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ENSINO DE POESIA EM SALA DE AULA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA OBRA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO Robson Caetano dos Santos 1 RESUMO Esse artigo intenta apresentar algumas sugestões sobre o ensino do gênero literário poesia, tendo como base a obra do escritor João Cabral de Melo Neto, mais especificamente em três poesias de sua autoria que tem como tema a própria poesia: “O poema”, “Dois P.S. a um poema” e “O poema e a água”. Utilizando a metodologia de trabalho de pesquisa bibliográfica, associada com a aplicação e experimento em sala de aula com levantamento dos resultados, e a partir da hipótese de que muitos alunos repudiam o gênero poesia por desconhecerem sua natureza, conceitualização e tessitura literária, este artigo tem, dentre alguns de seus objetivos, apresentar a estratégia de utilizar a metapoesia, ou seja, a poesia falando de si mesma, para conduzir professores e alunos a refletirem que a poesia não possui uma finalidade pratica, dificilmente é explicável, assim, somente ela é capaz de se autodefinir. Palavras-chave: Ensino de poesia. João Cabral de Melo Neto. Metapoesia. 1 INTRODUÇÃO 1 Mestre e doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas.

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ENSINO DE POESIA EM SALA DE AULA: CONSIDERAES A PARTIR DA OBRA DE JOO CABRAL DE MELO NETORobson Caetano dos Santos

RESUMO

Esse artigo intenta apresentar algumas sugestes sobre o ensino do gnero literrio poesia, tendo como base a obra do escritor Joo Cabral de Melo Neto, mais especificamente em trs poesias de sua autoria que tem como tema a prpria poesia: O poema, Dois P.S. a um poema e O poema e a gua. Utilizando a metodologia de trabalho de pesquisa bibliogrfica, associada com a aplicao e experimento em sala de aula com levantamento dos resultados, e a partir da hiptese de que muitos alunos repudiam o gnero poesia por desconhecerem sua natureza, conceitualizao e tessitura literria, este artigo tem, dentre alguns de seus objetivos, apresentar a estratgia de utilizar a metapoesia, ou seja, a poesia falando de si mesma, para conduzir professores e alunos a refletirem que a poesia no possui uma finalidade pratica, dificilmente explicvel, assim, somente ela capaz de se autodefinir. Palavras-chave: Ensino de poesia. Joo Cabral de Melo Neto. Metapoesia.1 INTRODUO

Qual seria a melhor definio sobre o que poesia? Qual a sua finalidade? Existiria alguma frmula ou receita fixa para se ler ou compreender poesia? Com a inteno de responder (mas no em definitivo) essas indagaes, o presente estudo almeja sugerir algumas metodologias para o ensino de poesia nas aulas de lngua portuguesa, tendo como corpus de trabalho trs poesias do escritor pernambucano Joo Cabral de Melo Neto.Ensinar alunos a apreciarem e interpretarem poesia sempre tem sido uma tarefa rdua para professores tanto de lngua materna como estrangeira. Uma das hipteses levantadas nesse estudo para esse fato que muitos alunos buscam uma finalidade prtica para a poesia e buscam uma interpretao fixa para ela, no aceitando seu carter voltil. A dificuldade para os professores por sua vez, nasce no prprio momento de conceituar o que poesia?.

Aparentemente os professores alheios s ideias do que realmente seja poema pelo menos enquanto ocupam a funo docente, criariam obstculos e no caminhos para a apreciao, o deleite e uma interpretao aceitvel, por parte de seus alunos em sala de aula. A representao das poesias, como algo a ser frudos por poucos, parece estar vigente. como se esse gnero pertencesse a esferas em que um leitor comum no conseguiria circular. Outra hiptese tambm, que os exerccios e as estratgias empregadas em sala de aula, em sua maioria presente nos livros didticos, no permitem ao aluno uma compreenso aceitvel das poesias, pois tais tipos de atividades estariam negando o literrio. Para fazer com que os alunos compreendam e apreciem um texto potico, necessrio que o professor deva ele prprio, se munir de alguns elementos tericos, principalmente sobre a definio do que realmente poesia. Tendo em vista a especificidade do texto potico, e observando que se torna muito difcil definir o que poesia, o objetivo geral desse trabalho, portanto, buscar essa definio.Dessa forma, que tal seria buscar a resposta na prpria poesia? Uma poesia que falasse de si mesma, de sua finalidade? Que tentasse descrever a si mesma e ao ofcio do poeta?

