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MODOS DE MORAR EM NATAL: onde está a família intergeracional? Lucia Helena Costa de Góis Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo PPGAU – UFRN Françoise Dominique Valéry Departamento de Arquitetura e PPGAU – UFRN Resumo Propõe-se apresentar questionamentos acerca das formas de morar de famílias intergeracionais de idosos e com idosos, compostas também por adultos, jovens e/ou crianças, pertencentes às camadas sociais média-alta e alta, no Brasil. Constatou-se escassez e lacunas no tratamento da família intergeracional, nos estudos histórico-socio antropológicos bem como nos estudos na área de arquitetura e urbanismo, no que se referem, por exemplo, às relações entre tipologias de moradias e formatos de famílias no Brasil. Encontrou-se nos estudos de Tramontano (1998; 2000) preocupações com as características da família nuclear e da unidade doméstica unipessoal em oposição à família extensa, que vão dos limites desejáveis do espaço privado da habitação, que assegurem condições para o desenvolvimento de novas relações sociais e com as relações já existentes, aos novos desenhos que poderiam corresponder a cada espaço da casa. Os estudos de Kapp (2005) relacionam moradia e tipologia de família, tendo como escopo camadas populares. Os estudos de habitações multifamiliares de Amorim (2001) estabelecem critérios para comparar as diferentes formas de organização familiar e as soluções arquitetônicas encontradas por famílias que habitam condomínios verticais. A investigação, em nível de tese de doutorado, fundamenta-se em Mercado-Doménech (1988) e se utiliza da sua teoria dos espaços individuais e coletivos, em uma residência, para descrever e analisar as atuais formas de morar. Objetiva desconstruir ou reconstruir o(s) modelo(s) de habitação contemporânea projetada e construída independente dos formatos de família, sem considerar o novo modelo que está se gestando: o da família intergeracional. No trato da relação entre espaço vivido e cotidiano da família intergeracional e tipos de residências, o estudo se apropria da teoria do espaço cotidiano de Lefebvre (1991) ao considerar que este seria o lugar das ambigüidades das relações sociais, enquanto espaço construído através da percepção de sujeitos pertencentes a várias gerações. Palavras-chave: Família intergeracional. Modos de vida. Condomínios fechados. Natal. Introdução O presente artigo se propõe apresentar questionamento(s) acerca das formas de morar de famílias intergeracionais de idosos e com idosos, compostas também por adultos, jovens e/ou crianças, pertencentes às camadas sociais média-alta e alta, no Brasil. Parte da constatação de que, em decorrência da transição demográfica pela qual passa o Brasil e das transformações advindas nas famílias contemporâneas, assiste-se a multiplicação de famílias contando com várias gerações (pais-filhos-netos ou pais-filhos-netos-bisnetos ou qualquer outro arranjo em família de idosos com parentes e agregados de diversas gerações). Por si só, trata- se de uma verdadeira revolução demográfica e social que obriga diferentes gerações a conviverem umas com as outras, tanto na esfera familiar como na esfera social, numa conjuntura contemporânea profundamente diferente do passado. Foi o que constatei como Assistente Social, em função de minha prática profissional e de minha trajetória de pesquisadora, ao deparar-me com evidencias empíricas contemporâneas da existência de famílias em que várias gerações tentam conviver sob o mesmo teto, encontrando dificuldades para adquirir, alugar, planejar, reformar ou simplesmente achar um teto que pudesse

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MODOS DE MORAR EM NATAL: onde está a família intergeracional?

Lucia Helena Costa de GóisPrograma de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo PPGAU – UFRN

Françoise Dominique Valéry

Departamento de Arquitetura e PPGAU – UFRN

Resumo Propõe-se apresentar questionamentos acerca das formas de morar de famílias intergeracionais de idosos e com idosos, compostas também por adultos, jovens e/ou crianças, pertencentes às camadas sociais média-alta e alta, no Brasil. Constatou-se escassez e lacunas no tratamento da família intergeracional, nos estudos histórico-socio antropológicos bem como nos estudos na área de arquitetura e urbanismo, no que se referem, por exemplo, às relações entre tipologias de moradias e formatos de famílias no Brasil. Encontrou-se nos estudos de Tramontano (1998; 2000) preocupações com as características da família nuclear e da unidade doméstica unipessoal em oposição à família extensa, que vão dos limites desejáveis do espaço privado da habitação, que assegurem condições para o desenvolvimento de novas relações sociais e com as relações já existentes, aos novos desenhos que poderiam corresponder a cada espaço da casa. Os estudos de Kapp (2005) relacionam moradia e tipologia de família, tendo como escopo camadas populares. Os estudos de habitações multifamiliares de Amorim (2001) estabelecem critérios para comparar as diferentes formas de organização familiar e as soluções arquitetônicas encontradas por famílias que habitam condomínios verticais. A investigação, em nível de tese de doutorado, fundamenta-se em Mercado-Doménech (1988) e se utiliza da sua teoria dos espaços individuais e coletivos, em uma residência, para descrever e analisar as atuais formas de morar. Objetiva desconstruir ou reconstruir o(s) modelo(s) de habitação contemporânea projetada e construída independente dos formatos de família, sem considerar o novo modelo que está se gestando: o da família intergeracional. No trato da relação entre espaço vivido e cotidiano da família intergeracional e tipos de residências, o estudo se apropria da teoria do espaço cotidiano de Lefebvre (1991) ao considerar que este seria o lugar das ambigüidades das relações sociais, enquanto espaço construído através da percepção de sujeitos pertencentes a várias gerações.

