mobilidades e alteridades no relato de um certo oriente e sua tradução Árabe- tese de doutorado

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Maged Talaat Mohamed Ahmed El Gebaly Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua pré-tradução árabe São Paulo 2012

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Tese de doutorado

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA

    Maged Talaat Mohamed Ahmed El Gebaly

    Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua

    pr-traduo rabe

    So Paulo

    2012

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    El GEBALY, Maged Talaat Mohamed Ahmed.

    Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua pr-

    traduo rabe/ Maged El Gebaly So Paulo, 2012.

    Orientador: Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior

    Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas. Departamento de Letras Clssicas e Vernculas.

    Programa de Ps-graduao em Estudos Comparados de Literaturas de

    Lngua Portuguesa.

    1. Mobilidades. 2. Alteridades. 3.Narrativa. 4. Memria. 5. Traduo.

  • Folha de aprovao

  • Sumrio

    ndice de Figuras ........................................................................................................................... 19

    Dedicatria .................................................................................................................................... 12

    Agradecimentos ............................................................................................................................. 13

    .................................................................................................... 16 Introduo ...................................................................................................................................... 31

    Captulo I: Contexto geral da imigrao rabe no Brasil .............................................................. 37

    1.1. Primeiros contatos no perodo colonial .............................................................................. 37

    1.1.1. Mito do mascate .......................................................................................................... 38

    1.2. Perodos da imigrao libanesa para o Brasil ..................................................................... 39

    1.2.1. Perodo do domnio otomano (1850-1920) ..................................................................... 39

    1.2.1.1. Dom Pedro no mundo rabe ..................................................................................... 40

    1.2.1.2. Mito do turco ............................................................................................................ 40

    1.2.2. Perodo de entre-guerras (1920-1940) ............................................................................. 41

    1.2.3. Lbano independente (1943-1975) .................................................................................. 41

    1.2.4. Guerra no Lbano (1975-2000) ........................................................................................ 42

    1.3. Diferenas e tenses ........................................................................................................... 42

    2.1. Fim do Ciclo da Borracha ............................................................................................... 46

    2.2. Alm do regionalismo, incerto oriente ........................................................................... 48

    Captulo III: Memria cultural e autofico .............................................................................. 56

    3.1. Memria familiar e sombras da infncia ............................................................................ 61

    3.1.1. Casamento misto ......................................................................................................... 62

    3.2. Retornar e relembrar ........................................................................................................... 66

    3.2.3. Hakim, o duplo ............................................................................................................ 68

    3.2.3.1. Monlogo dialogante de Hakim ............................................................................... 69

    3.2.3.2. Hakim e a lngua rabe ............................................................................................. 70

    3.3. Deslocamento/ exlio .......................................................................................................... 71

    3.3.1. A Casa ......................................................................................................................... 75

  • 3.4. Narradores em trnsito ....................................................................................................... 80

    3.5. Vozes, silncios e memrias compartilhveis .................................................................... 82

    3.5.1. Vozes femininas .......................................................................................................... 84

    3.6. Narrativa circular, heterobiogrfica e fractria ................................................................... 87

    3.6.1. Multiperspectivismo cultural ....................................................................................... 90

    3.7. Olhar transitrio, exotismo e autoexotismo ........................................................................ 92

    3.7.1. Dorner .......................................................................................................................... 93

    3.8. Entrelugar e memria dialgica .......................................................................................... 95

    Captulo IV: Pr-traduo rabe de Relato de um certo oriente.................................................. 103

    4.1. Hermenutica do tradutor ................................................................................................. 106

    4.1.1. Interpretao .............................................................................................................. 109

    4.1.2. Recriao na reescrita ................................................................................................ 110

    4.2. Conarrao do tradutor literrio ....................................................................................... 112

    4.3. Identificao da hermenutica do tradutor ....................................................................... 114

    4.4. Anlise da traduo .......................................................................................................... 116

    4.4.1. Problemas e tcnicas de traduo .............................................................................. 117

    4.4.1.1. Desambiguao da polifonia .................................................................................. 117

    4.4.1.2. Identificao e codificao de vozes misturadas .................................................... 118

    4.4.1.2.1. Identificao ........................................................................................................ 118

    4.4.1.2.1. Codificao .......................................................................................................... 118

    4.4.1.3. Decifrao dos modos verbais das vozes narrativas ............................................... 119

    4.4.1.4. Especificao semntica ......................................................................................... 119

    4.4.1.5. Traduo das referncias culturais ......................................................................... 119

    4.4.1.6. Visualizao ........................................................................................................... 120

    4.4.1.7. Explicitao discursiva ........................................................................................... 120

    4.4.1.8. Transliterao ......................................................................................................... 121

    4.4.1.8.1. Entre a traduo literal de uma marca cultural social e o seu emprstimo .......... 122

    4.4.2. Campo da traduo no Egito ..................................................................................... 122

    4.4.2.1. Tradutores da literatura latino-americana no Egito ................................................ 124

    4.4.2.2. Traduo das narrativas modernas de memria no Egito ....................................... 126

    4.4.2.3. Agentes da traduo latino-americana no Egito ..................................................... 126

  • Concluso .................................................................................................................................... 127

    Referncias bibliogrficas ........................................................................................................... 136

    Apndices .................................................................................................................................... 151

    Apndice 1: Entrevista com Milton Hatoum: No h tantos tradutores de literaturas de lngua

    portuguesa .............................................................................................................................. 151

    Apndice 2: Resumos do minicurso DO ROMANCE NARRATIVA BREVE Ministrado

    pelo Milton Hatoum em Casa do Saber (Para ser aproveitado neste captulo) ....................... 165

    Professor: Milton Hatoum - Aula 01 25/08/2009 ............................................................. 165

    Professor: Milton Hatoum- Aula 02 a 26/08/2009 .............................................................. 167

    Apndice 3: Mostra da traduo rabe da metade de Relato de um certo oriente (Captulos 1, 2,

    3, e 4) de oito captulos ............................................................................................................ 169

    ............................................................................................................................... 170 1 ................................................................................................................................................... 174

    ............................................................................................. 174 2 ................................................................................................................................................... 197

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    ..................................................................................................... 234 ..................................................................................................................... 239

    Apndice 4: Anlise de fenmenos de traduo ...................................................................... 241

    Apndice 5: Narrativas que jogam com o imaginrio da imigrao rabe no Brasil .............. 257

  • ce de Figurasndi

    Figura 1: Entrelugar do imigrante e do tradutor versus o positivismo do colonialismo (Maged El

    Gebaly, 2012) ................................................................................................................................ 35

    Figura 2: Mapa do Lbano ............................................................................................................. 44

    Figura 3: Loja de temperos no centro de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). Esses

    temperos assinalados variadas vezes no Relato, uma smbolo de mistura cultural gastronmica

    entre rabes e indgenas em Manaus, j que as duas culturas valorizam as propriedades dos

    temperos e das ervas. ..................................................................................................................... 46

    Figura 4: Mapa do Brasil (Fonte: IBGE, 1999). ............................................................................ 48

    Figura 5: Gimnasio Amazonense Pedro II (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). ................ 62

    Figura 6: Estrutura genealgica da famlia-ncleo do Relato de um certo oriente (REZENDE,

    2010, p.25). .................................................................................................................................... 64

    Figura 7: Multiverso de Milton Hatoum, Maged El Gebaly, 2012. .............................................. 71

    Figura 8: Escrita de vidas envolve interao com espaos marcados nas narrativas de memrias

    (Maged El Gebaly, 2012). ............................................................................................................. 73

    Figura 9: Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus 16/05/2012) ..................................................... 73

    Figura 10: Igreja Nossa Senhora dos Remdios (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) ......... 74

    Figura 11: O Porto de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) .................................... 74

    Figura 12: Alfndega de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) ................................ 75

    Figura 13: Pagode no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus,

    18/05/2012). ................................................................................................................................... 75

    Figura 14: Pagode no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus,

    18/05/2012). ................................................................................................................................... 76

    Figura 15: Uma claraboia no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly,

    Manaus, 18/05/2012). .................................................................................................................... 76

    Figura 16: Fonte no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus.

    18/05/2012). ................................................................................................................................... 77

    Figura 17: Mapa do deslocamento no Relato de um certo oriente (DE ANDRADE, 2007). ....... 78

    Figura 18: Representaes de identidades diferentes na literaria brasileira (Maged El Gebaly,

    2012) .............................................................................................................................................. 83

  • Figura 19: Estrutura completa dos captulos do Relato (REZENDE, 2010, p.73) ........................ 89

    Figura 20: Pintura do teto no Salo Nobre do Teatro Amazonas (Maged El Gebaly, Manaus,

    16/05/2012). ................................................................................................................................... 91

    Figura 21: Do "no lugar" ao "entrelugar" (Maged El Gebaly, 2012). ......................................... 95

    Figura 22: Evoluo dos estudos da traduo: dos estudos formais da traduo at os estudos

    discursivos da atividade do tradutor (Bastin,1998) ..................................................................... 105

    Figura 23: Trs momentos do processo da traduo (Maged El Gebaly, 2011). ........................ 108

    Figura 24: Movimento hermenutico da traduo de George Steiner (1975), grfico por Maged El

    Gebaly (2011). ............................................................................................................................. 114

    Figura 25: Identificao do movimento hermenutico do tradutor (Maged El Gebaly, 2011) ... 115

    Figura 26: o entrelugar envolve modo dual na rememorao (Maged El Gebaly, 2012). .......... 130

    Figura 27: A transmisso da memria coletiva (ASSMANN, 2011). ......................................... 131

    Figura 28: Os entrelugares como lcus de libertao do inconsciente simblico (Maged El

    Gebaly, 2012) .............................................................................................................................. 135

  • 12

    Dedicatria

    Ao Egito e seu povo.