Joo Cabral de Mello Neto foi um dos poetas brasileiros que mais trabalharam com metapoesia. Ser analisado neste trabalho trs delas, buscando responder a pergunta presente no objetivo geral e, tendo como objetivos especficos, tecer reflexes sobre como aprimorar o ensino de poesia nas aulas de lngua portuguesa e literatura e fazer com que alunos compreendam, interpretem e realmente apreciem esse gnero.Para tanto esse trabalho dever primeiramente descrever como, geralmente, acontece o ensino de poesia em sala de aula, apontando suas provveis falhas. Em seguida ser apresentando algumas reflexes tericas de crticos literrios e dos PCNs de Lngua Portuguesa. Aps ser demonstrado na poesia de Joo Cabral de Melo Neto a metodologia de ensino, sugerida nesse trabalho, de utilizar a prpria poesia para se autodefinir, conduzindo assim, os alunos a uma reflexo mais ampla sobre a conceitualizao desse gnero e de sua finalidade. Nas consideraes finais faremos um balano final das hipteses e objetivos levantados no incio dessa pesquisa e da eficcia de sua aplicabilidade.2 O ENSINO DE POESIA ATUAL: A DESVALORIZAO DE UM IMPORTANTE GNEROEmbora a poesia se encontre presente na maioria dos livros didticos e como texto de apoio em vestibulares e concursos, raramente se tem observado professores de lngua portuguesa dedicando parte de suas aulas ao ensino de poesia, sua conceituao e finalidade. H uma espcie de temor e mesmo um certo preconceito vindo da parte dos docentes e alunos. Muitos no gostam de ler poesia e desconhecem ou utilizam mtodos errados para uma interpretao aceitvel. imprescindvel que os professores de Lngua Portuguesa no Ensino Fundamental - e de Literatura no Ensino Mdio incentivem os alunos a esse realismo-potico, pois ele importante para que possam confront-lo com os aspectos da realidade prxima de seu cotidiano, haja vista que a poesia no se deve jamais desligar-se da vida real do ser humano, e por conseguinte, do ensino de lngua materna e de literatura. Convm ressaltar que, o hbito de ler poesia no Ensino Fundamental, benfico ao aprimoramento das emoes e da sensibilidade dos alunos. Essa metodologia agua e multiplica o prazer da beleza, e capaz de levar o ser humano a visualizar elementos sonoros, podendo at mesmo senti-los, ento atravs disto, podero ser recriados novos mundos, novas sensaes, estimulando o crescimento de seu raciocnio lgico e ampliando a percepo de sua sensibilidade. Segundo GOLDSTEIN (2005, p. 93): Alm de expressar todo valor sentimental da palavra, a poesia, explora todos os recursos da metfora descobrindo desta maneira a magia que a lngua possui, com isso ela fornece criana a riqueza da linguagem, a versatilidade da mesma, o esttico. Portanto ela responsvel na educao da sensibilidade, na arte de ouvir, contribuindo desta maneira para o aperfeioamento do ritmo frsico, para a leitura na rima e na prosa.

Portanto, o professor de lngua materna no deve desvalorizar a poesia e exclu-la de seu contedo de ensino, pois ela desenvolve o intelecto. A rima, por exemplo, excelente no processo de memorizao tornando-se at agradvel aprender a jogar com as palavras. A poesia emociona, sugere valores estticos, possibilita o enriquecimento cultural.

