modernização e políticas públicas à luz da teoria da delimitação dos sistemas sociais

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  • 8/18/2019 Modernização e Políticas Públicas à luz da Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais

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    Modernização e Políticas Públicas à luz da

    Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais

     Ariston Azevedo (UFRGS)

    Renata Ovenhausen Albernaz (UFPel)

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    Introdução

     A intuição da redução sociológica constituiu-se em um momento marcante da trajetória intelectualdo sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos. Embora se perceba lampejos dessa intuição em seusescritos do início dos anos 1940 sobre a literatura latino-americana1, sua articulação em caráter maissistematizado se daria entre os anos de 1954 a 1958, quando viria à tona seu livro de título homônimo, Aredução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica , hoje certamente um clássico da sociologia brasileira.Neste livro, porém, a redução sociológica não foi apresentada em sua versão acabada mas em delineaçãoinicial, no caso, como ( i  ) “método de análise de concepções e de fatos sociais” (Guerreiro Ramos, 1965[1958], p. 53), ou mais precisamente, como “método de assimilação crítica da produção sociológicaestrangeira” ( idem , p. 16). Tratava-se da proposta de um método combativo, diante de uma constatação

    fundante, já exposta em seu livro Introdução crítica à sociologia brasileira , de 1957: “a disciplina sociológica, noBrasil e nos países de formação semelhante, como os da América Latina, tem evoluído até agora, segundoinfluências exógenas que impediam, nêles, o desenvolvimento de um pensamento científico autêntico ouem estreita correspondência com as circunstâncias particulares dêsses países.” (Guerreiro Ramos, 1957, p.19). Neste sentido, visava combater os “defeitos” de uma síndrome que acometia parte da tradiçãosociológica brasileira, a que ele denominava consular ou enlatada.2 

    Basicamente, essa síndrome se caracterizava pela presença de seis defeitos. S imetria   e Sincretismo assinalavam o fato de o sociólogo brasileiro está sempre disposto a acolher, mimeticamente, a produçãointelectual dos centros europeus e norte-americanos, sem adotar qualquer atitude crítica frente a esseconhecimento alienígena; e, ainda mais agravante, a proceder uma conciliação doutrinal das mais diversascorrentes de pensamento ou doutrinas produzidas no exterior. O dogmatismo  caracterizaria a postura

    submissa e apologética do cientista social deste país que, sem pestanejar, adotava e generalizava argumentosproferidos por autoridades reconhecidas ou grandes nomes da disciplina sociológica, de dois modos: nafala ou no discurso sociológico, principalmente na montagem mecanizada de textos ditos “científicos”, e naanálise factual da realidade à qual ele estaria diretamente vinculado. Uma decorrência direta do dogmatismoera o dedutivismo  que predominava na atitude científica do sociólogo brasileiro. Uma vez que às ideiasestrangeiras se atribuía um valor absoluto de verdade, a tendência era tomá-las como o ponto de partida noprocesso de compreensão ou explicação dos fatos da vida social brasileira. Dedutivista seria o sociólogoque desconsiderava as contingências históricas das nações, suas peculiaridades em termos de formaçãohistórica, pois somente pensava no sincronismo mecânico entre elas. Outra categoria desta síndrome queacometia a sociologia brasileira era a alienação. Segundo Guerreiro Ramos, a alienação decorria da condiçãodesplantada ou contemplativa que, via de regra, o sociólogo nacional assumia frente à sua realidadeimediata. Esta atitude explicava o fato de a nossa sociologia não ser, até aquele momento, “fruto deesforços tendentes a promover a autodeterminação” e o desenvolvimento da nação brasileira ( Idem , p. 22).

    1 Vide, a este respeito, texto de nossa autoria, intitulado A redução sociológica em status nascendi: os estudos literários de Guerreiro Ramos publicados na revista Cultura Política  (Azevedo & Albernaz, 2010).2 Em suas palavras: “há, hoje, no Brasil, duas sociologias: uma enlatada , que se faz, via de regra, nos quadros escolares e noâmbito confinado de reuniões e entidades particularistas de caráter acadêmico; e outra que se exprime predominantemente emcomportamentos e que se  pensa , por assim dizer, com as mãos , no exercício de atividades executivas e de aconselhamento nosquadros dos negócios privados e governamentais. A primeira, em larga escala, tem sido uma percepção ilusória da realidade dopaís; a segunda, espécie de crisálida, emerge da vida comunitária nacional e se encaminha no sentido de tornar-se umaautoconsciência das leis particulares da sociedade brasileira” (Guerreiro Ramos, 1957, p. 120). (destaques no original) 

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    Por fim, a inautenticidade . Ela seria o resultado de “todas as características anteriores”, pois punha à mostra aficção que era a sociologia produzida no Brasil, uma vez que o “trabalho sociológico” brasileiro não sefirmava em “genuínas experiências cognitivas” do sociólogo ( Idem , p. 23).

    Mas por ter sido escrito em uma época em que o autor se encontrava em pleno engajamentointelectual com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), com a docência no curso deadministração da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e iniciando o seu “namoro” com a política partidária, a

    edição de 1958 não correspondia ao projeto original pensado por Guerreiro Ramos, tendo sido apenas umaconcretização incipiente de suas proposituras. Além disso, o anseio por elaborar um método que pudesseauxiliar os sociólogos a capturarem a razão sociológica 3  da realidade imediata a que estavam expostos  –   arealidade nacional  – , e que os permitisse proceder de modo crítico-assimilativo em relação a todas asformas de conhecimento e de experiências estranhas àquela realidade, o levou a se concentrar, a princípio,em apenas uma das facetas conceituais do termo. Foi necessária uma segunda edição do livro, publicada em1965, para que o sociólogo revelasse, em prefácio4, os três “sentidos básicos” com os quais o termoredução sociológica era identificado, acrescentando, assim, ao primeiro sentido, outros dois, até entãoimplícitos em seus trabalhos anteriores: ( ii  ) a redução como atitude parentética5 e ( iii  ) como proposta de“superação da sociologia nos termos institucionais e universitários em que se encontra” (Guerreiro Ramos,1965, p. 16). 

    Contudo, apesar de trazer esclarecimentos sobre os três sentidos do termo, essa segunda ediçãod’A r edução Sociológica   apontava para estudos in limine , não fornecendo, ainda, o necessário para que sepudesse compreender o itinerário dos trabalhos do sociólogo, a partir daquele momento pós-cassação deseus direitos políticos (1964), onde tudo lhe parecia incerto. Somente mais tarde, em 1981, quando dapublicação de seu último livro em vida,  A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações ,publicado concomitantemente em inglês (Editora da University of Toronto ) e em português (Editora daFundação Getúlio Vargas), que Guerreiro Ramos apresentaria a seus compatrícios, em prefácio à ediçãobrasileira, o seu percurso intelectual, à luz do triplo significado da redução, desde 1951 até aquela data. Deacordo com a sua explicação: ao primeiro sentido do termo atrelaram-se, principalmente, seus livros de1957 e 1958; ao segundo, Mito e Verdade da Revolução Brasileira  (1963) e Models of man and administrative theory(1972); e, ao terceiro sentido, Situação atual da sociologia   (1965 –  anexo d’A redução sociológica  ), Administração e

     Estratégia do desenvolvimento  (1966),  Modernization: towards a possibility model   (1970) e a própria obra  A NovaCiência das Organizações  (1981).

     A proposta de delimitação dos sistemas sociais, em si mesma, veio a público pela primeira vez pormeio de seu artigo Theory of social systems delimitation: a preliminary statement , publicado em 1976.Posteriormente, apareceria em sua integralidade no livro de 1981, que foi apresentado pelo autor como a

    3 Como apontado acima, “introdução ao estudo da razão sociológica ” era originalmente o subtítulo do livro A redução sociológica , em1958, o qual, infelizmente, foi suprimido quando da publicação da terceira edição deste. Do ponto de vista da historiografia deseus escritos, o termo razão sociológica parece ter sido empregado, pela primeira vez, em 1946, no artigo  A revolução coperniana dasociologia , e sua inspiração está associada ao nome de Gilberto Freyre, muito embora a precisão conceitual que Guerreiro Ramosconferiu ao termo em 1958 guarde paralelismos com as ideias de razão histórica (Dilthey) e de razão vital   (Ortega y Gasset),conforme o mesmo fez questão de ressaltar quando abordou a “lei das fases” (Guerreiro Ramos, 1958). Conceitualmente

    falando, a razão sociológica pode ser entendida como uma “referência básica, a partir da qual tudo o que acontece em determinadomomento de uma sociedade adquire o seu exato sentido.” (Guerreiro Ramos, 1965, p. 138). É a ela que o cientista social deveestar atento.4 É interessante observar que embora o livro tenha sido publicado em 1965, ou seja, após a cassação de seus direitos políticos,inclusive o mandato de deputado pelo PTB, que ocorreu pelo Institucional nº 1 (AI1), Ato Complementar nº 4, de 13 de abril de1964, o prefácio do livro data de 11 de agosto de 1963. Para mais informações sobre sua atuação no Congresso, consultar, denossa autoria, o texto Alberto Guerreiro Ramos, deputado guanabarense  (2013) e, de autoria de seu ex-aluno Wilson Pizza Jr., TrajetóriaParlamentar de Alberto Guerreiro Ramos  (1997).5  Sobre a redução sociológica em seu segundo significado, consultar, também de nossa autoria,  Alberto Guerreiro Ramos'santhropological approach to the social sciences: the parenthetical man  (Azevedo & Albernaz, 2006a) ou A antropologia do Guerreiro: a his tória doconceito de Homem Parentético (Azevedo & Albernaz, 2006b). 

