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MODERNIDADES INSTANTÂNEAS: fotografia, cultura e transformações urbanas DANTAS, GEORGE A. F. (1); SOUSA, REBECA G. de (2); MOREIRA, BARBARA G. L. (3) 1. UFRN. Departamento de Arquitetura e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. R. Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470 [email protected] 2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- PPGAU/UFRN.. R. Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470 [email protected] 3. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- PPGAU/UFRN R. Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470 [email protected] RESUMO A obra fotográfica de Francisco du Bocage constitui uma fonte importante para os estudos sobre os processos de modernização de Recife. Os enquadramentos abrangentes, feito com a técnica panorâmica a partir da lente “olho do diabo”, revelam imagens sedutoras, ainda hoje, das forças de renovação e destruição. Um dos últimos registros da resistência da Igreja do Corpo Santo em meio a reforma do bairro do Recife, em 1910, revela a escolha do fotógrafo em captar o imponente edifício em um ângulo não-usual, ressaltando assim a sua fragilidade em meio aos escombros. O inegável valor das fotografias como testemunho, expressão e representação para mobilizar esforços, criar e difundir sensibilidades, materializar políticas urbanísticas permite aproximar o trabalho de Bocage ao de outros profissionais, como Marc Ferrez, Augusto Malta, Manoel Dantas e, no caso paradigmático de Paris, Charles Marville. Se a perspectiva das narrativas (e crônicas visuais) da modernidade parece unir muitos desses registros, o exame detido das séries fotográficas, assim como das lógicas próprias de produção e circulação do objeto fotografia, apontam especificidades e questões que interessam diretamente à história cultural urbana. Assim, por meio das obras de Francisco Du Bocage sobre a cidade do Recife, busca-se discutir como a fotografia comparte a formação de uma nova memória em uma urbe que se intenta moldar aos chamados ditames do progresso no início do século XX. O Recife antigo apresentava-se nos instantâneos de Du Bocage em escombros como restos que amparam o porvir. Por outro lado, a fotografia, em sua gênese, tenta tornar a cidade, que é mutável em sua essência, perene. Décadas antes, o instantâneo se imbui de outro significado e se torna palpável a partir do daguerreótipo. Por meio dele, o registro das ruínas dos antigos edifícios confere à fotografia a importância de assegurar uma memória em vias de um súbito desaparecimento. Na Paris de 1839, seu uso como documento para o acervo da Commission des Monuments Historiques implica também na sua relevância como instrumento formador da memória e cultura urbana em meados do século XIX. Pelas ruas e vielas da cidade medieval em iminente demolição, Charles Marville registra o que seriam os últimos instantâneos da Velha Paris que se desfragmentava para dar lugar a uma nova urbe, signo do Segundo Império orquestrada pelas

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Page 1: MODERNIDADES INSTANTÂNEAS: fotografia, cultura e ... · panorâmica a partir da lente “olho do diabo”, revelam imagens sedutoras, ainda hoje, das forças de renovação e destruição

MODERNIDADES INSTANTÂNEAS: fotografia, cultura e transformações urbanas

DANTAS, GEORGE A. F. (1); SOUSA, REBECA G. de (2); MOREIRA, BARBARA G. L. (3)

1. UFRN. Departamento de Arquitetura e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

R. Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470 [email protected]

2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- PPGAU/UFRN.. R.

Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470 [email protected]

3. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- PPGAU/UFRN R. Walter Duarte Pereira, 1624, Capim Macio, Natal-RN, CEP 59082-470

[email protected]

RESUMO A obra fotográfica de Francisco du Bocage constitui uma fonte importante para os estudos sobre os processos de modernização de Recife. Os enquadramentos abrangentes, feito com a técnica panorâmica a partir da lente “olho do diabo”, revelam imagens sedutoras, ainda hoje, das forças de renovação e destruição. Um dos últimos registros da resistência da Igreja do Corpo Santo em meio a reforma do bairro do Recife, em 1910, revela a escolha do fotógrafo em captar o imponente edifício em um ângulo não-usual, ressaltando assim a sua fragilidade em meio aos escombros. O inegável valor das fotografias como testemunho, expressão e representação – para mobilizar esforços, criar e difundir sensibilidades, materializar políticas urbanísticas – permite aproximar o trabalho de Bocage ao de outros profissionais, como Marc Ferrez, Augusto Malta, Manoel Dantas e, no caso paradigmático de Paris, Charles Marville. Se a perspectiva das narrativas (e crônicas visuais) da modernidade parece unir muitos desses registros, o exame detido das séries fotográficas, assim como das lógicas próprias de produção e circulação do objeto fotografia, apontam especificidades e questões que interessam diretamente à história cultural urbana. Assim, por meio das obras de Francisco Du Bocage sobre a cidade do Recife, busca-se discutir como a fotografia comparte a formação de uma nova memória em uma urbe que se intenta moldar aos chamados ditames do progresso no início do século XX. O Recife antigo apresentava-se nos instantâneos de Du Bocage em escombros – como restos que amparam o porvir. Por outro lado, a fotografia, em sua gênese, tenta tornar a cidade, que é mutável em sua essência, perene. Décadas antes, o instantâneo se imbui de outro significado e se torna palpável a partir do daguerreótipo. Por meio dele, o registro das ruínas dos antigos edifícios confere à fotografia a importância de assegurar uma memória em vias de um súbito desaparecimento. Na Paris de 1839, seu uso como documento para o acervo da Commission des Monuments Historiques implica também na sua relevância como instrumento formador da memória e cultura urbana em meados do século XIX. Pelas ruas e vielas da cidade medieval em iminente demolição, Charles Marville registra o que seriam os últimos instantâneos da Velha Paris que se desfragmentava para dar lugar a uma nova urbe, signo do Segundo Império orquestrada pelas

