrias vezes, contradisseram as entrevistas. Quanto s informaes oficiais sobre o racionamento, destaca-se que o pesquisador despendeu cerca de 15 dias buscando subsdios na COMPESA, procurando compreender o funcionamento e as responsabilidades pelo racionamento no Recife. Na biblioteca e no acervo de projetos, no se encontra nenhum documento sobre a histria da COMPESA e da implantao do racionamento existente desde 1983. Ao descobrir o GERE, foram contatadas suas responsveis para marcao de entrevistas, as quais foram adiadas vrias vezes. Nenhum funcionrio do GERE quis falar sobre o tema, observando que o Grupo no possui documentos sobre o assunto e comentando que a histria da Companhia a histria

25

oral de seus funcionrios. Os nicos documentos obtidos no GERE foram os calendrios de racionamento, os quais esto disponveis tambm no site da Empresa. Neste processo de pesquisa de campo na COMPESA, que resultou em mais de 10 visitas Companhia, foi efetivado o contato por telefone com um ex-coordenador do GERE, que agendou uma conversa informal com o pesquisador colocando a condio de no se identificar e no gravar nada do que ele falar, pois o tema mexe com a vida de muita gente. Por telefone ele disse que o racionamento no existe e no pode ser encarado como poltica, o que existe uma programao de abastecimento (que atinge mais de 90% da populao). Por fim, a entrevista com uma gestora da COMPESA foi concretizada, resultando em revelaes inseridas na pesquisa, fundamentais para o resultado da pesquisa. Outras informaes, apesar de no possuir centralidade para a pesquisa, foram acrescentadas de modo a revelar o funcionamento do abastecimento e do racionamento no Recife. No geral, com a pesquisa, percebe-se que a temtica do racionamento trata-se um tabu dentro da Empresa, onde ningum possui documento ou quer falar. Ao final da pesquisa foi encontrado extra-oficialmente um documento contratado pela COMPESA junto com o Governo Federal (PMSS) sobre a demanda de gua na Regio Metropolitana do Recife. Este estudo entregue recentemente Companhia, comprova que a Regio Metropolitana possui gua suficiente, no necessitando de racionamento e nem das grandes obras projetadas e em execuo para os prximos 20 anos. Tal documento encontrado na mesa de um dos departamentos da Empresa no era de conhecimento do GERE. Com o trabalho de campo, percebeu-se que a COMPESA uma corporao muito fechada, muito departamentalizada, onde um departamento no tem conhecimento de nada fora de sua parte. 2.4 Saindo do campo Aps a ao de levantamento de informaes e pesquisa em campo, o processo de registro e anlise dos dados requereu a organizao destes subsdios em grandes categorias que possibilitassem a anlise-reflexo-sntese. Desta forma, as entrevistas juntamente com as informaes obtidas da observao foram sistematizadas em tabelas (dados gerais das entrevistadas, condies de acesso gua e habitabilidade, o racionamento, custo com a

26

gua, o processo de implantao do racionamento, sobre administrao e cuidado com a gua, os impactos fsicos, os impactos no ambiente social, os impactos nos costumes, rotinas resultantes do racionamento) que facilitaram o processo de anlise. Para materializar o cuidado holstico-ecolgico no processo de sistematizao dos dados, procurou-se no construir e analisar as informaes de modo pontual e cartesiano. Assim, as tabelas foram sobrepostas de modo a relacionar os diversos fatores na busca de maior compreenso dos significados e intenes diversas e inter-relacionadas das aes humanas referentes ao processo de racionamento. Durante o processo de pesquisa em campo, ressalta-se que a ao de contato e comunicao com a pessoa entrevistada ultrapassa as possibilidades de comunicao verbal. A observao, registro e anlise do ambiente mostrou-se uma importante ferramenta de comunicao no verbal, fundamental para a anlise dos dados. Por vezes tais informaes contradisseram a entrevista, principalmente nos aspectos que poderiam revelar maiores intimidades da pessoa entrevista. Sendo necessrio, assim, um maior processo de observao consentido pelas pessoas entrevistadas. De modo geral, a pesquisa foi dimensionada para um levantamento de campo a partir da observao participante, onde o pesquisador passaria 02 dias inteiros na residncia da pessoa pesquisada (01 dia de gua e 01 dia sem gua) a fim de dimensionar os impactos socioambientais do racionamento. Diante da falta de recursos financeiros e disponibilidade temporal, a pesquisa foi redimensionada para que, na seqncia da entrevista, a pessoa pesquisada descrevesse como sua rotina em 01 dia com gua e 01 dia sem gua do abastecimento pblico atravs de uma linha do tempo.