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    consolidação das bases conceituais do terceiro sentido básico que ele houvera atribuído ao termo reduçãosociológica , ou seja, o de “superação da ciência social nos moldes institucionais e universitários em que seencontra” (Guerreiro Ramos, 1981a, p. XVI).6 

    Embora o artigo seminal e o livro guardem entre si um distanciamento de cinco anos, o certo éque, desde 1976, diversas publicações têm abordado o assunto em seus mais variados níveis analíticos. E.Dunn (1976) foi um dos primeiros a propagar as ideias a respeito da delimitação de sistemas sociais,

    seguido de outros estudos, como os de Singer & Adams (1977), Najjar (1978) e Dennis (1978). O grosso daoperacionalidade inicial dessas ideias, porém, são teses de doutorado, que foram apresentadas na Universityof Southern Califórnia   (USC) (p. ex.: Ahmad, 1979; Castor, 1982; Cruz Jr., 1981; Castro, 1983; Heidmann,1984; Najjar, 1976; Nasir, 1980; Rezende, 1979; Salm, 1983), onde Guerreiro Ramos lecionou de 1967 a1982. Todos esses trabalhos e teses contribuíram significativamente para a formalização decisiva da teoriade delimitação dos sistemas sociais, que tomou a sua forma acabada, como dito, n ’  A nova ciência dasorganizações .

    Foi a partir do lançamento daquele livro que a teoria da delimitação ganhou relevância no Brasil,principalmente na área de conhecimento da administração.7 Todavia, o falecimento repentino de GuerreiroRamos, em abril de 1982, interrompeu a agenda de pesquisas que o mesmo havia traçado, de acordo com oque dizia ele no prefácio para a edição brasileira de seu livro:

     A Nova ciência das organizações é, assim, produto de cerca de 30 anos de pesquisa e reflexão. Mas ele [olivro] não articula tudo aquilo em que a nova ciência  consiste. Apenas começa uma nova fase daexplicação da proposta de trabalho teórico e operacional, que espero consumar durante o resto de minha vida. (1981a, p. XVII) (grifos no original)

    Parte dessa fase à qual se refere o autor foi posta em forma de agenda pessoal de pesquisa e estavadiretamente voltada para analisar, segundo o paradigma da delimitação, o modelo econômico que ogoverno brasileiro estava implementando no início dos anos oitenta. Algumas de suas incipientes análisesforam publicadas em forma de ensaios no  Jornal do Brasil  (Guerreiro Ramos, 1978a, 1978b, 1979a, 1979b,1979c, 1979d, 1981b, 1981c, 1981d, 1981e, 1981f, 1981g, 1981h); outras foram publicadas quando elecriou, na Universidade Federal de Santa Catarina, um programa de mestrado em Planejamento

    Governamental (Guerreiro Ramos, 1980a; 1980b).8

     

    6 Vale dizer que, em 1965, tratava-se da “superação da sociologia ...” (Guerreiro Ramos, 1965, p. 16). Em 1981, porém, o autorampliar as consequências de suas críticas, uma vez que visava a “superação da ciência social ...” (Guerreiro Ramos, 1981a, p.XVI). Essa diferença demarca, com bastante precisão, não somente o plano ambicioso do autor, mas o esforço revisionista a quese dedicou ao longo dos 26 anos que separam uma afirmação da outra.7 A bem da verdade, A nova ciência das organizações é desconhecido da grande maioria dos sociólogos e cientistas sociais brasileiros. As razões para isso tem menos que ver com a formação em si de nossos cientistas sociais do que com o processo deliberado deesquecimento a que suas obras foram impostas. Lúcia Lippi Oliveira, em seu importante livro sobre o pensamento e a trajetóriaintelectual de Guerreiro Ramos, diz: “[Guerreiro Ramos] reagiu aos cânones da institucionalização das ciências sociais no Brasil etalvez por isso mesmo tenha sido esquecido, marginalizado, excluído do panteão dos cientistas socais brasileiros.” (Oliveira, 1995, p. 9). Nessa mesma linha explicativa seguem Bariani (2011) e Maia (2012). Para o primeiro, o fato de Guerreiro Ramos tersido “uma espécie de consciência incômoda da sociologia brasileira”, custou-lhe o prestígio e o reconhecimento intelectual que

    tanto esperava de seus pares e compatriotas; para o segundo, embora ele tenha vivido um período (metade dos anos 1950 até ametade dos anos 1960) de grande reconhecimento de suas ideias, experienciou o “ostracismo intelectual a partir de 1964”,partilhando do descrédito de que foram alvos os principais integrantes do ISEB, a partir de críticas orquestradas por intelectuaisligados à USP (Maia, 2012, p. 265). Bem, o certo é que, no Brasil, em matéria de projeto de sociologia, de tradição sociológica,logrou sucesso acadêmico aquele ao qual Guerreiro Ramos tanto criticava, e com muita razão.8 Uma sistematização comentada dos textos publicados no Jornal do Brasil pode ser encontrada no livro de Luiz Antonio AlvesSoares, Guerreiro Ramos: considerações críticas a respeito da sociedade centrada no mercado  (2005). A importância desses textos tem suassingularidades: primeiro, porque foram escritos entre os anos de 1978 e 1981, ou seja, exatamente durante a Anistia; segundo,porque Guerreiro Ramos, que estava exilado nos EUA desde 1996, retomava o contato direto com a realidade nacional; eterceiro, porque sua mirada sobre a realidade brasileira agora era feita à luz de um quadro conceitual mais adensado, menosparticular e mais universal.

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    O presente texto irá se ater àquela que seria a principal derivação do terceiro sentido da reduçãosociológica, a saber, a teoria da delimitação dos sistemas sociais ou paradigma paraeconômico,considerando-a enquanto fundamento possível para uma outra concepção de modernização, distintadaquela de origem parsoniana, principalmente. Disso, extrair-se-á elementos especulativos sobre aconsideração das políticas públicas dentro desse espectro.

     A Modernização em Talcott Parsons: os universais evolucionários

    Modernidade e modernização são conceitos já consagrados em áreas do conhecimento comoCiência Política, Economia, Administração, Sociologia, entre outras, havendo, inclusive, como desta última,sub área específica que tem concentrado as discussões a respeito de tais temas  –   Sociologia daModernização. É sabido que, desde a clássica distinção entre “sociedade em estágio primitivo“ e“sociedade mais evoluída” elaborada por Adam Smith em seu A riqueza das nações , de 1776 , onde decretavaque a presença do aprimoramento da divisão do trabalho (manifestadamente instalado em indústrias) seriao efeito demonstrativo do alcance, por parte de determinadas nações, do “mais alto grau da evolução, notocante ao trabalho e aprimoramento” ( Smith, 1985, p. 42), a temática da modernidade e da modernização,assim como a de seu corolário principal, o desenvolvimento, tem dominado a cena nas especulações degrandes autores do campo sociológico. Herbert Spencer, Karl Marx, Max Weber, Émile Durkheim, Georg

    Simmel, por exemplo, na mesma trilha de Adam Smith, referiram-se à modernidade como gestora de umtipo singular de sociedade  –  a sociedade moderna  –  radicalmente diferente, em sua estrutura social básica(instituições fundamentais, modo produtivo hegemônico, elações sociais mais características, etc.), dostipos sociais que lhe antecederam, resultante de uma transformação fundamental, ou para dizermos comoKarl Polanyi (1980), de uma “grande transformação” na arquitetura social das sociedades, em especialdaquelas que foram protagonistas da revolução industrial.

    Dentre os sociólogos do segundo quarto do século passado, foi o norte americano Talcott Parsonsquem articulou a concepção de teoria de modernização que viria a se tornar hegemônica no campo daSociologia da Modernização por várias décadas, sobre ela incidindo imenso debate e grandes controvérsias.Parsons acreditava que o tipo moderno de sociedade já havia sido alcançado por algumas nações de suaépoca, em especial pelos EUA, cuja sociedade apresentava fortemente, se não todas, pelo menos as

    principais características a que seu modelo explicativo da modernização aludia. Fundamentais para feito,isto é, para o “aparecimento do sistema moderno das sociedades”, foram o que o autor denominou de“saltos básicos na capacidade de adaptação” desse novo sistema, o que levou à destituição e abandonopaulatino da estrutura básica constitutiva da sociedade tradicional (Parsons, 1974, p. 12).

    Como se sabe, a teoria parsoniana da modernização, embora com identidade própria, encontra-seencravada em uma teoria mais abrangente de sistemas de ação, devidamente exposta em sua coletâneaStructures and process in modern societies , publicado originalmente em 1960. Na elaboração de seu corpusteórico, Parsons procurou unir, por um lado, a abordagem evolucionista herdada de Spencer e, por outro, aperspectiva comparativa, de modo que pudesse realizar estudos das singularidades dos fenômenos sociais,em especial das sociedades modernas, segundo o seu clássico esquema de categorias estruturais dossistemas sociais. Neste, o autor considera a existência de quatro subsistemas, funcionalmente distintos, a

    comporem um sistema mais geral de ação, onde a sociedade (subsistema social) seria um de seus “constituintesprimários”, juntamente com o subsistema cultural, o subsistema de personalidade e o subsistemaorganismo comportamental. Em termos de definição da função primária exercida por tais subsistemas,caberia: ao subsistema social , a função de “integração”; ao subsistema cultural , a função de “manutenção depadrão”  (e de “mudança criativa de padrão” ); ao subsistema de personalidade , que é considerado pelo autorcomo a “agência fundamental de processos de ação, do que decorre a realização de princípios e exigênciasculturais”, a função de “realização de objetivo”; e ao subsistema organismo comportamental , a função deadaptação (Parsons, 1974, p. 15-16). Todo esse esquema foi elaborado à luz do processo evolutivo da vida,indo das formas simples às mais complexas, e tendo sua integralidade sistêmica garantida pela

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    “interpenetração” entre tais subsistemas e o ambiente físico, sempre firmando um nível “mais elevado de auto-suficiência”, quer dizer, de “estabilidade de relações de intercâmbio e capacidade para controlar estesúltimos em benefício do funcionamento societário” ( PARSONS, 1974, p. 19).

