moda no século xxi para além da distinção social

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Sociologia A moda no século XXI: Para além da distinção social? Aline Gazola Hellmann Porto Alegre 2009

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tese de doutorado

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  • Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    A moda no sculo XXI: Para alm da distino social?

    Aline Gazola Hellmann

    Porto Alegre 2009

  • 2

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    A moda no sculo XXI: Para alm da distino social?

    Dissertao de Mestrado, apresentado ao Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Sociologia.

    Aluna: Aline Gazola Hellmann

    Orientadora: Professora Doutora Snia Maria Karam Guimares

    Banca Examinadora:

    __________________________________________________________________

    Professora Doutora Evelise Anicet Rthschilling

    __________________________________________________________________

    Professora Doutora Cinara Lerrer Rosenfield (PPGS UFRGS)

    __________________________________________________________________

    Professora Doutora Maria Eunice Maciel (PPGAS UFRGS)

    2009

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    Agradecimentos

    Aos meus ex-colegas e clientes de shopping: a memria do nosso convvio est presente em cada pgina dessa dissertao.

    minha orientadora Prof. Dra. Snia Guimares. s Professoras Dra. Cinara Rosenfield, Dra. Evelise Rthschilling, Dra.

    Maria Eunice Maciel, Profa. Dra. Dbora K. Leito e Prof. Dr. Jos Vicente Tavares dos Santos.

    esta Universidade e Capes, pela bolsa concedida. Aos meus pais, minha av Amarah (in memorian), meus irmos, famlia

    Cepik, Malu e meu filhote Francisco, pelo carinho e incentivo. Um agradecimento especial minha me pela enorme ajuda com o Francisco desde sempre.

    Ao Marco Cepik que, ao cabo de trs anos ouvindo e discutindo comigo, deve ser o primeiro cientista poltico especialista em moda do pas... Me deu meu primeiro livro de Antropologia da moda e me levou para conhecer alguns dos principais plos difusores de moda ao redor do mundo. Esse mestrado jamais teria se realizado sem ele e pra ele que eu dedico esse trabalho. Obrigada, Mores.

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    Resumo

    O presente estudo realizou uma investigao sobre a validade do critrio de distino social para explicar a moda como fenmeno social no comeo do sculo XXI. Para tanto, procurou-se definir operacionalmente o conceito de moda, bem como delimitar a sua origem histrica e refletir sobre seu desenvolvimento no mundo moderno. Em seguida, foram revisitadas as idias de quatro autores seminais para a Sociologia da Moda, a saber, Thorstein Veblen (1857-1929), Georg Simmel (1858-1918), Pierre Bourdieu (1930-2002) e Gilles Lipovetsky (1944-), procurando indicar a razo pela qual estes autores foram to influentes no debate sociolgico sobre a moda e apontar os limites de suas respectivas abordagens. O estudo procurou ainda definir a moda no comeo do sculo XXI, observando sucessivamente o fenmeno pelo lado da produo institucionalizada e pelo lado do consumo e de seus valores orientadores. Por meio do estudo realizado foi possvel identificar novos atores e processos no sistema da moda e do vesturio, bem como valores e motivaes mais individualistas e hedonistas nas experincias de consumo de bens de moda, sobretudo para os grupos sociais de maior poder aquisitivo. No obstante, concluiu-se que a moda no sculo XXI, varivel e inovadora como , continua ligada distino, tanto quanto construo da identidade, no apenas dos indivduos, mas dos grupos sociais.

    Palavras-chave: moda - Sociologia teoria da moda vesturio - consumo - difuso - valores

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    Abstract

    This study was based on the social distinction criteria to explain the fashion as a social phenomenon in the beginning of the 21st Century. In order to achieve such an explanation, the research was conducted in four steps. First, a general conceptual framework was established and the fashion as a modern phenomenon was historically described from 1350 CE onwards. The second step involved a brief presentation and a critique of four important authors in the Fashion Sociology field of inquiry, namely, Thorstein Veblen (1857-1929), Georg Simmel (1858-1918), Pierre Bourdieu (1930-2002) and Gilles Lipovetsky (1944). The third part of the study did analyze the contemporary fashion and clothing systems as fully institutionalized sets of actors, relations, procedures, and norms comprising the whole cycle of production and dissemination of fashion and clothing. Finally, the fourth step in this quest was about to understand the relations between the fashion systems and the social mechanisms of adoption and consume of such material and symbolical goods. At the end, even if one acknowledges fresh new individualistic and hedonist values and motivations associated with fashion consumption, especially in the case of individuals and groups with higher purchase power, the general conclusion of this study is to reassert the importance of social distinction as the general criteria to explain fashion in contemporary societies.

    Key-words: fashion - sociology fashion theory - clothing - consumption - diffusion values

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    Sumrio

    Resumo ........................................................................................................ 4 Abstract ......................................................................................................... 5 Lista de Quadros e Figuras ........................................................................... 7 Introduo ................................................................................................... 10 1. A moda como fenmeno social moderno .......................................... 17

    1.1. A moda aristocrtica: nascimento (1350-1850) ........................... 20 1.2. A moda moderna: 1850-1960 ...................................................... 27 1.3. A moda aberta: 1950-2000.......................................................... 31

    2. O legado das teorias sociais do sculo XX ........................................ 37 2.1. Thorstein Veblen: distino individual ......................................... 46 2.2. Georg Simmel: identidade social ................................................. 53 2.3. Pierre Bourdieu: distino social ................................................. 57 2.4. Gilles Lipovetsky: identidade individual ....................................... 64

    3. O Sistema Contemporneo da Moda ................................................ 73 3.1. Um ponto de partida: Barthes ..................................................... 74 3.2. O Sistema da Moda: atores, instituies e processos ................. 75 3.3. O Sistema do Vesturio: atores, instituies e processos .......... 78 3.4. Moda e vesturio na prtica: uma coleo brasileira .................. 83

    4. Adoo e consumo da moda contempornea ................................... 88 4.1. A relao entre os consumidores e os objetos ............................ 90 4.2. A origem do hedonismo moderno segundo Colin Campbell ....... 94 4.3. Os novos referenciais de consumo ............................................. 98 4.3.1. A roupa esporte ......................................................................... 100 4.3.2. O caso do vintage ..................................................................... 102 4.3.3. O caso Le Lis Blanc .................................................................. 104 4.3.4. O caso das bolsas e dos relgios ............................................. 108

    Consideraes Finais ............................................................................... 112 Referncias bibliogrficas ......................................................................... 116 Outras referncias .................................................................................... 121

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    Lista de Quadros e Figuras

    Quadro 1 Resumo das principais abordagens sociais sobre a moda ............................... 40

    Quadro 2 Quadro Comparativo dos sub-campos do Campo da Alta Costura Francesa .. 60

    Quadro 3 - Etapas do desenvolvimento da moda, segundo Gilles Lipovetsky .................... 69

    Quadro 4 Quadro comparativo dos sistemas do vesturio e da moda ............................. 73

    Quadro 5 - Estgios e Tipos de Consumidores dos Produtos de Moda .............................. 86

    Quadro 6 - Exemplos de peas esportivas vintage ........................................................... 103

    Figura 1 Esquema classificatrio dos autores Veblen, Simmel, Bourdieu e Lipovetsky .. 45

    Figura 2 Cadeia Produtiva do setor do vesturio .............................................................. 79

    Figura 3 Processo produtivo do vesturio ......................................................................... 79

    Figura 4 - Anncio do Aroma Le Lis Blanc. ........................................................................ 107

    Figura 5 - Relgio Chanel J12 Noir Intense ....................................................................... 110

    Figura 6 Relgio Rolex Daytona ..................................................................................... 110

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    The four girls sit at a table drinking Cosmopolitans.

    CHARLOTTE: Hmmm. This is delicious.

    MIRANDA: Why did we ever stop drinking these?

    CARRIE: Because everyone else started. 1

    1 Citao do roteiro de Sex and the City, o filme. Disponvel em:

    http://warnerbros2008.warnerbros.com/hfpa/assets/images/SexAndTheCity_Script.pdf.

  • 9

  • 10

    Introduo

    Segundo Daniela Calanca (2008:11), moda um desses termos da linguagem corrente que, por sua visibilidade e dimenso de massa, do uma grande contribuio compreenso da vida em sociedade, oferecendo um quadro comum de referncia e reflexo para uma srie de aspectos da vida social. 2

    Calanca utiliza o termo para definir o fenmeno social da mudana cclica dos costumes e dos hbitos, das escolhas e dos gostos, coletivamente validado e tornado quase obrigatrio (Ugo Volli apud Calanca, 2008:12).

    A partir do final da Idade Mdia, quando surgiu como sistema no Ocidente, a moda conquistou todas as esferas da vida social, influenciando comportamentos, gostos, idias, artes, mveis, roupas, objetos e a prpria linguagem.

    2 A palavra inglesa fashion originria do Latim facio ou factio, que significa fazendo. O termo

    moda deriva do latim modus (maneira, modo), de onde deriva a palavra francesa mode. O termo ingls fashion, dicionarizado como maneira coletiva de se vestir, apareceu por volta de 1482 (Kawamura, 2006:3; Calanca, 2008:13). Mesmo na lngua portuguesa comum o uso de outras palavras como sinnimas para moda, tais como, por exemplo, as palavras inglesas fashion, look, style, vogue, trend, apparel, embora tais palavras possuam significados diferentes entre si.

    Moda s.f. 1 maneira, gnero, estilo prevalente (de vesturio, conduta etc.) 1.1 conjunto de opinies, gostos e apreciaes crticas, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos, aceitos por determinado grupo humano num dado momento histrico 1.2 conjunto de usos coletivos que caracterizam o vesturio de determinado grupo humano num dado momento 1.2.1 a alterao de formas, o uso de novos tecidos, cores, novas matrias-primas etc, sugeridos para a indumentria humana por costureiros e figurinistas de renome 1.2.2 conjunto das principais tendncias ditadas pelos profissionais que trabalham no ramo da moda 2 Indstria ou comrcio da roupa 3 histria, desenvolvimento e produo da roupa 4 a crtica da moda 5 um grande interesse; fixao, mania 6 EST valor que ocorre mais vezes um uma distribuio de freqncia. Fonte: Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, pgina 1940.

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    Nesse sentido, pode-se afirmar que a moda no tem um contedo especfico, nem est ligada a um objeto em particular, sendo um dispositivo social definido pela temporalidade breve e pelas mudanas constantes (Lipovetsky, 2006:24).