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mãos de Napoleão III e Eugene Haussmann. O enquadramento privilegiado de Marville, conferiu a sua obra uma visão em três tempos: a pitoresca e insalubre Paris se desfazia e dos seus escombros ressurgia uma nova, modernizada, emblema civilizatório. Se a Commission intentava catalogar os edifícios que compunham a memória da cidade e Marville, por sua vez, buscava registrar a Paris em transformação, Du Bocage construiu a sua narrativa fotográfica na observação da emergência de uma nova Recife moderna e salubre. Interessa por fim observar que, a mediar registros tão distantes, vê-se os enquadramentos do pitoresco em vias de superação. Palavras-chave: Francisco du Bocage – Recife – modernização

À guisa de introdução: a segunda realidade

Parece incontroverso que concomitante à emergência da fotografia no século XIX deu-se

também a emergência da própria discussão sobre as implicações epistemológicas do objeto

fotográfico. Mais do que um substituto da pintura histórica ou de caráter testemunhal, as

experimentações com a fotografia – como técnica compositiva, narrativa e figurativa – se

imiscuiriam em seus primórdios às experiências plásticas modernistas. Não à toa, a primeira

exposição dos modernistas – fora dos salões de belas-artes – aconteceria no estúdio do

fotografo Nadar, cuja produção tinha inegavelmente pretensões de composição artística.

Ainda assim, a noção de objeto que funcionaria como testemunha dos eventos históricos

logo se impôs. A instantaneidade e a mecanicidade de sua produção (e reprodução)

permitiu a rápida difusão das imagens – e mesmo de coleções de imagens, ampliando

visadas e perspectivas – em periódicos, folhetins ou mesmo álbuns de divulgação

institucional consolidaria o papel narrativo da fotografia.

Isso levaria a contratação de diversos profissionais a partir de meados do século XIX para

documentar eventos chaves e de grande repercussão pública – por exemplos, guerras, as

migrações internacionais, os esforços (e violências) colonizadores, as grandes paisagens e,

em especial, as grandes cidades em (trans)formação – para além das fotografias privadas,

dos álbuns familiares, das cenas do cotidiano. Charles Malville em Paris, Militão de Azevedo

em São Paulo, Marc Ferrez no Rio de Janeiro, Manoel Dantas em Natal e Francisco du

Bocage em Recife são alguns dos muitos que construíram narrativas fotográficas sobre

essas cidades. Desses profissionais, interessa-nos aqui tomar aqui a produção de Francisco

du Bocage sobre Recife para discutir o papel dessa narrativa como testemunho, expressão

e representação – para mobilizar esforços, criar e difundir sensibilidades, materializar

imaginários e imaginações. Contudo, antes é necessário tecer algumas considerações sobre

o uso do verbo “documentar”.

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A interrupção de um evento pelo obturador da câmera congela perpetuamente uma ação

que vinha sendo desenrolada na vida real. Para os teóricos da filosofia da imagem, o século

XXI assiste à “alvorada de uma nova geração de imagens” (JOLY, 2007, p.9) ou atravessa

uma “virada imagética” (MITCHELL, 1994, p. 13) iniciada no último quartel do século

passado.

O conceito de pictorial turn, elaborado pelo iconologista americano W. J. T. Mitchell (1994),

refere-se ao protagonismo exercido pela imagem na sociedade midiática atual e nas tensões

encontradas na forma de trata-las. Não mais restritas ao interior das igrejas, aos livros ou

aos palácios, a imagem passa a ser veiculada pela televisão e pela publicidade visual, obras

de artes são reproduzidas mecanicamente por métodos acessíveis e sob diferentes

suportes, são, inclusive, ressignificadas. As imagens multiplicam-se e cotidianamente somos

impelidos a usá-las, manuseá-las e lê-las, assim como também somos manipulados pelas

mesmas.