Entretanto, quando se trata de trabalhar no s esse, mas qualquer outro texto literrio em sala de aula, os professores no conseguem desenvolverem estratgias didticas criativas, estimulantes e interessantes para a disciplina de literatura. Soma-se a isso o fato de que grande parte dos alunos do Ensino Fundamental e Mdio no gosta de ler, e a disciplina Literatura, inevitavelmente, passa pelo ato de ler. O primeiro passo, portanto, instigar o aluno a esse ato, tornando o texto literrio sedutor, atraente.

Outro fator o de que, muitos alunos, principalmente os do sexo masculino, possuem um certo preconceito contra a poesia, por considerarem sua apreciao algo no muito viril ou adequado ao seu sexo. Por isso, para invalidar essa assertiva, esse trabalho optou pela poesia de Joo Cabral de Melo Neto, que para muitos, considerada, como se ver mais adiante, to seca e spera como o solo nordestino, comprovando que a poesia pode ser encontrada em todos os lugares e servir para todos os gostos.

Um outro obstculo que merece ser apontado, para um trabalho de interpretao potica livre e satisfatria, a leitura orientada do livro didtico. Sabemos que isso tem contribudo para a artificialidade da leitura e interpretao de um texto literrio dentro da sala de aula. A viso do leitor, ou aluno, condicionada a partir da interpretao do autor deste livro didtico. Assim, supe-se que a interpretao do texto literrio/potico no mais a do leitor/aluno, mas a desejada pelo autor do livro didtico.

Para a maioria, poesia trata-se de uma criao rtmica e meldica, de contedo emotivo e lrico. Mas isso no satisfatrio para suscitar no alunos a percepo do carter voltil e fludo da poesia, no que tange s mltiplas interpretaes e sua finalidade que conduza elevao de esprito, enfim, o prazer.

Acerca disso, os PCN entendem que a leitura um processo pelo qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreenso e interpretao do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem. (1998, p. 69). V-se, ento que o ato de leitura e interpretao no se trata de um simples ato de extrao de informaes com base em perguntas formuladas pelo autor do livro didtico, e que levem o aluno a uma mera decodificao letra por letra, palavra por palavra. Trata-se, sim, de uma atividade que implica estratgias de seleo, antecipao, inferncia e verificao, sem as quais no possvel uma leitura na qual se demonstre proficincia e fruio de um texto.

Feita a descrio da problemtica, do quadro de ensino de poesia, tal como acontece atualmente, ser apresentado o embasamento terico dessa pesquisa.3 ALGUMAS SUGESTES TERICAS PARA CONCEITUAR E ENSINAR POESIA

Nesse tpico ser feita a tentativa de responder as perguntas iniciais desse estudo: Qual o melhor conceito, interpretao, mtodo de ensino e resposta sobre a finalidade da poesia? Professores e crticos literrios constantemente tm buscado a resposta para essas indagaes na intencionalidade do poeta no momento de sua criao; outros buscam na receptividade do leitor, em sua perspectiva ou estado de nimo associada com sua bagagem de conhecimento de mundo (o que obviamente varivel) no momento da leitura. A verdade que a difcil tarefa de conceder uma definio de poesia e de sua finalidade no uma preocupao exclusiva dos professores de lngua portuguesa e crticos literrios, mas um tema encontrado com frequncia na obra de muitos poetas na literatura brasileira. Vrios deles deram entrevistas, fizeram prefcios em livros tentando descrever seu ofcio de fazer poesia.

Neste sentido, em que a poesia est sendo destacada neste trabalho, perceptvel que ela depende de um pouco mais de ateno que outros textos em prosa, mesmo comparado a outros gneros literrios. Um bom leitor de poesias, seja ela professor ou aluno, deve saber usar o tom adequado, as modalidades ou possibilidades da voz: sussurrar, altear e baixar no momento adequado; conceder tristeza, dio, paixo, saudade...; possuir a sensibilidade de saber dar pausas, criar intervalos, respeitar o tempo. bom evitar descries imensas e cheias de detalhes, deixando uma lacuna para ser preenchida pelo leitor ou ouvinte.