    Entretanto, embora esteja presente em diversos setores da vida na sociedade contempornea, no vesturio que a moda se manifesta mais claramente:

    Porque exibe os traos mais significativos do problema, o vesturio por excelncia a esfera apropriada para desfazer o mais exatamente possvel a meada do sistema da moda. (...) A esfera do parecer aquela em que a moda se exerceu com mais rumor e radicalidade, aquela que, durante sculos, representou a manifestao mais pura da organizao do efmero. (Lipovetsky, 2006:24)

    Antes de prosseguir, cabe distinguir conceitualmente os termos moda, vesturio, indumentria, traje e roupa. Como se poder ver mais detidamente ao longo do estudo, a moda, alm de ser um fenmeno mais abrangente e que incide tambm, mas no exclusivamente, sobre o vesturio, refere-se a um processo de produo e consumo de significados simblicos, enquanto o vesturio refere-se a um sistema de produo e consumo material.

    Segundo Kawamura (2006:50), esta complementaridade entre a dimenso material do vesturio (clothing) e a dimenso simblica da moda (fashion) essencial para que se possa entender a institucionalizao do sistema da moda-vesturio a partir de meados do sculo XX. Basicamente, a partir de ento o sistema institucionalizou um processo contnuo de criao e difuso de um conceito ou um smbolo, a moda, a qual se associa de maneira complexa aos gostos, valores e possibilidades de consumo dos diversos indivduos e grupos sociais, interpondo um incentivo mais ou menos explcito que leva as pessoas a comprarem produtos e/ou servios de moda (Cobra, 2007:12).

    Em relao aos termos indumentria, traje, roupa e vesturio, pode-se tomar como ponto de partida a diferena proposta por Barthes (2005). Segundo

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    aquele autor, a indumentria seria uma realidade institucional, essencialmente social e coletiva, enquanto o traje ou a roupa constituiriam uma realidade individual, por meio da qual os indivduos atualizam em si a instituio geral da indumentria. As duas realidades formariam um todo genrico denominado vesturio. Como o foco do presente trabalho a moda associada ao vesturio, a maioria das observaes sobre moda, consumo, valores e gosto que so feitas ao longo do texto tero como referncias empricas o vesturio.

    Em termos econmicos, a moda-vesturio est ligada a uma das maiores cadeias produtiva do capitalismo contemporneo, no Brasil e no mundo.3

    Segundo dados do Instituto de Estudos de Marketing Industrial (IEMI, 2002), as indstrias txteis e de vesturio constituem, juntas, a quarta maior atividade econmica mundial, depois da agricultura, turismo e informtica. No Brasil, o prestgio crescente deste setor na esfera econmica pode ser conferido atravs de alguns indicadores: o faturamento da indstria txtil-vesturio brasileira totalizava, j em 2001, 36,7 bilhes de dlares, sendo que o segmento de fibras concentrou 1,2 bilho de dlares, o setor txtil 14,1 bilhes e o setor de confeces faturou 21,4 bilhes de dlares (Rech, 2006:22). 4 A importncia do vesturio para a economia brasileira refora a justificativa para um trabalho sobre a moda como fenmeno social. Considerada a dupla importncia sociolgica e econmica da moda, preciso levar em conta a

    3 Por cadeia produtiva entenda-se aqui o conjunto formado por todas as aes e agentes

    interligados entre si (elos) que esto relacionados com a produo e distribuio de um bem ou servio, desde a produo da matria-prima at a comercializao do produto final.

    4 Em 2000, o Brasil estava entre os principais produtores mundiais da indstria txtil-vesturio,

    sendo o segundo maior produtor mundial em tecidos de malha (atrs apenas dos Estados Unidos), o sexto maior produtor de fios e filamentos, o stimo em tecidos e o quinto em confeco. O pas era ento o maior produtor de algodo da Amrica Latina e o oitavo maior produtor mundial desta fibra (Rech, 2006:24). Em meados da dcada atual, o setor empregava mais de 1,5 milho de pessoas no Brasil, sendo que aproximadamente 21% deste total estavam alocados na indstria txtil e os outros 29% na indstria de confeces. No primeiro semestre de 2004, a gerao de emprego formal na cadeia produtiva da moda apresentou um acrscimo de 34% no setor txtil e de 66% nas confeces, totalizando 66.433 novos postos de trabalho (ABIT, 2005).

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    seguinte afirmao de Lipovetsky, ainda que se devam descontar eventuais exageros retricos:

    "A moda no mais um enfeite esttico, um acessrio decorativo da vida coletiva; sua pedra angular. A moda terminou estruturalmente seu curso histrico, chegou ao topo do seu poder, conseguiu remodelar a sociedade inteira sua imagem: era perifrica, agora hegemnica". (Lipovetsky, 2006:12)

    Enfim, a moda um fenmeno social relevante a respeito do qual existe hoje uma bibliografia extensa, mas ainda assim insuficiente do ponto de vista conceitual e emprico. De fato, embora os estudos sobre moda na Sociologia possuam uma histria relativamente longa, diversos autores concordam que durante muito tempo eles foram considerados pela disciplina como fteis e de uma importncia menor (Calanca 2008:37; Monneyron, 2006:9; Lipovetsky, 2006:09-19).5

    Quando realizados por historiadores, tais estudos tipicamente no apreendiam o fenmeno no seu conjunto, preocupados que estavam em recensear diferenas: umas internas prpria indumentria (mudanas de silhueta e cortes, por exemplo), outras, externas, extradas da histria geral (poca, pas, classes sociais etc). Tais trabalhos deixavam de lado a noo de vesturio como sistema, ou seja, como uma estrutura cujos elementos individuais (as roupas) adquiriam significado por estarem interligados por um conjunto de normas coletivas (Barthes, 2005:259).

    Ademais, coloca-se o desafio j mencionado de relacionar este sistema material de produo e consumo das roupas com o sistema simblico de produo e consumo da moda. Embora algumas das caractersticas da moda possam ter permanecido as mesmas desde seu surgimento como fenmeno moderno associado emergncia do capitalismo, assim como mudaram as sociedades e os

    5 Ver tambm o verbete correspondente no The Cambridge Dictionary of Sociology. Cambridge-

    UK: Cambridge University Press, 2006, 197.

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    indivduos que as compem, seria razovel esperar que o prprio mecanismo da moda e seu "lugar" social tambm tivessem mudado.

    Parte da justificativa e dos objetivos do estudo encontra-se ligada tarefa de fixar um entendimento menos fragmentrio a respeito de algo que se tornou quase "parte da paisagem", que se integrou ao cotidiano das sociedades contemporneas, ainda que no afete os seus membros da mesma maneira. De acordo com Baldini (2006:10), com efeito, nos dias de hoje, a moda tornou-se um fenmeno social de difcil definio dada a sua amplitude e a diversidade de opinies de que tem sido objeto.

    Portanto, o objetivo principal do estudo que segue analisar a moda como fenmeno social. Principalmente suas caractersticas contemporneas como um sistema institucionalizado de produo e sustentao de um conjunto de smbolos culturais e suportes materiais (no caso o vesturio), os quais se articulam de maneira complexa com as demandas e valores de consumo de indivduos e grupos sociais especficos.

    A pergunta que norteia este estudo : pode a moda ainda ser explicada pelo conceito de distino social no comeo do sculo XXI?

    A hiptese de trabalho que guia esta pesquisa a de que a noo de distino social, tal como elaborada por Bourdieu (2006), continua sendo central para a explicao da moda no sculo XXI.6

    6 A noo de Distino Social aparece em diversos momentos e passagens do livro de Pierre

    Bourdieu publicado originalmente em 1979 sob o ttulo de La Distinction: critique social Du jugement. Embora seja difcil isolar uma formulao sinttica ou uma definio operacional desse importante conceito, ele aparece na primeira parte do tratado (Crtica social do julgamento do gosto), na segunda parte (Economia das Prticas), sobretudo no captulo 3 (habitus e o espao dos estilos de vida), bem como na terceira parte (Gostos de Classe e Estilos de Vida), principalmente no captulo 5 (O senso de Distino). Ainda que no exista uma definio operacional sinttica, a seguinte passagem ilustra bem o carter social e conflitivo, a um s tempo material e simblico, da abordagem de Bourdieu: A discretio classificadora fixa, maneira do direito, um estado de relao de foras que ela visa eternizar pelo fato da explicitao e da codificao. O princpio da diviso lgica e poltica que o sistema de classificao s tem existncia e eficcia por reproduzir sob uma forma transfigurada, na lgica propriamente simblica das distncias diferenciais, ou seja, do descontnuo as diferenas, quase sempre graduais e contnuas, que conferem a estrutura ordem estabelecida; mas ele no acrescenta sua contribuio prpria, ou seja,

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    A explicao alternativa, sustentada por Lipovetsky (2006), segundo a qual a moda resulta cada vez mais da expresso da busca pela identidade individual e do gosto pelo novo, foi considerada seriamente no decorrer do trabalho, mas ao cabo foi descartada por recusar os condicionantes coletivos e sociais das escolhas que os indivduos fazem ao se relacionarem com a moda. Ao longo do trabalho, o leitor poder notar que diversos elementos da crtica de Lipovetsky foram considerados pertinentes e incorporados reflexo, mas finalmente a essncia do seu argumento foi recusada na medida em que a pesquisa avanou. Alternativamente, considerou-se pertinente o argumento central de Bourdieu (2007) acerca do mecanismo de distino social envolvido em todo o processo da moda.

    Para verificar a validade e as nuances da hiptese esboada acima, o texto foi dividido em quatro captulos, seguidos de uma seo com as Consideraes Finais.

    No primeiro captulo trata-se de definir operacionalmente o conceito de moda, de delimitar a sua origem histrica e de refletir sobre seu desenvolvimento no mundo moderno. Tendo em vista os desenvolvimentos internos prpria moda, o argumento do captulo 1 foi dividido em trs perodos histricos (1350-1850, 1850-1950 e 1950-2000).

    Em seguida, no segundo captulo so revisitadas as idias de quatro autores seminais para a Sociologia da Moda, a saber, Thorstein Veblen (1857-1929), Georg Simmel (1858-1918), Pierre Bourdieu (1930-2002) e Gilles

    propriamente simblica, para a manuteno dessa ordem, a no ser porque tem o poder propriamente simblico de fazer ver e fazer acreditar que lhe atribudo pela imposio de estruturas mentais. (Bourdieu, 2006:444). Mais adiante, Bourdieu explicita as implicaes do sistema classificatrio envolvido no mecanismo da distino social: Basta ter em mente que os bens se convertem em sinais distintivos, que podem ser sinais de distino, mas tambm de vulgaridade, ao serem percebidos relacionalmente, para verificar que a representao que os indivduos e os grupos exibem inevitavelmente atravs de suas prticas e propriedades faz parte integrante de sua realidade social. Uma classe definida tanto por seu ser-percebido, quanto por seu ser, por seu consumo que no tem necessidade de ser ostensivo para ser simblico quanto por sua posio nas relaes de produo (mesmo que seja verdade que esta posio comanda aquele consumo). Bourdieu (2006:447).