No entanto, longe de configurar-se como uma prerrogativa da sociedade contemporânea,

como muitos supõem, a “crise da imagem” é tão antiga quanto sua própria existência; a

cada nova tecnologia de reprodução de imagens (o advento da perspectiva, a invenção da

fotografia, .i.e) foram observadas como viradas imagéticas, observadas através de lentes da

desconfiança e da admiração, sem que uma (MITCHELL apud PORTUGAL, 2008)

Roland Barthes, em A Câmara Clara (1980), busca uma leitura ontológica da fotografia,

quer, a priori, entender “por qual traço essencial ela se distingue da comunidade das

imagens”(BARTHES, 2012, p.13). Na busca pela matriz da linguagem da fotografia, Barthes

tenta desvelar o fascínio exercido pelas imagens – e nas suas mensagens - a partir de dois

elementos, nomeados, respectivamente, de Studium e Punctum.

“O primeiro, visivelmente, é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo

com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura” (BARTHES, 1984,

p.45). A “vastidão” a qual Barthes remete compreende o interesse de ordem cultural e social

que a fotografia suscita no indivíduo, sem, no entanto, tocá-lo inefavelmente; este saber

impessoal, consequentemente, auxilia-nos a encontrar as intenções do fotógrafo, dota

assim, e este é um ponto chave para nossa discussão, as imagens de funções: “representar,

informar, fazer significar, dar vontade” (ibidem).

Para as imagens que operam de maneira profunda, Barthes denomina-as de punctum,

palavra que remeterá tanto a picada – como se o arrebatamento ocasionado pela fotografia

fosse intenso e inesperado – quanto à pontuação – uma vez que são elementos pontuais

que afloram tais emoções (ibidem, p.46). A subjetividade deste processo espontâneo reside

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em sua natureza inegociável e pessoal, cada indivíduo terá uma resposta diante do estímulo

dado pela imagem, estímulo este instantâneo e vinculado à formação do receptor da

imagem, com suas peculiaridades emocionais, estéticas, intelectuais e morais que agirão

em sua percepção diante da obra (PESAVENTO, 2004, p.56-57). Como produtor destas

imagens, o fotógrafo também vivencia em seu enquadramento a percepção que a imagem

selecionada lhe fala, movendo-o ou não a acionar o obturador desta paisagem e intenta que

outros possam vivenciá-la de forma análoga.

Quando o velho Rio de Janeiro ia abaixo sob os golpes de picareta orquestrados por Pereira

Passos, um observador registrava, com enquadramento privilegiado, os processos

engendrados para a reformulação da Capital Federal carioca. Marc Ferrez se consolidara

desde o último quartel do século XIX com uma trajetória respeitável em sua área. Premiado

em diversas exposições internacionais, nos anúncios da sua firma em 1875, Marc Ferrez &

Cia, apresentava-se ora “especialista em vistas brasileiras” ora “Fotógrafo da Frota Imperial

e da Comissão Geológica” (FERREZ, 1982, p.11). Seu prestígio1 levou a Comissão da

Avenida Central a contratá-lo para documentar a construção da grande artéria em 1903.

Assim como a nova Avenida, monumentais foram os esforços para acompanhar

sequencialmente os processos de sua feitura. A primeira versão do álbum da Avenida

Central consistia em uma compilação dos relatórios da Comissão Construtora, reproduções

dos desenhos técnicos (plantas e fachadas), organizados de tal forma que permitissem ao

portador observar todo o projeto engendrado desde a prancheta até a inauguração da via,

em 1905, graças à cobertura fotográfica iniciada antes mesmo das primeiras demolições

para a construção da Avenida e que se encerrou apenas quando esta estava finalizada.

1 Ferrez fora condecorado em 1885 como Cavaleiro da Ordem da Rosa por D. Pedro II assinalando-se seu

duradouro prestígio dentro da sociedade carioca (ibidem).

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Figura 1 - Sequencia de fotos feitas por Marc Ferrez sobre a construção da Avenida Central

entre 1900 e 1910.

Fonte: Imagens retiradas de Ferrez (1982) modificadas pelos autores.

A feitura de um álbum com vistas urbanas não era inédito no Brasil. A comercialização de

vistas urbanas avulsas ou compiladas datam desde meados do século XIX, a exemplo da

produção de Militão Augusto Azevedo sobre o desenvolvimento da cidade de São Paulo

entre 1862 e 1887 (POSSAMAI, 2008, p.71). Mas o emprego de novos recursos, técnicas e

acabamentos refinados para a feitura do álbum (FERREZ, 1982, p.19) correspondia

diretamente às feições modernas da urbe que se intentavam perenizar no compilado,

atendendo ao “processo de auto-representação da sociedade burguesa, fazendo com que a

fotografia passasse a integrar o elenco de suportes aptos à formação e veiculação de seu

imaginário social” (LIMA apud FABRIS, 1991, p.78-79). Nesta empreitada, a fotografia

permitiria à memória urbana a adição de uma nova lembrança, o pitoresco dos escombros,

que se unem ao das imagens previamente registradas da cidade colonial, constituindo um

importante encadeamento para apreender a grandeza da forja da capital carioca com

feições urbanas, republicana e modernizada.