Na poesia as palavras quase sempre no remetem a um significado direto, mas despertam no leitor um fascnio, suscitando um desejo de procurar descobrir o que o autor no disse, quando muitas vezes ele nem quis dizer aquilo. O leitor que far as inferncias mltiplas tendo em vista que a poesia brinca com as palavras e busca eternamente o no-dito, conforme entendemos nas reflexes de talo Moriconi:Toda linguagem tem seu qu de poesia. Mas a poesia onde o qu da linguagem est mais em pauta. A poesia brinca com a linguagem. Chama ateno para as possibilidades de sentido. (...) Ocorre que a palavra poesia abrange sentidos que vo alm da linguagem verbal, oral ou escrita. (MORICONI, 2002).

Remeter sempre ao significado direto das palavras seria um dos obstculos para entender e avaliar no s a poesia de Joo Cabral de Melo Neto, mas a de qualquer outra poesia. No considerar a flutuao de sentidos da poesia um dos erros, mas h outros que podemos destacar e so enumerados por Richards (1997) tais como: a) no acionar um ouvido, uma lngua ou laringe mental ou interior, desconsiderando que uma poesia pode possuir um ritmo ou movimento prprio; b) julgar o valor de um poema somente pelas imagens que ele desperta, desconsiderando-se que elas so aleatrias; c) relacionar e restringir as emoes que uma poesia nos desperta somente lembranas de nossa vida pessoal; d) apresentar respostas prontas ou clichs; e) possuir um sentimentalismo ou uma inibio exagerada no momento da leitura de uma poesia ( preciso encontrar um meio-termo); f) crer que um poema intenta somente transmitir um credo religioso ou ideologia (mesmo que o seja, nesse caso, preciso considerar no o que faz, mas na maneira como o faz); g) julgar um poema por fora, apenas por seus detalhes tcnicos e, ficar sufocado com preconceitos crticos no momento da leitura. A teoria, nesse caso, e em excesso, pode ser prejudicial, tal como uma dieta rigorosa que impede de comer o que mais se deseja. (RICHARDS, 1997, p. 11-15).

Esses itens, na viso do crtico, so as principais causas de fracasso na leitura e na avaliao da poesia, mas alm desses outros podero ser encontrados. Observe-se que eles so precaues e no receitas ou frmulas para se ler corretamente uma poesia. Como estas no so fixas, cada leitor dever descobrir o seu prprio caminho.