    Colnia rabe no Brasil.

    A Manaus e seu povo.

    s professoras e aos professores que contribuem na construo de um mundo melhor.

    s amigas e aos amigos que aguardaram a concluso desta tese.

    A todos aqueles descendentes de imigrantes.

    A minha famlia e amigos no Egito que acompanharam essa luta pela concluso deste

    doutoramento em Lngua Portuguesa e suas letras.

    Colmbia que me apoiou no estudo da lngua portuguesa.

  • 13

    Agradecimentos

    Aos meus professores no Egito por tudo que me ensinaram.

    Ao Milton Hatoum, pelas variadas entrevistas e conselhos, e pelo mundo que me abriu.

    Ao Prof. Dr. Benjamin Abdala Jnior, pelo apoio e orientao, que por muitos anos de

    convivncia, muito me ensinou, contribuindo para meu crescimento pessoal e intelectual.

    Ao Prof. Dr. Allison Leo, pela amizade e pela visita a Manaus.

    Ao Prof.Khalid Tailche, pela reviso da padronizao do texto.

    Ao Ministrio de Relaes Exteriores do Brasil e a CAPES (Programa PEC- PG), pela bolsa

    concedida.

    Samira Ahmad Orra, pelas leituras e ricas discusses sobre os descendentes de libaneses no

    Brasil.

    A Paola Giraldo Herrera e a Andr Oda, pelas valiosas discusses.

    Ao Prof. Dr. Mamede Mustafa Jarouche e Prof Dr. Safa Jubran pelas observaes.

    Ao Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da FFLCH da USP.

    A todos os funcionrios amigos na FFLCH que me apoiaram muito.

  • 14

    Resumo

    Esta tese tem como objetivo discutir as variadas manifestaes de mobilidades culturais e suas

    consequentes relaes de alteridades no romance Relato de um certo oriente de Milton Hatoum,

    partindo do suposto de que a alteridade parte constituinte da subjetividade e da relao humana

    de diferena e identidade com o Outro; e, ao mesmo tempo, analisar o processo intercultural da

    pr-traduo para a lngua rabe de quatro captulos do Relato de um certo oriente. Nesse sentido,

    este trabalho est focado em dois lcus das mobilidades culturais das alteridades: a narrativa de

    memria da imigrao, e a traduo literria.

    Palavras chaves: mobilidades, alteridades, narrativa, memria, traduo.

  • 15

    Abstract

    This thesis aims to discuss the various manifestations of cultural mobilities and its consequent

    relations of alterities in the novel Tale of Certain Orient of Milton Hatoum, assuming that

    otherness is a constituent part of human subjectivity and its relationship of difference and identity

    with the Other; and at the same time we intend also to analyze the processo of intercultural pre-

    translation into Arabic of four chapters of the novel. In this sense, this work is focused on two

    locals of cultural mobilities of alterities: the narrative memory of immigration and literary

    translation.

    Keywords: mobilities, alterities, narrative, memory, translation.

  • 61

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  • 22

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  • 32

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  • 30

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    SOROKIN, Pitirim. Social and cultural mobility. London: Collier-Macmilliam

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  • 31

    Introduo Comeamos esta pesquisa buscando uma integrao cultural entre rabes e brasileiros por

    meio do estudo das narrativas literrias da imigrao, seus mitos e sua traduo cultural.

    Seguindo a Souza Santos, entendemos a traduo como um trabalho argumentativo de

    imaginao epistemolgica e de imaginao democrtica presente nas reflexes e preocupaes

    de todas aquelas perspectivas, movimentos e prticas que prope o objetivo de construir novas e

    plurais formas de emancipao social (SANTOS 2005: 168). Movido por esse interesse

    acadmico pelos temas da construo das relaes humanas de diferena e de identidade na obra

    de Milton Hatoum, fomos lendo as suas obras, o que nos levou, depois, a conhecer desde uma

    tica cultural afetiva, sua terra Manaus.

    Assim como Jacques Le Goff, podemos abordar nesta tese duas vozes margem da

    histria tradicional (da imigrao e da traduo), como duas formas de mobilidade cultural que

    caracterizam nossa era. Seguindo Sorokin (1964) entendemos mobilidade cultural como o

    deslocamento de significados, normas, valores e vnculos. Bernd (2010:17-23) detecta cinco tipos

    de mobilidades culturais: as desviantes como a liquidez, as espaciais do imaginrio das

    metrpoles como as circulaes urbanas, as memoriais ou intersubjetivas como a autofico e a

    memria, as migratrias transculturais como a migrao e o deslocamento, e as transnacionais

    como a traduo e a mobilidade lingustica.

    As realidades da imigrao e sua descendncia podem ser traduzidas internamente por

    meio da imaginao. Mas tambm, esse discurso da fico que emana da imaginao consegue

    atravessar as fronteiras lingusticas nacionais para entrar em outras culturas por meio da traduo

    externa. No processo das mobilidades culturais dialogam alteridades internas e externas entre si,

    como parte constituinte da subjetividade e da relao humana de diferena e identidade com o

    Outro (LEVINAS, 1988).

    Uma das questes levantadas pelos crticos brasileiros a representao das realidades

    culturais no Relato de um certo oriente, que tem uma heterogeneidade de dois mundos

    superpostos (de Manaus e do Lbano). Na narrativa, Hatoum procurou criar um discurso liberto

    do olhar extico sobre o Amazonas e sobre os rabes. Contra esse olhar, ele lana relatos

    polifnicos de um certo oriente, com diversidade de vozes narrativas e pontos de vista. O

  • 32

    progresso na cidade de Manaus significou, em alguma medida, a fragmentao do sujeito.

    Hatoum cria uma Manaus como espao literrio de alteridades exprimidas em cenas

    fragmentadas de narrativas heterogneas e fantasmas das memrias vivenciadas pelo escritor e

    representadas pelas vozes dos seus narradores (BACHELARD, 2008).

    Ao longo de diversas passagens histricas do Brasil (Colnia, Imprio e Repblica),

    foram discutidas as conceituaes e as ideias de entrelugares, como zona intermediria entre dois

    espaos em contato, imagens de espaos vivenciados em misturas culturais, de hibridismos, de

    mestiagens, de sincretismos religiosos e da miscigenao tnica. Nessa literatura, o Brasil

    considerado um pas que atraa os imigrantes rabes para se livrarem de sofrimento de ordem

    econmica, social e poltica e para compartilharem com outros imigrantes a construo de novas

    identidades. A presena rabe claramente visvel nas vrias esferas da vida, nas provncias e nas

    cidades grandes, onde os imigrantes rabes e seus descendentes fazem parte do tecido cultural,

    social e poltico do Brasil.

    Milton Hatoum, filho de imigrantes rabes, e de variadas vivencias urbanas em diferentes

    cidades, terminou publicando em 1989 o Relato de um certo oriente, para narrar suas histrias

    familiares a partir do Natal de 1954. Susana Moriera (2012) nos revela mais detalhes

    interessantes sobre a publicao do Relato de Hatoum e sua relao com o escritor Raduan

    Nassar:

    Quando terminou de escrever (o Relato), no pensou logo em publicar. Foram precisos dois anos e a insistncia de amigos crticos literrios e escritores - entre eles Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, um dos mais marcantes romances brasileiros, tambm sobre uma famlia libanesa.

    Foi Maria Emlia Bender que editou o Relato e apresentou a obra para Luis Schwarcz,

    dono da Companhia das Letras. Hatoum ganhou a bolsa da VITAE para se dedicar ao seu

    segundo romance Dois irmos. Assim que, o escritor foi consolidando sua posio no campo

    literrio como vemos na tabela abaixo:

  • 33

    Tabela 1: Produes de Milton Hatoum e consolidao da sua posio, adaptado de AVELINO, 2010.

    Tipo de produo Lugar de

    realizao

    Data Edio/Publicao Apreciao

    Redao escolar Manaus 1967 Jornal estudantil

    Elemento 106

    Amigos/Familiares

    Poesia So Paulo 1979 Ed. Diadorim Crtica

    Literria/Intelectuais/pblico

    restrito.

    Relato de um certo

    oriente

    So Paulo 1989 Ed. Cia das Letras Crtica

    literria/escritores/editores/

    pblico difuso. Prmio Jabuti

    (1990)

    Dois irmos So Paulo 2000 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2001)

    Cinzas do Norte So Paulo 2005 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2006)

    rfos do Eldorado

    So Paulo 2008 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2009)

    A cidade ilhada So Paulo 2009 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2010)

    Para ns, o Relato de um certo oriente um exemplo de uma tendncia contempornea

    produo de uma narrativa memorialstica ntima, chamada autofico, termo cunhado em 1977

    por Serge Doubrovsky para referir-se a uma forma de insero da histria entre autobiografias de

    fatos reais tratados de modo ficcional imaginrio, onde o eu se divide em vrios personagens

    fictcios. O escritor prepara um terreno de ambiguidade em que o eu ao mesmo tempo sujeito e

    objeto da narrao (OUELLETTE- MICHALSKA, 2007). Como nos contou Hatoum: O Relato de um certo oriente como os franceses chamam um relato de memria, de tom evocativo. H uma

  • 34

    frase de um personagem no Relato que diz a vida comea verdadeiramente com a memria (HATOUM,

    2010).