Em sentido similar, a obra fotográfica de Francisco du Bocage constitui uma fonte

importante para os estudos sobre os processos de modernização de Recife. Os

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enquadramentos abrangentes, feito com a técnica panorâmica a partir da lente “olho do

diabo”, revelam imagens sedutoras, ainda hoje, das forças de renovação e destruição. Desta

maneira, este artigo pretende discutir, por meio das obras de Francisco Du Bocage sobre a

cidade do Recife, como a fotografia comparte a formação de uma nova memória em uma

urbe que se intenta moldar aos chamados ditames do progresso no início do século XX.

O Recife antigo apresentava-se nos instantâneos de Du Bocage em escombros – como

restos que amparam o porvir. Se a perspectiva das narrativas (e crônicas visuais) da

modernidade parece unir muitos desses registros, o exame detido das séries fotográficas,

assim como das lógicas próprias de produção e circulação do objeto fotografia, apontam

especificidades e questões que interessam diretamente à história cultural urbana.

Fotografia e o Pitoresco

A necessidade de longa exposição dos substratos à luminosidade impôs aos primeiros

experimentos fotográficos que seus motivos fossem imóveis para que não se desfocassem,

fator que levou às cidades a serem as primeiras musas das câmeras.

O protagonismo da arquitetura no primeiro momento de experimentações com a captação

da realidade por meio da câmera deve-se por responder à imobilidade necessária nos

processos que poderiam demorar longos períodos (WOLLF DE CARVALHO; WOLFF, 2008,

p.131). A imagem, tomada de uma posição elevada de um conjunto edificado do interior da

França é o tema da fotografia mais antiga documentada, de autoria do francês Joseph

Niépce (1826), necessitou de oito horas para captação de iluminação suficiente para sua

fixação, o trajeto solar está gravado em ambas as paredes opostas, banhadas em luz:

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Figura 2 Joseph Nicéphore Niépce: Primeira fotografia, circa 1826, à esquerda, primeira fotografia

com figura humana, em 1838.

Fonte: http://www.hrc.utexas.edu/exhibitions/permanent/firstphotograph/history/ Acesso em: 30 out.

2015.

O avanço da tecnologia do daguerreotipo culminou no primeiro registro fotográfico de um

ser humano, em 1838. Na Figura 2, a Boulevard du Temple aparece deserta, salvo dois

indivíduos, que permaneceram inertes tempo suficiente (cerca de dez minutos) para que

fossem captados pela lente de Daguerre. A rua, imersa em novos processos urbanos, seria

mais tarde fotografada sob outros ângulos, por ocasião da remodelação que passou a partir

das reformas orquestradas pelo Barão Haussmann, iniciada em 1853.

A novidade não se restringia à forma de representação: a câmera também enquadrava a

modernidade pungente da cidade que se transformava, das novas velocidades de

locomoção e dos novos modos de sociabilidade. O fotografar era, sobretudo, uma atividade

experimental.

Um novo recurso urgia a formulação de novos códigos, para além da perspectiva artística, a

fotografia atendia às demandas do registro que se precisava técnico - ainda que seus

fotógrafos fossem em sua maioria artistas oriundos da pintura – cumpria a função de tentar

documentar fidedignamente as feições de elementos tradicionais ou significativos destas

urbes, principalmente quando estes se encontravam em ruínas ou em vias de serem

demolidos em meio a processos de modernização urbana. Os cânones da pintura e do

desenho respondiam aos primeiros anseios da nova arte, um caminho natural uma vez que

o processo heliográfico originava-se da câmara escura, utilizada pelos pintores desde o

Renascimento.

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As Missions Heliographiques surgiram na França de 1851 pela Comissão dos Monumentos

Históricos, que convocaram os membros da Société Heliographique, e desempenhavam

este papel de documentar o acervo construído das cidades, fossem civis, militares ou

religiosos (BORGES, 2003, p.93). Não apenas se intentava perenizar a urbe nos inventários;

mapeavam-na constatando o estado de cada edificação para eventuais intervenções

posteriores. Construía-se, desta forma, um acervo pictórico destas cidades que se

propagavam pelo mundo por álbuns e cartões-postais. Este movimento de registro do

acervo urbano não se restringiu à França. Nesse período compunha-se um corpo

profissional que passou a empreender expedições pelo mundo, registrando e fazendo

circular essas representações sobre as cidades europeias e das Américas (Ibidem). Embora

se quisesse técnico, a fotografia usualmente era enquadrada segundo os cânones estéticos

do pitoresco, herdado da pintura.

Figura 3 Gustave Le Gray e Auguste Mestral, Galeria da Abadia de Saint-Pierre-de-Mossaic. , 1851

Fonte: http://www.petitpalais.paris.fr/en/expositions/modernism-or-modernity-0. Acesso em 02.

Nov. 2015.