27

CAPTULO 03 O AMBIENTE DE ESTUDO: A COMUNIDADE DE CARANGUEJO-TABAIARES 3.1 Aspectos fsicos A investigao realizada na cidade do Recife, em uma comunidade localizada num assentamento precrio do Municpio, a comunidade de Caranguejo-Tabaiares (figuras 03 e 04) escolhida de acordo com os critrios da situao de racionamento, os riscos de doenas, o IDH e a situao precria de urbanizao e infraestrutura.

Figura 03 Vista area da ZEIS Caranguejo/Tabaiares Fonte: Acervo da FASE A referida comunidade uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), assim determinada pela Lei de Uso e Ocupao do Solo (LUOS n 6.176/1996), possuindo 02 localidades separadas por um canal: Caranguejo e Tabaiares (figura 06), a primeira situada no Bairro de Afogados e a segunda na Ilha do Leite. Cortada por 01 canal e ladeada por outros 02 que recebem dejetos de Figura 04 Limites da ZEIS Fonte: BDZEIS,2005.

28

vrias localidades do Recife, a comunidade est localizada s margens de um brao do rio Capibaribe, principal referncia ambiental e significativa fonte de renda da localidade, a partir da pesca.Por o assentamento se encontrar em uma posio privilegiada dentro da cidade numa rea central e rodeada de vias importantes e com boas condies de infra-estrutura , seus moradores se deparam com uma situao contraditria: ora so beneficiados, pois desfrutam do fcil acesso a diversas reas do municpio; ora so prejudicados, pois suas casas viram alvo dos interesses imobilirios, uma vez que se situam numa regio cujos terrenos do entorno prximo so bastante valorizados (FASE, 2004).

A ocupao da rea, que aconteceu lentamente no sculo XX atravs do aterramento e ocupao por palafitas no entorno de viveiros de peixes e margens de vias e canais, se intensificou a partir do final dos anos 70, atravs da luta pela posse da terra e urbanizao. Em 2000, a Empresa de Urbanizao do Recife URB/Recife realizou uma Pesquisa Scio-econmica Fsico-fundiria (TABAIARES, 2000), que identificou 1.098 imveis ocupando uma rea de 7,4ha e populao de cerca de 4.200 de domiclios). Na comunidade, onde no se v ruas arborizadas, tambm no existem praas, reas verdes ou espaos de lazer (figura 05). A relao entre as pessoas e o lazer acontece principalmente nas vias locais onde suas poucas ruas principais tm largura mxima de cerca de 05 metros, as secundrias, 03 metros e as vielas locais no passam de 02 metros de largura, existindo em todos os trechos da comunidade como principais acessos maioria das residncias. No entorno existe uma ilha bastante arborizada e que serve de lazer com 03 campos de futebol e renda a partir dos viveiros de peixe Figura 06 Canal Foto: Acervo da FASE Figura 05 Vista area parcial fonte: Acervo da FASE

habitantes. Na pesquisa foram colhidos dados de apenas 895 domiclios (81,51% do total