    Essa narrativa literria forjada a partir de memrias involuntrias, toma forma de rebeldia

    historiografia serial tradicional, que reduzia a relao do ser humano com o passado a um

    processo linear e exato. O isolamento cultural imposto pelos sistemas positivistas fechados,

    apoiados por foras conservadoras, produz frustrao no projeto da modernidade1. Talvez, como

    resposta a essa crise, a literatura contempornea se construa, em muitas de suas realizaes, como

    um espao de resistncia enrazda e mediao desenrazada, colocando em evidncia a

    reinveno das identidades quebradas e a sua negociao. Trata-se de negociao da desigualdade

    pela sobrevivncia num interatividade diferenciada (FANTINI, 2004). Nessas crises, alguns

    traumas so tolerveis se ns o narramos como histria. Os vestgios e os fantasmas da memria

    coletiva so resgatveis (RICOEUR, 2007).

    1 Entendemos por modernidade aquela viso de mundo relacionada ao projeto empreendido a partir da transio terica operada por Descartes, com a ruptura com a tradio herdada - o pensamento medieval dominado pela Escolstica - e o estabelecimento da autonomia da razo. O projeto moderno consolida-se com a Revoluo Industrial. O termo est ligado tambm a uma srie de transformaes que ocorreram no decorrer do sculo XX em especial na segunda metade do sculo e provocaram alteraes em vrios nveis da vida humana (GIDDENS, 1990 apud FIGUEIREDO, 2010).

  • 35

    Figura 1: Entrelugar do imigrante e do tradutor versus o positivismo do colonialismo (Maged El Gebaly,

    2012)

    Os estudos transculturais comparados e suas tradues so campos de pesquisa

    multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Esses estudos pesquisam os processos

    de desculturao, reculturao, neoculturao, que geram diferenciao de identidades. Vo alm

    do paradigma das diversidades culturais do multiculturalismo. Reconhecem no outro suas

    diferenas como sua humanidade, no sentido de um processo intersubjetivo, aberto, reflexivo,

    tico, dialgico, valorativo, criativo, ousado e complexo. Seremos tanto mais transculturais,

    quanto mais nos colocarmos dos pontos de vista das outras culturas. Dos objetos de pesquisa dos

    estudos transculturais existem: a memria cultural, o imaginrio, as fronteiras, as identidades, as

    diferenas e as alteridades. Este estudo tece o discurso da literatura e outros saberes como a

    histria, a antropologia, a psicanlise e outras linguagens como a fotografia para visualizar nossas

    ideias (FERNANDO ORTIZ apud RAMA, 1982).

  • 36

    Nesses dilogos de saberes, O Relato exerce seu dilogo com o leitor dentro de um dos

    lcus da diferena que a narrativa de memria, de uma famlia libanesa e manauara ao mesmo

    tempo. O processo de traduo rabe do Relato implica outro lcus da diferena, na medida em

    que um deslocamento e uma atualizao da narrativa em outro contexto literrio diferente: o

    egpcio. A traduo rabe completa de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust s se traduz

    por Gamal Shahid e se publica no Cairo em 2005. Esse tipo de narrativa no campo cultural

    egpcio vem desenvolvendo-se de duas fontes principais: as narrativas autobiogrficas clssicas

    da era de independncia em relao Gran Bretanha e as narrativas mais recentes dos estudiosos

    rabes que tiveram contato com a literatura francesa e conseguiram ter acesso direto tradio

    literria de Marcel Proust (SHAHID, 2011). Mas seguindo a crtica Vera Mquea (2007), h

    diferena entre a construo da memria em Proust e a mesma em Milton Hatoum: Em quanto

    Proust queria voltar a sentir o gosto das coisas vividas por meio da procura do tempo perdido...

    em Hatoum uma memria pronunciada do devir, o seja, visitar o passado com mesmo

    estranhamento com que se visita o futuro p.252. Perante essas diferenas culturais nas

    construes memorialsticas, o objetivo geral da nossa tese consiste em:

    Discutir as variadas manifestaes de mobilidades culturais e suas consequentes relaes

    de alteridades no Relato de um certo oriente de Milton Hatoum2, partindo do suposto de

    que a alteridade parte constituinte da subjetividade e da relao humana de diferena e

    identidade com o Outro; e, ao mesmo tempo, analisar o processo intercultural da pr-

    traduo rabe de quatro captulos do Relato de um certo oriente, como uma primeira fase

    da cadeia comunicativa da traduo ( autor-obra-editora-tradutor-pblico) (HURTADO

    ALBIR, 2001). Nesse sentido, nossa pesqusia est focada em dois lcus das mobilidades

    culturais das alteridades: a narrativa de memria da imigrao, e a traduo literria.

    Uma vez definido objetivo geral da tese, passamos no prximo captulo a apresentar o contexto

    histrico da imigrao rabe no Brasil, pano de fundo do Relato de um certo oriente.

    2 Os trabalhos de Milton Hatoum encontram-se no seu site pessoal www.miltonhatoum.com.br, lanado no ms de setembro de 2010.

  • 37

    no Brasil rabeimigrao daContexto geral : ICaptulo

    O Mundo rabe se parece com o Brasil... Talvez a gente deva isso

    a um passado muito distante, ibrico (Milton Hatoum, 2010).

    A integrao do elemento rabe no Brasil processou-se de maneiras diferentes nas

    diversas regies do pas. Isto se deu em funo do meio social, das ocupaes dos imigrantes e de

    seu nmero. A origem do imigrante rabe no Brasil varia em funo da poca e da sua

    localizao geogrfica. A fixao em diferentes regies compreende fatores locais e externos,

    psicolgicos e prticos. Tambm a realidade da dispora rabe no Brasil varia conforme a origem

    dos imigrantes, religio e etnia, os motivos da migrao, classe social e conscincia poltica, etc.

    A primeira gerao de imigrantes rabes sobreviveu com atividades econmicas populares como

    o comrcio e restaurantes, enquanto a segunda e terceira geraes comearam a fazer parte da

    classe mdia profissional constituda por professores, mdicos, advogados, engenheiros...etc.

    1.1. Primeiros contatos no perodo colonial

    H indcios no nordeste brasileiro, como as fisionomias, a gastronomia, a arquitetura

    urbana e os costumes, que fazem referncia cultura moura que viveu na Andaluzia por mais de

    800 anos. Benjamin Abdala Junior (2012) observou:

    Os primeiros colonizadores da Amrica Latina vieram da regio que os rabes chamaram de Al-ndalus. Algarve provm de Al-Gharb al- ndalus (Andaluzia Ocidental), que abrangia o atual Algarve e o baixo Alentejo. A maior parte da populao popular de Lisboa, na poca dos Descobrimentos, some-se a essas constataes, era de origem moura. Eram regies culturalmente hbridas, para onde confluram muitas culturas da bacia cultural mediterrnea.

    Com relao origem rabe dos nomes das primeiras cidades do nordeste brasileiro, o

    fillogo Assad Zaidan (2010) assinala que Recife veio do rabe "" , que significa cais do

    porto e agrega:

  • 38

    Segundo os historiadores Jamil e Jorge Safady (1950), h um manuscrito na Biblioteca Pblica da capital russa Moscu que consta que o marinheiro rabe, Ibn Majed que tripulou em 1500 a esquadra de Pedro lvares Cabral, ao avisar o literal baiano gritou Bahia, "" , [o que quer dizer em rabe bonita] e o que deu nome regio.

    1.1.1. Mito do mascate

    Como explicamos encima que a primeira gerao de imigrantes rabes sobreviveu por

    meio de atividades econmicas populares como o comrcio. Esses primeiros imigrantes fizeram

    os percursos da mascateao, ou seja, ser masqate. O mascate, personagem citada ligeiramente

    em diversas censas do Relato, vem exprimindo fenmeno herdado das tradies mediterrneas.

    Esta mascateao que d o sentido da integrao cultural por via fluvial. O Rio Nilo une o Egito

    e os rios do Brasil com seus mascates unem suas extensas terras com narrativas dessas

    mobilidades que permitem conhecimentos mtuos entre um brasileiro e outro. Khatlab (2002)

    afirma que essa palavra mascate de origem rabe. Explica que de 1507 a 1658, os

    portugueses conquistaram a cidade de Mascate no Golfo rabe (atual capital de Om). Como a

    cidade era um ponto comercial de venda, compra e troca de toda espcie de mercadoria, os

    comerciantes portugueses que regressavam a Portugal de l, trazendo seus produtos, eram

    chamados de mascates, um apodo ao comrcio oriental (KHATLAB, 2002). No Brasil, essa

    atividade de mascate foi seguida por muitos grupos de imigrantes como meio ocupacional. Os

    primeiros mascates dos tempos coloniais at quase o fim do sc. XIX foram os portugueses, mais

    tarde substitudos pelos italianos, originrios em sua maioria da Calbria, que mascateavam

    produtos de armarinhos e roupas feitas (KNOWLTON, 1955). O mascate bandeirante da

    modernidade brasileira, personagem descendente das tradies mediterrneas, viaja pelos rios e

    mares trocando artigos, produtos, mercadorias e tambm saberes e conhecimentos. A

    mascateao deu sentido de integrao cultural tambm entre os centros urbanos e as reas

    interioranas e rurais. A mesma palavra manifesta mobilidade cultural entre as duas lnguas: foi

    derivada do rabe () e voltou ao rabe, mas aportuguesada ) ( .