Palavras-chave: Família intergeracional. Modos de vida. Condomínios fechados. Natal.

IntroduçãoO presente artigo se propõe apresentar questionamento(s) acerca das formas de morar de

famílias intergeracionais de idosos e com idosos, compostas também por adultos, jovens e/ou crianças, pertencentes às camadas sociais média-alta e alta, no Brasil.

Parte da constatação de que, em decorrência da transição demográfica pela qual passa o Brasil e das transformações advindas nas famílias contemporâneas, assiste-se a multiplicação de famílias contando com várias gerações (pais-filhos-netos ou pais-filhos-netos-bisnetos ou qualquer outro arranjo em família de idosos com parentes e agregados de diversas gerações). Por si só, trata-se de uma verdadeira revolução demográfica e social que obriga diferentes gerações a conviverem umas com as outras, tanto na esfera familiar como na esfera social, numa conjuntura contemporânea profundamente diferente do passado.

Foi o que constatei como Assistente Social, em função de minha prática profissional e de minha trajetória de pesquisadora, ao deparar-me com evidencias empíricas contemporâneas da existência de famílias em que várias gerações tentam conviver sob o mesmo teto, encontrando dificuldades para adquirir, alugar, planejar, reformar ou simplesmente achar um teto que pudesse

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abrigá-las a contento.

Além disso, a pesquisa decorre de profundo interesse pessoal, decorrente das jornadas incessantes, percorrendo os bairros de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, a procura de casa ou apartamento com o mínimo de estrutura para comportar uma família intergeracional, a minha (composta por um sobrinho de cinco anos, outro de 18 anos, mais três irmãs, duas solteiras e uma divorciada, ao total sete pessoas de gerações diferentes) que necessita de espaço, assim como cada membro da família tem direito de ver atendida suas necessidades.

Realidade que se configura inabitual, inadequada até, quando confrontada ao “morar bem” veiculado pelos slogans de imobiliárias, do tipo A felicidade não tem preço, tem endereço..., como forma de atrair possíveis compradores de casas ou apartamentos em enclaves ou condomínios fechados, tendo como suporte de comercialização a melhoria da qualidade de vida dos condôminos, bem como a questão da segurança. Mas não tem nada a propor para resolver a necessidade de espaço da família intergeracional.

Portanto, minha formação em Serviço Social (Graduação da UERN e Mestrado na UFPB) e os estudos e pesquisas realizados há mais de dez anos sobre as diferentes configurações de famílias no Brasil foram também fatores decisivos para escolher como objeto de estudo no Doutorado (que estou realizando atualmente no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN) as formas de morar de famílias intergeracionais de idosos e com idosos, compostas também por adultos, jovens e/ou crianças, pertencentes às camadas sociais média-alta e alta, no Brasil.

No intuito de contribuir para a reflexão acerca deste objeto singular, apresento as contribuições teórico-conceituais mais relevantes à construção do objeto; a seguir focalizo as dimensões essenciais de espaço social vivido e cotidiano, numa releitura a partir de Lefebvre;

Contribuições teórico-bibliográficas à construção do objeto

A pesquisa preliminar para montagem do projeto de tese mostrou a escassez de trabalhos e as lacunas no tratamento dado à família intergeracional, nos estudos de cunho histórico, socioantropológico, bem como na área de arquitetura e urbanismo, especificamente no que se referem às relações entre tipologias de moradias e formatos de famílias no Brasil, sem contar os silêncios no tocante a este aspecto do processo de envelhecimento.

Pretendo revisitar estudos relativos à vida privada e a configuração do espaço doméstico, que abordam a temática desde o século XIX, especialmente o período em que a colônia se firmou, mas precisamente em 1808, ano em que a Família Real Portuguesa se estabeleceu no Brasil, porque significa trazer à memória ou à história os tipos de moradias que eram construídos no Brasil e como mudanças profundas ocorreram no modo de vida e nas formas de morar dos seus habitantes. Pois, foi durante este século que a sociedade brasileira começou a sofrer várias transformações como a consolidação do capitalismo; uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e com ela o surgimento de uma mentalidade burguesa que tinha o poder discricionário de reorganizar as vivências familiares e domésticas, bem como do tempo e das atividades de cada um (D’INCAO, 2000).