29

e camaro. A ilha do Zeca uma Zona Especial de Preservao Ambiental (ZEPA) do municpio por efeito de lei conquistada a partir da mobilizao da localidade em 2002. A comunidade constituda predominantemente de construes horizontais de alvenaria e apenas nos pontos mais distantes da cidade formal e mais prximos do rio encontram-se palafitas de madeira. Nas ruas principais, mais retilneas e de ligao com a cidade, percebem-se os lotes de maior dimenso, acima de 60 metros quadrados. Nas secundrias, lotes menores entre 30 e 60 m2 e, nas vielas locais, tortuosas e irregulares, prevalecem os lotes inferiores a 30 m2. Em todos os casos de vias, sobressaem as situaes de ocupao total do lote e a insalubridade de cmodos ou de toda a habitao pela falta de ventilao, iluminao natural e revestimentos nas construes, bem como pela grande presena de umidade. 3.2 Aspectos socioeconmicos Segundo pesquisa da URB Recife, 58% das residncias so chefiadas por mulheres, 65% da populao em idade escolar no completou o 1 Grau, menos de 0,5% completaram o 3 grau e 15% no so alfabetizadas. Ainda, cerca de 48% dos indivduos encontra-se com idade at 19 anos, mais de 55% da populao em Idade Ativa no possui fonte de renda, de modo que a renda mdia inferior a um salrio mnimo, conseguida principalmente no mercado de trabalho informal a partir de atividades de comrcio e servios na prpria casa ou no entorno da comunidade, bem como a aqicultura em viveiros de camaro e peixes nos cursos dgua contguos comunidade.Assim, quando se levam em considerao o nvel de remunerao do conjunto da populao e a precariedade das condies de trabalho; o aumento do nmero de mulheres chefes de famlia, sobretudo as sem renda; o baixo nvel de instruo e profissionalizao dos jovens e o crescimento da marginalidade e da violncia; o panorama bastante preocupante. Este quadro de excluso, cada vez mais progressivo, associado ausncia de polticas pblicas voltadas para grupos vulnerveis, pe em relevo a situao de violao de direitos na ZEIS (FASE, 2004).

Quanto organizao comunitria, Caranguejo/Tabaiares, apresenta uma rede dinmica de organizaes comunitrias (05 organizaes de moradores), religiosas, esportivas (10 times e a Liga de Domin) e culturais (04 grupos). No entanto, apesar de toda esta pluralidade de iniciativas, muitas vezes as mobilizaes so frgeis, sobretudo pela no concretizao de aes que tragam melhoria efetiva na qualidade de vida da populao (FASE, 2004).

30

Alm da Escola Municipal Mrcia de Albuquerque recm construda, existem 02 escolas comunitrias na localidade e uma escola estadual prxima que atendem toda a populao infantil. Outro equipamento importante para a comunidade a Unidade de Sade Municipal que, alm do atendimento no posto, desenvolve aes em cada residncia a partir dos programas de Sade da Famlia e de Sade Ambiental. 3.3 Infraestrutura e a sade da comunidade Sobre o abastecimento de gua, a comunidade encontra-se no distrito de abastecimento 27 (Mustardinha), parcialmente implantado e com calendrio de abastecimento para o ms de agosto, com 20 horas com gua e 28 sem conforme tabela 05. Apesar deste calendrio afirmar que o perodo de abastecimento previsto est entre as 12 e s 8 horas do dia seguinte, por estar na ponta da rede, em observao realizada na comunidade percebe-se que o acesso gua varia de acordo com as ruas. Nas ruas prximas cidade formal, o abastecimento se inicia entre 14 e 17 horas e termina entre 04 e 06 horas do outro dia, enquanto que nas residncias no meio da comunidade o perodo entre as 19 e 02 ou 04 horas do dia seguinte (inclusive no posto de sade local). Para os moradores que esto nos pontos mais distantes da comunidade, a situao varivel e a populao no sabe ao certo os perodos de abastecimento. Foram detectados in loco casos em que o abastecimento acontece a cada 03 dias ou apenas 01 vez por semana das 4:00 s 5:30h. Em todas as ruas da comunidade, percebe-se que a presso insuficiente, e a gua do abastecimento, no consegue atingir torneiras de pia, descargas ou chuveiros, apenas torneiras no nvel do solo. Tal situao, associada a indicadores de doenas de veiculao hdrica, apresenta a localidade com risco mdio no mapa de risco da gua, construdo pela Secretaria de Sade do Recife. Tabela 05 calendrio de abastecimento para o bairro da Ilha do RetiroDIAS 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20, 22, 24, 26, 28, 30 HORRIOS Previsto das 12:00h s 8:00h do dia seguinte (20h x 28h) Fonte: COMPESA, 2006.

Segundo dados do IBGE (1991), 100% dos domiclios encontravam-se ligados rede geral de abastecimento de gua, mas 56,5% no possuam canalizao interna. A tabela 06, construda com dados da pesquisa da URB, apresenta outra realidade.Hoje, a situao de abastecimento ainda um tanto comprometida, pois, apenas poucos domiclios apresentam instalao interna, sendo os outros feitos por meio de pena d'gua, de

31 poos e at mesmo inexistente), obrigando moradores a armazenar gua em containers e recipientes, principalmente a parcela da populao residente em palafitas (FASE, 2004).