    As ondas da imigrao libanesa para o Brasil que se iniciaram oficialmente aps a visita

    de D. Pedro II ao Lbano, so organizadas por Gattaz (2005) nas seguintes periodos histricos:

  • 39

    1.2. Perodos da imigrao libanesa para o Brasil3

    1.2.1. Perodo do domnio otomano (1850-1920)

    Sobre os primeiros rabes desse perodo no Brasil, Roberto Khatlab4 (2010) conta:

    Pelas necessidades econmicas durante o Imprio Turco-Otomano (1516-1918),

    chegaram ao Brasil famlias rurais do Lbano, Sria e de todo o mundo rabe

    com o propsito de estabelecer-se definitivamente...O gramtico Manuel Said

    Ali, nascido em Petrpolis, no Rio de janeiro em 1861, era filho de Said Ali,

    rabe que faleceu dois anos depois do nascimento desse filho. Uma prova

    contundente de que j habitava o Brasil antes de 1861. Recentemente foi

    publicada a traduo do livro 'Deleite do estrangeiro em tudo o que espantoso

    e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali', escrito pelo im

    Abdurrahmn Al-Baghddi, rabe nascido em Bagd, que viveu no Brasil de

    1865 a 1868.

    Sobre esse perodo, consultamos o arquivo virtual da Famlia Doualib onde encontramos

    que:

    As primeiras datas da vinda dos libaneses podem ser fixadas antes de 1885. O perodo imigratrio rabe no Brasil at fins de 1900 considerado a primeira fase. o perodo de aventuras onde a Amrica era tema lendrio para os povos rabes, sem autonomia prpria, e dependentes do Imprio Otomano. Os imigrantes adotavam novos nomes em funo de sua atividade no Brasil. Isto est relacionado com a dificuldade de pronncia de letras rabes guturais e aspiradas. H nomes adotados por analogia ou por traduo que eles mesmos criaram.

    Pelas necessidades econmicas durante o Imprio Trco- Otomano (1516-1918),

    chegaram ao Brasil famlias rurais do Lbano, Sria e todo o mundo rabe. A maior parte dos

    3 GATTAZ, Andr. Do Lbano ao Brasil: histria oral dos imigrantes. So Paulo: Gandalf, 2005. 4 Khatlab, Roberto. Quando os rabes chegaram ao Brasil, So Paulo: crnica publicada 08/04/2010. Disponvel em:< http://www.icarabe.org/artigos/quando-os-arabes-chegaram-ao-brasil>. Acesso: 23/07/2012.

  • 40

    primeiros imigrantes vem de sociedades rurais, de aldeias, provncias ou cidades pequenas para

    metrpoles industrializadas no Brasil (GATTAZ, 2005).

    1.2.1.1. Dom Pedro no mundo rabe

    Respeito visita de D.Pedro II nesse periodo, Khatlab (2000) conta:

    O Imperador do Brasil na poca, D. Pedro II (1825-1891), visitou o Egito em 1871, e em 1876 visitou o Lbano, a Sria e a Palestina (...). Em sua estada no Lbano, de 11 a 15 de novembro de 1876, o Imperador escreveu ao seu amigo, o diplomata francs Joseph Gobineau, que ficara em Atenas, Grcia: Tudo vai bem... A partir de hoje comea um mundo novo. O Lbano ergue-se diante de mim com seus cimos nevados, seu aspecto severo, como convm a essa sentinela da Terra Santa... (Arquivo Histrico de Estrasburgo Frana).

    Vamos apresentar na seguinte parte como o imigrante rabe foi chamado turco nesse perodo otomo, uma das referncias culturais no Relato.

    1.2.1.2. Mito do turco

    Jorge Amado narra na Descoberta da Amrica pelos turcos: Os primeiros a chegar do

    Oriente Mdio traziam papis do Imprio Otomano, motivo porque at os dias atuais so

    rotulados de turcos. O mito fundador do mascate tem muita importncia e grande valor para as

    comunidades rabes espalhadas por todo Brasil. Os primeiros imigrantes rabes exerciam

    atividades comerciais e grande parte iniciou seus negcios trabalhando como vendedores

    ambulantes ou mascates. Nesse contexto surge a figura do turco, porque a imigrao rabe

    naquele momento chegava ao Brasil com passaportes turcos do Imprio Otomano, atual Turquia

    (PETERS, 2006).

    A representao da imigrao rabe do sculo XIX foi estigmatizada com a da imagem

    folclrica do turco como figura mesquinha, dono de comrcio qualquer na esquina. Essa situao

    muda na literatura brasileira contempornea com a participao ativa de escritores rabes,

    descendentes e amigos da sua cultura. Carreira (2008) assinala:

    As ondas migratrias no Brasil foram seguidas da construo de esteretipos, verificveis, por exemplo, em obras da literatura naturalista brasileira. Os rtulos que acompanharam os imigrantes de diversas nacionalidades, como turco, no caso dos imigrantes de origem rabe, funcionavam sob a tica da excluso. A

  • 41

    literatura brasileira contempornea, no entanto, lana um olhar diferenciado sobre a imigrao, possibilitando uma releitura do processo de insero do imigrante na sociedade. Obras de autores como Milton Hatoum e Raduan Nassar, entre outros, permitem uma reflexo sobre os conflitos da condio de estrangeiro, imigrante, e descendente por uma via que tanto escapa viso estereotipada do imigrante quanto foge mera tematizao dessa condio.

    1.2.2. Perodo de entre-guerras (1920-1940)

    Pela falta de perspectivas nos setores urbanos no Lbano colonizado e

    pelas necessidades econmicas da populao rural, houve outra onda de

    emigraes libanesas ambiciosas e opostas ao mandato francs na regio,

    de 1920 a 1940. Nesses 20 anos, a poltica do Lbano foi reestruturada,

    favorecendo o surgimento de uma elite francfila. Os franceses tentaram

    europeizar ao mximo a populao atravs de um projeto educacional aos

    seus moldes e da instaurao do francs como lngua oficial.

    Sobre esse perodo, no arquivo virtual da Famlia Doualib5, conta-se:

    Finda a primeira guerra mundial, inicia-se a terceira onda de imigrao de rabes para o Brasil. Em 1914 j era considervel o nmero de fbricas pilotadas por srios e libaneses. (...) A crise de 1929 e o contnuo progresso da indstria nacional levam os libaneses e srios criao de novas indstrias e abertura de novos estabelecimentos comerciais.

    1.2.3. Lbano independente (1943-1975) 6

    O terceiro perodo termina com a segunda guerra mundial. Depois de

    1945, os rabes brasileiros consolidam sua posio de comerciantes e

    industriais. Pela depresso econmica e conflitos polticos posteriores

    Segunda Guerra Mundial e pelas faltas de oportunidades profissionais,

    houve uma terceira onda emigraes urbanas do Lbano para o Brasil.

    5 Arquivo virtual da Famlia Doualib. Disponvel em:. Acesso: 08/09/2012. 6 Ibid.

  • 42

    1.2.4. Guerra no Lbano (1975-2000)

    Pelo conflito e seu decorrente desemprego, houve uma quarta leva de

    emigrao de civis, que saram do seu lugar de origem, buscando a

    nacionalidade brasileira.

    Nesse contexto imigratrio, Hatoum escreve o Relato de um certo oriente, onde narrar

    mobilidades e deslocamentos e suas consequentes relaes complexas de alteridades.

    1.3. Diferenas e tenses

    O Relato trilha relaes interculturais de alteridades. Consoante a Ward e Rana-Deuba

    (1999), as vivncias das diferenas passam por uma curva de etapas heterogneas na interao

    entre a cultura natal e a cultura de acolhimento: euforia, estranhamento, choque cultural, rejeio,

    conflito, negociao, adaptao, aceitao, aculturao (reajustamento) /transculturao e

    integrao. Nesse processo, a aculturao constitui-se um processo de sujeio social. Observam-

    se quatro estratgias de aculturao: assimilao, que ocorre quando os indivduos rejeitam sua

    cultura minoritria e adotam as normas da cultura dominante ou de acolhimento; separao, que

    ocorre quando os indivduos rejeitam a cultura dominante ou de acolhimento em favor da

    preservao de sua cultura de origem, a separao facilitada pela imigrao para enclaves tnicos;

    integrao, que ocorre quando os indivduos so capazes de adotar as normas da cultura

    dominante ou de acolhimento, mantendo a sua cultura de origem e marginalizao, que ocorre

    quando os indivduos rejeitam tanto a sua cultura de origem e a cultura de acolhimento

    dominante. Fernanda Massebeuf (2006) notou os seguintes processos de aculturao francesa no

    Relato:

    1) A influncia francesa na cultura libanesa (o espelho adquirido juntamente com outros objetos de decorao de estilo francs). Ela reflexo dos tempos em que o Lbano foi colnia francesa. Desde ento, no Lbano, h quem fale francs, quem aprecie a culinria francesa, quem tenha adquirido o gosto por objetos de decorao pertencentes a movimentos provenientes da Frana. 2) A adaptao ou no do imigrante terra onde vai viver. 3) A excluso do imigrante que se recusa adaptao aos padres de comportamento vigentes pela cultura da terra que o acolhe.