Portanto o que se propõe apreender é como as transformações na família se repercutem no âmbito da casa, do ambiente residencial. Na verdade a casa, residência ou lar como um todo, onde existem vários lugares e cenários constituem o nosso primeiro universo [...] o nosso canto do mundo [...] quando realmente habitado traz a essência de noção de casa. (BACHELARD, 2008, p. 24-25). (Grifo Nosso)

Há diferenciação entre lar ou residência nos estudos arquitetônicos. Enquanto residência é a estrutura física que serve de moradia, como casa, apartamento, chalé; lar é o rico

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cenário envolvendo significados culturais, demográficos e psicológicos que nós agregamos àquela estrutura física o que torna necessário, segundo o autor duas definições: uma para residência e outra para o lar (GIFFORD, 1997). Lar tem uma conotação mais afetiva e pessoal (PERROT, 1991).

Segundo Certeau (1998) o espaço doméstico, a casa da gente é antes de tudo o lugar em que a gente se sente em paz onde se repetem dia a dia os gestos elementares da arte de fazer. É um lugar próprio que, por definição, não poderia ser o lugar de outrem (CERTAU, 1998, p. 203). Embora o autor faça referência ao visitante como intruso a menos que tenha sido explícita e livremente convidado a entrar (p. 203, 1998) acredito que o manter-se à distância, não é prerrogativa só dos visitantes, mas vale também para os de casa. Personalizar a moradia implica mudanças complexas quando não existe unipessoalidade no habitat, mas multigerações com suas preferências, níveis de renda e ambições sociais diferenciados. Apesar de privado o espaço da casa não deixa de ser coletivo. Não é mais o espaço privado que quase não se trabalha, pois com a informatização da sociedade uma parte da casa, se transforma em escritório ou home Office já que é bastante comum, hoje, várias pessoas trabalharem novamente em suas residências.

Falar de espaço privado ou de formas de morar requer evidenciar que a dimensão espacial apresenta importância fundamental para a compreensão do comportamento humano (PINHEIRO e ELALI, 1998, f.1), fenômeno geralmente estudado como parte do processo de comunicação interpessoal e como um dos mediadores da inter-ação pessoa-ambiente (idem, f.3). Ao discutir a dimensão espacial, os autores desenvolvem diferentes abordagens tais como: espaço pessoal, abordagem proxêmica e territorialidade. Dentre estes a abordagem proxêmica me parece a mais apropriada para ilustrar o tipo de percepção espacial, entre estes os de características fixas, como por exemplo, cômodos da casa e o espaço privado.

Como visualizar, então, uma residência? Corroborando com Mercado-Doménech (1988): a partir da perspectiva da teoria dos sistemas como uma estrutura de lugares e objetos desenhados, interconectados entre si, onde se pode criar condições para que se emitam os comportamentos individuais e grupais, ou seja, criar um cenário que torne possível a vida familiar.

O autor seleciona diferentes níveis para que torne este cenário possível: o primeiro, nível do mobiliário tanto fixo, quanto móveis, entre estes banheiros, portas, mesas, camas, respectivamente, que cria facilitadores que induz a manifestação de comportamentos. O segundo nível os cômodos, analisados como unidades integrais que operam lugares para o cenário. O terceiro nível a casa como um todo, vista como uma estrutura e com múltiplos cenários que permitem que a instituição cumpra com sua função. E o quarto nível constitue a casa em relação com seu entorno imediato, como o jardim, a rua, o bairro e outros.

Em se tratando de habitabilidade, Mercado-Doménech (1998) enfatiza que é imprescindível fazer a distinção entre casa e lar, sendo a primeira definida como unidade espacial em um ambiente construído e lar aonde se vive a família. A casa como estrutura arquitetônica significa proteção para os membros da família, o lugar para se desenvolver e manter as relações interpessoais cuja qualidade deve ser construída com base no perfil que determina seus moradores conforme as suas necessidades e atividades, expectativas, desejos e sonhos (grifos meus).

Questiono, fundamentada em Tramontano (1998), que modelos ou desenhos poderiam corresponder cada espaço da casa ao estilo, necessidade, desejos e sonhos de moradores tão diversificados quanto são os membros de uma família intergeracional?

Pensar o modelo ou modelos para cada espaço da casa, para o estilo de seus moradores, é pensar o cotidiano, já que este não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico que é a verdadeira essência da substância social como sugere Heller (1985). Pois a vida cotidiana é a vida do indivíduo, indivíduo que é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico. (HELLER, 1985, p.20). Ser com suas necessidades e desejos.