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    Lipovetsky (1944-). Utilizando as dicotomias identidade-distino e social-individual, seria possvel indicar porque estes autores foram to influentes no debate sociolgico sobre a moda e entender os limites de suas respectivas abordagens. Outra justificativa para a escolha desses autores em particular que eles escreveram em dois perodos diferentes da histria da moda (1895 e 1899 no caso de Simmel e Veblen, 1979 e 1987 no caso de Bourdieu e Lipovetsky), permitindo avaliar tambm como as preocupaes dos diferentes autores refletiram a evoluo do fenmeno. Ainda no captulo 2, por meio de um quadro sinttico resumindo outras obras relevantes de distintos autores, tambm possvel situar a moda como objeto de pesquisa e reflexo no mbito das Cincias Sociais.

    O terceiro e o quarto captulos procuram entender a moda no comeo do sculo XXI, e o fazem sucessivamente observando o fenmeno pelo lado da produo institucionalizada e pelo lado do consumo e seus valores orientadores.

    No terceiro captulo, a partir da noo de moda como sistema, de Roland Barthes (1979 [1967]), so analisados os traos caractersticos do sistema hoje, seus atores, dinmicas e instituies, bem como sua articulao com a produo material do vesturio, objetivando uma abordagem interativa entre ao e estrutura, mais prxima da noo de redes sociais. As relaes entre o sistema da moda e o sistema do vesturio, em particular, destacada no captulo por meio de comentrios sobre a indstria txtil, a comercializao, as mudanas recentes na funo social do design, do marketing e do conhecimento em ambos os sistemas.

    No quarto captulo, o foco da reflexo deixa de ser o sistema da moda e suas relaes com o sistema do vesturio e passa a ser o consumo e os consumidores de moda. As idias ps-modernas sobre o lugar social e as dinmicas de consumo como hipteses sero, neste captulo, tomadas como pontos de partida para uma explorao indutiva a respeito de valores, motivaes e processos por meio dos quais os consumidores tomam suas decises e formam suas opinies.

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    Por fim, nas consideraes finais fica explicitada a concluso geral a que se chegou com relao hiptese de trabalho, so resumidos os resultados da pesquisa de cada um dos quatro captulos e se situa a agenda de trabalho e as direes de pesquisa suscitadas pela dissertao.

    1. A moda como fenmeno social moderno

    Ainda que a produo txtil tenha se iniciado durante o perodo neoltico (10.000 a 5.000 a.C.) da pr-histria e esteja presente em todas as sociedades desde ento, a moda como fenmeno social est longe de ser algo universal. Pelo contrrio, segundo alguns estudiosos, pode-se afirmar que a moda um fenmeno social moderno, que tem origem no ocidente durante a transio do feudalismo para o capitalismo, na Europa, e que acompanha a geografia e o ritmo da expanso deste modo de produzir, consumir e viver ao redor do globo. Em outras palavras, a moda no a mesma coisa que a indstria txtil ou o uso de vesturio.7

    Entretanto, esta no uma afirmao unnime entre os pesquisadores de moda. Por exemplo, Jennifer Craik (1994) criticou a concepo de acordo com a qual a moda seria um fenmeno tipicamente moderno e ocidental, observando que podemos encontrar moda como mudana externa intencional da aparncia - em vrias culturas e idades, sempre e em qualquer lugar onde existam pessoas que queiram expressar sua individualidade. Segundo essa perspectiva, a principal diferena entre a poca moderna e as culturas tradicionais no est na existncia ou no da moda, mas na rapidez e regularidade dessas transformaes. 8 Alm de

    7 Para um primeiro aprofundamento sobre a histria da indstria txtil, ver Feghali e Dwyer (2006).

    Para a polmica sobre o perodo histrico em que surge o fenmeno social da moda, cf. Monneyron (2006), Sapir (1931), Lipovetsky (2006), Souza (1993) e Calanca (2008).

    8 Symptomatically, the term fashion is rarely used in reference to non-western cultures. The two

    are defined in opposition to each other: western dress is fashion because it changes regularly, is superficial and mundane, and projects individual identity, non-western dress is

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    Craik, outros autores tambm consideram que a moda existe desde que o homem comeou a cobrir seu corpo com peles e tecidos primitivos de fibras naturais (Cosgrave, 2007; Newman, 2001).

    O argumento contrrio, elaborado por autores como Edward Sapir (1931), Rolland Barthes (1979), Gilles Lipovetsky (2006), Gilda de Mello e Souza (1993), Mara Rbia SantAnna (2007) afirma, no entanto, que o surgimento da moda como fenmeno social destacado inseparvel do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno ocidental, precisamente porque foi somente a partir do final da Idade Mdia europia que se tornou possvel reconhecer uma ordem prpria, um sistema de significados, metamorfoses incessantes, movimentos bruscos, extravagncias e demais aspectos extraordinrios que diferenciam a moda do vestir ordinrio. A moda teria nascido, portanto, quando a renovao das formas de vestir e viver se tornou um valor mundano, quando a inconstncia em matria de formas e ornamentaes deixou de ser uma exceo, tornando-se a norma social aceita (Lipovetsky, 2006: 23).

    Provisoriamente, assumo o pressuposto dos autores que consideram a moda um fenmeno moderno. Dois fatores cruciais distinguem a moda nas sociedades capitalistas modernas, do vesturio nas demais sociedades, sejam elas as civilizaes complexas antigas (como a Chinesa, por exemplo), ou as comunidades indgenas contemporneas. O primeiro fator seria a velocidade nas mudanas cclicas dos usos e costumes. Como observa Monneyron (2006:15), verdade que o traje de seda do mandarim chins j era to ou mais suntuoso que os trajes das cortes ocidentais. Tambm verdade de que a vestimenta das classes superiores dos grandes imprios da Antiguidade sofreu variaes de uma dinastia outra. Mas, comparadas s mudanas no vesturio ocidental moderno, tais mudanas pareceriam excessivamente lentas e rgidas, tanto no tempo quanto no espao social. O segundo fator que distingue a moda est intimamente ligado

    costume because it is unchanging, encodes deep meanings, and projects group identity and membership. (Craik, 1994:18)

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    ao advento, exclusivamente ocidental, de uma sociabilidade na qual o indivduo se converte em valor supremo, substituindo a centralidade da coletividade.

    Nas sociedades anteriores ao capitalismo, a legitimidade sobre os usos e costumes se dava atravs das narrativas mticas, perpetuando o legado ancestral e impondo em toda parte a regra da imobilidade, a repetio dos modelos do passado e um conservantismo na maneira de ser e parecer (Lipovetsky, 2006:27). A fora combinada das mudanas proporcionadas pelo surgimento do moderno sistema de Estado territorial laico e do modo de produo capitalista criou um movimento incessante de transformao (Marx & Engels, 1998).9 O corolrio e condio para esta transformao foi a centralidade adquirida pela individualidade. Com isso, as variaes vertiginosas proporcionadas pelas influncias externas (vindas do Estado ou das relaes de produo e consumo) explicam apenas parte do imperativo de renovao regular prprio da moda, dado que o prprio processo de individualizao constitui mecanismo propulsor importante para a explicao do fenmeno (Lipovetsky, 2006: 29).

    Aceitando como ponto de partida certa delimitao do alcance do fenmeno (moderno), no restante do captulo ser adotada a periodizao proposta por Gilles Lipovetsky, em O Imprio do Efmero (2006). Basicamente, naquela obra, o autor dividiu a histria da moda em quatro grandes momentos: o primeiro vai da metade do sculo XIV at a metade do sculo XIX e trata da fase inaugural da moda, do estgio aristocrtico. O segundo perodo vai da metade do sculo XIX at a dcada de 1960 e caracteriza-se pela articulao da moda em torno de duas indstrias novas: a Alta Costura e a Confeco Industrial. O terceiro perodo, mais recente, iria da dcada de 1960 at o final do sculo XX, sendo caracterizado por uma exploso da moda, transformada em pedra angular da vida coletiva.

    9 Como se l no Manifesto Comunista de 1848: "All fixed, fast-frozen relations, with their train of

    ancient and venerable prejudices and opinions, are swept away, all new-formed ones become antiquated before they can ossify. All that is solid melts into air, all which is holy is profaned, and man is at last compelled to face with sober senses, his real conditions of life, and his relations with his kind." Cf. Marx & Engels (1998:38-39).

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    Saber se as tendncias do terceiro perodo continuam vigentes no comeo do sculo XXI seria o tema do captulo IV. No obstante, um indcio da dificuldade de discernir o que a moda hoje o fato de o prprio Lipovetsky ter deslocado o centro de sua reflexo para temas mais amplos, como o consumo ou o luxo, em seus livros mais recentes (O Luxo Eterno, 2005 e A Felicidade Paradoxal, 2007). Seja como for, no restante do captulo adotarei a periodizao proposta, baseando-me principalmente nos trabalhos de histria da moda da escola francesa (Lipovetsky, 2006; Monneyron, 2006) e da escola italiana (Calanca, 2008).

    1.1. A moda aristocrtica: nascimento (1350-1850)

    De acordo com a historiadora Anne Hollander (1996), pode-se dizer que a revoluo do vesturio que lanou as bases para o sistema da moda moderno aconteceu na Europa Ocidental por volta de 1350, com a diferenciao entre os trajes masculinos e femininos. Foi por volta daquele ano que a toga longa e flutuante usada quase indistintamente por homens e mulheres h sculos foi substituda por dois trajes diferentes: um masculino, composto de uma espcie de jaqueta curta e estreita, unida a cales colantes que desenhavam a forma das pernas e outro feminino, que perpetuava o vestido longo, porm mais ajustado e decotado. 10 Tal ajustamento dos trajes est relacionado com o desenvolvimento das armaduras metlicas ao final do sculo XII, que substituram o aspecto folgado da cota de malha e das tnicas usadas at ento. Alm disso,

    as armaduras metlicas exigiam roupas de baixo feitas por um armeiro que trabalhava com linho, um traje acolchoado e aderente ao corpo e que desenhava o homem por inteiro e o protegia de sua embalagem de metal. A moda masculina rapidamente imitou as formas criadas pelos armeiros que trabalhavam com linho, os

    10 De acordo com Barthes (2005:262): ... embora seja possvel datar com margem de um ano o

    aparecimento de uma pea, encontrando-se sua origem circunstancial, abusivo confundir a inveno de uma moda com sua adoo, e ainda mais abusivo atribuir a uma pea um fim rigorosamente datado (...). Cf. tambm Lipovetsky (2006:29-30).

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    quais podemos considerar realmente os primeiros alfaiates da Europa. (Hollander, 1996:62)

    Entretanto, enquanto a maior parte do vesturio masculino dos sculos XIV, XV, XVI e do incio do sculo XVII tendia a imitar a armadura ao constituir formas abstratas e rgidas em torno do corpo, durante esse mesmo perodo as roupas femininas permaneceram essencialmente conservadoras, tendo se modificado muito pouco (Hollander, 1996: 63). Somente alguns sculos mais tarde que a "moda tornou-se tambm e predominantemente um comportamento das mulheres, neste sentido de conferir dignidade e valor ao prazer do luxo, do refinamento e do cuidado com a elegncia, principalmente na juventude (Calanca, 2008:52).