  • 43

    4) A aculturao, que mostra o quanto todos ns somos suscetveis hibridao. Aculturao, nesse sentido, um processo voluntrio ou imposto pelos autctones aos imigrantes, fragilizados, numa situao entre dominantes e dominados.

    Nessa mobilidade migratria encontra-se, por um lado, o migrante construindo a partir das

    suas memrias seu imaginrio nostlgico, suas narrativas sobre o Lbano, e estabelece uma

    vinculao afetiva com as imagens construdas sobre aquela vida provincial de origem. Por outro

    lado, o descendente mantm o Brasil como sua sociedade de destino.

    Dentro da famlia hbrida lbano-brasileira se observa a relao inter-religiosa entre Emilie

    (catlica) e o seu marido (muulmano): Emilie e o marido praticavam a religio com fervor.

    Antes do casamento haviam feito um pacto para respeitar a religio do outro, cabendo aos filhos

    optarem por uma das duas ou por nenhuma. p.69. Porm, trata-se de diferenas religiosas que

    no deixam de ser segregacionista porque o Eu est num lado e o Outro est no outro. um Eu

    que no aprende sobre a cultura religiosa do Outro. Ento, acarreta uma convivncia com

    preconceitos negativos de uns contra outros. Percebem-se controvrsias no tocante religio

    entre Emilie e seu marido, o que facilita ou no a sua adaptao a Manaus. Alguns rabes judeus

    e muulmanos, como a famlia Benamou e o pai de Hakim no Relato mantiveram seus costumes.

    Em contrapartida, Emilie seguia o catolicismo e era adepta da culinria do Amazonas. Constata-

    se que rabes cristos como Emilie no tiveram problemas para se adaptar. Ficou a saudade de

    sua terra, misturada nova rotina e nova lngua, mas assimilaram rapidamente os valores da

    modernidade latina, misturada ecleticamente com os valores do cristianismo e, gradualmente,

    formaram um grande segmento de uma classe social privilegiada. Essa modernidade consolida-se

    com a industrializao e o desenvolvimento do capitalismo nas cidades (KARAM, 2007). J que

    analisamos brevemente o contexto libans do Relato de um certo oriente, passamos no prximo

    captulo a apresentar o contexto manauara da narrativa de Hatoum.

  • 44

    Figura 2: Mapa do Lbano7

    7 Mapa do Lbano. Dsponvel em . Acesso:23/07/2012.

  • 45

    Captulo II: Manaus: Encontro das guas

    A beira de um rio ou orla martima os aproximam, e em qualquer lugar do

    mundo as guas que eles veem ou pisam so tambm as guas do mediterrneo

    (Relato de um certo oriente, Milton Hatoum, p.76).

    A cidade de Manaus originou-se da colnia criada em torno do Forte So Jos do Rio

    Negro, fundado em 1669, sendo renomeada em 1832 com o nome de Manaus, termo que na

    lngua indgena da tribo dos Manas, antigos habitantes do lugar, significa me dos deuses

    (BOLLE, 2010). Sobre a presena rabe na regio de Amazonas, khatlab (2000) relata:

    O historiador brasileiro Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858 1931), nascido em Manaus-AM, em seu trabalho Inscries e Tradies da Amrica Pr-Histrica, especialmente do Brasil (RJ 1930), cita muitas palavras indgenas de origem fencia, pois alguns dos tripulantes de embarcaes fencias que chegaram ao litoral permaneciam nessas regies e constituam cls depois da conquista da Fencia por Alexandre, o Grande, e depois as dominaes grega e romana. Vocbulos aramaicos e mesmo rabes antigos so encontrados nos idiomas Quchuas, Chibika, Aimar, Guarani, Tupi, sendo o Quchua e o Tupi os mais prximos do aramaico e do rabe. Na Ilha de Maraj, foram encontradas pedras trabalhadas com inscries aramaicas, cuja existncia datada de antes da Era Crist. Estas se encontram no Museu Nacional do Rio de Janeiro.

    De acordo com o arquivo virtual da famlia Doualib: No incio do sculo XX foi a regio

    do Amazonas um dos pontos mais importantes de atrao de grandes migraes. Os imigrantes

    que iam para o norte aportavam em So Lus e em Belm e destes dois portos dispersavam-se

    pela Amaznia. Verificava-se tambm um movimento de migrao do sul para o norte do Brasil

    em funo das condies econmicas advindas do Ciclo da Borracha.. Segundo Knowlton

    (1955), em 1920 o nmero de srios e libaneses nesse estado era de 811 pessoas, sendo que mais

    da metade morava em Manaus. Essa regio era especialmente atraente porque o desenvolvimento

    atravs do surto econmico do Ciclo da Borracha e do caf na Amaznia incentivou os srios e os

    libaneses a acompanhar esse crescimento com a venda de mercadorias aos seringueiros.

    No Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, Manaus vira o espao privilegiado, a

    cidade ilhada pelo rio e pela floresta que, desde o fim da belle poque cabocla da borracha,

    adaptou-se, no possvel, a cada nova circunstncia dada pelo desenvolvimento. Nesse sentido,

    pode ser compreendida como uma alegoria da histria do pas, uma parte, num pequeno mundo, a

  • 46

    ele circunscrita, a gerar valores humanos especficos, fazendo, dessa forma, a passagem do local

    para o universal. Um espao scio-cultural e histrico, formado por estratos humanos que se

    cruzam e se misturam, quase desaparecendo: o estrato indgena, o do imigrante estrangeiro, o do

    migrante de outras regies do pas.

    Em Manaus chegaram imigrantes rabes que buscavam sobreviver. Instinto de querer

    viver, ou melhor, escapar da pobreza, da doena, da misria, do desemprego e da falta de

    oportunidades de trabalho e estudo. Chegaram cansados ao Porto de Manaus e a outros portos de

    Brasil. Logo, vemos ncleos familiares rabes incorporados ao sistema social e poltico no Brasil.

    Seus descendentes tero que recriar sua identidade entre prazeres e traumas. Hatoum, Hakim, no

    Relato, veio de uma famlia misturada de um muulmano, inominvel no Relato, e a protagonista

    catlica Emilie. O Relato no s representa misturas de lugares e espaos, mas tambm o fim do

    Ciclo da Borracha que vamos detalhar na seguinte parte.

    Figura 3: Loja de temperos no centro de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). Esses temperos

    assinalados variadas vezes no Relato, uma smbolo de mistura cultural gastronmica entre rabes e

    indgenas em Manaus, j que as duas culturas valorizam as propriedades dos temperos e das ervas.

    2.1. Fim do Ciclo da Borracha

    Aps o Ciclo da Borracha, a ditadura militar (1964-1985) faz emergir um tipo de

    modernizao conservadora regio amaznica. Em 1967, foi criada a Zona Franca de

    Manaus. A partir de segunda metade da dcada de 1970, estruturou-se em 1972 o Polo Industrial

    de Manaus (PIM), em que predominava o setor eletroeletrnico. Como bem explica Noemi de

  • 47

    Perdigo (2011): De 250 mil habitantes em 1967, Manaus passou a 2 milhes de habitantes

    segundo o ltimo censo do IBGE (2010), com todos os problemas sociais e ambientais que um

    crescimento urbano nesta proporo implica. Em relao ao retorno de Hatoum Manaus da

    Zona Franca, Bruno Leal (2010) conta:

    Depois de dezesseis anos longe do Amazonas e de Manaus, Milton Hatoum teve um impacto negativo quando chegou cidade de sua infncia e adolescncia; muita coisa havia mudado. Uma cidade corroda pela falta de polticas pblicas, o patrimnio arquitetnico da cidade totalmente abandonado, milhares de indigentes vindos de todo o pas em busca de emprego na Zona Franca de Manaus. (...) Portanto, o que restou para o artista amazonense? A sada para o Sul do pas ou para o exterior e, por ltimo, a degradao fsica e intelectual para os que tentaram resistir contra uma poltica aniquiladora e mesquinha por parte do governo militar nos idos da Zona Franca de Manaus.

    A cidade passou de Paris nos trpicos para uma Cidade Flutuante, um verdadeiro

    bazar oriental, com pessoas de vrias partes do mundo.

  • 48

    2.2. Alm do regionalismo, incerto oriente

    Figura 4: Mapa do Brasil (Fonte: IBGE, 1999).