Tabela 06 Abastecimento de gua TIPO/REA Instalao na casa Pena d'gua Poo no terreno Poo Outros No informado Total Campo Tabaiares CaranguejoAbsoluto Percentual Absoluto Percentual

ZEISAbsoluto Percentual

188 262 14 8 34 124 630

29,8% 41,6% 2,2% 1,3% 3,1% 19,7% 100,0%

197 138 4 4 42 83 468

42,1% 29,5% 0,8% 0,8% 9,0% 17,7% 100,0%

385 400 18 12 76 207 1098

35,1% 36,4% 1,6% 1,1% 6,9% 18,8% 100,0%

Fonte: FASE, 2004.

Quanto ao esgotamento sanitrio, 61,2% da populao de Campo Tabaiares contam com banheiros privativos, assim como 74% em Caranguejo, estando o restante destinado ao uso de banheiros coletivos (figura 07), segundo a pesquisa da URB (TABAIARES, 2000: 46). Figura 07 Banheiro coletivo - fonte:CAMPELO DE MELO, 2000. Em 1997, foi implantado o sistema de esgotamento sanitrio na Comunidade e a construo de 125 moradias pela Companhia de Habitao Popular de Pernambuco (COHAB). Na ocasio, foram implantados ramais coletores internos e externos aos lotes, rede coletora e construda uma Estao Elevatria, ligada rede coletora da COMPESA, com destino final na Estao de Tratamento de Esgoto Cabanga. No entanto, na prtica o Sistema funcionou satisfatoriamente por apenas cerca de um ano, quando surgiram freqentes obstrues na rede e ramais coletores. Assim, muitos moradores so obrigados a fazer orifcios em paredes de banheiros, conduzindo os dejetos rua e evitando que esses inundem suas residncias. Porm, uma conseqncia deste fato, que a maioria das vias apresenta esgoto a cu aberto, o que promove alagamento de ruas e, no muito raro, de casas tambm (FASE, 2004).

Em 2004 a Secretaria de Saneamento do Recife, organizou um Diagnstico Tcnico dos Sistemas de Esgotamento Sanitrio do Recife (RECIFE, 2004), que demonstra o mau funcionamento do sistema de esgotamento implantado, informando que a maioria dos domiclios no foi beneficiada, que o sistema estava completamente danificado e a estao elevatria encontrava-se paralisada. Assim, atualmente mais de 53% dos domiclios lanam o esgoto em valas a cu aberto (tabela 07).

32

Tabela 07 Eliminao dos dejetos TIPO/REA Rede geral Rede galerial Fossa Vala a cu aberto Inexistente No informado Total Campo Tabaiares CaranguejoAbsoluto Percentual Absoluto

ZEISPercentual

Percentual Absoluto

105 55 56 233 61 120 630

16,6% 8,7% 8,9% 37,0% 9,7% 1,9% 100,0%

11 9 3 355 7 83 468

2,3% 1,9% 0,6% 75,8% 1,5% 17,7% 100,0%

116 64 59 588 68 203 1098

10, 6% 5,8% 5,4% 53,5% 6,2% 18,5% 100,0%

Fonte: FASE, 2004.

A Secretaria Municipal de Sade mantm uma equipe do Programa de Sade da Famlia (PSF) formada por seis especialistas e sete Agentes Comunitrios de Sade, que assiste 1031 famlias da ZEIS. Alm disso, tambm cobrem as comunidades dois Agentes de Sade Ambiental. Por esses profissionais foram identificados casos de dengue, filariose, tuberculose, leptospirose e Doenas Sexualmente Transmissveis (DST), dentre outras de grave conseqncia, evidenciando o alto nvel de precariedade da sade da populao, decorrente, sobretudo, da situao social, econmica e ambiental natural e construda existente na rea (FASE, 2004).