Pensar no uso da fotografia para documentar a urbe não poderia incorrer em erro maior

caso ignorasse o árduo trabalho de Charles Marville na Paris em transformação sobre o

comando de Eugène Haussmann. As limitações do equipamento fotográfico não

prejudicaram a composição de seu amplo acervo de imagens produzidas sobre a capital

francesa em transformação entre 1852 e 1878. Este conjunto de fotografias comportavam

registros dos velhos bairros da cidade que seriam demolidos, o processo de renovação

urbana e as novas vias e construções que os sucederam. Dessas imagens, envoltas pela

influência da abordagem documental oriunda das Missions Heliographiques, Marville

produziu imagens que primavam pelo enquadramento que conferisse às edificações o

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aspecto monumental, destacando os novos traçados das ruas e vias da cidade moderna

(MONDENARD, 1999, p.109 -110).

As lógicas próprias de produção e circulação do objeto fotografia

Em 1878, ao desenrolarem as telas do pintor Victor Meirelles, enviadas para a Exposição

Mundial na Filadélfia, dois anos antes, constatou-se o irreparável dano causado pela

umidade no quadro “Combate naval de Riachuelo”, encomendado pelo Governo Imperial ao

artista. ” (Relatórios Ministeriais sobre a Academia Imperial das Belas Artes, 1883 ,s/p.).

O Relatório do Diretor da Academia das Belas-Artes Antonio Nicolao Tolentino, no ano de

1883, deliberava a respeito da aquisição de uma fotografia em placa de porcelana

executada pelo fotográfo José Ferreira Guimarães do referido quadro, apontando a

presença da matriz do negativo, realizada em 1872, a qual representava “o quadro hoje

perdido, com aquela fidelidade que dão os processos fotográficos”(Ibidem).

Este episódio suscita discussões acerca do papel da fotografia à época, pois, enquanto

perdida a tela original, a Academia conclui que sua aquisição “[...] é conveniente como um

documento muito valioso para a história da arte nacional, [...] goza de permanente duração

e, reproduzindo ela tão facilmente a pintura quanto o pode fazer a fotografia sobre esmalte,

documenta para a história, o merecimento do perdido quadro”. No entanto, quando do

conhecimento do início dos trabalhos de Meirelles em uma nova versão para a tela em

Paris, o diretor pondera em documentação: “infelizmente, [a fotografia] falece o importante

mérito do colorido, que neste gênero de reprodução toma um tom sombrio e escuro”

(MELLO JR, 1978, p.7-9)

Este episódio ilumina, timidamente, indícios da mudança de sensibilidade, por parte da

Academia, no trato da imagem fotográfica. Se ainda não vista como uma arte equiparável à

pintura histórica, ao menos possuía dentre os seus méritos a “acuidade” na representação, o

instantâneo de um artefato até então perdido.

Os enquadramentos utilizados pelos fotógrafos em suas produções pictóricas relativas à

paisagem urbana brasileira, seriam embebidas nos esquemas oriundos das pinturas, em

especial à escola estilística neoclássica; a pátina do pitoresco ressaltar-se-ia até mesmo nas

representações fotográficas das cidades em modernização, sobremodo as tonalidades do

pitoresco, ao buscar acender as assimetrias e variações nas cenas, valorizando as

imperfeições do ambiente (SILVA, 2007, p.10).

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Du Bocage no Recife

Ao considerar as práticas do corpo profissional dos fotógrafos no último quartel do século

XIX, percebe-se que suas práticas ainda reverberavam no início do século XX. O cenário

finissecular para a fotografia compunha-se de novas técnicas e equipamentos que

simplificaram o ato de fotografar e a reprodução, barateando os custos de produção. O

hábito de empreender grandes viagens para explorar e documentar novos locais associou-

se à oportunidade para os fotógrafos estrangeiros que aportavam no Brasil de fixar

residência e suprir o mercado local com seus serviços e fornecimento de material para o

público (BORGES, 2003, p.94). O Recife detinha um pequeno grupo de fotógrafos neste

período que aumentava gradativamente (LUZ, 2008, p.73) e Francisco Du Bocage vincula-

se ao grupo de fotógrafos estrangeiros que aportam no Brasil a partir do último quartel do

século XIX. De origem europeia, inicia seu ofício em terras brasileiras em partir da década

de 1890 quando adquire ponto comercial para seu estúdio na Rua Dr. Rosa e Silva (atual

Rua da Imperatriz), no centro do Recife. Da velha chapelaria, constrói a Empreza

Fotográfica e Artística, mais tarde chamada de Photografia Industrial e Artística:

Figura 4 - Anúncio da empresa de serviços e produtos de fotografia de Francisco Du Bocage, em

1911

Fonte: Jornal A Província, 15/10/1911, p.4.