Segundo Bergmann e Lisboa (2008) ao se referirem ao texto potico, afirma-se que nesse tipo de texto a lngua significa por ela prpria, no h transmisso de mensagens, a mensagem a prpria poesia. A poesia, portanto, concentraria sua fora no seu carter esttico. (BERGMANN; LISBOA, 2008, p.82). importante tambm frisar que h diferentes modos e maneiras de se analisar textos literrios, mas em todos preciso realizar um trabalho interdisciplinar, intertextual e intercontextual, segundo Guinski (2008). De acordo com essa autora: Os mtodos mais comuns, aplicveis tanto na anlise da literatura de lngua portuguesa quando de lngua estrangeira de acordo com o interesse do leitor ou do pesquisador - so: biogrfico, ideolgico, gentico, cronolgico, geogrfico e esttico. (GUINSKI, 2008, p.56). Este estudo optou nessa anlise pela prevalncia do esttico, no esquecendo a recomendao dessa mesma autora que um professor no deve apresentar apenas um mtodo de ler uma obra literria a seus alunos esquecendo de ressaltar que outros modos diferentes tambm so possveis: Ou seja, os professores devem esclarecer aos alunos os diversos mtodos que podem ser utilizados em uma anlise literria, inclusive demonstrando que da unio de tais mtodos o estudo poder se tornar mais rico e conclusivo. (GUINSKI, 2008, p.56-57). Portanto, subentende-se que o estudo aqui apresentado apenas uma possvel leitura dessas poesias de Joo Cabral de Melo Neto, dentre as inmeras outras possveis, e, por sua vez, apenas uma sugesto de metodologia no ensino de lngua portuguesa, a partir da qual outros professores podero desenvolver suas prprias estratgias sobre o ensino de poesia. Apresentar essa leitura como sendo a nica a ser seguida ou a mais correta, como querer assassinar o texto literrio. A inteno desse trabalho, na realidade, demonstrar a gama de possibilidades que so viabilizadas pelo texto potico/literrio, demonstrando um ponto de partida, na qual outros professores podero desenvolver suas prprias metodologias.Tambm na realizao de um trabalho com poesia o professor deve direcionar sua ateno para a forma artstica, o esttico, para as imagens que podem ser suscitadas; no se servindo da poesia apenas como fonte de trabalho com situaes gramaticais, regras morais ou trata-lo como um texto cientifico a ser dissecado. No deve tambm utiliza-lo em funo de outras disciplinas nem s para as sesses cvicas ou festivas. Essas proposies afastam de uma vez o gosto pela poesia.

Para se entender/interpretar a poesia tambm necessrio mostrar sua diferena com relao a outros gneros e tipos de textos, dadas as mltiplas interpretaes autorizadas. Para tanto, o professor deve ajudar na construo de sentidos e legitimar aquele que o aluno atribuir ao texto. A partir da, em vez de um estudo minucioso do vocabulrio, recomendvel uma discusso a respeito da conotao e da ambiguidade que as palavras adquirem, quando empregadas a uma poesia ou em um poema.Norteado por essas consideraes, a seguir ser visto uma sugesto de metodologia de ensino de poesia em sala de aula, a partir de parte da obra de Joo Cabral de Melo Neto.

4 UTILIZANDO A METAPOESIA DE JOO CABRAL DE MELO NETO PARA ENSINAR POESIANa poesia de Joo Cabral de Melo Neto as caractersticas que mais se destacam so o pessimismo e o ceticismo. Tambm pode ser encontrada a desfigurao da realidade, a contraposio da morte com a vida e a ligao a temas sociais do nordeste. raro encontrar em suas poesias metforas ou eufemismos que a abrandem a dor e o sofrimento do povo sertanejo e da terra castigada pela seca. Dessa forma sua linguagem pode ser comparada seca e spera tal como o solo e a pedra encontrada no serto e sua poesia ser considerada uma anti-poesia. Por esses motivos nada melhor, ao nosso ver, do que a obra de Joo Cabral de Melo Neto para comprovar que a poesia pode ser realmente encontrada nos lugares mais inusitados e de que possvel fazer poesia com tudo, mesmo com temas sombrios.Em O poema, Joo Cabral de Melo Neto instiga o leitor a refletir sobre a imprevisibilidade da poesia e de seu poder transformador, apesar de a todo momento o poeta pessimista duvidar disso:

A tinta e a lpis

escrevem-se todos

os versos do mundo.

Que monstros existem

nadando no poo

negro e fecundo?

Que outros deslizam

largando o carvo

de seus ossos?

Como o ser vivo

que um verso,

um organismo

com sangue e sopro,

pode brotar

de germes mortos?

O papel nem sempre

branco como

a primeira manh.

muita vezes

de carta area,

leve de nuvem.

Mas no papel,

no branco assptico,

que o verso rebenta.