    Desde meados do sculo XIV, para os homens, e desde o sculo XVII para as mulheres da aristocracia, as variaes na esfera do parecer se tornaram mais freqentes e a mudana se tornou um fenmeno cada vez menos fortuito, passando a constituir uma regra permanente da alta sociedade.

    Alm da valorizao da mudana, para que surgisse o reino da moda foi necessria ainda a emergncia de uma concepo do homem que lhe reconhecesse a capacidade de modificar as estruturas sociais. O surgimento de agentes sociais autnomos em matria de esttica das aparncias foi acompanhado de uma mudana conceitual, sendo ambos os processos de durao multissecular (Calanca, 2008:25; Lipovetsky, 2006:28).

    Mesmo que tenha existido moda na corte dos reis durante a fase final da Idade Mdia, a moda como fenmeno social moderno, com seus rituais, processos e instituies, somente se desenvolver completamente j bem entrado o sculo XIX (Monneyron, 2006:16). Neste sentido, a moda encontra-se articulada a diversos fatores, tais como uma nova concepo de indivduo, um longo processo de secularizao, o desenvolvimento tecnolgico que permitiu a produo de tecidos e acessrios em massa; a urbanizao e o enriquecimento da populao,

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    que passou a poder imitar a esttica aristocrtica e se dedicar mais aos cuidados com a aparncia.

    Conforme Calanca (2008), o Humanismo, a descoberta do Novo Mundo, a reforma Protestante e os avanos da cincia trouxeram a dissoluo da cosmologia medieval e aproximaram o homem de sua interioridade, acelerando o processo de valorizao da singularidade. A gradual eroso dos fundamentos teolgico-metafsicos permite ao indivduo descobrir cada vez mais a sua autonomia e entrever novos horizontes; mas, simultaneamente, o expe a novos medos, novas tenses e esperanas. O indivduo percebe a instabilidade, a mutabilidade da realidade e do prprio ser no mundo, induzindo-o a um mergulho em si mesmo para aprender a se conhecer e a se aceitar, libertando-o da obrigao de corresponder objetividade do mundo externo.

    A interioridade do sujeito torna-se o espao no qual se funda uma nova viso do mundo, uma Weltanschaung, regulada por aqueles elementos de mudana, fluidez, acidentalidade que a metafsica tradicional recusou desde a sua fundao. (Calanca, 2008:58)

    A subjetividade moderna se traduz, assim, nessa espcie de amor por si mesmo caracterstica, a qual possui entre suas primeiras manifestaes objetivas a diviso das idades da vida e dos lugares de nascimento, registradas em retratos e mveis de decorao. Encerra-se, assim, um perodo em que se acreditava na imutabilidade do sujeito, um passo a mais em direo a uma temporalidade breve, da mudana como caracterstica constitutiva da existncia humana (Calanca, 2008:60). Resulta da a depreciao da herana ancestral e a dignificao das normas do presente social (Lipovetsky, 2006:33).

    A partir do sculo XV, a expanso da economia comercial proporcionou excedentes econmicos e o acmulo de riquezas com a conseqente liberdade do indivduo para comprar e poupar o quanto pudesse e quisesse, abrindo espao para as iniciativas individuais. Comeava ali a surgir o valor da personalidade

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    compreendida na sua singularidade, ou seja, a valorizao social da singularidade individual.

    A mobilidade das riquezas e o crescimento do esprito de iniciativa contribuem para a valorizao da pessoa, da liberdade, da autonomia, da curiosidade tanto pelo que novo quanto pelo que diferente. Tal concepo se apresenta em perfeita sincronia com aquilo que, historicamente, est por trs do fenmeno da metamorfose dos vestidos e dos ornamentos. (Calanca, 2008:57)

    ... as reviravoltas perptuas da moda so, antes de tudo, o efeito de novas valorizaes sociais ligadas a uma nova posio e representao do indivduo em relao ao conjunto coletivo (Lipovetsky, 2006:59)

    Alm disso, a moda testemunha a presena de um novo tempo reconhecido como legtimo: o tempo moderno. Desde o sculo XII, com o movimento urbano, o progresso da burguesia e dos mercadores, modificou-se aos poucos a prpria noo de tempo, que no sculo XIV passaria a ser medido pelas horas de trabalho e das operaes comerciais e bancrias.

    O desenvolvimento tcnico e a crtica fsica aristotlica e tomista contribuem para romper a concepo contnua do tempo, a nica considerada legtima, e favorecem o nascimento de uma concepo temporal descontnua, breve. (Calanca, 2008:50)

    A partir de ento, difunde-se o uso do termo moderno, sinnimo no apenas de recente, mas de novo e diferente. O tempo, que at aquele momento era o tempo do cu, eterno, comea a se desenvolver numa corrente que vai de encontro dimenso eterna por meio da realizao terrena, ou seja, atravs do tempo da terra (Calanca, 2008). Com o surgimento de uma nova concepo do tempo, laica e mensurvel, organizam-se todas as atividades cotidianas e surge uma oposio clara em relao ao tempo do cu, que

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    eterno.11 Ao rejeitar o prprio passado, a moda afirmou desde o comeo o direito de um eterno presente, os novos estilos abrindo caminho a novas maneiras de se conceber a vida, a religio, a tica.

    A derrocada final das Leis Sunturias12, por meio do decreto de 8 de brumrio do ano II da Revoluo Francesa (29 de outubro de 1793) foi outro importante passo em direo ao nascimento da moda no ocidente. Em vigor na Europa (Itlia, Frana e Inglaterra, principalmente) desde a segunda metade do sculo XIII at o fim da Idade Mdia, a promulgao das Leis Sunturias refletiu a vontade de manter firmes os consumos adequados s hierarquias da sociedade, limitando a mobilidade social (Calanca, 2008:46). Durante esse perodo, quando o desenvolvimento das cidades promoveu o surgimento de uma classe endinheirada disposta a tudo para se igualar nobreza por vezes falida e decadente, as leis sunturias deviam lembrar a cada um seu lugar e seu estado na ordem hierrquica.

    Durante o perodo, essas leis nem sempre tiveram o mesmo objetivo: enquanto no sculo XIII as leis sunturias recomendavam modstia e vedavam o desperdcio, no sculo seguinte elas se destinavam a identificar aqueles que

    11 A rigor, segundo Lipovetsky (2006), mesmo a f Crist teve sua participao no surgimento da

    moda ao proporcionar um esquema religioso nico, o da Encarnao, que conduziu, diferentemente das outras religies, ao investimento neste mundo, dignificao da esfera terrestre, das aparncias e das formas singulares.

    12 Leis sunturias, do latim sumptuarius, ou relativo despesa, eram um tipo de interferncia

    governamental com a liberdade individual que, entre outras coisas regulamentava o que homens e mulheres deviam vestir e os nveis de gastos que podiam ser feitos em diferentes classes. Um motivo era incentivar as indstrias locais (e impedir o escoamento de dinheiro), proibindo o uso de tecidos e vesturio importados. Outro motivo era desencorajar a licena sexual, banindo modas que realassem os genitais masculinos ou revelassem os seios de modo excessivamente copioso. Mas o principal motivo era manter os sinais exteriores que distinguiam uma classe de outras classes, suprimir o cime social mediante a restrio s exibies provocativas de riqueza. Assim, o uso e ostentao de jias e materiais luxuosos, como brocados, veludos e guarnies de peles, estavam sujeitos s leis sunturias, assim como o comprimento da cauda e mangas dos vestidos, o nmero de convivas em refeies, os pratos e alimentos que podiam ser servidos. Foi especialmente na Itlia que essas leis foram elaboradas e tambm desrespeitadas, como provado pelas repetidas promulgaes de novos regulamentos e confirmado pela evidncia visual das obras de arte. Fonte: HALE, John R. [editor]. Dicionrio do Renascimento Italiano. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1981.

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    estavam exonerados de tais restries. Por fim, no sculo XV, o trao peculiar das normas sunturias foi o acirramento da subdiviso da sociedade urbana em categorias, para glria do cdigo das aparncias (Calanca, 2008:48).

    Todavia, para que a moda pudesse se desenvolver plenamente ainda entraram em jogo outros elementos. As viagens de descobertas em torno do mundo despertaram nos indivduos uma curiosidade pelo que novo e diferente e tambm uma curiosidade pelas roupas, satisfeita pela publicao, em 1581, das primeiras colees de gravuras da indumentria. Essas publicaes permitem aos seus autores uma leitura da condio do indivduo tanto exteriormente quanto interiormente, tornando as roupas o reflexo das coisas e da diversidade dos homens e permitindo a compreenso dos comportamentos do homem tambm diante das mudanas e da novidade (Calanca, 2008:62).

    Para Lipovetsky (2006:64), o surgimento da moda tambm est indissoluvelmente ligado a uma revoluo cultural que se inicia na virada dos sculos XI e XII, na classe senhorial, com a promoo dos valores corteses e na inveno do amor corts que, segundo o autor, est duplamente implicado na gnese da moda. Por um lado contribui para a promoo do indivduo mundano relativamente livre em seus gostos e, por outro, produziu uma nova relao entre os sexos, contribuindo no processo de estetizao das aparncias para dar conta dos jogos de seduo.

    Naquele perodo, as famlias ricas costumavam ou arranjar casamento para seus filhos ou os obrigarem ao celibato, com o objetivo de conservar indivisvel o patrimnio acumulado. Neste processo, o amor extraconjugal passa a ser encarado como o nico legtimo, expresso autntica do amor passional, justamente por ser estranho lgica social. Assim, a moda entra em jogo como uma ferramenta na arte da seduo e no mais apenas um smbolo hierrquico de status social. (Calanca, 2008:76)

    Ao final do sculo XVII, em Paris, no entrecruzamento da produo com a clientela encontram-se diversos atores que tambm foram responsveis pelo estabelecimento da moda, como os alfaiates, as costureiras, as lingres e as

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    merchandes de mode. Desde 1588 e por todo o sculo XVII, so os alfaiates que dirigem a fabricao de um vestido do incio ao fim (Calanca, 2008:123) e somente em 1675, a corporao das costureiras reconhecida, separando os campos de ao dos papis masculinos e femininos. Por outro lado, as lingres, mestras e comerciantes de panos e roupas ntimas, ocupam uma posio intermediria, na medida em que tinham direito de fabricar e vender (Calanca, 2008:124). So mulheres mercadoras que desfrutam de uma tradio comercial que remonta aos sculos XIII e XIV, ou seja, desde que nas cidades e nos campos medievais se iniciou o consumo de produtos de l.