    Significativamente marcante para a compreensão da teoria de modernização de Talcott Parsons ésua noção de universais evolucionários . São esses universais que capacitam os sistemas sociais a realizarem seus“saltos  evolutivos”  por meio da capacidade de adaptação e equilíbrios superiores em termos de

    complexidade (Parsons, 1964). Por universais evolucionários o autor entendia “um complexo de estruturase processos de desenvolvimento a elas associados que incrementam a capacidade de adaptação em longoprazo dos sistemas vivos [organismos, sociedades, sistemas] em uma determinada classe, de tal modo queapenas os sistemas que desenvolvem esse complexo podem atingir níveis mais altos de capacidadeadaptativa geral” ( Parsons, 1964, p. 340-341). No mundo social, diz o autor,

    certos universais evolucionários (...) fornecem às suas sociedades maiores vantagens adaptativas, frenteàquelas que não os desenvolveram. A sua introdução e institucionalização tem, com certeza,frequentemente sido acompanhada de deslocamentos severos da organização social anterior, às vezesresultando em perdas de curto prazo na adaptação. Uma vez institucionalizados, contudo, eles tendem aser parte essencial das sociedades posteriores nas linhas relevantes de desenvolvimento  e raramente sãoeliminados, exceto por meio de regressão. Mas, como o sistema passa por uma maior evolução, osuniversais são capazes de gerar grandes alterações eles mesmos, geralmente através do desenvolvimento deestruturas mais complexas. (Parsons, 1964, p. 341)

    Há, portanto, uma espécie de teoria dos universais evolucionários na base da teoria demodernização parsoniana. Como dito, esses universais conferem vantagens, em termos de capacidade ativade adaptação às circunstâncias ou condições ambientais, às sociedades mais avançadas em relação às maisatrasadas, de tal modo que, uma vez “introduzidos” e “institucionalizados” na cultura e nas personalidadesdos membros de determinado sistema social, e uma vez devidamente integralizados, a sociedadeincrementa, de modo considerável, sua capacidade ou eficiência de adaptação ativa ao ambiente,conquistando, deste modo, autossuficiência quanto ao seu desenvolvimento.

     Ao analisar a modernidade, Parsons (1964, p. 347-356) destaca que foram, para as sociedades quehaviam alcançado o patamar de sociedades paradigmáticas da modernidade –  as sociedades desenvolvidas – 

    , e seriam, para aquelas que ainda guardavam distância das sociedades paradigmáticas  –   as sociedadessubdesenvolvidas  – , fundamentais na ruptura com o sistema das sociedades tradicionais, portanto degrande importância a consolidação definitiva da estrutura do tipo moderno de sociedade, quatro universais,a saber:

    (1)  Organização burocrática   –   o tipo de aparato social (administrativo) mais eficaz que o homeminventou, em especial quando diz respeito à produção em larga escala de produtos ou serviços,capaz de fazer vigorar nas relações um tipo de poder específico, o racional legal, e que contémdimensões estruturantes (divisão do trabalho baseada na especialização funcional, hierarquia deautoridade definida por um conjunto de normas que abrangem os direitos e deveres dosocupantes de cargos e mesmo os procedimentos de atuação nas funções, o requisito deimpessoalidade das relações interpessoais e, por fim, a promoção e seleção segundo a

    competência técnica) que conferem capacidade de adaptação superior aos sistemas sociais que aacolhesse institucional e culturalmente;

    (2)  Dinheiro e o mercado complexo  –   são universais essenciais ao desenvolvimento de funções quepressupõem distanciamento de formas de concentração de poder que obstaculizem “novas formas de contrato e de relações de propriedade”, que violem “a liberdade de gruposparticulares para participar, autonomamente, de transações de mercado”, que impeçam osurgimento de instrumentos de créditos próprios e, consequentemente, dificultem a autonomiaoperacional do sistema, embora tais universais necessitem de “proteção política” para operaremlivremente e disseminarem seu modus operandi  (Parsons, 1974, p. 35);

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    (3)  Normas universalísticas generalizadas    –   pois são também pré-requisitos para o adequadodesenvolvimento tanto da organização burocrática quanto dos sistemas de mercado, devendose caracterizar como livres das amarras religiosas, étnicas e morais, portanto supondo umaordem societária baseada em normas objetivas, abstratas e generalizáveis, que assumam egarantam a igualdade perante a lei; e

    (4)  Associação democrática   –  pois, segundo Parsons, à proporção que determinado sistema social seexpande e complexifica, mais importante será a necessidade de sua organização política,administrativa e jurídica, de modo a garantir a presença e a operacionalidade de quatroelementos, pelo menos: a legitimidade do exercício de poder em razão da “institucionalizaçãoda função de liderança na forma de um cargo eletivo, seja ocupado por indivíduos, corpo deexecutivos, grupo colegiado ou legisladores”; a participação livre de seus membros na tomadade decisões coletivas, por vezes através do voto; o processo de definição das regras da própria vida democracia; e a institucionalização do princípio da liberdade de filiação partidária.

     Além desses quatro pré-requisitos universais evolucionários do sistema moderno de sociedades,Parsons menciona, sem a exploração devida, um quinto, que seria o “nível de institucionalização dainvestigação científica e da aplicação tecnológica da ciência”, haja vista sua constatação do fato de a ciênciae a tecnologia adquirirem, em sua época, escala estrutural complexa e, por isso, teriam grande papel na

    capacidade adaptativa dos sistemas sociais modernos (Parsons, 1964, p. 357). A questão da Modernização no Brasil e as primeiras críticas guerreirianas

    No Brasil, a problemática da mudança social, especialmente da modernização, chegou bem antes dateoria de modernização parsoniana ganhar caráter acabado. Em verdade, a tríade Modernidade--Modernização-- Desenvolvimento  e seus elementos tangenciais possuem larga trajetória de discussão na história dopensamento social brasileiro. Há autores que chegam mesmo a afirmar que reside em torno dessesconceitos o que se poderia dizer ser um dos “dilemas” principais da sociologia nacional, desde suaemergência até os dias atuais, posto em forma das seguintes perguntas: haveria uma modernidadebrasileira? Qual o estado da modernidade no Brasil?

    De acordo com Tavolaro (2005), alguns autores clássicos do pensamento social brasileiroconferiram, ao padrão de sociabilidade que se instituiu na sociedade brasileira, traços socioculturaiseminentemente refratários àqueles exigidos pelos pré-requisitos dos sistemas sociais modernos, explicando-o a partir, por exemplo, da herança patrimonial (p. ex.: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda) epatriarcal (p. ex.: Raymundo Faoro) legadas pelos colonizadores. Outros, porém, mais detidos na análise daestrutura produtiva e econômica do Brasil, advogaram ter a sociedade brasileira internalizado algunsdaqueles padrões sociais, políticos e econômicos aos quais se referiu Parsons, e que esses correspondiam àsestruturas sistêmicas das sociedades capitalistas hegemônicas. Ainda que se valeram de tais padrões paraexplicar a realidade nacionais, eles o fizeram apenas em linhas gerais, efetivamente funcional, de modo quepudessem servir a um sistema capitalista geral na condição de dependência econômica estrutural (p. ex.:Fernando Henrique Cardoso e Rui Mauro Marini). Nesse sentido, “setores econômicos modernos esupermodernos, de um lado, e setores arcaicos, de outro, teriam se articulado de maneira consistente, razão

    pela qual uma porção significativa da população brasileira permaneceu alheia à universalização legal dotrabalho-livre” (  Tavolaro, 2005, p. 8-9). Aliás, não se pode esquecer que há, entre nós, a tese da lei da“dualidade básica da economia brasileira”, que foi defendida, entre outros, pelo economista Ignacio Rangel,em livro de título homônimo, publicado em 1957. No prefácio daquela obra, escreveu o economista:

    Meus estudos levaram-me a conclusão de que nossa peculiaridade por excelência é a dualidade, no sentidoque atribuo a esse termo, isto é, o fato de que todos os nossos institutos, todas as nossas categorias  –  olatifúndio, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e nossa própria economia nacional –  são mistos, temdupla natureza, e se nos afiguram coisas diversas, se vistos do interior ou do exterior, respectivamente(Rangel, 1957, p. 1).

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     Vale a pena destacar que, no seio da sociologia, há grande debate sobre a busca de um corposociológico propriamente brasileiro, capaz de olhar a realidade do país com lentes conceituais próprias,pois que as teorias sociológicas em voga nos anos 40 e 50 do século passado, estavam ideologicamentecomprometidas com determinada ordem social dominante, e seus critérios ordenadores da realidadehaviam sido elevados à condição de critérios universais. Tal posição pode ser observada na obra de autorescomo Luiz Costa Pinto, Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Esses autores consideravam que ossociólogos situados em países periféricos ao poder hegemônico teriam, frente àqueles situados emsociedades cêntricas, vantagens significativas em termos de construção de um conhecimento sociológicopara a mudança social e não para a estabilidade social; em suma, vantagens para construir uma sociologiacrítica do status quo. Guerreiro Ramos, por exemplo, elaborou, em 1958, inclusive, o que seria, em seuentendimento, um método sociológico apropriado ao sociólogo de países periféricos, ao qual designou deredução sociológica . Tal como fora definida pelo autor, a redução sociológica seria, antes de tudo, uma atitudemetódica, subordinada a regras procedimentais, cuja adoção por parte do sociólogo denunciaria a suacapacidade e habilitação para proceder, de modo crítico-assimilativo, frente a todas as categorias científicase experiências originárias de outras realidades nacionais ou mesmo regionais (Guerreiro Ramos, 1996).Clamando pela adoção de uma postura engajada e comprometida do cientista social de países periféricoscom o seu contexto social imediato, o autor não hesita em afirmar que toda a produção científicaestrangeira era de caráter subsidiário para o sociólogo comprometido com determinada realidade (1996, p.

