Êxodo e advento: encontro de alteridades na

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA MESTRADO VOLNEI JUNIOR VANASSI ÊXODO E ADVENTO: ENCONTRO DE ALTERIDADES NA TEOLOGIA DE BRUNO FORTE Prof. Dr. Leomar Antônio Brustolin Orientador Porto Alegre 2007

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE TEOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA MESTRADO

    VOLNEI JUNIOR VANASSI

    XODO E ADVENTO:

    ENCONTRO DE ALTERIDADES NA TEOLOGIA DE BRUNO FORTE

    Prof. Dr. Leomar Antnio Brustolin

    Orientador

    Porto Alegre 2007

  • 2

    VOLNEI JUNIOR VANASSI

    XODO E ADVENTO: ENCONTRO DE ALTERIDADES

    NA TEOLOGIA DE BRUNO FORTE

    Dissertao apresentada Faculdade de Teologia, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Teologia, rea de Concentrao em Teologia Sistemtica.

    Orientador: Prof. Dr. Leomar Antonio Brustolin

    Porto Alegre 2007

  • 3

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos aqueles que, direta ou indiretamente, possibilitaram a

    realizao desse trabalho. Aos professores e funcionrios da Faculdade de Teologia

    da PUCRS, Capes, pelos recursos fornecidos. Agradeo Ordem dos Cnegos

    Regulares Lateranenses pela possibilidade concedida para a realizao dos

    estudos; aos confrades que me auxiliaram nos momentos de necessidade. Agradeo

    ao Pe. Alfredo Miccinilli e minha irm Vanilse Vanassi, pelo auxlio nas tradues.

    Dirijo especial agradecimento ao Prof. Dr. Leomar Brustolin pelo incentivo e

    orientao dessa pesquisa. Finalizo agradecendo a Deus, desejando crescer na

    humilde aproximao de seu Mistrio.

  • 5

    RESUMO

    A presente dissertao demonstra como a necessidade de dar razes vida

    e a histria humana, torna-se pertinente e atual num tempo marcado pela crise de

    esperana e vazio de sentido. luz da teologia de Bruno Forte, parte-se das

    categorias xodo, advento e encontro para demonstrar como, no humano andar do

    xodo, acolhido pelo divino vir do advento, o encontro entre alteridades plenifica a

    vida humana, abrindo-a esperana. No encontro com o Outro, reafirma-se o

    compromisso cristo com o presente, alimentado pela esperana escatolgica que

    deixa entrever, na Ptria Trinitria, o horizonte de sentido do peregrinar humano.

    Palavras-chave: Histria; Trindade; Revelao; Escatologia; Esperana.

  • 6

    ABSTRACT

    The present paper demonstrates how the need to give life and the human

    history a sense of meaning and purpose becomes relevant and updated in times

    marked by lack of hope and meaning. In the light of Bruno Forte`s theology, we start

    from the exodus, advent and discovery to show how in the human journey of the

    exodus, welcomed by the divine coming of the advent, an encounter within

    alterities fills up the human life and opens it to hope. In the encounter with the Other,

    Christian commitment with the present time is reassured, nourished by the

    eschatological hope that captures, in the Trinitarian Home, the horizon of meaning of

    the human journey.

    Key-Words: History; Trinity; Revelation; Eschatology; Hope.