    J as parisienses marchandes de modes colocam-se como intermedirias entre as artess que produzem as peas e o universo da clientela. No dito proclamado em 1776 essa corporao reconhecida, revelando a ascenso de mulheres a um nvel muito elevado de especializao e qualificao, mulheres que dirigem importantes empresas de confeco e de comrcio. A atividade dessas mulheres baseia-se no talento; capacidade e fantasia, gosto e elegncia inspiram a sua ao: elas inventam.

    Nessa palavra estava todo o futuro da moda burguesa: a inveno das novidades comeava a passar da corte a uma profissional. Estamos nas origens do estilista contemporneo. (Calanca, 2008:126-127)

    A sade pblica tambm pode ser considerada outro fator para o desenvolvimento da moda. Na Itlia do incio da Idade Moderna (XVI e XVII), o medo da gua, suposto vetor de contgio de doenas como a peste e a sfilis, levou ao fechamento dos banhos pblicos e dos bordis, dando origem a certo nmero de substitutos, como o p-de-arroz e o perfume, criando uma nova base de diferenciao social: a chamada limpeza seca torna-se prerrogativa dos ricos. Proibidos os banhos, as novas regras do decoro passam a se ocupar mais da aparncia do que da higiene, legitimando a concepo de que um aspecto limpo garantia de probidade moral e da posio social. As roupas brancas tornam-se

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    smbolo de tal condio e, a partir do sculo XVII, a troca de camisa constituir um dos elementos essenciais da higiene diria, tanto para os burgueses como para os aristocratas. Assim, quando a exterioridade do corpo se torna um espelho da interioridade da pessoa, a beleza torna-se um atributo indispensvel da posio social e do rigor moral enquanto a feira passa a ser um sinal de inferioridade e de depravao moral (Calanca, 2008:87-88).

    Portanto, se a moda como expresso da personalidade individual esteve presente desde que o homem comeou a vestir seu corpo, o surgimento da moda como conceito e fenmeno social moderno foi um processo que durou sculos, desde seu surgimento no final do perodo medieval na Europa Ocidental at a consolidao dos sistemas nacionais da moda no sculo XIX, inicialmente na prpria Europa e, posteriormente, nos principais pases capitalistas do mundo. Antes disso, no era possvel para a moda desenvolver-se dada a ausncia daquilo que lhe mais caro: a valorizao do indivduo, a curiosidade pelo novo, o desejo de mudana e a temporalidade breve. Todas estas caractersticas desenvolveram-se enormemente com a industrializao, tema da prxima seo do capitulo.

    1.2. A moda moderna: 1850-1960

    Estabelecida como fenmeno social, a moda necessitava de outros fatores para se desenvolver no seio da sociedade capitalista industrial, como o surgimento das publicaes especializadas, o reconhecimento social do ofcio do estilista e o desenvolvimento da Alta Costura.

    De acordo com Lipovetsky (2006 e 2007), a moda plenamente moderna, da metade do sculo XIX at a dcada de 1960, se articulou no apenas em torno da Alta Costura, mas tambm da confeco industrial, estabelecendo um sistema bipolar fundado tanto sobre a produo do luxo e sob medida, como de uma

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    produo de massa, em srie e barata. Evidentemente, observa o autor, que nesse sistema, a pequena e mdia costura jamais deixaram de existir e que a confeco industrial, principalmente nos EUA, no se limitou a uma produo de baixo preo, mas diversificou sua oferta com artigos de diferentes qualidades e valores. Entretanto, as novidades continuaram a emanar da Alta Costura, que monopolizava a inovao e lanava a tendncia do ano, tornando-se a instituio mais significativa da moda moderna at os anos 196013.

    No mesmo sentido, as publicaes de moda, surgidas nesse perodo, contriburam no apenas para que a moda se estabelecesse de maneira perdurvel na paisagem social, como tambm decidiram a forma particular que tomaria (Monneyron, 2006,19-21).

    Uma das mais importantes publicaes da poca, por exemplo, o peridico La Mode surgiu na Frana, em 1829. Essa revista clamava as mulheres a se revoltarem contra a tirania dos modismos, incitando as leitoras a impor sua prpria elegncia, bem como a se antecipar e abandonar uma moda antes que se ela tornasse de uso comum a todos. La Mode refletia a maneira do vestir aristocrtico, baseada na certeza de que uma mulher que borda ela mesma seu avental no pode ser uma mulher elegante e que, uma mulher elegante troca de roupa trs vezes ao dia. Diversos autores, entre eles Balzac e Barbey DAurevilly, contriburam com seus escritos para La Mode e outras publicaes, como La Dernire Mode, editada por Mallarm, demonstrando at que ponto a moda se havia convertido em fenmeno social cuja importncia eles mesmos ajudaram a reforar ao dedicar-lhe uma parte do seu talento (Monneyron, 2006:18). Alm disso, as pginas consagradas aos diferentes costureiros nas publicaes semanais e nas revistas especializadas no eram somente um indcio de sua posio no campo da moda, mas representavam concretamente a parcela do lucro simblico (e, correlativamente, material) que eles estavam em condies de obter da produo do campo em seu conjunto (Bourdieu, 2006:171).

    13 No incio dos anos 1960 tambm acontece o lanamento da Promostyl, o primeiro e at hoje o

    mais importante Bureau de Estilo, empresa especializada em prever as tendncias dos produtos de moda em mbito mundial.

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    Outra importante revoluo se deu no mbito de criao de moda. At o sculo XIX, pouqussimas costureiras e alfaiates tinham seus nomes reconhecidos profissionalmente tendo em vista que os elementos de base dos trajes pouco se alteravam e estes profissionais acabavam sendo simples executores do gosto de suas clientes.

    Entretanto, j na segunda metade daquele sculo, o jovem ingls Charles-Frdric Worth apresentou suas criaes utilizando modelos de carne e osso, caindo nas graas da alta sociedade, ganhando fama internacional e contribuindo para converter o ofcio de estilista em um ofcio de prestgio. Desta forma, o gosto do profissional transcende ao gosto da clientela e a moda passa a ser ditada independente do poder poltico ou da vida pblica, traduzida como arte cuja regra principal a inovao e cujo objetivo ser, portanto, introduzir mudanas incessantes nas formas, nos tecidos e nas estampas (Monneyron, 2006:23).

    A casa fundada por Worth em Paris, 1857, tornou-se a primeira casa do que vir a se chamar Alta Costura e revolucionou a maneira de se pensar, produzir e divulgar a moda.14 Em 1900, Paris possui 20 casas de Alta Costura, girando uma economia que representava o segundo lugar nas exportaes francesas da dcada de 1920 (Lipovetsky, 2006:72). No incio do sculo XIX, o sistema passou a adotar um ritmo de criao e de apresentao organizados, com apresentaes

    14 Alta Costura, ou Haute Couture estilismo e execuo de alta qualidade. O estilista ou

    couturier cria modelos com base numa TELA feita de linho fino ou musselina, que assinada. As peas decalcadas da tela so ento executadas sob medida para as clientes. Um sindicato de estilistas, a Chambre Syndicale de La Confection et de La Couture pour Dames et Fillettes, foi fundado em Paris, em 1868, para evitar que os modelos fossem plagiados. O sindicato, que faz parte da Fdration Franaise de La Couture Du prt--porter ds Couturiers et ds Crateurs de Mode, tambm conhecido como Chambre Syndicale de La Couture ou Chambre Syndicale de La Haute Couture. A organizao determina que as maisons de couture devem empregar, no mnimo, vinte pessoas nos atelis; devendo ainda mostrar para a imprensa reunida em Paris, no mnimo, cinqenta modelos originais para as colees de primavera/vero (apresentadas em janeiro) e para outono/inverno (em julho). A haute couture conta, em grande parte, com um grupo numeroso de especialistas, que fazem botes, luvas, bijuterias, chapus e adornos com altssimo nvel de qualidade. Trabalhosa e cara, em 1946 havia 106 casas de haute couture em Paris sendo que em 1997 esse nmero caiu para 18, com cinco casas associadas. As maisons de Alta Costura permitem que fabricantes tenham o direito de usar seus nomes em peas de roupas e de acessrios, oferecidos no prt--porter. Cf. Callan (2007, 158-159).

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    das colees, primeiro duas vezes ao ano e logo, sob presso dos compradores, quatro vezes ao ano. O surgimento do primeiro costureiro coincidiu com o nascimento da indstria em grande escala e a ascenso ao poder de uma nova classe dirigente: a alta burguesia, disposta a pagar qualquer preo para se fazer notar. Essa burguesia, difusora de uma lgica racional, que exalta a competncia e a especializao das funes, engendra o surgimento de um ditador da elegncia. Sob a iniciativa de Worth, a moda chega era moderna; tornou-se uma empresa de criao, mas tambm de espetculo publicitrio (Lipovetsky, 1989:72).

    Ao fornecer classe dominante algumas das marcas simblicas utilizadas nas cerimnias do culto que a classe burguesa presta a si mesma, a alta costura torna-se parte integrante do aparelho encarregado da organizao desse culto e da produo dos instrumentos necessrios sua celebrao. (Bourdieu, 2006:172). Como se v, a Alta Costura regularizou o sistema, institucionalizando e normatizando a lgica da mudana e, nesse sentido, a moda moderna aparece como a primeira manifestao de um consumo de massa, homogneo e indiferente s fronteiras.

    Houve uniformizao mundial da moda sob a gide parisiense da Alta Costura, homogeneizao no espao que teve como contrapartida uma diversificao no tempo, ligada aos ciclos regulares das colees sazonais... O impulso da confeco industrial de um lado, o das comunicaes de massa de outro, enfim a dinmica dos estilos de vida e dos valores modernos acarretaram, com efeito, no apenas o desaparecimento dos mltiplos trajes regionais folclricos, mas tambm a atenuao das diferenciaes heterogneas no vesturio das classes, em benefcio das toaletes ao gosto do dia para camadas sociais cada vez mais amplas. (Lipovetsky, 2006:74)

    Como ser examinado mais adiante, Lipovetsky sustenta que a Alta Costura teria contribudo com uma democratizao da moda. Para o autor, a partir da dcada de 1920, com a simplificao do vesturio feminino, a moda se tornou mais acessvel porque mais facilmente imitvel. Nesse sentido, Chanel

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    desempenhou um papel importante ao vestir as mulheres da alta sociedade com vestidos de formas e tecidos simples, ao contrrio da moda do perodo aristocrtico, onde se valorizava o luxo vistoso. Daquele momento em diante, a moda no parecer rico. Entretanto, a supresso do luxo nos trajes no eliminou o carter distintivo da moda, apenas foi substitudo por novos signos mais sutis, especialmente os tecidos e cortes, que promoviam outros pontos de referncia, mais pessoais, como juventude, magreza, sex appeal etc. (Lipovetsky, 2006: 76)

    Essa nova maneira de vestir-se contribui para a extenso e a generalizao do que Lipovetsky chama de desejo de moda, antes circunscrito s camadas privilegiadas da sociedade. O gosto pelas novidades est difundido em todas as classes e a moda tornou-se um imperativo social categrico. Tanto a Alta Costura quanto as publicaes especializadas contriburam para a ampla divulgao do direito individualidade e originalidade na maneira de vestir-se, ao mesmo tempo que prepararam as massas para acompanharem os cdigos estabelecidos por elas.