    113).É nessa mesma linha, por exemplo, que Antonio Brasil Jr. (2013) destaca os esforços de Florestan

    Fernandes, no Brasil, e de Gino Germani, na Argentina, como autores que, em suas respectivas realidadesnacionais, criticaram duramente a sociologia da modernização de Parsons e sua tese da convergência dassociedades modernas para uma estrutura social básica comum, destacando as singularidades dascontingências históricas na formação das sociedades brasileira e argentina, e questionando a universalidadepressuposta pelo autor norte-americano. De acordo com Brasil Jr.,

    Por um lado, e em crescente contraste com as formulações de Parsons, tanto Fernandes quanto Germaniforam abrindo espaço explicativo para as contingências históricas do processo de mudança social. Em vezde encaminharem a discussão em registro evolucionário  –   vimos que Parsons, apesar de incorporar adinâmica histórica em suas formulações tardias, acabou retirando do campo de visão justamente asdimensões mais contingentes  – , os dois autores foram sendo levados a compatibilizar o estrutural-funcionalismo com uma espécie de sociologia histórico-comparada. Quer dizer: tendo em vista osimpasses divisados nos termos do dilema social brasileiro e do paradoxo argentino  –  tratados na primeiraparte deste trabalho – , Fernandes e Germani foram forçados a tirar consequências teóricas da constatação deque a expansão da sociedade moderna não geraria os mesmos efeitos sociais independentemente dastrajetórias sociais específicas a cada sociedade. Por outro lado, e também em direção contrária ao últimoParsons, ambos questionaram a ideia de que a sociedade moderna traria inscrita em seus dinamismos umpadrão democrático de integração social. Chamando a atenção para certas especificidades de seufuncionamento na periferia, mostraram que o oposto seria muito mais provável (Brasil Jr., 2013, p. 158).

    Contudo, convém aqui nos atermos à contribuição de Guerreiro Ramos. Foi imbuído da jámencionada postura redutora que ele, em 1966, ao discutir a questão da estratégia de desenvolvimento da

    nação brasileira frente aos desafios daquela época, passou em revista a ideia de modernização e, emespecial, as variáveis ou pré-requisitos parsonianos, conferindo-lhes caráter “falacioso” ou de “validadenula”, principalmente em razão das “prescrições imperativas” com que haviam sido firmadas (GuerreiroRamos, 1983, p. 340-341). No ano seguinte, em 1967, ao propor uma reformulação do problema damodernização, o autor novamente recupera as ideias de Parsons e, mais uma vez, as critica: “essas variáveisdenotam um enfoque neo-evolucionário que, não obstante alguns argumentos em seu favor, é teórica epraticamente falacioso, quando empregado em tom normativo” ( Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 58). Eainda: “Parsons parece ter uma concepção maniqueísta das variáveis de padrão que representam osextremos opostos de um continuum , o bem e o mal. Em sua concepção, não concede margem para a

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    ambiguidade. Se tomadas literalmente, as variáveis de padrão conduzem a pseudoexplicações, ageneralizações ingênuas e impressionísticas” ( Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 59).

    Em verdade, o balanço analítico que o autor brasileiro fez em vários momentos (1966, 1967, 1981)da teoria parsoniana de modernização foi negativo. Segundo ele, tal teoria era devedora do caráterhegemônico e unidimensionalizador que se encontrava consolidado nas ciências sociais provenientes dospaíses cêntricos. Esse processo unidimensionalizador dos sistemas sociais e suas consequências desastrosas

    para a vida humana associada e individual já se fazia sentir de modo mais intenso nas nações queapresentavam um grau de industrialização mais elevado e, em geral, eram essas mesmas nações que, deacordo com a teoria de modernização instituída, deveriam servir como referência cardinal para a orientaçãodas nações com menor grau de industrialização, isto é, as “atrasadas”. Segundo o sociólogo, era urgente anecessidade de se expurgar da ciência social contemporânea, particularmente naquilo que dizia respeito àteoria da modernização, o “evolucionismo metafísico do século 19”  que a acometera desde suas raízes(Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 42). Tal como estava devidamente articulada, a teoria da modernizaçãopressupunha uma lei de necessidade histórica que visava a estimular toda e qualquer sociedade ou país ditosubdesenvolvido ou em desenvolvimento a tentar alcançar o estágio em que as sociedades ou paísesdesenvolvidos ou modernizados se encontravam, haja vista que essas sociedades representavam paraaquelas a “imagem do futuro” (Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 43).

    Fruto deste pressuposto era o jogo semântico que se verificava, por exemplo, em dicotomias como“nações desenvolvidas versus   nações em desenvolvimento”, “sociedades paradigmáticas versus   sociedadesseguidoras”, ou em postulados como “obstáculos ao desenvolvimento”  e “pré-requisitos demodernização”, todos sugerindo conotações “deterministas” ou um “arquétipo rígido de modernização”(Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 43). Este tipo de teoria seria tudo menos uma verdadeira teoria, pois queo seu caráter ideológico era flagrante, e o mesmo, dizia Guerreiro Ramos, não poderia mais ser legitimadono meio acadêmico. A sociologia da modernização, dizia o autor, “não pode se erigir sobre um  conjunto depré-requisitos tomados de sociedades consideradas já modernizadas”, ou seja, não pode se deixar basear“num ingênuo raciocínio post hoc .” (Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 42) Em assim pressupondo, ela induzo cientista social a recolher o “necessário” para algumas nações, as em desenvolvimento, do “ocorrido” aoutras, as já desenvolvidas: “a sociologia não pode sucumbir ante ao sucesso”, sendo perigoso um

    comportamento condescendente com tais tentativas (Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 67). A ciênciasocial, enfatizava Guerreiro, não poderia cair nas ciladas do fatalismo, mas deveria reconhecer a existênciade um elenco de possibilidades objetivas9 que se apresentariam, sempre, abertas às opções das coletividadese do homem, no bojo da causalidade histórica ou social. É nestes termos que o sociólogo advoga que o“conceito de possibilidade constitui, pois, um requisito essencial para a análise científica da realidadesocial” (Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 46).

     Assim, o autor estabelece uma distinção entre dois tipos de teoria de modernização: a primeira, a Teoria N, sugere a existência de uma lei de necessidade histórica a orientar o sentido da modernização edo desenvolvimento, sentido este, na verdade, que se constitui a partir da alocação estática da modernidadeem determinadas nações ou sociedades, no caso, as representantes, à época, do apogeu liberal e capitalista  –  os Estados Unidos  –  e do apogeu social comunista  –  a União Soviética. Além desses padrões duais, nada

    mais haveria de alternativo às demais nações ou sociedades; a segunda, a Teoria P, se apresentaria marcadapor duas características: (1) “pressupõe que a ‘modernidade’ não está localizada em algum lugar domundo”, isto é, “não se confina a quaisquer pontos geográficos”; e (2) admite que “toda nação, qualquerque seja sua configuração atual, sempre terá possibilidades próprias de modernização, cuja efetivação podeser perturbada pela sobreposição de um modelo normativo rígido, estranho a suas possibilidades” 

    9 Conceito de origem weberiana, “as possibilidades objetivas são na verdade conjeturas, mas conjeturas cujo poder de convicçãopode ser justificado por um conhecimento positivo e controlável dos acontecimentos; não refletem ‘nossa ignorância ouconhecimento incompleto’ dos fatos.” (Guerreiro Ramos, 1966, p. 10-11)

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    (Guerreiro Ramos, 2009 [1967], p. 43). O quadro 2 destaca os principais pontos de diferenciaçãodemarcados pelo autor entre as duas teorias.

    Em suma, para o autor, o que as teorias de modernização vigentes trazem em seu bojo têm porbase o pressuposto iluminista de que “a história revela seu significado através de uma série de estágiosempírico-temporais” (Guerreiro Ramos, 1989, p. 39). E esse serialismo era latente na ciência social formal,refletindo-se na maneira como eram focalizados temas como mudança social, estágios sociais,

    modernização, desenvolvimento, pós-industrialismo, sociedade industrial desenvolvida e socialismo. Asnações, quando focalizadas nesses temas, estariam “classificadas em fila indiana, apontando na direção dasociedade avançada, ou esclarecida” –  uma verdadeira “armadilha epistemológica” e “ideologia disfarçada” (Guerreiro Ramos, 1989, p. 41). Romper com tal ideologia só seria possível, afirmava, caso os povosfossem “ativados para construir imediatamente, partindo daquilo que já têm, uma sociedade racional,entendida em termos substantivos e despojada das atuais conotações serialistas e futuristas.” ( GuerreiroRamos, 1989, p. 41) A teoria das possibilidades, portanto, clamaria por um modelo de desenvolvimentoque permitisse a auto definição coletiva dos povos, na afirmação de sua constante e insubsumida liberdadede configurar sua vida associada em consonância com suas próprias necessidades, desejos e oportunidades,isto, sem, no entanto, deixar de considerar sua inserção em um contexto mundial.

     A Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais –  fundamentos

    Em seus fundamentos, a teoria da delimitação dos sistemas socais articula-se a partir de umaconcepção de razão distinta daquela que foi acolhida e sistematicamente articulada pela ciência socialdominante. Iniciar sua análise por uma história da razão era, para o sociólogo, um imperativo, porque, porum lado, a razão é “prescreve como os seres humanos deveriam ordenar sua vida pessoal e social” e, poroutro, trata-se de “um conceito básico de qualquer ciência da sociedade e das organizações” (GuerreiroRamos, 1981a, p. 23).10 A ciência social moderna, portanto, não poderia ser adequadamente criticada, casonão se atentasse para as implicações da concepção de razão que ela houvera acolhido e sistematizado.