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................9

    1 XODO E ALTERIDADE........................................................................................15

    1.1 A Identidade e a Diferena do xodo..........................................................15

    1.1.1 Peregrinos na Vida, Mendicantes do Cu............................................17

    1.1.2 A Dialtica do xodo............................................................................21

    1.1.3 O xodo como Desafio dos Contextos.................................................23

    1.2 O xodo nos Cenrios do Tempo.............................................................24

    1.2.1 A Modernidade e os Totalitarismos: da Luz ao Declnio......................25

    1.2.2 Do Declnio Noite do Mundo: o xodo carente de Advento............28

    1.2.3 Procura do Outro: da Noite do Mundo Aurora.............................31

    1.3 Cenrios do Corao: da Tragicidade da Existncia Esperana..........32

    1.3.1 A Interrogao sobre a Dor e a Morte.................................................33

    1.3.2 Seres para a Vida................................................................................35

    1.3.3 Abertos Esperana e ao Amor.........................................................36

    1.4 O Trplice xodo de Jesus e o Trplice xodo do Discpulo......................37

    1.4.1 Discpulos do nico..........................................................................40

    1.4.2 Servos do Amor................................................................................41

    1.4.3 Testemunhas do Sentido..................................................................42

    1.5 O xodo para o Advento..........................................................................44

    1.6 O xodo como Alteridade........................................................................50

    2 ADVENTO: A RE-VELAO DO DEUS QUE VEM..............................................53

    2.1 O Advento acolhe o xodo......................................................................53

    2.2 A Dialtica da Revelao: entre a Offenbarung e a Re-velatio...............55

  • 8

    2.3 O Advento da Palavra: a Linguagem........................................................60

    2.4 O Silncio Eterno: Mistrio do Pai............................................................63

    2.5 A Palavra Encarnada................................................................................68

    2.6 O Mistrio do Esprito: o Silncio do Encontro.........................................72

    2.7 O Evento Sacramental: Silncio, Palavra, Encontro................................74

    2.8 A Palavra nas Palavras............................................................................78

    2.8.1 O Zimzum e a Kenosis...................................................................79

    2.8.2 Dabar e Logos...................................................................................81

    2.9 O Sofrimento que acolhe o Advento da Ptria........................................82

    3 O ENCONTRO, ALIANA ENTRE ALTERIDADES..............................................86

    3.1 O Encontro entre xodo e Advento.........................................................86

    3.1.1 O Encontro que Transforma: a Eternidade no Tempo.....................89

    3.1.2 O Encontro que Liberta: Crise do Sentido e Redescoberta da Escatologia...92

    3.2 O Encontro como Esperana: entre o j e o ainda no......................96

    3.2.1 Futuro Relativo e Futuro Absoluto: a Irrupo do Novum...........97

    3.2.2 A Escatologia como Novo Pensamento.........................................99

    3.2.3 Por uma Escatologia Pascal: entre a Identidade e a Diferena.....103

    3.2.4 Para alm da Morte: entrever o Sentido.........................................106

    3.3 A Trindade como Sentido e como Ptria..............................................108

    3.3.1 A Igreja, cone da Trindade: Antecipao da Ptria......................112

    3.3.2 O Horizonte de Sentido.................................................................114

    3.4 A Reserva Escatolgica.....................................................................115

    3.4.1 A Beleza Salvar o Mundo............................................................116

    3.4.2 Um Itinerrio Cristo a partir da Reserva Escatolgica..............119

    CONCLUSO..........................................................................................................125

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................135

  • 9

    INTRODUO

    A Questo do Sentido

    Podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade est nas

    mos daqueles que souberem dar s geraes vindouras razes de viver e de

    esperar (Gaudium et Spes, n. 31). Quais so as razes de viver e de esperar para o

    ser humano? A questo diz respeito aos homens e mulheres, de todos os tempos,

    quanto prpria existncia, o transcorrer da vida e da histria. Essa razo que

    fundamenta o viver e o esperar humanos, profundamente anloga questo do

    sentido. As indagaes sobre as razes da prpria existncia, do viver e do morrer,

    sempre constituram a grande questo da humanidade. Para os cristos, questo

    das razes e do sentido da existncia associa-se tambm a questo da esperana

    crist e do futuro da humanidade, do mundo e da histria.

    A intuio conciliar expressa a necessidade de uma esperana militante e

    ativa, mas no deixa de evidenciar a dramaticidade da questo. Nem sempre o

    futuro da humanidade esteve nas mos daqueles que, legitimamente, deram

    razes s buscas e questionamentos do ser humano. s indagaes do ser humano

    foram dadas, muitas vezes, respostas presunosamente totalitrias. As

    conseqncias manifestam-se na crise de esperana que vive o mundo atual. A

    perda do sentido e a crise da esperana ganham forma no descuido pela natureza

    com a atual crise ecolgica , no descaso pelo sofrimento do outro, evidenciado nas

    gritantes desigualdades sociais e no individualismo exacerbado. No apenas a

    perda do sentido, mas at a perda do interesse pela prpria questo do sentido.

    Manifesta-se o triunfo do vazio e do efmero. Se eu ao menos pudesse sentir

    alguma coisa?1 Esta expresso utilizada pelo filsofo francs Gilles Lipovetsky

    resume o sentimento crescente de homens e mulheres do novo milnio. No

    1 LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio, p. 71.

  • 10

    possvel, porm, renunciar interrogao sobre o sentido enquanto permanece a

    indagao sobre o sofrimento: Por que o sofrimento no mundo? A busca de uma

    resposta aceitvel para essa interrogao nos mostra como ela se identifica com a

    questo do sentido: tem sentido o sofrimento? Tem sentido a vida? A luta cotidiana e

    o destino universal de morrer tm um significado que torna digna a fadiga de viver?