    1.3. A moda aberta: 1950-2000

    Para Lipovetsky (2006:107), de 1960 aos dias de hoje, vivemos no que o autor denomina segunda fase da moda moderna, quando todas as facetas da vida em sociedade so afetadas, ao menos parcialmente, pela lgica da moda. A moda j no se identifica ao luxo das aparncias e da superfluidade, mas tripla operao que a define propriamente (o efmero, a seduo e a diferenciao individual) e que redesenha o perfil de nossas sociedades:

    Em sua realidade profunda, essa segunda fase da moda moderna prolonga e generaliza o que a moda de cem anos instituiu de mais moderno: uma produo burocrtica orquestrada por criadores profissionais, uma lgica industrial serial, colees sazonais, desfiles de manequins com fim publicitrio. (Lipovetsky, 2006:107)

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    Neste contexto, as marcas da Alta Costura perderam o estatuto de vanguarda que a caracterizavam at ento e passaram a focar na perpetuao do luxo com fim promocional, servindo como parte da poltica de marca para o prt--porter e para os diversos artigos vendidos sob sua grife no mundo. Nesse sentido, a Alta Costura no produz mais a ltima moda; antes reproduz sua prpria imagem de marca eterna realizando obras-primas de execuo, de proeza e de gratuidade esttica,..., transcendendo a realidade esttica da moda (Lipovetsky, 2006:109)

    A grande revoluo que modificou o sistema da moda nesse perodo foi precisamente a irrupo e o desenvolvimento de uma nova maneira de se produzir roupas, em meados da dcada de 1960. At essa data, o sistema da moda era formado pelas confeces industriais que copiavam (com baixa qualidade e vagarosamente) os modelos criados pelas casas de Alta Costura.

    Em 1949, o francs J. Ch. Weil inventou o termo prt--porter inspirado em uma expresso americana para um sistema de produo de roupas nascido no ps-guerra: o ready to wear, ou pronto para usar. Diferentemente das confeces industriais europias, esse sistema de roupas prontas para usar reproduzia em grande escala, com boa qualidade e imediaticidade, os modelos inspirados na alta costura. Ele permitiu o desenvolvimento de todo um conjunto de pequenos centros de criao independentes que j no respondiam aos critrios da corporao da Alta Costura (Monneyron, 2006:30).

    Com o novo sistema nasce uma nova gerao de estilistas, preocupada em estar prximo das aspiraes das massas e que encontra, portanto, sua inspirao na observao da rua (Monneyron, 2006:30-31). Tambm uma nova categoria social passa a ser valorizada como interlocutores privilegiados do mercado de moda: os jovens. O surgimento de uma cultura juvenil, certamente ligada ao baby boom15 e ao crescimento de poder de compra dos jovens, foi a

    15 Baby Boom qualquer perodo onde o coeficiente de natalidade cresce de forma acentuada e

    anormal. Uma pessoa nascida durante um baby boom denominada baby boomer. A

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    fonte do fenmeno estilo dos anos 1960, menos preocupado com perfeio, mais com a espontaneidade, a criatividade, a originalidade e o impacto imediato (Lipovetsky, 2006:115).

    A apario do prt--porter de massa tambm acelera a reduo das diferenciaes sociais existentes no vesturio. Entre 1960 e 1970, o estilo denominado sportwear promove no apenas um novo jeito de se vestir, mais descontrado, como tambm o uso, independentemente de classe, de trajes provenientes de diversos ofcios civis e militares. O jeans, reinterpretado pelos estilistas, passou a ser usado por outros indivduos alm dos operrios, assim como as jaquetas dos aviadores e dos motociclistas. Da mesma forma, tanto o operrio quanto o empregado acabaram, pelo menos aos domingos, adotando a maneira de se vestir do burgus e, ainda que se percebessem diferenas de corte e tecido, a estrutura do traje era a mesma (Monneyron, 2006:34).

    Assim, a partir do comeo dos anos 1960 o sistema passou a conceber roupas no mais inspiradas apenas nos modelos de Alta Costura, mas tambm em outros valores como os esportes, estilos de vida, cinema, esprito do tempo. De fato,

    a Alta Costura deixou de ser a pioneira em matria de moda para ser, antes de tudo, uma instituio de prestgio, consagrando o que inovado em outras partes muito mais do que impulsionando a ponta da moda (Lipovetsky, 2006:130).

    Nesse sentido, o surgimento do prt--porter trouxe consigo uma mudana no apenas esttica, mas tambm simblica. Quando os consumidores passam a

    definio mais aceita da Gerao Baby Boomer que ela compreende as pessoas nascidas entre 1946 e 1964, nos Estados Unidos. Essa gerao permaneceu como o maior grupo exclusivo de pessoas, em todas as etapas das suas vidas, e dominou o panorama norte-americano. Quando os Baby Boomers eram jovens, eles criaram o movimento juvenil dos anos 60. Quando eles completaram 20 anos, criaram a cultura do excesso nos anos 70. Nos anos 80, eles eram os "Yuppies", encontrando seu caminho no mundo corporativo pela primeira vez. Fonte: http://pessoas.hsw.uol.com.br/baby-boomers.htm e http://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boom

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    buscar mais uma moda que choca e causa impacto emocional do que aquela que veste de maneira chique e elegante, abre-se espao para o surgimento de novos estilistas, introduzindo no mundo da moda grifes reconhecidas ao lado daquelas da Alta Costura. A marca passa a ser valorizada, tanto ou mais que os nomes da Alta Costura e nenhum nome de estilista pode alcanar a consagrao internacional que Chanel ou Dior conheceram em meados dos anos 1920. Ainda assim, embora nenhuma das duas instncias monopolize o gosto e a esttica das formas, alguma hierarquia pode ser observada, principalmente em relao ao preo das peas: uma grife Alta Costura custa bem mais que uma grife prt--porter (Lipovetsky, 2006).

    Para Bourdieu e Desault (2006:178), o desprestgio da Alta Costura est associado reestruturao das classes dominantes no perodo (1960-1970), quando uma nova burguesia, preocupada em distinguir-se da burguesia tradicional, busca novos signos, menos elitistas. O que estava em jogo era menos o capital econmico do que o capital cultural dessa burguesia; transformao que se dava, em parte, em conseqncia do acesso das mulheres ao ensino superior.

    Para Lipovetsky, entretanto, a lgica da distino por si s no explica o destino da Alta Costura aps a dcada de 1960. Para o autor, um complexo de novos valores legtimos como o ideal igualitrio, a arte moderna, os valores esportivos e o novo ideal individualista esto na origem desse movimento que desqualifica a Alta Costura e torna a moda mais acessvel. O impulso da cultura jovem ao longo anos 1950 e 1960 ajudou a acelerar a difuso dos valores hedonistas e anticonformistas, exaltando a espontaneidade, a ironia e a liberdade (Calanca, 2008:206; Lipovetsky, 2006:120).

    A derrocada do vesturio de luxo estaria, assim, segundo Lipovetsky, ligada mais ascenso desses novos valores contemporneos do que nas lutas simblicas e conjunturais de classe. Em conseqncia, surge uma nova relao com o Outro, na qual a seduo prevalece sobre a representao social e todos so levados a trabalhar sua imagem pessoal, a adaptar-se e reciclar-se. A valorao da juventude como novo princpio de imitao social contribuiu, desta

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    forma, para igualar homens e mulheres em matria de cuidados pessoais e de aparncia (Lipovetsky, 2006:122).

    Alm da queda da posio hegemnica da Alta Costura, na segunda fase da moda moderna surgem novos focos criativos e multiplicam-se os critrios de moda. No perodo anterior, embora se pudessem reconhecer estilos prprios entre os grandes costureiros e suas rivalidades fossem lendrias, a moda funcionava sob um consenso profundo: encarnar o que havia de mais chique, luxuoso e elegante. A partir de 1960, porm, cada criador traa sua prpria trajetria, com seus prprios critrios, apresentando colees baseadas em referncias mltiplas, de todos os perodos histricos. Essa fragmentao do sistema traz consigo as modas jovens: modas marginais que se apiam em critrios de ruptura com a moda profissional. Novos cdigos se multiplicaram, manifestando-se em todas as direes na esfera do vesturio, mas tambm nos valores, gostos e comportamentos sociais (Lipovetsky, 2006:124-128).

    ...hoje, o must16 quase s conhecido por um pblico circunscrito de profissionais ou de iniciados, a maioria no sabe mais exatamente o que est na ponta do novo, a moda se assemelha cada vez mais a um conjunto vago, cujo conhecimento distante e incerto. Simultaneamente, o fora de moda perde sua radicalidade; ainda que no desaparea, mais impreciso; menos rpido, menos ridculo (Lipovetsky, 2006:142).

    Para Lipovetsky (2006), a diversificao dos criadores acarretou uma posio relativista do consumidor em relao ltima moda, uma autonomia do pblico em relao idia de tendncia. Smbolo mximo das mudanas rpidas de adoo e difuso de gostos e estilos, a moda vesturio passou a avanar mais lentamente no terceiro perodo histrico (1950-2000) discutido nesse captulo, freada desde ento pelo poder moderador dos consumidores.

    Nos anos 2000, a moda assim moderada pelos consumidores corresponderia ao que o mesmo Lipovetsky denominou de moda consumada, um

    16 Termo em ingls que significa tem que ter.

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    tempo em que os trs principais valores da moda (o efmero, a seduo e a diferenciao individual) dominariam todas as esferas da vida em sociedade. Por se tratar j do tempo presente, no caberia aqui aprofundar a discusso sobre a caracterizao de Lipovetsky sobre a moda contempornea e sua realizao como totalidade do social. Isso ser feito, conforme explicitado na Introduo do trabalho, nos prximos captulos, voltados, respectivamente, para a reviso das teorias sociais (captulo 2) e do sistema contemporneo da moda, do vesturio e do consumo (captulos 3 e 4).

    Entretanto, seja como for a configurao atual do fenmeno social da moda, preciso reconhecer, resumindo o que foi possvel observar por meio desse breve exerccio de periodizao e reviso histrica, que muita coisa mudou desde o sculo XIV e XV.

    Quando Cristvo Colombo regressou de sua segunda viagem em 1496 e presenteou a rainha Isabel com um leque de plumas, certamente no tinha conscincia de que estava contribuindo para lanar uma moda, nem que alimentava o consumo de moda (consta que Isabel tinha trinta e um leques diferentes...). Hoje em dia j no se vem as senhoras elegantes se abanando com leques nos veres de Veneza, Milo, Madrid ou Londres, como nos tempos em que Catarina de Mdici introduziu a prenda chinesa para as estupefatas damas inglesas (naquela poca as raras coisas vindas da China eram elegantes e caras). Alm de mudar sempre, a moda institucionalizou-se e tornou-se mais auto-consciente, sendo parte importante do nosso sistema social nesses quase cinco sculos de desenvolvimento.