O aumento da atividade amadorística no Brasil pressionou os fotógrafos profissionais a

assegurar seus ganhos ramificando-se em outros segmentos da fotografia, como a venda de

aparelhos e acessórios fotográficos (LIMA apud FABRIS, 1991,p.65), Bocage, por exemplo,

realizava constantes encomendas destes produtos no exterior,2 provavelmente para repor o

estoque de seu estabelecimento. Além disto, realizava pequenas expedições pelo Brasil e,

dentre outras atividades, oferecia seus serviços com anúncios nos jornais locais acerca de

2 Este dado foi constatado a partir de breve pesquisa no arcervo do Diário de Pernambuco em que se constatou

um aumento nas remessas enviadas para Bocage entre os anos de 1910 e 1911 (Cf, e.g., a seção “Commercio”, de 19 fev., 10 mar, 07 maio, 05 jun e 17 set. de 1910, p.04; 19 fev., 05 mar., 28 maio, 07 jun. de 1911, p.06).

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sua chegada à cidade e de como se operava seu trabalho3. Por seus serviços, o fotógrafo já

havia conquistado algum reconhecimento na cidade, fosse por enviar fotografias suas como

cortesia aos periódicos, fosse por sua presença em eventos sociais onde realizava a

cobertura fotográfica, noticiadas posteriormente para alguns jornais locais, que anunciavam

aos leitores onde poderiam garantir cópias de seus registros, o que leva a crer que o

fornecimento destas imagens era feito já com o intuito de promover seu trabalho e seu

estabelecimento para os leitores do jornal:

Pelo S. Francisco du Bocage representante do Centro Artístico Photográphico, á rua da Imperatriz n.31 nos foi oferecida uma photographia do cruzador Benjamin Constant, possante vaso de guerra da armada nacional. Essa photographia foi tirada quando aqui esteve ultimamente o referido cruzador e é um trabalho muito correcto, que muito recomenda aquelle estabelecimento. Ao Sr. Bocage agradecemos a flueza. (JORNAL DO RECIFE, 13/09/1894, p.2).

Ao hábil photographo portuguez o Sr. Francisco du Bocage, devemos o offerecimento de bela photographia representando a praça do Commercio na cidade da Victoria em dia de feira. É um trabalho correcto e que muito recomenda o artista que o executou. Ao Sr. Bocage nossos agradecimentos. (JORNAL DO RECIFE, 14/03/1895, p.2).

Inaugurou-se ante-hontem, de modo solemne a fabrica de cimento situada a margem do rio Maria Farinha (...) O sr. Francisco du Bocage tirou vistas photográphicas da fábrica e da capella com o grupo dos assistentes. (A PROVÍNCIA, 17/11/1904, p.1).

(...) O sr. Francisco du Bocage fotografou a oficialidade em frente a Companhia de bombeiros (A PROVÍNCIA, 29/08/1905, p.1).

(...) Em seguida o conhecido photographo Francisco du Bocage retratou os convivas, cujo regresso efetuou-se às 5 horas da tarde. (JORNAL DO RECIFE, 10/09/1905, p.2).

O sr. Francisco du Bocage ofertou-nos quatro photographias apanhadas de diferentes vistas a paisagem do cortejo, ante-hontem...Agradecemos a remessa dos apreciáveis trabalhos, cujos exemplares são encontrados na fotografia industrial e artística, d’aquelle cavalheiro, à rua da Imperatriz n.31... (A PROVINCIA, 14/10/1911, p.1).

O habilíssimo artista sr. Francisco du Bocage, correspondente fotográfico, neste estado,do Jornal do Brasil e da Revista da Semana, do Rio, ofertou-nos hontem duas belas photographias, trabalhos seu, tiradas por occasião da chegada do dr. Joaquim Nabuco a esta capital. (A PROVÍNCIA, 19/07/1911, p.1).

Bocage seguia a voga de seu tempo, ao chegar no Brasil fotografava vistas urbanas, motivo

que se torna recorrente nas primeiras décadas do século XX propagado por meio de

cartões-postais (LIMA apud FABRIS, 1991,p.66). Mesmo seguindo esta tendência, Bocage

aventurava-se em outras possibilidades da fotografia, propiciadas por seu esforço em

3 A exemplo deste tipo de expedição, no Jornal do Recife há notícias da partida de Bocage em 12 de março de

1912 para Aracaju, e seu anúncio no jornal local – Diário da Manhã – ofertando seus serviços de fotografia e

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exercitar sua perspectiva artística que se associava aos avanços tecnológicos de seu oficio,

os retratos poderiam ser fotografias externas que se tornariam cartões postais,:

Figura 5 - Praça do Conde D'Eau, Francisco Du Bocage, 1894.

Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/2046. Acesso em 30 set. 2015.

Figura 6 - Postal de produção atribuida a Francisco Du Bocage, 1906.

Fonte: < http://www.delcampe.net/page/item/id,315063043,var,BRESIL-rare-carte-photo-du-

Photographe-FDU-BOCAGE-en-train-de-photographier-cp-voyage-en-1906--A-voir--Lot-

P5114,language,E.html>. Acesso em 30 set.2015.