Como um ser vivo

pode brotar

de um cho mineral? (NETO, 1975, p. 351-352)

Aparentemente, esse um dos poemas de Joo Cabral de Melo Neto em que a metapoesia atinge o seu pice. Aqui ele consegue realmente fazer um poema dentro do poema, no qual a poesia debrua-se sobre si mesmo vendo-se como objeto de discusso. Em nossa leitura, na primeira estrofe podemos perceber no um tom de afirmao, mas de perplexidade da poesia originar-se de um meio to simples, atravs do lpis e do carvo e possuir um poder to grande de abarcar todos os versos do mundo. Em seguida a criao potica comparada a monstros, pois ainda no vieram luz e jazem na imaginao do poeta, no poo que negro, mas paradoxalmente fecundo. Aqui vemos a contraposio, bem tpica do estilo cabralino. A poesia ainda considerada um monstro mesmo no momento que sai da imaginao do poeta e desliza, se libertando, saindo da tinta ou do carvo do lpis. Somente o leitor lhes dar vida e atribuir beleza, pois o poeta mantm-se pessimista de que o objeto de sua criao possua esses atributos. demonstrando sua incapacidade de falar de coisas belas, que jazem na luz. A descrena persiste na quarta e quinta estrofe quando o poeta ainda questiona como a vida pode originar-se do que morto. O verso vivo, com sangue e sopro e brota de germes mortos, do carvo e da tinta e da personalidade angustiada do poeta (ou de seu prprio corpo que considera morto). Mas mesmo assim o poeta quem liberta os versos da no-existncia, que faz com que deixem de serem monstros e habitem na escurido. O papel tambm pode ser triste, pobre e amassado, mas capaz de fazer brotar um ser vivo, o verso, de um cho mineral. Mineral, alis, uma metfora que Joo Cabral emprega constantemente em suas poesias. Em O poema percebe-se que o autor refere-se muito a materialidade, ao que palpvel, concreto. O que pode ser considerado material dentro do poema? No estaria querendo dizer que todas as coisas podem ser rematerializadas ou ressignificadas dentro da poesia ou que as palavras s possuem significado dentro do corpo do poema?

Em Dois P.S. a um poema uma poesia faz referncia a outra poesia comparando-a com o fogo e sua chama. A chama da poesia aparentemente inesgotvel e inextinguvel, tendo o poder de apagar quando quer, ao contrrio do fogo natural, dependente de sua fonte: a fogueira. Aqui as imagens tambm so palpveis, visveis e audveis, mas apesar da aparente materialidade elas no remetem a um real, mas a uma iluso:

Certo poema imaginou que a daria a ver

(sua pessoa, fora da dana) com o fogo.

Porm o fogo, prisioneiro da fogueira,

tem de esgotar o incndio, o fogo todo;

e o dela, ela o apaga (se e quando quer)

ou o mete vivo no corpo: ento, ao dobro.

Certo poema imaginou que a daria a ver

(quando dentro da dana) com a chama:

imagem pouca e pequena para cont-la,

conter sua chama e seu mais-que-chama.

E embora o poema estime que a imagem

no conteria tudo dessa chama sozinha,

Que por si se ateia (se e quando quer),

de quanto o mais-que-chama no estima;

pois vale o duplo de uma qualquer chama:

estas s danam da cintura para cima. (NETO, 1975, p.19).