Encontrei nos estudos de Tramontano (1998; 2000) e de seu grupo de pesquisadores (USP São Carlos) preocupações com as características da família nuclear e da unidade doméstica

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unipessoal em oposição à família extensa. Os estudos vão dos limites desejáveis do espaço privado da habitação, que assegurem condições para o desenvolvimento de novas relações sociais e com as relações já existentes, aos novos desenhos que poderiam corresponder a cada espaço da casa (aspectos formais e de desenho).

Por sua vez, os estudos de Kapp (2005) relacionam moradia e tipologia de família, tendo como escopo necessidades e aspirações das camadas populares urbanas em termos de provisão habitacional. Mas não aborda as necessidades e aspirações das famílias intergeracionais, nem as dessas famílias pertencentes as camadas média e alta, onde também constatei dificuldades na hora de encontrar uma moradia correspondente a seus anseios de convivência.

Os estudos de habitações multifamiliares de Amorim (2001) estabelecem critérios para comparar as diferentes formas de organização familiar e as soluções arquitetônicas encontradas por famílias que habitam condomínios verticais. Salientam o impacto das transformações da moradia sobre a “domesticidade perdida” (espaços de convívio, espaços de intimidade), portanto muito tem a contribuir para o nosso estudo, embora não tenha abordado a questão da família intergeracional.

No trato da relação entre espaço vivido e cotidiano da família intergeracional e tipos de residências, considera-se válido recorrer também a teoria do espaço cotidiano de Lefebvre (1991), lugar das ambigüidades das relações sociais, enquanto espaço construído através da percepção de sujeitos pertencentes a várias gerações. Lefebvre enriquece o estudo quando demonstra a importância das categorias de espaço (“o percebido”, “o diretamente vivido” e “o concebido”) e as conexões entre subjetividade e produção do espaço social.

Para a minha investigação, fundamento minha abordagem nos diferentes aportes da psicologia ambiental (do psicólogo mexicano Mercado-Doménech, acerca das relações entre comportamento e ambiente construído), bastante relevante nos estudos sobre modos de morar das famílias intergeracionais, ja que:

Los cuatro conceptos más tratados en la psicología ambiental son la privacía, la territorialidad, el espacio personal y el hacinamiento, muy estrechamente interrelacionados y a los que Stokols (1978) agrupó bajo el rubro de conducta espacial humana […] La privacía (el control del acceso de los demás hacia nosotros), la territorialidad (la personalización, propiedad y defensa de áreas y objetos), el espacio personal (las distancias que guardamos entre nosotros) y el hacinamiento (proceso psicológico que lleva al deseo de reducir el contacto con otros), pueden incluirse dentro de lo que Hall (1960) denominó “proxémica”, que son las observaciones y teorías interrelacionadas del empleo que del espacio hace el hombre. El mismo Hall propuso la existencia de cuatro distancias (íntima, personal, social y pública), determinadas culturalmente y de observancia general (MERCADO DOMENECH, 2009).

Pretendo utilizar a sua teoria dos espaços individuais e coletivos, em uma residência, para descrever e analisar as atuais formas de morar (uso de entrevistas, levantamentos fotográficos, elaboração e superposição de mapas cognitivos), combinando-a aos estudos históricos e antropológicos, no intuito de desconstruir ou reconstruir o(s) modelo(s) de habitação contemporânea projetada e construída independente dos formatos de família, sem considerar o novo modelo que está se gestando: o da família intergeracional.

Espaço social vivido e cotidiano

Lefebvre, no capítulo de que trata espaço social e tempo social, da obra Critique de La vie quotidienne (1961), mostra que há uma distinção entre tempo social (ou sociais) dos tempos biológicos, fisiológicos, psíquico, assim como na questão do espaço social ou cotidiano. Este, o espaço, se diferencia do espaço geométrico que têm quatro dimensões, que se opõem umas as

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outras: direita-esquerda/alto-baixo. Da mesma forma que o tempo cotidiano tem quatro dimensões diferentes (o concluído, o previsto, a incerteza, o imprevisível, ou ainda, o passado, o atual, o futuro em curto prazo, o futuro ao longo prazo). A idéia básica de Lefebvre para a questão do espaço social, na sua obra acima citada (1961, p.233) é que subjetivamente ele é o ambiente do grupo e do indivíduo no grupo, é o horizonte ou centro do qual se situam e no qual eles vivem. A extensão dos horizontes varia com os grupos, com as situações, com as atividades particulares.

Espaço seria segundo Lefebvre, citado por Valério (2009), o lugar das ambigüidades das relações sociais, habitado pelas representações, cujos pequenos mundos se articulam com o saber, os sonhos, as lembranças e as ficções. Ou seja, o espaço das relações sociais do dia a dia, é o bairro, a casa, enfim é o lugar, que não deve ser confundido simplesmente como espaço geométrico, mas o espaço construído através da percepção dos sujeitos, ou o espaço cotidiano.