Reformas enquadradas: o Porto e o Bairro do Recife sob a lente de Francisco Du

Bocage

Iniciado a partir de meados do século XIX, o movimento de reaparelhamento da

infraestrutura nacional privilegiava os investimentos nos transportes nos espaços urbanos e

nos portos, que neste período correspondiam basicamente às algumas capitais (LUBAMBO,

1988, p.96,99). À nordeste, Recife estava no grupo de centros urbanos que galgavam sua

inserção no mercado desde antes da iniciativa do governo. Datam de 1816 os primeiros

importação de materiais fotográficos em 20/03/1912.

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planos e relatórios feitos para a cidade, dentre eles projetos para o porto, elaborados por

engenheiros franceses a serviço do governo Imperial e que prosseguiram seus trabalhos até

meados do mesmo século (MILIFONT e PONTUAL, 2002). Contudo, os preâmbulos de sua

modernização datam de 1830 até 1840, momento em que a criação de regulamentos, leis e

posturas municipais indicam a formação de um imaginário urbano condizente com o ideal de

“progresso” da época (ibidem). No último quartel do século XIX, é aprovado o Projeto de

Melhoramentos do Porto do Recife, a semelhança do que ocorria em outros portos

brasileiros: Rio de Janeiro, Santos, Salvador e São Luis (LUBAMBO, 1992, p.118). A

reforma do Bairro do Recife também foi aventada desde 1844 (projeto de Vauthier), mas

assim como as obras do porto, a implantação do projeto para o bairro se viabilizou apenas

entre 1909 e 1913, com severas alterações. (LUBAMBO, 1992, p.120).

Datam desde o último quartel do século XIX os anseios pernambucanos para que o Porto do

Recife fosse reestruturado, projetos para tal foram feitos desde então. Mas foi apenas no

século seguinte que o velho bairro do Recife mudaria suas feições. Inicialmente as obras se

dariam apenas na área do porto mas o entorno e os acessos à porta de entrada da cidade

urgiam por refazer-se ao sabor da modernidade impressa nas vias e fachadas do Rio de

Janeiro e da Paris de Haussmann (LUBAMBO, 1988, p.103). Neste período, o Governador

do Estado General Dantas Barreto havia contratado o serviço fotográfico para documentar

os trabalhos, possivelmente baseado ao que se havia operado no Rio de Janeiro pelas

máquinas de Ferrez, fosse pela urgência de perenizar em imagens o antigo em vias de

extinção, ou para demarcar o quanto se modificaria do acervo construído da cidade para

que se modernizasse. As fotografias do bairro em reforma mostram o labor de um extenso

canteiro de obras. Para que se construísse um novo Bairro do Recife, prédios foram

desapropriados, seus moradores levados a mudar de endereço e a fotografia revela nos

destroços das edificações um progresso que não dialogava amigavelmente com os

populares que ali haviam (LUZ, 2008, p.76).

A ausência de certos documentos impedem que se afirme propriamente sobre a contratação

do fotógrafo-artista pela administração local para realizar a cobertura faz obras urbanas

iniciadas em 1909 no Recife. Contudo, estudos se direcionam neste sentido e tomam força

diante da construção de sua notoriedade na sociedade recifense, somada ao teor das

fotografias empreendidas neste período durante as reformas urbanas iniciadas e espraiadas

ao longo do bairro de mesmo nome.

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Figura 7 - Francisco du Bocage, Bairro do Recife, circa 1910. Gelatina/ Prata

Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/2046. Acesso em 30 set. 2015

A abordagem formal da fotografia de Du Bocage guarda semelhança às representações

pictóricas célebres das cidades brasileiras, como as de Frans Post; cujos esquemas

remetem à tradição da paisagem ideal4 de artistas italianos do século XVII. A força

emolduradora do coulisse, a despeito do que foi empregado pelos viajantes oitocentistas em

suas descrições, na fotografia de Du Bocage será restrita à parca massa arbórea, longilínea

e delgada, compõe a porção esquerda do quadro. Como uma clara influência dos esquemas

claudeanos, o acervo construído se encontra no lado oposto da vegetação; contudo, a

estética colonial apresenta-se em ruínas: não mais temas pitorescos ou idílicos, a fotografia

ilumina o instantâneo da modernização em curso, escombros, vestígios e possíveis

permanências. A altura da visada será uma recorrência no trabalho do fotógrafo (no

universo do acervo consultado) – a imagem foi tomada acima do nível da rua, representando

seu distanciamento em relação à paisagem retratada. Sua missão é registrar, observa-se,

no entanto, que esta altura pode ser decorrente do uso da câmera panorâmica, mas até

mesmo a escolha do aparato técnico da fotografia indica sua intenção diante da cena e das

limitações e imposições inerentes a este recurso.