As metforas empregadas por Joo Cabral so realmente desconcertantes. No h resqucios do romantismo ou sentimentalismos. Sua poesia se assemelha mais ao estilo barroco, surrealista ou mesmo modernista. Seu discurso labirntico, retorcido, contraditrio. Ele no discorre aqui sobre o que ou no poesia, nem fala de poesias alheias, mas de sua prpria poesia, de sua viso sobre ela. E isso algo muito original, muito peculiar dele. Aqui o poeta luta com as palavras, em busca de novas significaes. Parece ser uma tarefa estril tentar fazer uma interpretao literal dessa poesia. H uma similaridade dela com um quadro de pintores cubistas ou surrealistas. Parece que Joo Cabral quer impedir que o leitor faa qualquer interpretao fragmentada ou literal, e sim que, intencionalmente, deseja conduzir pluralidade de sentidos. Podemos no apenas visualizar a poesia e a chama, mas principalmente senti-las, como matria e como seres abstratos. O poeta diz que a imagem pequena e pouca para conter sua chama e realmente assim o acontece. A poesia possui uma chama impossvel de ser apreendida pelos olhos da matria, mas somente com os olhos do esprito, conforme vemos na leitura de Octavio Paz:Fuso de ver e crer. Na conjuno destas duas palavras est o segredo da poesia e de seus testemunhos: aquilo que nos mostra o poema no vemos com os olhos da matria, e sim com os do esprito. A poesia nos faz tocar o impalpvel e escutar a mar do silncio cobrindo uma paisagem devastada pela insnia. O testemunho potico nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que este mundo. Os sentidos, sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginao e nos fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptvel. (PAZ, 1994).

Assim como ouvimos o crepitar do fogo tambm podemos ouvir o rumorejar das guas atravs da poesia, refletindo sobre a volatilidade de sentidos e emoes que ela capaz de nos suscitar. Em O poema e a gua, no se fala propriamente do que poesia, mas de (alguns) dos seus atributos, de sua condio, de sua feitura, que se assemelha ao lquido da gua e ao toque do vento:

As vozes lquidas do poema

convidam ao crime

ao revlver.

Falam para mim de ilhas

que mesmo os sonhos

no alcanam.

O livro aberto nos joelhos

o vento nos cabelos

olho o mar.

Os acontecimentos de gua

pem-se a se repetir

na memria. (NETO, 1975, p. 385)

Novamente o inalcanvel. A poesia que fala de ilhas que mesmo os sonhos no alcanam, algo que est alm dos nossos olhos. A gua que passa por nossos dedos, o vento que sentimos em nosso rosto. Sentimos esses elementos, mas no os vemos. A poesia sempre acena ao longe, prometendo um sentido, uma iluso, que logo se esvanece.Assim, para ZILBERMAN (1992, p. 187): A interpretao da poesia separa em partes distintas o que em sua origem enigmaticamente uma coisa s. Alm disso, ela no pode nunca desvendar todo o mistrio da obra lrica e literria. Pois esse estado de unicidade mais intimo que a mais sagaz perspiccia de esprito, capaz de notar como uma face fala muito mais que qualquer descrio fisionmica e a alma mais profunda que qualquer tentativa de interpretao psicolgica.Assim, a interpretao total de um texto potico sempre estaria inalcanvel. Em outras palavras, ela estaria sempre aberta, mas nunca se fecharia totalmente. Com esses slidos (ou volteis?) exemplos, amparados na prpria poesia de Joo Cabral de Melo Neto, um professor poderia conduzir seus alunos a terem uma noo do que poesia, a construrem seu prprio conceito ou sempre partirem em busca de outros novos.Foi o que foi constatado na aplicao dessa estratgia em uma turma do 1 Ano do Ensino Mdio, na Escola Estadual Incio de Souza Moita, no municpio de Marab-PA durante as aulas de Lngua Portuguesa. Em uma aula anterior o professor pediu que cada aluno escrevesse livremente o que era poesia para cada um deles. Na aula seguinte, aps distribuir as trs poesias de Joo Cabral de Melo entre os alunos, o professor discorreu um pouco sobre a natureza da poesia, que foram apresentadas nesse trabalho, solicitando em seguida que cada um agora tentasse conceitu-la a partir do que fora lido. Comparando os textos produzidos nas duas aulas, confirmou-se que a percepo dos alunos sobre o conceito gnero potico ampliou-se. Dentre os que, por exemplo, achavam que poesia era somente uma forma (ou linguagem) bonita para falar s sobre o amor descobriram que a poesia tambm pode tratar de temas sombrios, secos e speros, e por sua vez, torn-los belos, confirmando a tese de que realmente possvel fazer poesia com tudo e de que a poesia pode ser sempre encontrada nos lugares mais imprevisveis ou inusitados. 5 CONSIDERAES FINAISComo ltimas consideraes sobre a poesia falando de si mesma, a partir da obra de Joo Cabral de Melo Neto, pode-se postular que a boa poesia sempre imperfeita, nunca se fecha totalmente e tambm sempre pode se abrir a novas significaes. Toda a vez que a lemos isso acontece. O professor de lngua materna ou literatura pode frisar, a partir dessas consideraes, que esse significado pode no estar presente no momento da criao, na intencionalidade do poeta, mas pode emergir da poesia, vir a existir no momento da leitura. Assim a promessa de uma poesia no um sentido fixo, mas, sobretudo, o prazer. Essas so as respostas s indagaes presentes nas hipteses e objetivos presentes no incio desse trabalho.Talvez Joo Cabral de Melo Neto foi o poeta brasileiro que soube trabalhar a metapoesia com muito mais originalidade sendo que no escreveu propriamente poesias que discorriam sobre o que ou no poesia, mas fez a prpria poesia acontecer como exemplo demonstrando isso com sua prpria tcnica, com seu prprio estilo. Sua linguagem realmente desconcertante, mas se a anlise de uma parte de sua obra potica falando sobre poesia no plenamente elucidativa, pelo menos nos instiga a buscar e refletir mais sobre esse tema.