Quanto ao tempo social o filósofo insiste na diferença e na relatividade dos tempos cíclicos e dos tempos lineares. Os primeiros, sabemos, têm a sua origem com base na natureza, pertencem aos ritmos profundos, cósmicos, vitais; os segundos estão ligados ao conhecimento, à razão, à técnica; não estão correlacionados aos ritmos e aos processos vitais, mas aos processos de crescimento econômico e tecnológico.

O filósofo coloca que é na riqueza do cotidiano que se esboçam as mais autênticas criações, os estilos e formas de vida em que se operam a renovação incessante dos homens: o nascimento e formação dos filhos, o desenvolvimento das gerações. E se uma imagem, uma arte ou um mito não se introduz na cotidianidade (no vivido) permanecem abstratos ou morrem. Já o inverso, os mais profundos desejos e as aspirações mais válidas se arraigam e permanecem nelas.

As sucessivas transformações do espaço social construído (no caso, a casa) estão relacionadas não só com as questões econômicas, mas com a trajetória de vida familiar, como nascimento e morte, por exemplo - ou ciclo familiar para alguns- mas também estão relacionadas com as modalidades de partilhas familiares, geração após geração, emancipação dos filhos, mobilidade geográfica.

Portanto, é necessário estabelecer relações entre as variações da estrutura do grupo familiar e suas condições habitacionais (tipologias de construção, os espaços internos, o mobiliário e o seu uso); suas realidades geográficas (materiais em função dos recursos locais, questões de ordem climática); suas condições históricas (entre o início de um século e final de outro) e sociais (os grupos familiares de menor poder aquisitivo não vivem, evidentemente, da mesma forma que os de maior poder aquisitivo) (COLLOMP, 2009, p.489).

Reconheço, contudo, que o presente estudo se depara com grandes dificuldades, quando ilustra a sociedade brasileira, haja vista a ausência de registros sobre formas de morar da família intergeracional. A dificuldade de registros sobre formas de morar não é prerrogativa da família intergeracional, pois os historiadores também tiveram dificuldades para descrever e compreender sobre a família nuclear extensa, ou não, no Brasil Colônia. Mas, se dificuldades de registros de famílias de escravos, brancos, mestiços são muitas as da família intergeracional são bem maiores.

Questiono, entretanto, se as dificuldades são provenientes do fato de que a moradia com várias gerações não existia; se houve desvios do olhar viciado do investigador para determinado tipo de família que não outros tipos; Ou, se devido a intensa miscigenação familiar, sob o mesmo nome patriarcal de família, em que a convivência entre irmãos por parte de pai determinou a mistura de raças e com esta miscigenação dificultou a apreensão ou inexistência de avós para que dessem prosseguimento a uma família intergeracional.

Na colônia, os domicílios eram de vários tipos: temporal e regionalmente delimitados, habitados por indivíduos de origens diferentes o que tornou impossível, ou quase impossível, captar nos documentos se a informação se refere a uma família ou a uma organização familiar. Segundo Algranti (1997, p.86) os dados sobre a vida doméstica, recolhidos em inventários e testamentos,

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escritos de viajantes, correspondências, não informam tampouco se os membros da família compartilhavam um cotidiano. O domicílio se sobrepõe à família numa análise desse tipo na medida em que as famílias, que geralmente eram constituídas de diferentes tipos de união, encontravam-se muito dispersas por longos períodos. A dispersão podia ter vários motivos: ora o pai se ausentava a serviço da Coroa, ou em virtude de suas atividades; ora o filho partia em expedição ao sertão; ora a filha que se casava fora do local do domicílio; ora abandono da família por maridos e esposas para viver com outros companheiros, além do rompimento de laços familiares em virtude de mortes prematuras (ALGRANTI, 1997, p.86).

O mesmo autor revela, ainda, vários tipos de domicílios com diferentes características, ou seja, domicílios, além dos já citados, coexistiam domicílios co-habitados por padres com suas escravas, amantes e afilhadas; ou então comerciantes solteiros com seus caixeiros. Domicílios com mães e filhos, porém sem maridos; ou um casal de cônjuge e sua concubina vivendo no mesmo teto.

Retomar todas as características que a família brasileira assumiu não faz parte do objeto de estudo, mas nos encaminha para recuperarmos os espaços da casa e quiçás do cotidiano da família intergeracional, em virtude das novas configurações que ela exibe na contemporaneidade, provenientes das mudanças sociais, econômicas ou políticas. Tampouco o estudo pretende determinar apenas o número de pessoas que compõem o grupo doméstico/familiar que sofre variações em função de nascimentos, mortes, separações; mas apreender como a família intergeracional decorrente das novas formas de vida da sociedade urbana globalizada, está em sintonia, ou não, com os novos tipos de moradia e como este processo se constituiu historicamente.