4 A respeito do conceito de “Paisagem Ideal”, cf. SOUZA, Valéria S. de. Gosto, sensibilidade e objetividade na

representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 2 vols. Tese 1995 (Doutorado em História)- São Paulo, FFLCH-USP, 1995, p.110

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Figura 8 - Francisco du Bocage, Igreja do Corpo Santo, em Recife, circa 1913. Gelatina/ Prata

Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/2046. Acesso em 30 set. 2015

O enquadramento para representar a Igreja do Corpo Santo é singular no que tange a

representação de edifícios de grande relevância. Um registro típico tomaria a sua fachada

colonial e seus elementos compositivos como elementos privilegiados. Contudo, foge do

arranjo tradicional do enquadramento, pois Du Bocage prende seu olhar nos escombros das

edificações adjacentes à Igreja. Ao retratar sua lateral, esta imagem prediz o destino do

edifício religioso; pouco depois, em 1914, mesmo tendo resistido às vicissitudes ao longo de

seus 400 anos de existência (PONTUAL, PICOLLO, 2008, s/p). O processo de reforma do

Porto do Recife se espraiou ao longo do bairro homônimo, elaborando uma nova urbe que,

moderna e salubre, conferia à cidade sua oportunidade de se inserir no mercado externo;

esta operação demandou que seu acervo material fosse posto abaixo para que novas

avenidas e fachadas tomassem o lugar dos velhos arcos, fortes, casarios e igrejas, como a

do Corpo Santo.

Ao período iniciado em 1909 com as obras do porto, o velho bairro do Recife foi posto sob

seguidos episódios de intervenções ao longo dos anos seguintes, com serviços de

dragagem, aterramentos e saneamento (LUBAMBO, 1988, p.104), os antigos edifícios

davam lugar a um novo modo de se construir a urbe, materializando as demandas pelo

progresso e sabor de modernidade por meio dos novos traçados, técnicas, materiais e

fachadas. Neste processo, a paisagem urbana se configurava pela simbiose entre o

tradicional que se desfaz e o moderno construído dos seus escombros; esta dualidade será

tema iluminado por du Bocage em sua fotografia do galpão do antigo Arsenal de Marinha,

em 1910.

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Figura 9 - Francisco du Bocage, Porto de Recife - Construção do Armazém, circa 1910. Gelatina/

Prata.

Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/2046. Acesso em 30 set. 2015.

As formas que delimitam o moderno e o antigo respondem, respectivamente, a porções

equivalentes na fotografia. Contrapondo-se ao maciço conjunto edilício tradicional, a vazada

estrutura metálica imprime um ritmo, sugerindo um ponto de fuga para o observador, bem

como o escalonamento dos edifícios antigos, à direita (na porção destinada à cidade

tradicional), auxiliam no direcionamento do olhar para o final da estrutura do armazém. À

esquerda, divisa-se, por entre a estrutura do armazém, elementos pertencentes ao porto;

este enquadramento não seria possível anos antes, pois o fotógrafo ocupa com sua câmera

uma área de aterro, a direita, o material da construção espera a etapa da obra seguinte.

Figura 10 - Francisco du Bocage, Rua São Jorge, circa 1910. Gelatina/Prata

Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/2046. Acesso em 30 set. 2015.

A fotografia referente a Rua São Jorge tem por tema elementar os esforços de reformulação

nos âmbitos arquitetônicos e urbanos em Recife, empreendidos para adequar a cidade aos

padrões esperados pela modernidade. Centralizado, o vazio resultado das demolições é

imerso em significados, pois além de apontar a superação em relação a urbe antiga,

sedimenta os ares de progresso no terreno e abre vereda para a iminente modernização. Se

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o vazio é signo, há também outros símbolos ocultos, diluídos no registro que não foram

enquadrados: embora capturada pela grande angular usada por Du Bocage, a torre Malakoff

situa-se próxima ao local retratado, tornar-se-á reminiscência desta urbe que aos poucos vai

se esmaecendo. A imagem tomada ao nível da rua denota a eleição do grupo de

trabalhadores como um dos pontos focais de interesse do fotógrafo: ao retirarem os

escombros do que antes era uma edificação, seus braços também operam na construção

dessa novo e “civilizado” Recife.

Considerações Finais

Diante das obras engendradas na cidade industrial europeia e nas cidades brasileiras

“ansiosas” pela inserção no mercado internacional, os fotográfos desempenhavam

importante papel de ora resguardar a urbe em vias de esfacelamento ora celebrar a

pungente modernidade construída em meio ás novas vias, fachadas e paisagens. Francisco

Du Bocage se insere neste panorama como um produtor de vistas tanto do antigo Recife

quanto um observador privilegiado dos golpes de picareta que construíam a nova urbe,

ainda que sob incertezas da sua real função diante desta produção pictórica – era um

fotógrafo a serviço do Governo ou um apaixonado pela arte que emergia da cidade em

transformação?

A cidade se desvela a partir da lente de Du Bocage como palco de uma dicotomia entre o

tradicional e o moderno, este construído a partir das ruínas de memórias de uma cidade que

não mais se queria colonial. A produção do fotógrafo-artista centraliza no seu discurso

imagético, muitas vezes, nos escombros e no seu vir-a-ser inscrito nas edificações que os

rodeiam, predizendo um futuro por vezes inevitável diante da escusa da construção da

moderna cidade.

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Fotografias de Francisco Du Bocage: Instituto Moreira Sales. Fonte: http://www.ims.com.br/