    Norberto Bobbio (2000) (apud FIGUEIREDO, 2010) concebe o regionalismo como tendncia

    poltica dos que so favorveis s autonomias regionais.. Jos Maurcio Gomes de Almeida

    define o regionalismo como aquela arte que buscaria enfatizar os elementos diferenciais que

    caracterizam uma regio em oposio s demais ou totalidade nacional (ALMEIDA, 1981:

    p.47). Norbert Elias (2000) (apud FIGUEIREDO, 2010) considera regionalismo como uma forma

    de afixar o rtulo de valor humano inferior a outro grupo e o considera uma das armas usadas

    pelos grupos superiores nas disputas de poder como meio de manter a superioridade social. Nessa

  • 49

    situao, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma

    penetrar na autoimagem deste ltimo e, com isso, enfraquec-lo e desarm-lo.

    No entanto, Maria Luiza Germano de Souza (2010) apela definio de Antonio Candido (1985)

    do regionalismo no Brasil:

    Chama de terceira fase do regionalismo para a Amrica Latina e Brasil: o super-regionalismo, no que se tem uma conscincia dilacerada do subdesenvolvimento, algo que tornou possvel a universalizao da regio, em razo dos escritores terem ultrapassado o pitoresco e o documentrio. Isto , importa menos o retrato de uma dada regio e mais a forma escolhida para dar expresso e virtuosismo ao narrado. Candido identifica no regionalismo brasileiro, que oscila entre o fato de ser potencialmente instrumento de descoberta e autoconscincia do pas ou ideologia que mascara as condies de dominao do homem pobre no campo.

    O escritor amazonense Mrcio Souza acredita que o regionalismo em contraponto ao

    universal so categorias polticas inventadas pela indstria cultural eurocntrica imperialista para

    hierarquizar certas regies supostamente mais prximas dos valores eurocntricos. No

    Humanismo e crtica democrtica (2007), Said faz nfase na necessidade de desenvolver uma

    crtica oposicional ao eurocentrismo presente na ordem e na genealogia do discurso

    epistemolgico positivista do sculo XIX. Para o crtico palestino, o humanismo democrtico no

    parte de uma verdade nica que elimina diferentes formas de pensar, mas da diversidade entre as

    culturas, o que no cria conflitos entre as verdades essencializados, que tm suas razes na

    colonizao, diante da crescente complexidade do mundo. Na viso do Said, as culturas podem

    coexistir no com base numa essncia, mas na forma de um dialogo que procura entender a

    diversidade humana. Nesse contexto, Ademar Leo (2005) ressalta a posio critica de Hatoum

    perante o binarismo do olhar eurocntrico:

    As narrativas que concorrem para a construo das matrizes identitrias do Ocidente apresentam um aspecto relevante em comum: o etnocentrismo que circunscreve a sua representao do Outro. Esta viso etnocntrica, que opera uma radical diviso do mundo entre civilizados e brbaros e que recusa a reconhecer o Outro em sua alteridade, corresponde a um expediente a partir do qual, negando ao Oriente uma possibilidade de representao, o Ocidente atribui-lhe uma identidade construda sua imagem e semelhana...Posicionando-se contrariamente postura restritiva do regionalismo literrio, cuja lgica sustenta-se na circunscrio da obra a uma

  • 50

    geografia e a um vocabulrio determinado, o texto de Hatoum pe em questionamento a inviabilidade, no mundo contemporneo, da manuteno de concepes identitrias aprisionadas em contornos unvocos, fixos, e reivindica, assim, um espao para a manifestao da diferena e da alteridade na literatura brasileira.

    Para Coutinho (1969) (apud FIGUEIREDO, 2010): o regionalismo um conjunto de

    retalhos que arma o todo nacional. Ele sustenta a existncia de regies de produes

    literrias constitudas da seguinte forma: Ciclo nortista, Ciclo nordestino, Ciclo baiano, Ciclo

    central, Ciclo paulistano e Ciclo gacho. A esses se juntaria uma espcie de subciclos

    suburbanos. Hatoum perscruta o regional somente como localizao e/ou ambiente de suas

    narrativas, porm o relevo dado pelas idiossincrasias humanas vividas pelas personagens. Estas

    regies literrias dialogam com a tese da mestiagem tnica de Darcy Ribeiro (1999) de um

    Brasil constitudo histricamente em seu interior por varios traos arquetpcos de Brasis

    imaginados apartir dessa hibridao: O Brasil crioulo, o Brasil caboclo, o Brasil sertanejo, o

    Brasil Caipira, o Brasis sulinos. Para Coutinho, o regional toma importncia no Brasil a partir do

    romantismo que procura a exaltao do brasileiro em oposio ao europeu. Coutinho adverte a

    diferena do regionalismo realista que desviou-se do saudosismo e escapismo do regionalismo

    romntico.

    Alfredo Bosi (1976) aponta um regionalismo pr-moderno8, que parte de um

    nacionalismo declamatrio e um regionalismo srio, inspirado num nacionalismo crtico que

    surge com o Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, uma agitao intelectual que

    suscitou o aparecimento do romance nordestino de 30. De 1930 at a Segunda Guerra Mundial,

    marca uma segunda fase do modernismo, que a da estabilizao das conquistas modernas.

    Nesse perodo, encontramos autores como Jos Amrico de Almeida, Raquel de Queiroz, Jos

    Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Terceira fase do modernismo surge uma

    tendncia para o hermetismo e para o intelectualismo do final da segunda guerra mundial at

    8 O modernismo como movimento contra os tabus, o academismo, o elitismo, a esttica que a Frana ditava, e a represso ideolgica dominante, emerge no Brasil com a Semana de Arte Moderna realizada em So Paulo em 1922, foi o ponto a partir do qual se desenvolveram grupos e autores ligados realidade cultural moderna. Dos autores modernistas da primeira fase Mrio de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.

  • 51

    nossos dias, Os principais autores desse perodo so Clarice Lispector, Joo Guimares Rosa,

    Jos Candido de Carvalho e Pedro Nava (FIGUEIREDO, 2010).

    O crtico uruguaio Hugo Achugar (1996) (apud FIGUEIREDO, 2010) reflete sobre a

    relao entre o regionalismo e o coneito da narrativa heterognea de CORNEJO-POLAR, uma

    narrativa caracterizada pela duplicidade ou pluralidade dos signos socioculturais do seu processo

    produtivo, o que cria necessariamente uma zona de ambiguidade. Achuga discute o desafio da

    integrao das experincias culturais heterogeneas nos panoramas da acelerada homogeneizao

    da globalizao. Achugar apela ao cruzamento da tese das regies literrias com a proposta de

    panoramas de Arjun Appadurai, para entender melhor as novas interpretaes perspectivadas

    da realidade atual: a) etnopanorama, b) tecnopanorama, c) finanopanorama, d) midiapanorama e

    e) ideopanorama. A etnopanorama compreende as pessoas em trnsito como os imigrantes, os

    exilados.

    Pellegrini (2007) (apud TNNUS, 2005) adverte que Hatoum foge do dramatismo com a

    epstola. As obras de Hatoum no se centram na ao e usam o recurso da explorao do tempo

    como cano sequestrada. Situao curiosa, pois uma das marcas da narrativa na modernidade

    a fragmentao do tempo em prol da ao, algo explicado pelo apelo ao leitor moderno que no

    tem mais tempo e vive apressado, em busca de resultados imediatos mesmo quando na leitura.

    Milton Hatoum, em entrevista ao Jornal Folha de So Paulo, faz a seguinte afirmao em relao

    ao regionalismo literrio:

    A literatura regionalista esgotou-se h muito tempo. O regionalismo uma viso muito estreita da geografia, do lugar, da linguagem. uma camisa de fora que encerra valores locais. Minha ideia penetrar em questes locais, em dramas familiares, e dar um alcance universal para eles (2005, p. 12).

    Hatoum era um bom leitor da obra do intelectual palestino Edward Said (1995), que dizia:

    O Oriente no um fato inerte da natureza. No est meramente l, assim como o prprio Ocidente no est apenas l. [...] os lugares, regies e setores geogrficos tais como o Oriente e o Ocidente so feitos pelo homem.

  • 52

    Ele traduziu as palestras de Said Representaes do intelectual (2005) para o portugus e

    recomendou para a editora Companhia das Letras a traduo de Orientalismo (SAID, 2007). Com

    respeito a isso, Milton Hatoum (2010) nos contou:

    O Orientalismo, livro de Edward Said, foi uma das leituras mais importantes sobre a construo imaginria do discurso sobre o outro oriental, sobretudo sobre o mundo islmico. O Orientalismo um dos ensaios seminais sobre as relaes entre o Oriente e o Ocidente, sendo que o Oriente, como Said mostrou, uma construo, uma inveno do Ocidente. um tipo de representao que o discurso orientalista teceu ao longo da histria, sobretudo a partir do sculo XVIII.