Aps essa lio de poesia, nada seria mais conveniente do que encerrar com essa citao de Alfredo Bosi, a qual sintetiza tudo o que foi discorrido, mesmo tendo a impresso que seria possvel escrever mais pginas e pginas sobre a definio do que poesia e sobre o modo de ensin-la, mesmo sem esgotar o assunto nem o prazer nessa tarefa:E ficvamos sabendo que poesia no discurso verificvel, quer histrico, quer cientfico; que poesia no dogma nem ensinamento moral; nem, na outra ponta, sentimento na sua imediatidade. Nem pura idia, nem pura emoo, mas expresso de um conhecimento intuitivo cujo sentido dado pelo pathos que o provocou e o sustm. Nada mais, mas nada menos. (BOSI, 1996, p.09).REFERNCIASBERGMANN, Juliana Cristina Faggion; LISBOA, Maria Fernanda Arajo. Teoria e Prtica da Traduo. Curitiba: Ibpex, 2008. BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia in: BOSI, Alfredo (Org.). Leitura de poesia. So Paulo: tica, 1996. BRASIL. Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: lngua portuguesa/Secretaria de Educao Fundamental. Braslia: MEC/SEF, 1998.

FERNANDES, Alessandra Coutinho. PAULA, Anna Beatriz. Compreenso e Produo de Textos em Lngua Materna e Lngua Estrangeira. Curitiba: Ibpex, 2008.GOLDSTEIN. N. (Org.). Traos marcantes no percurso potico de Manuel Bandeira. So Paulo: Humanistas. 2005. GUINSKI, Lilian Deise de Andrade. Estudos Literrios e Culturais na Sala de Aula de Lngua Portuguesa e Estrangeira. Curitiba: Ibpex, 2008.MELO NETO, Joo Cabral de. Poesias completas: 1940-1965. Rio de Janeiro: Jos Olympio,1975.MORICONI, talo. Como e porque ler a poesia brasileira do sculo XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. PAZ, Octavio. A dupla chama. So Paulo: Siciliano, 1994.RICHARS, I.A. A prtica da crtica literria. So Paulo: Martins Fontes: 1997.ZILBERMAN. R. A Leitura na Escola. In: ZILBERMAN. R. (Org.). Leitura em crise na escolar. Porto Alegre: Mercado Aberto. 1992. Mestre e doutorando em Literaturas de Lngua Portuguesa pela PUC-Minas.