  • 37

    2. O legado das teorias sociais do sculo XX

    Como foi destacado no primeiro captulo, a moda como conceito e fenmeno social uma criao ocidental moderna, intimamente ligada ao processo de individuao caracterstico das sociedades capitalistas. A partir do sculo XIX, quando a moda consegue impor-se realmente, com seus rituais e instituies, passa a ser objeto de um discurso que tanto pretende enaltecer suas caractersticas essenciais como inquirir sobre seu sentido e sua funo (Monneyron, 2006:43).

    At o incio do sculo XIX, as histrias da indumentria eram feitas para fornecer aos artistas, pintores de poca e teatrlogos apenas os elementos figurativos necessrios para ilustrar o esprito geral de um tempo ou lugar. Alm disso, esses trabalhos praticamente s tratavam da indumentria rgia ou aristocrtica e quase nunca o traje era relacionado com o trabalho feito por quem o usava, omitindo-se assim a funcionalizao do vesturio (Barthes, 2005:257). 17

    A obra The book of Fashion, de Georg Brummel (1821), considerada por Monneyron (2006:43-46) a primeira obra de teoria social sobre a moda.18 Inspirada pelo dandismo19, naquela obra Brummel tece uma espcie de teoria da elegncia no vestir, oferecendo, de maneira geral, uma srie de receitas para o dndi reinar

    17 Para uma viso geral da evoluo da produo terica e analtica sobre o fenmeno social da

    moda, vale mencionar trs coletneas recentes de textos clssicos e contemporneos bastante abrangentes e teis: Purdy (2004), Croci & Vitale (2000) e Carter (2003).

    18 Massimo Baldini (2006:61-62) faz referncia a outros autores que j teriam escrito sobre moda

    antes mesmo de 1820, como Bernard Mandeville, que publicou em 1714 uma fbula na qual abordava a imitao como principal responsvel pela difuso da moda e Immanuel Kant, que publicou Antropologia sob um ponto de vista Pragmtico em 1798, onde defendia que a moda fruto de uma imitao emulativa e sua mola propulsora eram as modas de corte.

    19 De acordo com Cosgrave (2007:186), o dandismo se constitui numa conduta humana e social

    que se fundamenta na justificao esttica, e o dndi aquele que leva sua vida baseado nesse preceito. A imagem popular do dndi a de um personagem afeminado, embora seu estilo de vestir fosse, na realidade, de uma grande sobriedade. Suas roupas eram confeccionadas em tecidos de cores discretas: azul e verde para o dia, e azul ou preto para a noite. Em Londres, do fim do sculo XVIII para o sc. XIX.

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    com elegncia nos sales da sociedade burguesa. Ao refletir sobre o dandismo, aquele autor acabou por realizar tambm uma interpretao das funes sociais do vesturio.20

    A formulao de uma teoria mais cientfica sobre a moda, entretanto, iniciou com a gerao da virada do sculo XIX para o XX. Herbert Spencer, Gabriel de Tarde, Georg Simmel e Thorstein Veblen esto entre os tericos mais citados nos estudos sobre moda e so considerados clssicos no assunto.

    A viso predominante nos estudos sobre a moda destes autores do comeo do sculo XX identificava a difuso da mesma com a hierarquia mais geral da sociedade, no modelo conhecido por trickle-down effect (ou efeito gotejante). De acordo com esse modelo, a moda nasce na classe rica e desce progressivamente para as classes mais baixas, baseando-se na competio social e num processo de imitao e diferenciao que refora a hierarquia social (Baldini, 2007:61-62; Rech, 2006: s/p).21

    Nas dcadas seguintes formulao da trickle-down approach, alguns autores verificaram que nem sempre a difuso de moda se dava como supunha o modelo, e que talvez a competio social tenha sido supervalorizada como mecanismo propulsor das mudanas. Numa obra publicada em 1930, A Psicologia das roupas, John Carl Flgel (1884-1955) avanou com as primeiras correes ao modelo antigo, defendendo que a moda no se difundia exclusivamente de forma descendente, j que o contrrio tambm poderia acontecer. O novo modelo foi chamado de trickle-up effect (ou bubble-up effect). 22

    Nos anos setenta, a idia da difuso ascendente ganhou reforos de George A. Field e Paul Blumberg, que demonstraram que, numa sociedade ps-

    20 Alm de Brummel, outros autores fazem parte desta primeira leva de estudiosos da moda, tais

    como, por exemplo: Thomas Carlyle (Signs of the times, 1829), Honor de Balzac (Tratado da vida elegante, 1830), Jules Baey dAurevilly (Du dandysme et de George Brummell, 1845), William M. Thackeray (Book of Snobs, 1848) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).

    21 Cf. ainda Grant McCracken (2003:123-134).

    22 Baldini, 2006:69-70; Rech, 2006:s/p

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    industrial, os status symbols tradicionais no tinham o prestgio de outrora e muitas modas acabavam sendo lanadas pelas classes mais baixas na hierarquia social. Na realidade, no entender de Blumberg, durante as dcadas de 1960 e 1970, a maioria tomou de emprstimo o uso dos costumes das minorias, independentemente do seu status social ser alto ou baixo (Baldini, 2006: 69-70; Rech, 2006: s/p).

    De acordo com Rech (2006), entretanto, antes mesmo da teoria trickle up aparecer, o desenvolvimento da classe mdia, do consumo de massa e do prt--porter, fez surgir um terceiro modelo de difuso de moda, chamado de trickle-across effect. 23

    Segundo este modelo, ao invs de as informaes de moda se movimentarem verticalmente entre as camadas sociais, elas se moveriam horizontalmente por entre estas classes. Defendido principalmente por King (1963) e Kning (1976), esse modelo afirmava que a moda era criada pela classe mdia e difundida de maneira diagonal em duas direes, ou seja, todas as classes sociais tinham acesso aos produtos simultaneamente.24 Para Rech,

    Uma leitura cuidadosa do processo e da dinmica da moda revela um elo ligando todas as trs teorias. Simmel, em 1904, elaborou a Trickle-down, mas tambm pontuou alguns elementos importantes para a teoria Trickle-up, fazendo uma referncia ao consumidor anti-moda. J as questes de gnero; tnica; idade e atratividade fsica servem tanto a Trickle-down, como fazem parte dos cdigos de moda dos grupos sub-culturais da Trickle-up. Percebe-se, portanto, que no atual complexo sistema

    23 De acordo com Massimo Baldini (2006:72-73), o primeiro a avanar a tese de contgio como

    modelo de difuso da moda foi William Graham Summer, na obra Folkways, publicada em 1906.

    24 Existe ainda a trickle down effect aperfeioada, defendida por autores como Nicola Squicciarino,

    Jean Baudrillard e Grant McCracken. Para McCracken, por exemplo, deviam-se efetuar duas alteraes fundamentais trickle down theory se quisssemos continuar a utiliz-la como modelo explicativo para a difuso da moda tambm no sculo XXI. Em primeiro lugar, considerar o sexo, a idade e a etnia de um grupo como agentes para a mudana e no apenas a posio na hierarquia social. Em segundo lugar, levar em conta de que, hoje, os grupos esto mais envolvidos numa apropriao seletiva de estilos de vesturio do que na sua completa adoo. (Baldini, 2006:83)

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    social coexistem todas as teorias concomitantemente. Percebe-se, portanto, que no atual complexo sistema social nenhuma das teorias contempla a realidade da sociedade de moda de forma articulada e o sistema como um todo (Rech, 2006:95).

    Embora seja possvel relacionar os principais autores do campo da Sociologia da Moda a algum desses trs modelos de difuso, o esforo de apreenso do fenmeno demanda que se complemente a discusso realizada at aqui com uma apresentao mais sistemtica das idias de alguns desses autores seminais. Apenas para registro, costuma-se associar as idias de Veblen, Simmel e Bourdieu com o modelo trickle down. No caso de Lipovetsky, a sua viso sobre a difuso da moda parece mais prxima do modelo trickle across. Entretanto, como esta classificao no permite distinguir adequadamente os quatro autores, antes de realizar a apresentao proposta, cabe situar os quatro em um quadro mais amplo das abordagens sociais sobre a moda.

    Quadro 1 Resumo das principais abordagens sociais sobre a moda

    RESUMO DAS PRINCIPAIS ABORDAGENS SOCIAIS SOBRE A MODA

    ANO AUTOR OBRA IDIAS

    1750 Jean-

    Jacques Rousseau

    Discurso sobre a cincia e as

    artes

    Moda destri a virtude e mascara o vcio. A dissoluo da moral e a conseqncia necessria do luxo acarretam a

    corrupo do gosto.

    1830 Honor de Balzac Tratado sobre a vida elegante

    Percebeu que os pequenos detalhes das roupas eram significativos marcadores sociais. Considera que a elegncia tem sua origem na desintegrao do Antigo Regime, quando caem as leis sunturias e a elegncia torna-se responsvel

    por restituir as diferenas necessrias. A partir desse momento, as roupas encobrem diferenas socioculturais. Suas implicaes so, alem de sociolgicas, econmicas,

    visto que a moda cria necessidades, o que significa circulao de dinheiro e uma forma de dinamismo social.

    (Monneyron, 2006:47-48)

  • 41

    1833/34 Thomas Carlyle Sartor

    Resartus A filosofia das roupas opera como uma elaborada metfora,

    permitindo ao autor desenvolver sua filosofia sobre o lugar do homem no universo. (Johnson et al, 2003:141)

    1845 Barbey dAurevilly Du dandysme et de George

    Brummel

    Partindo de uma reflexo de ordem antropolgica, atribui moda a funo de distino (mesmo que possa ser

    observado, ao mesmo tempo, um sentimento de conformismo em relao aos ditames da moda). (Monneyron, 2006:43)

    1863 Charles Baudelaire O pintor da

    vida moderna

    Analisa o dandismo. Ao refletir sobre a beleza conclui que esta formada de um elemento invarivel e outro relativo,

    circunstancial (a moda). Sem o elemento efmero cairamos no vazio de uma beleza abstrata e indefinvel. Para ele, a condio para a moda nascer a transitoriedade entre a

    aristocracia e a democracia. (Monneyron, 2006:45)

    1890 Gabriel de Tarde

    As leis da imitao

    (Le lois de limitation)

    Para este autor, dois princpios caracterizam a moda: a imitao e o presente social. A moda aparece como uma fase

    transitria e revolucionria entre duas eras de costume. Caracteriza-a como uma forma geral de sociabilidade que

    teria existido em todas as pocas, fazendo-a uma categoria trans-histrica. Considera que as mulheres sempre tiveram papel central em relao ao fenmeno, por estarem mais

    dispostas a adotar formas estranhas e a imitar o vesturio de uma classe mais alta. A moda pode vir de uma classe

    mais baixa, mas, para se difundir, necessrio que haja um exemplo social de grande destaque. Observa que na

    sociedade atual no existe homem que seja totalmente imitado nem homem que no copie dos seus imitadores ao menos algum detalhe. Imitao se fez mtua. (Lipovetsky,

    2006:266)

    1896 Herbert Spencer The principles of sociology

    De acordo com SantAnna (2007:81) Spencer foi o primeiro a explicar a relao da moda com a estrutura social,

    evidenciando que sua base est nos processos de imitao, iniciados no bojo da sociedade moderna europia e na

    constituio de uma classe rica o suficiente para rivalizar em ostentao sunturia com grupos socialmente mais

    evidenciados. Mesmo sendo evolucionista, no encontrava sentido nas reviravoltas da moda e no acreditava que

    existisse um progresso continuo de um ideal de harmonia e elegncia.