Todavia, fundamentada em Collomp (2009, p.487), identificar como os diferentes membros de um determinado grupo familiar dividiam ou dividem o espaço da casa, seja para dormir, comer, conversar ou trabalhar, não é suficiente para compreender as estruturas das construções e o funcionamento dos sistemas familiares, haja vista as especificidades de um país a outro, de uma região a outra, bem como a questão de tempo e espaço. Mas, observar os espaços domésticos e recuperar as atividades cotidianas é segundo Abrahão (2010, p.173) “penetrar em um dos domínios mais elucidativos da cultura, pois nos permite conhecer aspectos muito reveladores da estrutura de uma sociedade”.

Hoje, existe, pode-se dizer, corroborando com Motta (2007) que em função da alteração do calendário existencial tradicional nas trajetórias de vidas sociais[1] há quase que um excesso de co-habitação intergeracional com o patente aumento da longevidade da população e em conseqüência a questão da família detém-se na dimensão do envelhecimento e nela no papel dos mais velhos.

A questão da intergeracionalidade na família e suas formas de morar deve também ser vista a partir de sua horizontalidade ou verticalidade. Do ponto de vista da verticalidade considero apenas pessoas de uma mesma família nuclear; somente os avós, pais-filhos e netos; se olharmos na sua horizontalidade, aí sim, o estudo vai apreender outra composição somada a da família nuclear, entre esta se inclui os parentes próximos e agregados como mães viúvas ou irmãs solteiras, membros ou gerações de uma família, seja por laços de parentesco, seja por laços consangüíneos, ou famílias recompostas em função de matrimônios desfeitos e refeitos com outros cônjuges.

Portanto, questionar o espaço da família intergeracional que tem como referência o idoso não significa referir-se a um tipo de idoso que se configure como aquele indivíduo que está se despedindo da vida, mas a um indivíduo-idoso que está mudando de atitude (DALARI, 2010). Esta é uma possibilidade, portanto, realidade, que deve ser revista no momento de desenhar ou planejar o espaço de uma família intergeracional. Colocar barras em banheiros e corredores, tapetes antiderrapantes, rampas e todos os instrumentos necessários para a mobilidade e acessibilidade do idoso são obrigações já previstas em lei. Mas, porque não colocar para o idoso que se aposentou do trabalho, mas não se aposentou da vida, os equipamentos contemporâneos de lazer e comunicação, por exemplo, que atendam as suas necessidades? Necessário dar ao idoso várias opções de como

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deve ser o espaço do qual ele é elemento integrante. Preparar para ou preparar a velhice não significa preparar o idoso para o suicídio gradativo, para ir sendo posto do lado, não ter mais participação (DALLARI, 2010). É neste aspecto que devemos ter cuidado com o preconceito ao desenharmos ou planejarmos os espaços destinados aos idosos da família intergeracional, uma vez que o preconceito é uma característica do comportamento cotidiano.

Quem viu uma casa brasileira viu quase todas?Quem viu uma casa brasileira viu quase todas. Frase do engenheiro francês Vauthier,

que esteve em Pernambuco no século XIX, quando escreveu a um amigo relatando suas impressões sobre as residências no Brasil. Mas, havia diferenças sim. E por influência dos ingleses, portugueses, franceses e alemães, muitas das tendências modernizadoras, na forma de habitações e estilos de vida, foram trazidas pelos filhos legítimos, ou não, de fazendeiros ou senhores de engenho que estudavam na Europa. (FREYRE, 1986). Ou seja, as casas dos mais abastados dispunham de mais aposentos e geralmente enfileirados (ver figura 1).

Figura 1 – Exemplo de casa de campo no Brasil Colônia. Fonte: Lemos, 1996.

Rural ou urbano, as casas variavam muito de região, especialmente as moradias de

fazendas da região sudeste de Minas Gerais, com uma

[...] única cobertura abrigava a casa, os quartos de hóspedes, a moenda e até o próprio engenho, diferente do padrão do Nordeste, com suas construções isoladas, gravitando ao redor da casa-grande, que possivelmente permitiam maior privacidade no interior das casas (ALGRANTI, 1997, p.104-101).

Com a urbanização entre 1822 e 1888, houve uma conseqüente diminuição das casas grandes em substituição aos sobrados e chalés. No interior dos sobrados várias atividades se desenvolviam, para evitar deslocamento dos seus moradores, mas com o cuidado de separar diversas atividades. Seja loja, seja escritório, era sempre instalado no primeiro pavimento para que estranhos não invadissem espaços de convívio da família. No segundo andar, instalavam-se a sala e os quartos de tamanhos geralmente reduzidos, e no último andar a cozinha. A copa, por exemplo, apareceu como cômodo no início do século XX, e passou a reunir a família, em torno da mesa e do

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rádio. Mais tarde, os moradores seriam levados para a sala, atraídos pela televisão.