    Em Passagem para um certo Oriente, Hatoum (1993) escreve sobre a importncia que

    teve para ele o contato com o Oriente borgiano. Mais do que isso: conta como se interessou por

    autores orientalistas aps ter peregrinado pelos labirintos de Borges. E foi assim, com as

    indicaes de leitura do escritor argentino, que ele se mudou para a Europa, onde conheceu

    arabistas e tradues de obras rabes. Numa crnica titulada As Mil e uma noites: em busca de

    um estilo, na primeira pgina da seo de Cultura do Estado de So Paulo, em Outubro 1991,

    Hatoum disse:

    Eu apreciava alguns escritores europeus que, sintonizados com o renascimento oriental, escreveram obras que valorizam a cultura excntrica, em oposio a uma cultura que se pretende mais complexa e artificial, produzida no centro, na Europa. Nossas peregrinaes ao Oriente procuravam s vezes uma outra ptria, ou um lugar ideal para o sonho e o devaneio, como algum que busca na paisagem estrangeira o avesso da casa em que habita. Para Gerard Nerval, o Egito um pas de mistrios e enigmas (...). Outras vezes esses escritores se armam de um projeto etnocntrico, em que a glria pessoal de uma descoberta geogrfica se mescla aos servios prestados ptria. O projeto literrio serve ao expansionismo colonial. (...) Diante de textos to dspares, fiz como um leitor que pratica um ritual de canibalismo literrio, assimila o que lhe d prazer. Com isso, quero dizer que a literatura rabe foi to importante quanto os textos orientalistas, e esse duplo interesse residia sobretudo no encanto da linguagem, como nos contos de As Mil e Uma Noites ou na Viagem ao Oriente, de Nerval.

    A partir do trecho anteriro, acreditamos que alguns leitores ingnuos passaram a procurar

    no Relato a imagem dos rabes sem se dar conta de que o mundo rabe abrange 23 pases, cada

    pas contendo variedades ecolgicas e culturais prprias. Notamos que Halbwachs (1990), no

    deixa de considerar que aquele que se lembra no o grupo, mas o indivduo, havendo diferenas

  • 53

    entre os sujeitos nas formas de se remeter ao passado e rememorar. Contudo, a memria

    individual poderia ser encarada, conforme seu entendimento, como um ponto de vista acerca da

    memria coletiva.

    No mais, se a memria coletiva tira sua fora e sua durao do fato de ter por suporte um conjunto de homens, no obstante eles so indivduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranas comuns, e que se apiam uma sobre a outra, no so as mesmas que aparecero com mais intensidade para cada um deles. Diramos voluntariamente que cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda conforme s relaes que mantenho com outros meios. No de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia, quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinao de influncias que so, todas, de natureza social (Halbwachs, 1990:51).

    Desse entendimento, a cultura rabe representada no Relato pode ser considerada tambm

    uma autofico construda a partir de uma experincia pessoal de descendente de imigrantes

    libaneses na cidade de Manaus e certamente cruza com as culturas rabes em certos aspectos e se

    distancia em muitos outros das realidades rabes atuais. Portanto, importante levar em conta

    que o livro faz um recorte de um grupo pequeno e especfico da cultura rabe, e evitar uma leitura

    estereotipada de generalizaes.

    Destarte, o Relato de um certo oriente representa uma crtica implcita ao discurso

    orientalista. O Brasil do Rio Amazonas retratado como um oriente hbrido, diferena das

    imagens naturalistas inventadas e estereotipadas pela viso europeia sobre o Amazonas. Hatoum

    consegue escapar da viso regionalista romntica que fazia nfase na floresta amaznica como

    personagem em primeiro plano e recria um certo oriente a partir das misturas culturais, que

    circulavam ao redor de um sobrado em Manaus e da loja Parisiense (FREITAS, 2001).

    Por isso, Milton, leitor e tradutor de Edward Said, faz um paratexto, ou seja, uma

    intertextualidade com o ttulo Orientalismo do crtico palestino e vai descartando no seu Relato

    esta viso extica horizontal orientalista do romantismo e das descries naturalistas que

    continuam vivas hoje nos discursos essencialistas que supem a existncia de um choque de

    civilizaes que divide o mundo em blocos com fronteiras religiosas e raciais rgidas.

  • 54

    Na sua obra Orientalismo, Said (1978, 2007) vai desconstruindo o discurso tecido pelos

    orientalistas europeus e estadunidenses durante os sculos XVIII e XIX, do imaginrio deturpado

    do outro no europeu. Said faz uma crtica contrapontual ao discurso acadmico colonial

    eurocntrico, que generaliza e estereotipa a imagem de Oriente sob o nome de orientalismo,

    uma rea de estudo que abarca fillogos e historiadores especializados nas lnguas orientais e

    suas letras desde uma tica colonialista. A genialidade da obra de Said se revela principalmente

    na sua conscincia crtica do Orientalismo que, enquanto se apresentava como um conhecimento

    esclarecido de pensamento iluminista, tinha ligao direta com as prticas de poder do

    colonialismo. Segundo o autor, o colonizador criou uma conscincia falsa do Oriente, numa

    tentativa de diferenciao que servia os interesses do colonialismo. Said analisou uma srie de

    discursos literrios, polticos e culturais, nos quais encontrou um denominador comum: a

    representao dos povos no europeus como brbaros. Assim que Hatoum (2010) nos relatou:

    Pode ser que haja, inconscientemente, uma influncia do Edward Said no ttulo. A verdade que foi difcil encontrar este ttulo. Para mim foi um achado. Eu j havia praticamente terminado o romance e tinha outros ttulos em mente, como Retratos da memria. Eu lembro que esse era um dos ttulos possveis, mas gostei desse ttulo Relato de um certo oriente, porque nele h vrias perguntas. De que Oriente ns estamos falando? De um determinado Oriente? Mas qual deles? isso que o livro insinua. o mistrio em torno desse Oriente que est um pouco nebuloso, e ainda no se sabe qual o Oriente do romance. O leitor no sabe exatamente do que se trata esse Oriente. A literatura trabalha com a ambiguidade, isso a enriquece. Tudo o que muito determinado ou explicado prejudica o romance. O romance questiona, indaga, insinua, suscita perguntas; mas ele no pode explicar. O romance explicativo chatssimo.

    De acordo com Morin (2011), o conhecimento continua sendo a navegao em um

    oceano de incertezas, entre arquiplagos de certezas... da gesto criadora da incerteza e da

    desordem nascea organzio de uma nova fico, uma nova escrita. Milton Hatoum numa

    entrevista com Kanzepolsky (2002) afirma que a literatura trabalha com a imaginao, o

    esquecimento como uma das formas da memria - no como recordao cristalizada do passado -

    mas como memria implcita do devir, oculta e involuntria de cenas de prazer e de traumas que

    repercute no presente. Reinventar e lembrar so manifestaes do mesmo movimento, a memria

    estaria na condio de dar conta do invisvel. A realidade e a fico so nebulosas, sem ser

    necessariamente sombrias, na fronteira entre memria e imaginao so quase irms

    (KANZEPOLSKY, 2008).

  • 55

    Desde a relativizao de um certo oriente no ttulo, Hatoum coloca sua fico no espao

    ps-colonial e supera a retrica holstica das narrativas totalitrias e hegemnicas do

    imperialismo, do colonialismo, do orientalismo, das identidades coletivas limitadas, e a reduo

    da Histria aos documentos escritos. O Relato possui, desde o ttulo, marcas de seu carter

    hbrido rabe-brasileiro. A escolha do artigo indefinido junto com o pronome indefinido certo

    relativiza a ideia do Oriente como um bloco nico, pois faz um recorte de um Oriente dentre

    muitos que existem e que podem existir. A escolha dos termos d ao ttulo uma ambiguidade

    atravs da qual a expresso um certo oriente capaz de, ao mesmo tempo, precisar a escolha do

    oriente especfico a ser relatado e tambm de indeterminar, j que evoca a ideia da pluralidade de

    orientes existentes, de modo que o oriente escolhido apenas um entre tantos. Passamos a

    analisar questes como a escrita da memria cultura e a autofico, conceitos chaves para o

    entendimento do Relato.

  • 56

    Captulo III: Memria cultural e autofico J no coleciono selos. O mundo me inquizila. Tem pases demais, geografias demais. Desisto. Nunca chegaria a ter um lbum igual ao do Dr. Grisolia, orgulho da cidade. E toda gente coleciona os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de loua quebrada h muito tempo. Cacos novos no servem. Brancos tambm no. Tm de ser coloridos e vetustos, desenterrados fao questo da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaadas, restos de flores no conhecidas. To pouco: s o roxo no delineado, o carmezim absoluto, o verde no sabendo a que xcara serviu. Mas eu refao a flor por sua cor, e s minha tal flor, se a cor minha no caco de tigela. O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali deps para que um dia eu o desvendasse. Lavrar, lavrar com mos impacientes um ouro desprezado por todos da famlia. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preo de descobrimento: a coleo e seu sinal de sangue; a coleo e seu risco de ttano; a coleo que nenhum outro imita. Escondo-a de Jos, por que no ria nem jogue fora esse museu de sonho. Coleo de cacos, Boitempo II, 1973. Carlos Drummond de Andrade

  • 57

    Maurice Halbwachs (1990) criou o termo memria coletiva para distingu-lo da memria

    individual. Ele considerava a memria uma experincia partilhada, transmitida e tambm

    construda pelo grupo ou sociedade:

    Outros homens tiveram essas lembranas em comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembr-las: para melhor me recordar eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muitas das ideias e modo de pensar a que no teria chegado sozinho (HALBWACHS, A Memria Coletiva, 1990).