    1895 Georg Simmel

    Da psicologia da moda: um

    estudo sociolgico

    Para o autor, a ao individual orientada tanto para a distino quanto para a integrao social. Os indivduos

    imitam as elites sociais que, por sua vez, criam novas formas de se diferenciar: graas ao fato de que as modas so

    sempre modas de classe, as modas da classe superior se distinguem das da classe inferior e so abandonadas pela

    primeira enquanto a segunda comea a apropriar-se delas. A moda, ao mesmo tempo em que reproduz, estabiliza as estruturas de classe e seu mecanismo opera de maneira

    independente de qualquer contedo em particular. O autor considera ainda que nem os que se vestem fora de moda

    conseguem escapar dela e que ela uma verdadeira escravido para o indivduo contemporneo. (Simmel, 1998)

  • 42

    1899 Thorstein Veblen A Teoria da

    Classe Ociosa

    A roupa como expresso da cultura pecuniria. Para ele, nossa relao com a roupa baseia-se em trs princpios: 1 -

    consumo conspcuo 2 cio ostensivo e 3 - tem que obedecer ltima moda. A explicao para a mudana

    contnua da moda encontra-se no prprio consumo conspcuo: consumo para afirmar a superioridade social de uma classe e estabelecer o cnone de respeitabilidade para

    a comunidade. (Veblen, 1965)

    1930 John C. Flgel The

    Psychology of Clothes

    Introduz a trickle-up theory. Para o autor, 1) a causa ltima da moda deveria ser procurada no somente na competitividade

    social, mas tambm na competitividade sexual; 2) aristocracia do dinheiro e de nobreza como modelo de

    referncia juntou-se outros elementos provenientes do demi-monde, como os artistas, os esportes e as corridas

    automobilsticas; 3) a moda no se difunde exclusivamente de cima para baixo, podendo tambm ser difundida de forma

    ascendente. (Baldini, 2006:69)

    1931

    Edward Sapir Fashion

    Foi um dos primeiros antroplogos a indicar que a moda, sem a contextualizao da modernidade, seria entendida apenas

    como variedade de trajes utilizados por um determinado povo, em determinada poca. Vincula o surgimento da moda ao humanismo e ao hedonismo e, portanto, no a considera

    trans-histrica. Props ver a moda como uma disposio para o novo, distinguindo o conceito de moda consensual at

    ento: uso, hbito ou estilo geralmente aceito, varivel no tempo e resultante de determinado gosto, idia, capricho; uso passageiro que regula a forma de vestir, calar, pentear, etc;

    maneira, costume, feio, modo (Sapir apud SantAnna, 2007:83). Sapir ainda evidenciou a moda como uma

    categoria que se insere no imaginrio social, sendo um agente significante e construtor da positividade de

    inumerveis significados decorrentes da modernidade, todo ele vinculados idia do novo. (SantAnna, 2007:83-84)

    1940 Alfred Kroeber

    Three Centuries of Womens

    Dress Fashion: a quantitative

    analysis

    A moda como um sistema ordenado e endgino, que obedece a ciclos, completamente independentes da histria e da sociedade e que, portanto, sua evoluo uma evoluo autrquica. O autor escolheu, no vesturio feminino de noite,

    certo traos (comprimento da saia, altura da cintura, profundidade do decote, etc) e mediu suas variaes numa longa durao. Mostrou que: 1) a histria no intervm no

    processo de Moda salvo para apressar certas mudanas e 2) o ritmo de mudana da moda era regular (em torno de 50 anos) e alternava as formas segundo uma ordem racional.

    (Johnson et al, 2003)

    1947 Quentin Bell On Human

    Finery

    Aos trs conceitos veblenianos, Bell inclui o de excesso ostensivo. Para o autor, o motor da moda o processo de emulao pelo que os membros de uma classe imitam a

    moda de outra classe. Entretanto, para que esse processo de emulao possa ser eficaz, necessria uma sociedade em que as classes sociais se modifiquem sem cessar, que o luxo esteja ao alcance de mais de uma classe. Essa idia de emulao suscitada pela existncia de classes sociais que se transformam sem cessar permite a Bell prognosticar o fim da

  • 43

    moda, j que, enquanto as classes sociais esto a ponto de desaparecer nas sociedades contemporneas do mundo

    ocidental, emerge esta categoria particular que a juventude, que volta a questionar profundamente a moda. (Monneyron,

    2006:67)

    1968 Ren Knig Sociologia da

    moda

    Sistema da moda ordenado e endgino. Muito antes de sofrer as conseqncias da histria, a moda se converte em um dos motores da evoluo social. Para que cumpra com seu papel, a distino deve corresponder a algo que o entorno considere como tal. Para atrair a ateno, portanto, deve primeiramente aceitar o conjunto de valores tradicionais reconhecidos pelo prprio meio. Ou seja: distinguir-se e integrar-se a um grupo social no so aes excludentes. Conclui que a imitao

    no constitui relao social em si mesma; refora as relaes j existentes e as coloca sob foco. Critica a tricle down theory

    afirmando que as novas modas nascem e afirmam-se nas classes mdias e dali se difundem pra cima e pra baixo, na

    hierarquia social. (Monneyron, 2006:64-65)

    1967 Roland Barthes Sistema da

    moda

    Enfoque semiolgico; noo da moda como sistema. Partindo da descrio e da classificao da moda escrita, tal como se apresenta nas revistas da especialidade, o autor elabora uma anlise estrutural do vesturio feminino. Analisa o contributo do discurso verbal para o sistema da moda, o qual motiva s

    pessoas a consumi-la.

    1969 James Laver A roupa e a moda: uma

    histria concisa

    No contempla a moda como algo independente da histria e da sociedade, mas chega a concluso de que aparece como

    um ciclo social trans-histrico.

    1969 Herbert Blumer

    Fashion: From class

    differentiation to social selection

    Processos sociais particulares provavelmente ocorrem sob: 1) altas taxas de mudana; 2) abertura de um campo apresentao recorrente de novos modelos; 3) falta de critrios comuns aceitos para a avaliao de modelos

    alternativos. O processo de seleo coletiva por meio do qual uma elite da moda tenta combinar o gosto comum que

    emergiu atravs de uma imerso intensa entre os atores de moda em um campo da moda em particular pode ocorrer em

    qualquer campo; isso depende das tentativas dos fornecedores de moda conseguirem a aceitao para seus modelos. A elite da moda criada por meio do processo da

    moda (Rling, 2000)

    1979 Marc-Alain Descamps Psicosociologia

    da moda

    Analisa cinco graus que vo do significado mais extenso ao mais intenso: 1 - a moda como difuso secundria; 2 - a

    moda como difuso repentina sem justificao utilitria vlida; 3 - a moda como difuso repentina sem justificao sem

    motivo e efmera; 4 - a moda como srie lenta e sem interrupes de difuses repentinas, sem motivos e efmera; para chegar a seguinte definio: a moda uma srie rpida e sem interrupes de difuses repentinas, sem outro motivo

    que ela mesma e de natureza efmera. (Monneyron, 2006:68)

  • 44

    1979 Pierre Bourdieu

    A distino; O Costureiro e

    sua grife

    Estuda a moda dentro de uma perspectiva mais ampla, a sociologia da cultura. Para o autor, as criaes de moda esto predispostas a funcionar diferencialmente, como

    instrumentos de distino, em primeiro lugar entre as fraes de uma mesma classe e, em seguida, entre as prprias

    classes. A habilidade de determinar o que moda reflete o capital cultural do ator.

    A dinmica do campo da Alta Costura est nas lutas entre os dominantes e dominados e os recm-chegados. Por meio de uma transubstanciao simblica, os dominantes conferem

    um poder mgico ao produto-moda, alterando sua qualidade social e produzindo a eficcia da grife.

    1987 Gilles

    Lipovetsky O Imprio do

    Efmero

    Para Lipovetsky, a moda um sistema que constitui a prpria sociedade em que funciona, a dinmica que produziu a modernidade. Assim como Sapir, no concorda com uma

    tratamento histrico da moda pois considera que esta surgiu de um processo de individuao marcado pelo prazer e gozo

    da vida presente ocorrido na Europa ocidental no final da Idade Mdia. Alguns elementos foram essenciais para o seu surgimento: 1) desqualificao do passado, prestgio do novo e do moderno; 2)crena no poder dos homens para criar seu

    mundo; 3)adoo da mudana como regra da vida; 4) definio do presente como eixo temporal da vida; 5)

    aceitao da variabilidade esttica permitindo o surgimento dos gostos automizados; 6) consagrao da iniciativa

    esttica, da fantasia e da originalidade, como diferencial positivado entre os sujeitos. (SantAnna, 2007:85-87)

    Como no possvel abordar todos estes autores aqui, decidiu-se escolher quatro autores cujas teorias sero analisadas em maior profundidade: Thorstein Veblen, Georg Simmel, Pierre Bourdieu e Gilles Lipovetsky.

    A escolha por Veblen e Simmel se deve ao fato de que suas teorias so representativas das interpretaes mais freqentes acerca do fenmeno. Eles esto entre os primeiros a relacionar a moda com a posio social do ator e distino individual e integrao social argumentos que iro influenciar a maioria das formulaes sobre o tema at hoje. Alm disso, esses autores so citados em praticamente toda a obra que discute a moda a partir da perspectiva sociolgica e so considerados clssicos.

    J Bourdieu e Lipovetsky foram escolhidos para darem representatividade s formulaes surgidas aps a segunda metade do sculo XX, quando o

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    mercado da moda apresentava caractersticas extremamente diferentes daquelas sobre as quais escreveram Veblen e Simmel.

    Sendo assim, Bourdieu integrar a moda em um conjunto mais amplo de prticas culturais, mencionando-a em pelo menos duas obras importantes: 1) em A Distino [1979], utilizando-se dos conceitos de habitus e o espao dos estilos de vida e 2) em O costureiro e sua griffe: contribuio para uma teoria da magia [1975], utilizando outros quatro conceito