Na contemporaneidade, surgiram novas formas de morar, que como cita Gebara (2008) tem refletido “a reprodução do cotidiano das famílias que se complementam nas relações sociais, econômicas e culturais do espaço urbano” (f.07)., como por exemplo os condomínios fechados. Os apartamentos das camadas médias, de um modo geral, seja em condomínios fechados ou não, têm espaços não só reduzidos, como carecem de cômodos insuficientes para atender as necessidades não só da família intergeracional como de famílias constituídas por mais de quatro a cinco pessoas. Estes se limitam a dois quartos, no máximo três (de alto custo)[2] com apenas uma suíte, salas conjugadas, que servem na medida do possível como quarto de dormir caso a família receba hóspedes, ou até mesmo no cotidiano, no dia a dia da família. O pouco espaço, o da sala, tem que ser dividido: utilizam no mesmo ambiente sala de visita ou home office; ou para ser utilizado como sala de home theater e toda parafernália de equipamentos eletrônicos de uso diário. A televisão LCD em substituição ao monitor do computador ocupa menos espaço que os televisores comuns por isso tão incorporada pelos moradores.

Nas chamadas camada social alta, o espaço é bem superior e com um detalhe: grandes espaços e poucos moradores. Um apartamento de cobertura em Ipanema, no Rio de Janeiro, da Jet setter Andrea Dellal [3] que gosta de manter as raízes, tem, por exemplo, a seguinte estrutura: seis quartos e 600m² de frente para o mar com varanda, para uma família constituída por seis pessoas, além do neto que sempre vem ao Brasil. Na Barra da Tijuca, outro exemplo de apartamento de cobertura duplex de classe média-alta, é o da família Andrade: em princípio, ele (o apartamento) tem a cara dos donos, pois cada pedaço foi milimetricamente pensado e construído conforme o gosto de cada membro da família. O casal tem duas filhas. Cada andar tem suas varandas, tanto nas salas como em todos os quartos. Um dos espaços, tipo varanda, tem uma área de lazer com piscina, churrasqueira, onde se realizam festas, encontros casuais. A outra varanda, a do andar superior, localiza-se na parte que dá para o exterior da residência e tem uma espécie de jardim para receber amigos. Tem cozinha super equipada e sala de home teather. Com relação aos quartos, sejam dos donos, seja dos hospedes, têm o conforto necessário, todo mobiliado e aparelhado de eletro-eletrônicos iguais dos outros quartos. A diferença é que este é um pouco menor que os demais, mas dá para receber sem estresse uma quantidade de três hóspedes. Em relação ao ambiente de trabalho da dona da casa, que procura garantir um clima zen no ambiente que você percebe antes de subir a escada que dá para o mesmo. Este se situa no segundo andar da casa e funciona, além de escritório, espaço para meditação, já que a dona é adepta do esoterismo. O sofá que existe neste espaço, também tem a função de cama ou bicama quando a residência está com muitos hóspedes. O casal usufrui de um espaço privativo no primeiro andar, onde não se misturam os closets (cada um tem o seu), um de frente para o outro, varanda própria, único banheiro, com banheira de hidromassagem e bastante espaçoso. Aliás, a residência tem um total de seis banheiros, contando com o das secretárias; fora estes têm o da área de lazer e os lavabos, um total de três: um perto do hall, o outro que dá para a sala de jantar e outro que se situa na sala de home-theater. Não se percebe problemas relacionados ao espaço ambiental, no que tange a mobilidade e acessibilidade, bem como em relação a problemas psicológicos de adaptação tanto de seus moradores, quanto dos hóspedes e secretárias.

Ainda de acordo com Mercado-Doménech (1998) acredito que a habitabilidade das residências acima ilustradas, faz parte de um conjunto de condições físicas e não físicas que permitem a permanência humana nesta residência (não só de seus moradores, mas de visitantes e hóspedes), e em grau maior, ou menor, à gratificação das necessidades existenciais, cujos modelos

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ou desenhos, permitiram que esse controle de qualidade tivesse sido determinado devido à congruência entre expectativas e satisfações das mesmas e que tenham sido planejados e desenhados com o mais próximo e possível do ideal.

A arquitetura se transformou com o passar do tempo, os espaços foram reequacionados no interior das residências, como as cozinhas, por exemplo, que antes eram situadas na parte de fora da casa, passou a integrar o corpo desta. De forma vagarosa foram realizadas outras mudanças como casas que continham, e ainda contém em casas mais antigas, duas cozinhas: cozinha limpa a que fica de dentro da casa e cozinha suja[4]ou auxiliar ainda do lado de fora para os procedimentos de tarefas mais pesadas e menos higiênicas.