Em 2002, foi realizado um Estudo Urbanstico da ZEIS Caranguejo/Tabaiares (TABAIARES, 2002) que Figura 08 Esgoto na Rua Poetisa Maria C. Maia fonte: Acervo FASE.

identificou a precariedade da condio urbana da comunidade, propondo remoes (tabela 08): Traado urbano irregular, residncias sem acesso direto, pontos de

alagamento, vias no pavimentadas, construes em rea non aedificandi e 178 palafitas sem acesso a qualquer infraestrutura de abastecimento de gua, energia e coleta de esgoto (figuras 08 e 09). Tabela 08 Remoes propostas para a ZEIS Caranguejo/TabaiaresREMOES PROPOSTAS MotivoDe lote sem acesso individualizado De lote com rea inferior a 18m De lote em rea non aedificandi (rio) De lote em rea non aedificandi (canal) De cadastros precrios Para desobstruo viria/reas verdes Para otimizao do reparcelamento (criao de lotes novos)

Quant.11 66 178 176 148 19 29

Total

624

Fonte: Estudo Urbanstico da ZEIS Caranguejo/Campo TABAIARES (2002).

Figura 09 habitaes precrias Fonte: Acervo daFASE

33

CAPTULO 04 RESULTADOS: OS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DO RACIONAMENTO 4.1 Conceito de impactos socioambientais Ao tratar dos significados do termo impacto socioambiental percorre-se um vasto campo de definies e sentidos. De imediato percebe-se que as relaes entre ambiente e sociedade so ntimas e comuns. Para Mendona, quando as questes ambientais afloram torna-se muito difcil excluir suas repercusses sociais. Pois os problemas e questes de ordem ambiental so, principalmente, de ordem social, dado que a noo de problema uma abstrao exclusivamente humana. (MENDONA, 2004: 188) Tais questes so percebidas em qualquer regio do planeta, contudo a arena onde se percebem de forma mais evidente e aguada nas cidades de grande porte. Segundo Jacobi,No geral, observa-se um crescente agravamento dos problemas ambientais nas metrpoles, j que o modelo de apropriao do espao reflete as desigualdades scio-econmicas imperantes, sendo o perodo marcado pela ineficcia ou mesmo ausncia total de polticas pblicas para o enfrentamento destes problemas, predominando a inrcia da Administrao Pblica, na deteco, coero, correo e proposio de medidas visando ordenar o territrio do Municpio e garantir a melhoria da qualidade de vida (JACOBI, 2004: 171).

Percebe-se a relevncia dos aspectos sociais como fatores de conformao da problemtica ambiental nas cidades, determinando ao ambiente urbano uma centralidade, que habitualmente disputada pelo ambientalismo tradicional.Del lado del ambientalismo los primeiros intentos de definir al medio ambiente urbano partieron de las caracteristicas proprias de los ecosistemas naturales. Por supuesto de la crtica a esta interpretacin se present rpidamente, primeiro porque la ciudad es obviamente um producto social; segundo porque el ser humano no tiene un nicho ecolgico, por cuanto su presencia en el ciclo de vida no s slo adaptativa y evolutiva, sino substancialmente transformadora; y, tercero, porque se dejaban de lado las recprocas determinaciones de lo natural y lo social (PNUD/UNOPS, 1997 in: MENDONA, 2004: 194)

O conceito de impacto socioambiental possui relao direta com o sentido de impacto ambiental e, segundo Fernandes, a noo de impacto ambiental surgiu na dcada de 1960, com a situao da poluio industrial nas cidades e apenas na dcada de 1980, passou-se a falar em impacto socioambiental e posteriormente em sustentabilidade, requerendo um enfoque interdisciplinar e integrado para a questo ambiental (FERNANDES, 2004:107).

34

Sobre impacto ambiental, segundo o art. 1 da Resoluo do CONAMA n 001, de 23.01.86, trata-se dequalquer alterao das propriedades fsicas, qumicas e biolgicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetem: (i) a sade, a segurana e o bem-estar da populao; (ii) as atividades sociais e econmicas; (iii) a biota; (iv) as condies estticas e sanitrias do meio ambiente; e (v) a qualidade dos recursos ambientais.

Mas, ao reduzir o conceito de impacto s alteraes de ordem fsica, qumica ou biolgica, a Resoluo direciona a um significado de grandeza tcnico-instrumental distante da dimenso processual, requ