    Ora, a razão era, para o sociólogo baiano, um atributo eminentemente humano. E, nesse sentido,ele assume uma tradição de pensadores (clássicos e modernos) que advoga a razão centrada-no-sujeito enela localizam a capacidade transcendental humana. Vista desse modo, a razão, em termos de capacidadede transcendência humana, pode ser dita razão noética (Eric Voegelin), ou substantiva (Max Weber), ousubstancial (Mannheim) e, em termos de capacidade de imanência ou operacional, denomina-se razãoformal e instrumental (Max weber).11 

    Como dito, quando tratou de analisar criticamente a razão (moderna), Guerreiro Ramos procuroulogo se filiar a uma corrente clássica do pensamento ocidental, amparando-se, sobretudo, em Aristóteles,para firmar a sua opção pelo entendimento da razão tal qual aquele filósofo e outros pensadores gregos atinham considerado, ou seja, entendendo-a como a “força ativa da psique humana que habilita o indivíduo

    10 A razão é categoria cêntrica no humanismo propugnado por Guerreiro Ramos, estando presente em seus textos desde suajuventude, quando ainda vivia na Bahia. Chama a atenção o fato de a razão ser sempre apresentada pelo autor em termos

    dicotômicos, de seu livro de juventude Introdução à cultura  (1939) até A nova ciência das organizações (1981). Em 1939, ao apresentar amoderna dicotomia da razão, destacava duas faces: a face utilitária e a face espiritual. Mais tarde, Guerreiro Ramos perceberia,e viria a adotar, a dicotomia da razão proposta por Max Weber (1994) e recuperada por Karl Mannheim (1953) e Eric Voegelin(1963).11  Aliás, na interpretação de Rezende (1983), a compreensão do “gigantismo” da proposição à qual se lançou Guerreiro Ramosteria que passar pelo resgate da cosmogonia e da escatologia que habitam seu pensamento. À luz dessa cosmogonia e dessaescatologia pressupostas por Guerreiro Ramos, por exemplo, seria possível se compreender a sua necessidade de recuperar olegado clássico sobre a razão, um legado que se encontrava já nos pré-socráticos, e que implicava “uma ordem cósmica”, que era“ulterior a esta ordem da vida humana associada”, e que estava “contida em um universo físico cognoscível” ( Idem , p. 94). Aapreensão dessa ordem pelo homem, contudo, só poderia ser realizada por meio de “um esforço noético ou substantivo” deste( Idem Ibidem  ).

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    a distinguir entre o bem e o mal, entre o conhecimento falso e o verdadeiro e, assim, ordenar sua vidapessoal e social” ( Idem , p. 2-3). Ao comparar este sentido de razão àquele que veio a se firmar na ciênciasocial moderna a partir do século XVII, e que teve em Thomas Hobbes o seu primeiro articuladorsistemático, Guerreiro Ramos concluiu ter havido o que ele denominou de transvaloração da razão ( transvaluation of reason  ), ou seja, uma distorção proposital do conceito de razão, a fim de legitimar umarranjo social “exclusivamente em bases utilitárias”, a saber, a sociedade centrada no mercado ( Idem , p. 3).

    Com Hobbes, diz o autor, a razão perdeu o seu sentido original, de tal modo que, para os teóricosposteriores ao escritor inglês, esvaece-se a possibilidade de a mesma servir como papel normativo nodomínio na construção teórica e na vida humana associada. A partir de então, a razão deixava de ser aquela“força ativa na psique humana” para se tornar  uma espécie de “capacidade que o indivíduo adquire ‘peloesforço’ e que o habilita a nada mais do que fazer o ‘cálculo utilitário de consequências’” ( Idem ibidem  ). Assim, a razão perdeu seu sentido normativo (clássico) para ganhar conotações meramente utilitárias ou deajuste às expectativas de comportamento. Esta transvaloração retirou o lócus da razão do homemconcreto, atribuindo-o ao homem abstrato e, mais tarde, aos sistemas sociais e à história. Neste sentido, eleaponta que:

    de Hobbes a Adam Smith e aos modernos cientistas sociais em geral, instintos, paixões, interesses e asimples motivação substituíram a razão, como referência para a compreensão e a ordenação da vida

    humana associada. Por outro lado, sob a influência do iluminismo, de Turgot a Marx, a história substituio homem, como portador da razão ( Idem , p. 4).

     A restauração da razão era, assim, uma tarefa primeira no sentido de restituir a posição do homemao centro do universo. Evocar o sentido de razão noética ou substantiva, para Guerreiro Ramos, eraretornar a razão à psique humana e reforçar seu papel normativo, a partir do homem, na ordenação da vidapessoal e social. Este recurso à razão justificaria torna-la o conceito básico de uma ciência verdadeira dasociedade e das organizações, em uma concepção antropocêntrica. Neste sentido, personalidade e razãoeram elementos perfeitamente correlacionáveis para Guerreiro Ramos.

     Além da transvaloração da razão identificada pelo autor e acima comentada, ele também constatou terhavido uma transvaloração do social ( transvaluation of social  ), que, em termos sintéticos, pode ser expressa

    da seguinte forma: primeiramente, ocorreu a transformação do homem  –  antes considerado como sujeitoportador de razão no sentido substantivo  –   em um ser puramente social; em seguida, a vida social foiesquematizada em uma tríade de relações, a saber, econômicas, de produção e de consumo; o próximopasso foi a libertação da economia  –  anteriormente um enclave delimitado ao âmbito do lar ( oikos  )  –  daregulação política e ética, esta substituída pela justificação do interesse individual imediato; e por fim, a féna auto-regulação do mercado se consolidava, haja vista ter a própria sociedade se tornado um mercadoamplificado, o que fez da ordem social um mero somatório dos cálculos individuais. Em outras palavras,esta transvaloração do social trouxe como consequência a ascensão do mercado à qualidade de dimensãocentral e ordenadora, tanto da ciência social como da vida humana em geral na sociedade ocidentalmoderna.

    O fato de identificar essa dupla transvaloração, a da razão e a do social, levou Guerreiro Ramos a

    localizá-las no seio da ciência social moderna e de seus pressupostos. Baseando-se na sociologia doconhecimento e no método faseológico, o sociólogo percebeu a vinculação da ciência social moderna comuma determinada época histórica, esta fortemente marcada pela emergência e consolidação do mercadocomo mecanismo regulador da conduta social e individual. Neste sentido, afirmou: “a ciência socialmoderna foi articulada com o propósito de liberar o mercado das peias que, através da história dahumanidade e até o advento da revolução comercial e industrial, o mantiveram dentro de limites definidos”( Idem , p. 22). Para chegar a essa conclusão, os estudos antropológicos de Karl Polanyi foram-lhe deprimordial importância, fato que o levou a denominar a sociedade de seu tempo como uma “sociedadecentrada no mercado”. Para ele, o advento dessa sociedade trouxe ganhos enormes, mas o preço pago tem

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    sido alto demais, em termos da pessoa humana, da vida coletiva e da própria natureza, por isso a urgênciade sua revisão:

    Essas sociedades [sociedades industriais contemporâneas] constituem a culminação de uma experiênciahistórica, a esta altura já velha de três séculos, que tenta criar um tipo nunca visto de vida humanaassociada, ordenada e sancionada pelos processos auto-reguladores do mercado. A experiência foi bem-sucedida, certamente que bem demais. Não apenas o mercado e seu caráter utilitário tornaram-se forças

    históricas e sociais inteiramente abrangentes, em suas formas institucionalizadas em larga escala, mastambém demonstraram ser altamente convenientes para a escalada e a exploração dos processos danatureza e para a maximização da inventiva e das capacidades humanas de produção. No entanto, atravésde todo esse experimento, o indivíduo ilusoriamente ganhou melhora material em sua vida e pagou porela com a perda do senso pessoal de auto-orientação. A isenção do mercado da regulação política deuorigem a um tipo de vida humana associada ordenada apenas pela interação dos interesses individuais(para a autopreservação), ou seja, uma sociedade em que o puro cálculo das conseqüências substitui osenso comum do ser humano. ( Idem , p. 52).

     Assim, desse estado de transvaloração da razão e do social, o autor retirou algumas conclusões quelhe ajudaram a esclarecer a diferença entre a sua proposição de teoria substantiva da vida humanaassociada e o modelo contemporâneo de ciência social, sustentado em uma teoria formal da vida humana

    associada. A primeira dessas conclusões diz respeito à dicotomia entre fatos e valores, quehistoricamente ganhou validade a partir do momento em que a sociedade passou a ser considerada como“o próprio mercado ampliado”, e os indivíduos e as coisas, “convertidos em força de trabalho, como‘dados’, ou seja, como fatores de produção”, destituídos, portanto, de quaisquer finalidades intrínsecas( Idem , p. 38). Ao aceitarem “como indiscutível a sociedade centrada no mercado, [as ciências] têm que serisentas de conceitos de valor e exclusivamente interessadas em fatos. Nessas disciplinas está inferida aasserção de que valores são, simplesmente, aspectos da subjetividade humana”, portanto “qualidadesexógenas ou secundárias das coisas, não como propriedades delas.” ( Idem ibidem  )

     A segunda conclusão do autor é exposta na acusação do caráter ideológico serialista da ciênciasocial moderna: ideológica, porque “foi articulada com o propósito de liberar o mercado das peias que,através da história da humanidade e até o advento da revolução comercial e industrial, o mantiveram

    dentro de limites definidos” ( idem , p. 22); serialista, porque assumiu a “noção de que a história revela seusignificado através de uma série de estágios empírico-temporais”, o que se reflete no fato de as naçõespassarem a ser dispostas em fila indiana, do terceiro ao primeiro mundo, de subdesenvolvidas adesenvolvidas, de atrasadas a modernas, etc. ( Idem , p. 39). 12 

     Além de ideológica serialista, a ciência social moderna é acusada de ser cientística, no sentido deque partiu da “premissa de que a correta compreensão da realidade só pode ser articulada segundo omodelo da linguagem técnica da ciência natural” ( Idem , p. 42). Por conseguinte, a ciência política é acusadade ser apolítica, já que não consegue perceber a diferença qualitativa que existe entre a vida política e a vida social, tomando esta por aquela e, assim, termina por abolir o político da vida social.

     As considerações acima requerem que se apresente, em termos sintéticos e na forma de um quadro(QUARDRO 1) comparativo elaborado pelo próprio Guerreiro Ramos, a sua teoria substantiva da vida

    humana associada, teoria essa que toma por base a distinção entre as racionalidades (racionalidadesubstantiva  e racionalidade funcional) e a análise da sociedade centrada no mercado efetuada por KarlPolanyi, em seu consagrado livro A grande transformação.

    Outro elemento essencial em termos de caracterização da ciência social moderna é extraído do queo sociólogo afirma serem seus “alicerces psicológicos” ou natureza humana que lhe é pressuposta. Taisalicerces seriam responsáveis por promover e propagar um tipo de síndrome moderna, a saber, a síndrome

    12 Esta característica revela seu caráter eminentemente unidimensionalizante, o qual será abordado mais à frente no texto.