    Respeito ao conceito social da memria coletiva de Halbwachs, Sonia Crisitina Hamid

    (2007) explica que:

    Para Halbwachs, os quadros sociais funcionam como indutores das recordaes, sendo as formas pelas quais a matria catica das lembranas pode emergir conscincia de modo ordenado...Aqui importante colocar que Halbwachs estabelece uma diferenciao entre memria e lembrana. A memria seria o resultado de um trabalho realizado sobre um conjunto desordenado de imagens... Ao entender a memria no como sonho, mas como trabalho, Halbwachs estabeleceu uma crtica profunda ao pensamento bergsoniano de que a lembrana uma conservao total do passado e sua ressurreio, mostrando que a menor alterao do ambiente atinge a qualidade ntima da recordao.

    Michael Pollak (1992) concorda com Halbwachs de que a memria um fenmeno

    social, sendo mutvel e flutuante, tambm aponta para uma suposta fixidez e rigidez de algumas

    lembranas, afirmando que existem marcos e pontos relativamente invariantes e imutveis na

    memria. Estes elementos se repetiriam constantemente na fala dos indivduos, podendo ser

    considerados pontos chaves que ajudam a constituir o sentimento da identidade do sujeito, que

    est permanentemente ligado memria:

    A memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si.

  • 58

    Ao tentar desvendar os elementos constitutivos da memria individual ou coletiva que

    influenciam nas percepes que os indivduos assumem de si e dos outros, Pollak (1992) aponta

    para a importncia de acontecimentos vividos, vividos por tabela e acontecimentos herdados.

    Enquanto os primeiros seriam vividos pessoalmente pelos sujeitos, os segundos seriam acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que tomaram tamanha importncia em seus grupos, que j no se sabe dizer se houve mesmo participao ou no. J as memrias herdadas no fariam parte do espao-tempo de uma pessoa, mas por meio de um forte processo de socializao poltica e histrica, ocorre um fenmeno de projeo e identificao com determinado passado.

    Tambm, Myrian Seplveda dos Santos (1998) ressalta a relao entre identidade e

    memria:

    (...) identidade que rompe com as dicotomias entre indivduo e sociedade e passado e presente, est to associada ideia de memria como esta ltima primeira...O sentido de continuidade e permanncia presente em um indivduo ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que lembrado (esquecido e silenciado), quanto o que lembrado depende da identidade de quem lembra.

    Nesse mesmo sentido, Ecla Bosi (2004) aponta a memria como uma construo social:

    Conhecemos a tendncia da mente de remodelar toda experincia em categorias ntidas, cheias de sentido e teis para o presente. Mal termina a percepo, as lembranas j comeam a modific-la: experincias, hbitos, afetos, convenes vo trabalhar a matria da memria. Um desejo de explicao atua sobre o presente e sobre o passado integrando suas experincias nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida. O empenho do indivduo em dar um sentido sua biografia penetra as lembranas com um desejo de explicao. (ECLA BOSI, 2004: p. 55)

    Para entendimento da natureza da memria humana, tentaremos construir nossas

    interpretaes literrias com base no dilogo com as teorias cientficas sobre a memria. Como

    afirma Lehrer (2010): a cincia necessita da literatura para emoldurar o mistrio, mas a

    literatura necessita da cincia para que nem tudo seja um mistrio.

    Aps suas leituras dos estudos de Maurice Halbwachs sobre memria coletiva, o

    egiptlogo Jan Assmann (apud Aleida Assmann, 2011) cunhou o termo memria cultural para

    diferenci-lo do arquivo histrico, que um armazenador, e para referir-se construo da

  • 59

    memria coletiva por meio das formas simblicas como as narrativas de memria, escritas

    subjetivas e pessoais das imagens marcantes das lembranas pessoais. Adotamos neste estudo o

    conceito de cultura de Pereria Gomes (2011) que se refere a um modo prprio de ser do

    homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconscientemente,

    constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se,

    posicionar-se perante o Absoluto, e, enfim, reproduzir-se..

    A ficcionalizao da memria cultural um processo da reinveno consciente do

    inconsciente simblico na nossa prpria vida e na dos outros. A memria cultural ficcionalizada

    visualizao de imagens passadas para o futuro. Nessa narrativa, o distanciamento e a

    aproximao, como atos temporais da memria, se do por meio da rememorao. O escritor

    recorre rememorao atravs da imaginao para a configurao de uma narrativa de

    identidade, de lembranas de experincias orais e de hbitos a partir de encontros e desencontros

    com lembranas de prazeres, de conflitos e de traumas com experincias pessoais que possa ter

    registro material fsico ou no. Como afirma Hatoum na sua entrevista com KANZEPOLSKY

    (2002): o relato tem mais afinidade com um tipo de literatura intimista memorialista, na qual o

    distanciamento temporal da memria importante para poder voltar atravs dela para a

    infncia e a juventude.

    Nosso olhar se volta para o passado, a fim de estocar os dados e nos situar ao longo do

    tempo. Sentimos como nos diz Huyssen (1996), um profundo sentimento de crise, associado

    doena de nossa cultura que experimenta sua fase terminal de amnsia. A arte desempenha um

    papel importante na rememorizao de vozes esquecidas reveladoras de passado presente: A

    fissura que se opera entre experienciar um acontecimento e lembr-lo como representao

    inevitvel. Esta separao deve ser compreendida como um vigoroso estimulante para a

    criatividade artstica. Huyssen (1996) articula alguns dos elementos centrais de um "ps-

    modernismo de resistncia" como: 1) manter uma crtica da modernizao, especialmente no seu

    sentido imperialista e de devastadora do meio ambiente; 2) ateno centralidade das questes de

    gnero e sexualidade na sociedade, na cultura e na poltica e 3) promover a revalorizao de

    culturas no-europias e no-ocidentais. Trata-se de um ps-modernismo que duvida das noes

    clssicas de verdade, razo, identidade e objetividade, da ideia de progresso e emancipao

    universais, de estruturas nicas, grandes narrativas ou fundamentos definitivos de explicao.

  • 60

    Reflete alguma coisa dessa mudana de uma poca caracterizada pela profuso de fragmentos e

    incertezas, numa arte pluralista, superficial, descentralizada, infundada, autoreflexiva, divertida,

    derivativa, ecltica, que torna indistintas as fronteiras entre cultura alta e cultura baixa, bem

    como entre arte e experincia cotidiana (EAGLETON, 1997 apud FIGUEIREDO, 2010).

    Num mundo movedio como as areias do deserto psicolgico do exlio e da dispora do

    homem contemporneo, Milton cria uma narrativa moderna, ou seja, subjetiva e relativa.

    (MOREIRA, 2007 e VIEIRA, 2008). Os espaos se apresentam na narrao simultaneamente ao

    momento vivido pela relatora. Ainda que a histria do relato acontea na poca de 1950, na

    narrao do Relato, Milton funde passado, presente e futuro (FREIRE, 2006).

    Disse Huyssen (1996): As convulses mnemnicas de nossa cultura parecem mais

    caticas, fragmentrias e flutuantes. Elas no parecem ter um foco poltico ou territorial claro,

    mas sem dvida expressam a necessidade transcultural por uma ncora temporal, pela crescente

    mobilidade em todo o mundo. Por isso, no Relato de memria de Hatoum h estrutura

    fragmentada e hbrida de vozes e tempos no lineares. A memria ento recriada lacunamente

    pela mediao de entrelugares de vozes fragmentrias, imprecisas, e conscientes da

    impossibilidade de recuperao do vivido. Huyssen (1996) explica que o modo de memria a

    busca, no a recuperao. A memria humana encontra-se intimamente ligada s maneiras como

    uma cultura constri seu imaginrio e sua temporalidade vertical. O relgio da casa de Emilie

    indcio de uma temporalidade paralisada que corresponde realidade ntima da narradora.

    uma narrativa de uma identidade em crise, embora o escritor reinterprete a realidade

    atravs da evocao de imagens e experincias sensoriais de matrias como fotos, cadernos,

    objetos pessoais, cartas, cheiros marcados para o resgate desta memria cultural do

    esquecimento. Misturam-se processos de construo da narrativa e de (ordenao) das

    lembranas e cria-se com esse distanciamento, espao para a reflexo sobre o passado, sobre a

    impossibilidade da recuperao fiel do tempo vivido. Na voz do narrador de Dois Irmos9 se l:

    a memria mesmo inventa quando quer ser fiel ao passado (HATOUM, 2000).

    9 Dois Irmos foi traduzido para rabe por Profa. Dra. Safa Jubran Abou Chala (USP) e publicado pela Editora Al Farabi, Beirut, 2002. Para maiores informaes sobre as tradues da obra de Milton Hatoum recomendo Consultar:

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    Quantas vezes recomecei a ordenao dos episdios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo incio, ou no vaivm vertiginoso de captulos entrelaados, formados de pginas e pginas numeradas de forma catica (HATOUM, 1989, p.165).

    3.1. Memria familiar e sombras da infncia

    Milton Assi Hatoum, nascido no dia 19 de agosto 1952, em Manaus, no seio de uma

    famlia libanesa, resgata suas lembranas familiares. Ao respeito Antonaccio (1996, p.236) conta:

    Foi assim que o imigrante Mamed Ali Assi veio parar no Amazonas, iniciar um comrcio ambulante ou teco-teco como eu prefiro nominar e constituir, at meados do sculo XX, um verdadeiro imprio empresarial com sua famosa e conhecidssima