Explicações diversas foram dadas para o estabelecimento de cozinhas externas. O fogão, por exemplo, diferentemente nos países europeus, servia de espaço de aconchego e era em torno dele que a família se reunia. No Brasil era presença indesejável no interior das casas. Hoje, se não é o fogão (as cozinhas são todas aparelhadas, mas a maior parte do tempo ociosas em algumas residências) o ambiente de refeição que deixou de ser a sala de jantar (embora ainda continue com o espaço destinado a mesma) passa a ser o espaço da cozinha, geralmente com mesas pequenas ou projetadas para fins específicos que seja o de cozinhar e com menos gente possível. A sala de jantar até metade do século XX, antes cenário de sociabilidade e que refletia a personalidade da dona da casa, tinha a função de manter a imagem de homem público e social do chefe da família. (ABRAHÃO, 2010). Hoje, a tendência é integrar e ganhar espaço: cozinhas, salas de jantar e estar são, na maioria das casas e apartamentos, integrados com o intuito de ampliar os espaços delimitados somente pelo uso de móveis, como mostra a figura 2.

Figura 2 - Planta baixa do residencial Central Park em Natal - Fonte: Pesquisa de campo.

Em alguns apartamentos a cozinha não existe, o que existe é um pequeno espaço para se colocar o fogão perto de uma pequena pia, que mal dá para colocar os utensílios da refeição. E mesmo assim este espaço não é utilizado porque os atuais moradores preferem sair para realizar fora as suas refeições.

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O que deve ser enfatizado, também, são outros tipos de acomodação, no caso, o escritório ou Home Office, antes também designado gabinete[5]. Era um pequeno cômodo reservado ao dono da casa e geralmente próximo ao quarto do mesmo. Hoje, com as novas construções, especialmente apartamentos ou casas de condomínios fechados, mesmo que de camada social média-alta e alta, tende a desaparecer ou literalmente desapareceu ou foi relegado ao segundo plano apesar de cada vez mais as pessoas trabalharem em casa: em algumas residências o escritório é compartilhado com o closet; em outras se mistura em um espaço de cozinha; quarto de dormir; ou o quarto de empregada (e não mais a dependência completa de empregada) que também se transforma em escritório. Com a diferença que não se constrói mais dependência completa (quando tem banheiro este não é mais conjugado, mas situado do lado oposto na área de serviço).

Na verdade, há um diferencial enorme entre os diferentes espaços, evidentemente, entre uma moradia e outra. Portanto, como os resultados da pesquisa sobre “Modos de Morar na contemporaneidade” (VALERY, 2011) mostraram, quando se coloca em jogo uma família intergeracional, há incongruência entre este tipo de família e o espaço proposto, construído em edifícios de condomínios residenciais verticais. Porque a ampla aceitação deste produto então? Como a pesquisa mostra, esse modelo é aceito quase que por imposição aos moradores que se transformam em reféns de construtoras e imobiliárias (por falta de ofertas diferenciadas) ou porque os moradores das camadas sociais, especialmente média-alta, aceitam a proposta por mero interesse econômico (apartamento/investimento, sem perspectiva de morar) ou em busca de status social (aquisição de apartamento “de griffe”).

Conclusão ainda que provisória

Diversos fatores (emancipação feminina, mudanças socioeconômicas e interpessoais ligadas à banalização do divórcio, envelhecimento populacional e progressivo aumento da população idosa) estão contribuindo para que se multipliquem rearranjos extremamente criativos no espaço doméstico em função dos hábitos, necessidades, relações entre gênero e gerações e “adaptação” ao espaço construído. Criando formas de morar que não estão “em sintonia” com os novos tipos de moradia (GÓIS, 2009; VALERY, 2011).

Então onde está a família intergeracional? Várias pistas se apresentam. Com certeza, a pesquisa de campo que ora se inicia deverá permitir responder a tão intrigante pergunta.

Referências

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[1] Segundo Motta (2007), as alternativas nas trajetórias de vida, hoje, são numerosas e até polares; ou seja, o se estuda tardiamente, ou toda a vida. Têm-se filhos antes do casamento; ou com mais idade, até o limiar da velhice. Sai-se de casa “depois da hora”; se sai cedo pode retornar, por conta do desemprego ou pelo descasamento; ou então não se sai nunca.

[2] O custo do metro quadrado em Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte está em torno de R$ 4000,00 a R$ 5000,00 por m² em áreas consideradas nobres como bairro do Tirol ou Praia de Areia Preta.

[3] Mora em Londres, mas utiliza bastante o apartamento conforme entrevista a Revista Caras (2010).

[4] Cozinha limpa e cozinha suja são expressões utilizadas por Gilberto Freyre para designar a

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função das mesmas de acordo com os serviços utilizados fora ou dentro da residência.

[5] Dependendo do status e posses do dono da casa eram cômodos bastante grandes.