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    comportamentalista, definida pelo autor como “uma disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas quando estas confundem as regras e normas de operação peculiares a sistemas sociaisepisódicos [como a sociedade de mercado] com regras e normas de sua conduta como um todo” ( Idem , p.52). Ao assumir a sociedade de mercado como o tipo paradigmático de vida humana associada e lheconferir o caráter de valor universal, a ciência social moderna adotou um compromisso sistemático comum determinado tipo de ordem social. Consequentemente, instalou em si um tipo humano particular eelevou suas características à categoria de natureza humana.

    Ora, para Guerreiro Ramos, no cerne dessa concepção ideologizada de natureza humana estaria umtipo patológico de personalidade, fundado nas seguintes características: fluidez da individualidade,perspectivismo, formalismo e operacionalismo. A fluidez da individualidade derivava da visão fluídica dascoisas que os artistas maneiristas deixaram como legado para a humanidade. Para eles, as coisas nãopossuíam base permanente, e mesmo os valores não seriam imutáveis e inequívocos. Concebiam a naturezahumana como marcada pela inconstância, contida em um estado de eterno fluxo, de permanente transição,ou seja, a mudança era seu atributo, nada de fixo a permeando, e esta forma de ser era assumida, inclusive,como um pressuposto para se viver em sociedade. Com isso, assinalava o autor que esta fluidez eraconsequência de uma postura acrítica do indivíduo, que ao assumir a si mesmo e à sociedade como coisastransitórias, percebia o social como um espaço no qual, simplesmente, restava-lhe maximizar a utilidade, na

    busca da felicidade pessoal, em um eterno sucedâneo de satisfações de desejos. ( Idem 

    , p. 56). A segunda característica principal dessa síndrome era o perspectivismo. Segundo Guerreiro Ramos,a sua aparição foi consequência da visão fluídica que se instaurou entre os homens, haja vista que, ao setomar a sociedade como um sistema de regras contratadas, todos os indivíduos compreenderiam a suaconduta e a dos demais a partir de uma determinada perspectiva ( Idem , p. 57). Desta maneira, o indivíduoem geral se tornava um perspectivista, já que para comportar-se em conformidade com os padrões sociais,teria apenas que levar em consideração as conveniências externas, ou seja, os pontos de vistas dos outros eos propósitos correspondentes ( Idem ibidem  ).

    O terceiro aspecto dos fundamentos psicológicos embutidos na síndrome comportamentalista seriao formalismo. Este aspecto caracterizaria uma conduta humana extremamente orientada. Na sociedademoderna, o formalismo tornou-se um traço característico da vida cotidiana. Nela, o indivíduo se deixaria

    levar a tipos formalistas de comportamento, isto é, assumiria os imperativos externos segundo os quais a vida social estava construída. A recompensa ao seu conformismo se encontraria no seu próprioreconhecimento de indivíduo determinado socialmente. O sujeito formalista, como afirma o autor, “não éuma individualidade consistente, mas uma criatura fluida, pronta a desempenhar papéis convenientes”( Idem, p. 61).

    O operacionalismo, visto como operacionalismo positivista, foi destacado como a quartacaracterística desta síndrome comportamentalista. A sua presença foi fortemente sentida por Hobbes, quedemonstrou esta peculiaridade ao reconhecer que “apenas as normas inerentes ao método de uma ciêncianatural de características matemáticas são adequadas para a validação e a verificação do conhecimento”( Idem , p. 62). Ao fazer isto, ele desprezou o ético e o metafísico e reduziu o homem a uma espéciemecanomórfica de entidade social. Algo que, segundo Guerreiro Ramos, institucionalizou uma prisão aos

    limites de uma “peculiar tendência psicológica”, na qual se da va uma orientação ao controle situacional (oudo objeto) e uma derivação causal de seus atos ( Idem , p. 63).

    Os indivíduos modernos, entregues que estão à manipulação das instituições e organizaçõesoperacionalizadoras dos interesses do mercado, quase sem perceberem, “interioriza[m] a síndromecomportamentalista e seus padrões cognitivos” ( Idem , p. 67) e, assim, aos poucos, vão se destituindo desuas singularidades e reforçando essa normalidade patológica.

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     A redução psicológica  –  designada pelo autor de unidimensionalização humana  –  provocada pelasíndrome comportamentalista se torna mais clara, caso se considere a distinção proposta pelo autor entrecomportamento e ação. Por comportamento, entende

    uma forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional ou na estimativa utilitária dasconsequências, uma capacidade  –  como assinalou corretamente Hobbes  –  que o ser humano tem emcomum com os outros animais. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em consequência, o

    comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de condutamecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo determinado apenas por causas eficientes.” ( Idem , p. 50-51)

     A ação,

    é própria de um agente que delibera sobre coisas porque está consciente de suas finalidades intrínsecas.Pelo reconhecimento dessas finalidades, a ação constitui uma forma ética de conduta. A eficiência sociale organizacional é uma dimensão incidental e não fundamental da ação humana. Os seres humanos sãolevados a agir, a tomar decisões e a fazer escolhas, porque causas finais –  e não apenas causas eficientes –  influem no mundo em geral. Assim, a ação baseia-se na estimativa utilitária das consequências, quandomuito, apenas por acidente. ( Idem , p. 51).

    Outra constatação fundamental do autor foi a expansão desenfreada de um tipo peculiar deorganização –  a organização formal de caráter econômico  – , que colaborou para a consolidação efetivado mercado como foco central e articulador da modelação e ordenação da sociedade. Isto porque, àproporção que o mercado emergia como força modeladora da sociedade, o tipo de organização quecorrespondia às suas exigências veio a assumir o caráter de paradigma em termos de design organizacional,no caso levado a efeito de teorização pela teoria formal das organizações. Essa teoria estava eivada pelostraços da síndrome comportamentalista e, por essa razão, era incapaz de ajudar o indivíduo a superar asituação na qual se encontrava submerso, qual seja, a de um títere do mercado.

     Além disso, o autor também chama atenção para o fato de as organizações serem sistemascognitivos13, querendo isso dizer que, expandir determinado tipo específico de organização,deliberadamente, seria o mesmo que levar a efeito de expansão o seu padrão cognitivo. Neste caso, a

    expansão das organizações formais de caráter econômicos representou a expansão, concomitante, dospadrões cognitivos do mercado. Tais padrões, por sua vez  –  que também são decorrentes desse processoexpansivo sem precedentes na história  –   transformaram-se em  política cognitiva14, que, apesar de serparte constitutiva de toda e qualquer organização, representaria, nos dias atuais, “a moeda corrente psicológicada sociedade centrada no mercado” ( Idem , p. 90).

    Uma das consequências mais graves da expansão desenfreada do mercado15  estava no processogeneralizado de unidimensionalização humana, que ocorria à medida que o indivíduo interagisse com asorganizações economicistas e, assim, introjetava a prevalência da dimensão econômica sobre outrasdimensões de sua existência individual e social que são inerentes à sua condição humana. Na realidade, o

    13 Essa característica exprime um fato importante: por serem sistemas cognitivos, “os membros de uma organização em geralassimilam, interiormente, tais sistemas e assim, sem saberem, tornam-se pensadores inconscientes. Mas o pensamentoorganizacional pode passar a ser consciente e sistemático, quando articulado de maneira fundamentalista. Esse tipo depensamento é característico de teóricos , que articulam o sistema cognitivo inerente a um tipo particular de organização comosendo um sistema normativo e cognitivo geral.” ( Idem , p. 50) (destaque no original)

    14 Política cognitiva “consiste no uso consciente ou inconsciente de uma linguagem distorcida, cuja finalidade é levar as pessoas ainterpretarem a realidade em termos adequados aos interesses dos agentes diretos e/ou indiretos de tal distorção” ( Idem , p. 87).Os articuladores conscientes dessa política são desig nados por Guerreiro Ramos como “agentes da política cognitiva”, estandoos “mais conscientes deles” engajados em ‘atividades de comunicação e publicidade’, e têm como propósito “influenciar ainterpretação que o povo dá à realidade” ( Idem , p. 91).

    15 O autor aponta diversas, inclusive os malefícios ambientais.

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    indivíduo, sem ter consciência da ideologia (de mercado) que lhe reprimia as outras dimensões, tornava-se,ele próprio, “um propagador”. Guerreiro Ramos sintetiza bem a questão levantada por Marcuse quandoafirma que a “unidimensionalização é um tipo específico de socialização, através da qual o indivíduointernaliza profundamente o caráter - ethos  - do mercado, e age como se tal caráter fosse o supremo padrãonormativo de todo o espectro de suas relações interpessoais” ( Idem , p. 142).

    Uma segunda variação do caráter unidimensionalizador da ciência social moderna, como vimos, foi

    posta quando abordamos acima a teoria de modernização parsoniana. Para Guerreiro Ramos, erafundamental que se reconhecesse que a sociedade centrada no mercado e o caráter social que elaengendrava eram eventos recentes na história, mas que, por um processo científico indutivista e acrítico,foram elevados ao estatuto de “verdade” pela ciência social moderna, de tal modo que fatos episódicos, emtermos históricos, foram convertidos em conceitos basilares dessa ciência; além disso, a visão de que asociedade de mercado representava o estágio final na serialidade das fases históricas das nações firmou-secomo instrumento analítico para todas as sociedades. Deste modo, essa ciência pecava não somente pordeixar em uma zona de penumbra vários tipos de sociedades que não se enquadravam no modelo desociedade de mercado, como também por impingir a todas as nações um padrão serial e unidimensional decomportamento em vista do alcance da condição avançada desse modelo. Como procuramos deixar claro,a acusação dessa unidimensionalidade serialista que enviesava a ciência social de seu tempo foi feita pelo

    sociólogo baiano não apenas no que se refere a sua análise da psicologia humana e dos macro e microsistemas sociais, como também em seus estudos sobre uma das vertentes dessa ciência social, a saber, ateoria de modernização.16 

    Esse mesmo serialismo, acusado em termos de desenvolvimento das nações, também acometia ateoria social no que se refere ao processo de realização humana que, atrelada ao alcance de um estágio finalde culminância ou de perfeição das sociedades, encontraria nesse ponto final da história o locus  único ondeo ápice da felicidade humana se daria. Assim, nesse serialismo temporal, a felicidade humana seria privilégioda última e perfeita geração de homens e mulheres. À luz da teoria da delimitação dos sistemas sociais, essepostergamento de felicidade e perpetuação de insatisfações era um engano do qual a teoria social deveriaescapar, a fim de possibilitar a afirmação de que os homens e mulheres se realizariam em seu tempo, e, paratanto, necessitariam um desenho social que lhes permitisse suas realizações pessoais. Nos dias atuais, o

    principal impeditivo do exercício dessa livre autodeterminação dos povos e dos seres humanos é ahegemonia alcançada pelo sistema de mercado nos últimos trezentos anos. Era urgente, para GuerreiroRamos, assim, uma proposta delimitativa de tal sistema e que resgatasse a liberdade humana e aautodeterminação coletiva.

     Antes de finalizarmos esta seção, é importante caracterizar a proposta de Guerreiro Ramos, doponto de vista epistemológico. Aliás, ele próprio tratou de fazê-lo, quando contrastou sua propositura comas demais. Haveria, de um lado, o que ele denominou de enfoque sinóptico, ou seja, as propositurasconvergentes com os pressupostos da Teoria N, e, de outro, o contextualismo dialético, aquelascomprometidas com a Teoria P. Do ponto de vista epistemológico basilar, a distinção entre ambas éapresentada nos seguintes termos:

    Como a Teoria N presume que na realidade social histórica se verifica um curso de acontecimentosdefinido, resultante do jogo de causas absolutamente necessárias, resultante de causas absolutamentenecessárias, seus adeptos consideram que é possível obter um conhecimento racional global desse cursode acontecimentos. [...] Na concepção sinóptica, o rumo do presente está inexoravelmente determinado,e temos que fazer um esforço para conhece-lo exaustivamente. Só não conseguimos a compreensão total

    16 Sobre suas críticas às teorias de modernização, consultar, de sua autoria,  Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos deuma sociologia especial da administração  (1966), Some considerations on modernization   (1967) e  Modernization: towards a possibility Model  (1970).

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    do presente, porque nossa inteligência está turvada por interesses, preconceitos e distorções. Essaconcepção baseia-se num realismo filosófico de acordo com o qual o Eu, que é capaz de saber, pode edeve estar separado da realidade a fim de poder vê-la objetivamente. Os conceitos são reflexões darealidade na mente humana. Uma mente poderosa, qual espelho fiel, pode obter um quadro exato darealidade. A participação no processo da realidade é uma condição perturbadora para o funcionamentoda razão. A Teoria P, pelo contrário, ao admitir que não há causas absolutamente necessárias e que asescolhas humanas estão sempre em interação com os fatores objetivos para que se produzam

    acontecimentos, afirmam que a nossa compreensão da realidade é sempre limitada por restriçõescontextuais, isto é, que só podemos compreender a realidade por tentativas e erros, por ganhos deprecisão alcançáveis mediante uma espécie de dialética de participação e retraimento, numa série deconjeturas que são ‘experimentadas, alteradas e tentadas em sua forma alterada, e novamente alteradas, eassim por diante’; ou, em outras palavras, ‘num vaivém entre o concreto e o abstrato, tentando umamudança aqui e um sistema acolá’. Destarte, a Teoria P, ou o contextualismo dialético, supõe que acompreensão da realidade exige uma relativa participação da mesma. O Eu que sabe é, ele próprio, partedo campo cognitivo; toda teoria a respeito de qualquer parcela desse campo deve ser ligada a uma certaprática.” (Guerreiro Ramos, 2009, p. 61-62)

    Procurando uma afinidade epistemológica mais próxima, Guerreiro Ramos vê o contextualismodialético muito perto do pragmatismo de William James e John Dewey. Assim o autor esclarece:

    O Contextualismo dialético é talvez mais coerente com a tradição de William James e John Dewey. Elase contrapõe ao enfoque sinóptico no mesmo sentido em que Dewey, ao interpretar James, opõe opragmatismo a toda ‘teoria da cópia, em que as idéias como idéias são ineficazes e impotentes, porquantoapenas pretendem espelhar a realidade integral sem elas. O Contextualismo dialético pressupõe a unidadeentre a teoria e a prática ou a transação deweyana entre o pensamento e o contexto, segundo o que 1 osentido de um objeto está na mudança que ele exige em nossa atitude, e o sentido de uma idéia está nasmudanças que ela, como nossas atitudes, ef etua nos objetos.’” ( Idem , p. 62).

     A Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais –  sua articulação

     A proposta delimitativa de sistemas sociais feita por Guerreiro Ramos tentou, justamente, rompercom essas formas unidimensionalizadoras que eivavam as ciências sociais e a teoria das organizações. O

    ponto fundamental desta teoria é a noção de delimitação organizacional, esta que envolveria doistópicos: primeiramente, considerava que a sociedade era constituída de uma variedade de enclaves (entre osquais o mercado), o que proporcionaria ao homem o empenho em diferentes modos de atividades, algumasinstrumentais e outras substantivas; em segundo lugar, ele tinha em vista “um sistema social de governocapaz de formular e implementar as políticas e decisões distributivas requeridas para a promoção do tipoótimo de transações entre tais enclaves” (Guerreiro Ramos, 1981a , p. 140). Os pressupostos que GuerreiroRamos levou em consideração para o esboço de sua teoria derivaram da síntese de sua revisão sobre aciência social moderna; eles seriam os seguintes:

    1.  Os limites da organização deveriam coincidir com seus objetivos. Nessa conformidade, a delimitaçãoorganizacional está, primordialmente, interessada na delimitação das fronteiras específicas daorganização econômica.

    2. 

     A conduta individual, no contexto das organizações econômicas, está, fatalmente, subordinada acompulsões operacionais, formais e impostas. Assim sendo, o comportamento administrativo éintrinsecamente vexatório e incompatível com o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas.

    3.   A organização econômica é apenas um caso particular de diversos tipos de sistemas microssociais, emque as funções econômicas são desempenhadas de acordo com diferentes escalas de prioridades. Aimportância do comportamento administrativo diminui, quando se parte de sistemas sociaisplanejados para a obtenção de lucro e se caminha no sentido de sistemas sociais mais adequados àrealização humana.

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    4.  Uma abordagem substantiva da teoria organizacional preocupa-se, sistematicamente, com os meios deeliminação de compulsões desnecessárias agindo sobre as atividades humanas nas organizaçõeseconômicas e nos sistemas sociais em geral. Em outras palavras, tal abordagem reconhece que, porsua própria natureza, o comportamento administrativo constitui atividade humana submetida acompulsões operacionais. Todavia, essa abordagem está interessada em meios viáveis de redução, emesmo de eliminação, de descontentamento e com o aumento da satisfação pessoal dos membros dasorganizações econômicas.

    5. 

     As situações em que os seres humanos se defrontam com tópicos relativos à própria realizaçãoadequadamente entendidas, tem exigências sistêmicas diferentes daquelas que atendem aos contextoseconômicos. ( Idem , p. 134-135)

    Como podemos perceber, no cerne mesmo desse modelo delimitativo está a preocupação dedesaprisionar o homem dos modelos de comportamento e das formas de cognição que o sistema social domercado e as organizações econômicas a ele correspondentes tentavam lhe impor. Mas, pensar em ummodelo de delimitação que pudesse auxiliar os agentes públicos e privados na configuração e na promoçãode espaços sociais múltiplos permitidos por meio de uma contenção do poder expansor do mercadotambém sugere que não basta apenas a consciência crítica para escolhê-los e suprimir aos efeitos dessasforças expansoras, sendo imprescindível a organização de um arranjo social que possibilite a concretizaçãodessas escolhas humanas, daí a grande importância que Guerreiro Ramos conferia ao papel do Estado

    neste processo.Com base nestas preocupações, Guerreiro Ramos se propôs a responder à problemática levantada

    por Hannah Arendt (1999), qual seja, a de constituir, em seu esquema, “lugares adequados” 17  quepermitissem ao homem contemporâneo o exercício de atividades voltadas para a excelência. Para isso,Guerreiro Ramos julgava necessária uma formulação tipológica dos interesses humanos e doscorrespondentes cenários sociais onde esses interesses pudessem “ser propriamente considerados comotópicos do desenho organizacional” ( Idem,  p. 135). Assim, lançou o autor as diretrizes que se faziamnecessárias para que a reformulação da teoria da organização fosse levada a cabo, assumindo umpressuposto antropocêntrico: o de que a sociedade deveria existir para o homem, ser por ele estruturada, enão o inverso. Com base nisso, ele postulou:

    1. 

    O homem tem diferentes tipos de necessidades, cuja satisfação requer múltiplos tipos de cenáriossociais. É possível não apenas categorizar tais tipos de sistemas sociais, mas também formular ascondições operacionais peculiares a cada um deles.

    2. 

    O sistema de mercado só atende a limitadas necessidades humanas, e determinam um tipo particularde cenário social em que se espera do indivíduo um desempenho consistente com regras decomunicação operacional, ou critérios intencionais e instrumentais, agindo como um sertrabalhador.

    3.  Diferentes categorias de tempo e de espaço vital correspondem a tipos diferentes de cenáriossociais. A categoria de tempo e espaço vital exigida por cenário social de natureza econômica éapenas um caso particular entre outros, a ser discernido na ecologia global da existência humana.

    4.  Diferentes sistemas cognitivos pertencem a diferentes cenários organizacionais.

    5. 

    Diferentes cenários sociais requerem enclaves distintos, no contexto geral da tessitura da sociedade,contudo, vínculos que os tornam inter-relacionados. Tais vínculos constituem ponto central dointeresse de uma abordagem substantiva do planejamento dos sistemas sociais. ( Idem , p. 136)

    17  Este último tópico, especificamente, é devedor de Hannah Arendt (1999, p. 59), para quem era urgente a necessidade delugares adequados no contexto da tessitura social, para que o homem pudesse exercer atividades “excelentes”. Neste sentido,podemos dizer que a obra de Guerreiro Ramos tenta dar continuidade, principalmente nesse tópico, às proposições de Arendt.

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    Diante disso, Guerreiro Ramos articulou a teoria da delimitação dos sistemas sociais, em cujo cerneestá o paradigma para-econômico (ver figura abaixo). Este paradigma vislumbrava categorias delimitatórias doespaço econômico, baseando-se nas necessidades de realização pessoal do homem. Pressupunha esseparadigma que, para realizar-se, o indivíduo intentava, sempre, libertar-se da dependência total do mercadoem sua qualidade de economizador, a fim de que pudesse ter algum grau de auto-suficiência enquanto umconfrontador dos critérios do mercado, sob a orientação da racionalidade substantiva ou noética. Vide, naFigura 1, o esquema deste paradigma.

    Conforme se verifica naquela figura, a delimitação dos enclaves sociais na tessitura da sociedadedar-se-ia por intermédio da combinação de duas dimensões: a orientação individual  x comunitária  e a prescrição xausência de normas . Além de contemplar espaços livres de prescrições impostas para a auto-realizaçãohumana, o paradigma contempla tanto ambientes pequenos, exclusivos, quanto ambientes comunitários, detamanhos regulares. Em tais ambientes, é esperado que os indivíduos possam ter ação adequada às suasnecessidades de realização pessoal, ao invés de comportarem-se adequadamente de forma a corresponderàs expectativas da realidade condicionada pelos padrões do mercado.18 

     Todas as categorias do paradigma receberam de Guerreiro Ramos o caráter de tipo-ideais. Assim, aanomia é concebida como uma situação estanque, onde ocorre o desaparecimento da vida pessoal e social.Indivíduos anômicos, na realidade, são desprovidos de normas e de raízes, não possuindo compromissos

    com normas operacionais, o que quer dizer que são incapazes de compatibilizar as suas vidas com umprojeto pessoal. Nesse sentido, eles têm a necessidade de assistência, proteção ou, até mesmo, de controleinstitucional e organizacional.

     A categoria motim (ou turba), por seu turno, refere-se a uma coletividade desprovida de normas,cujos membros possuem pouca, ou nenhuma, noção de ordem social.

     A economia  é entendida como uma forma organizacional ordenada e que é estabelecida para aprodução de bens e/ou para a prestação de serviços; refere-se à organização típica da sociedade centradano mercado, ou seja, à organização formal de caráter econômico. As características mais comuns desse tipode organização são a especialização de papéis e tarefas, a predominância de normas autônomas, racionais eimpessoais e a orientação geral para a realização racional e eficiente de objetivos específicos.

    Representa a fenonomia  um sistema social constituído por uma pequena agremiação, inclusivepodendo ser individual, onde a opção pessoal é máxima e as prescrições operacionais formais mínimas;caracteriza-se pela automotivação, pela consciência social ligada à preocupação do indivíduo com a suaidiossincrasia e pela liberação de criatividade. Nela, os critérios econômicos se fazem presentes apenas deforma incidental.

     A categoria designada de isolado  acolhe aquele indivíduo que acredita que o mundo social éinteiramente incontrolável e sem remédio. A sua sobrevivência, portanto, requer um lugar no qual ele, demaneira consciente, viva segundo suas próprias crenças.

     A isonomia  é um contexto onde, tipicamente, todos os indivíduos membros são iguais e asprescrições mínimas, estabelecidas por consenso. Além disso, podem-se destacar as seguintes características

    principais: (a) favorece as pessoas a terem relações interpessoais primárias; (b) possibilita a realizaçãopessoal de seus membros, mesmo impondo prescrições coletivas; (c) as pessoas dedicam esforços que visam contribuir para a qualidade da boa vida coletiva; (d) as atividades desempenhadas pelos membrostornam-se autogratificantes, principalmente porque são escolhidas por vocação. A concepção de umaisonomia é a de uma “verdadeira comunidade, onde a autoridade é atribuída por deliberação de todos”.

    18  Nos ambientes que obedecem à orientação individual, normalmente as prescrições são auto-impostas. Já nos ambientescomunitários, dada a presença das economias, as prescrições podem ser impostas ou obtidas por consenso. Nas comunidadesque visam a atualização humana, impera o consenso na determinação das normas operativas, enquanto que nas comunidades voltadas para a maximização da utilidade, imperam as normas impostas.

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    Dito isso, pode-se sintetizar o modelo multidimensional proposto por Guerreiro Ramos como ummodelo e paradigma multicêntrico de alocação de recursos que reconhece a legitimidade do mercado, maso toma de modo limitado e regulado politicamente. Tal modelo expande a noção de recursos e deprodução  –   reduzidas que foram pelo mercado apenas a insumos e produtos de atividades de naturezaeconômica  – , já que leva em consideração tanto as atividades remuneradas quanto as não-remuneradas, oque significa dizer que o indivíduo não é visto apenas como um “detentor de emprego”, tal como aeconomia clássica o considerava. Neste sentido, o paradigma para-econômico vislumbra outras categorias(ou enclaves) de sistemas sociais (principalmente a isonomia e a fenonomia) onde o indivíduo pode tentar viabilizar o seu projeto pessoal de vida, engajando-se em atividades que guardem relação direta com a suanecessidade pessoal de auto-realização. Em termos específicos, uma das finalidades da para-economia étentar assegurar ao indivíduo a possibilidade de conviver em espaços sociais onde as orientações domercado sejam incidentais, combatendo a soberania dessa instituição sobre outros espaços existenciaishumanos. Assim, a teoria da delimitação dos sistemas socais procura restituir a multidimensionalidadehumana que foi tomada pelo mercado no momento em que o mesmo passou a ocupar quase todas asesferas da vida humana individual e associada. Em suas palavras:

    o padrão paraeconômico parte do pressuposto de que o mercado constitui um enclave dentro de umarealidade social multicêntrica, onde há descontinuidades de diversos tipos, múltiplos critérios

    substantivos de vida pessoal e uma variedade de padrões de relações interpessoais. Segundo, nesseespaço social, só incidentalmente o indivíduo é uma maximizador da utilidade e seu esforço básico é nosentido da ordenação de sua existência de acordo com as próprias necessidades de atualização pessoal. Terceiro, nesse espaço social, o indivíduo não é forçado a conformar-se inteiramente ao sistema de valores de mercado. São-lhe dadas oportunidades de ocupar-se, ou mesmo de levar a melhor sobre osistema de mercado, criando uma porção de ambientes sociais que diferem uns dos outros, em suanatureza, e deles participando. Em suma, o espaço retratado pelo padrão é um espaço em que oindivíduo pode ter ação adequada, em vez de comportar-se apenas de maneira que venha a corresponderàs expectativas de uma realidade social dominada pelo mercado.

     A paraeconomia exige um sistema de governo capaz de formular e implementar políticas e decisõesalocativas requeridas para otimizar as transações entres os diversos enclaves. Considera, para isso, aexistência e possibilidade de implementação de dois tipos de sistemas de transferências de recursos: osistema bidirecional de recursos, adotado pelo mercado, e o sistema de transferências unidirecionais,necessários à manutenção de sistemas sociais outros que não o econômico de mercado. São transferênciasbidirecionais aquelas das quais derivam lucro ou vantagem para o provedor. Por exemplo: A provê B derecursos com os quais B produz algo de que A deriva lucro ou vantagem. Contrariamente a essas, astransferências unidirecionais não se voltam para as atividades de mercado. Como informa o autor,“qualidade e desenvolvimento resultam também de uma variedade de produtos, distribuídos através deprocessos alocativos que não representam troca” ( Idem , p. 179). São transferências unidirecionais, portanto,aquelas que indiretamente beneficiam o provedor ao melhorar a qualidade ambiental da sociedade 19. Essessistemas unidirecionais têm a função de promover o senso de coesão e integração de alvos e ideais entre oprovedor e o receptor (Najjar, 1978), distinto do senso de dependência que hoje caracteriza o discurso de“função social das empresas”. Do mesmo modo, a alocação unidirecional atuaria como forma até mesmo

    de, em alguns casos, afastar os indivíduos das “garras” do mercado, provendo-os de condições materiais dese manterem ativos em seus enclaves (cf. Dennis, 1976).

     A preocupação guerreireana acerca das mazelas que o sistema de mercado causava à psique humanae ao todo social permanece atual e legítima. Mais recentemente, somam-se às suas, outras críticas severasque têm sido deferidas à instituição do mercado. De maneira geral, essas críticas fazem referências àsconsequências para o homem que a sociedade centrada no mercado tem acarretado (Rodwin & Schon,

    19 Devemos entender este tipo de melhoria em todos os níveis, entre eles o social e psíquico dos indivíduos.

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    1994; Hirschman, 1996; Moore Jr., 1999; Kuttner, 1998; Sennett, 1999). Robert Lane, por exemplo, em Themarket experience , usa vasta literatura, tanto de origem psicológica quanto sociológica, para fundamentar asua opinião de que o mercado, em vez de cumprir com a antiga promessa de felicidade para todos, pelocontrário, sabota a verdadeira felicidade humana (Lane, 1991). Segundo ele, corroborando a ideia deGuerreiro Ramos, o mercado opera uma verdadeira ilusão de ótica, ou seja, distancia as pessoas dapossibilidade de dominarem suas vidas e se conduzirem para os aspectos que realmente lhes importa.

    Semelhante acusação também é desferida por Sennett (1999). Para ele, o conflito maior que ocapitalismo em sua atual fase traz para o indivíduo guarda relação com o caráter humano, ou maisprecisamente com a corrosão  que o mercado opera no caráter humano. O indivíduo moderno já nãoconsegue encontrar narrativa para a sua própria vida dada a flexibilidade produtiva que hoj