    Da cruz da histria se levanta a interrogao sobre o sentido da prpria histria.2

    Delimitao

    Sem dvida, o Vaticano II provocou e fomentou o dilogo da f crist e da

    prpria Teologia com as questes atuais, com um mundo em transio e

    transformao nos mais diversos nveis. Na esteira da proposta conciliar, a obra

    teolgica de Bruno Forte3 quer ser tambm dialogante com o tempo presente

    carregado de indagaes e em busca do sentido , tendo como pano de fundo o 2 FORTE, B. Teologia della Storia, p. 5. 3 Bruno Forte nasceu em 1949 em Napoli, Itlia. Ordenado sacerdote em 1973, doutorou-se em Teologia no ano de 1974 e em Filosofia no ano de 1977. Atualmente arcebispo de Chieti (Itlia). Telogo de renome internacional, Bruno Forte foi professor de Teologia Dogmtica na Pontifcia Faculdade Teolgica da Itlia Meridional e membro da Pontifcia Comisso Teolgica Internacional. Em relao ao seu pensamento, destacam-se algumas influncias: Em primeiro lugar, o pensamento da Itlia meridional. Sendo napolitano, exerce-lhe especial influncia a escola napolitana, que tem em seus pensadores uma ampla valorizao da histria como fio condutor de suas elaboraes. A isso, soma-se a formao acadmica realizada na Universidade de Tbingen, caracterizada, de modo geral, pelo retorno e valorizao da histria por meio da redescoberta do dado bblico e patrstico. Em Tbingen, Forte recebeu a influncia de uma teologia eclesial, reflexo da tradio viva da f, bem como da exigente abertura teolgica aos problemas do prprio tempo e o dilogo com as culturas. A elaborao teolgica de Tbingen marcada especialmente pela eclesialidade, cientificidade e abertura aos problemas do tempo. Foi igualmente de grande valia o dilogo de Bruno Forte com os telogos evanglicos, especialmente J. Moltmann e E. Jngel, que lhe deram percepo de como a forma histrica do pensar teolgico no pode realizar-se margem da emergente questo ecumnica. Bruno Forte foi tambm influenciado pelo contato e aproximao com a Teologia parisiense, com seus grandes precursores da renovao conciliar. O retorno s fontes bblicas, patrsticas e litrgicas empreendidas pela nova teologia, que tanto influenciaram e prepararam a renovao empreendida pelo Vaticano II, vo ter na histria a expresso da atualidade de tal renovao. De fato, o pensamento de telogos como M. D. Chenu, Y. Congar e H. de Lubac, so testemunhas de como a memria teolgica pode ser inovadora. Para Bruno Forte, o encontro com este mundo significou um aprofundamento do sentido da histria, j presentes no seu pensamento teolgico. A teologia de Bruno Forte evidentemente uma teologia conciliar enquanto se coloca em continuidade com a renovao da prpria Teologia em seu dilogo ecumnico, bem como com o mundo plural, cada vez mais desafiador e problemtico. Napoli, Tbingen e Paris, os meus itinerrios de pensamento, que esto unidos entre si sob o sinal da f e da histria. (Cf. FORTE, B. Teologia Viatorum. In: SARTORI, L. Essere Teologi Oggi, p. 71). Assim, a teologia de Bruno Forte pode ser caracterizada pelo seu forte acento histrico, na linha da grande tradio italiana marcada pelo pensamento e reflexo sobre a histria, podendo aqui ser exemplificada por G. B. Vico e, propriamente na rea teolgica, Joaquim de Fiore, Toms de Aquino e Afonso de Ligrio. (MONDIN, B. Dizionario dei Teologi, p. 244).

  • 11

    prprio Mistrio da f crist. Assim, esta dissertao pesquisa respostas sobre o

    sentido do existir humano a partir da teologia de Bruno Forte. O itinerrio do

    presente trabalho serve-se da reflexo teolgica empreendida por Bruno Forte,

    partindo das seguintes indagaes: As categorias xodo, advento e encontro,

    desenvolvidas por Bruno Forte, so capazes de responder questo da busca de

    sentido atual? Diante da indiferena e do vazio, o intento da teologia de Bruno Forte

    capaz de despertar novamente o interesse pela interrogao sobre o sentido?

    O ttulo da presente pesquisa xodo e Advento: Encontro de Alteridades na

    Teologia de Bruno Forte, expressa o itinerrio da reflexo: parte-se das categorias

    xodo e advento, atravs das quais o telogo italiano elabora sua teologia,

    articulando os dados da f e a histria. O xodo entendido por Bruno Forte como

    o mundo da temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro e na f

    demonstra buscar uma ptria... Enquanto exodal, a condio humana abertura que

    quebra o cerco da identidade absoluta, peregrinao, que atravessa as insdias do

    nada em direo ptria entrevista na promessa, mesmo que ainda no possuda

    na verdade.4 Por sua vez, o advento o mundo da eternidade enquanto se volta ao

    homem e visita sua casa, o livre autodestinar-se de Deus criatura e o gratuito

    dom da autocomunicao divina.5 O humano andar do ser humano em sua

    alteridade6, acolhido pelo divino vir de Deus que, na sublime Alteridade e doao,

    acolhe o xodo humano, dando-lhe sentido. Assim, a pesquisa procura-se articular

    a partir da compreenso que d Bruno Forte s categorias xodo, advento e

    encontro a busca humana pelo sentido (xodo) e o encontro com a Palavra e o

    Silncio da revelao (advento), que teve lugar em Jesus de Nazar. Encontro esse

    que abre a vida e a histria humanas para o Mistrio do Deus Trino, Princpio e Fim

    da existncia.

    4 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29. 5 Ibidem, p. 29. 6 A alteridade entendida aqui como sair de si em direo ao outro, inter-relao, encontro. Est em correlao ao xodo enquanto busca e encontro com o Outro, sem contudo esgot-lo; e com o advento enquanto em sua kenose, o Verbo manifesta a divina alteridade que vem ao encontro do ser humano, assumindo sua condio.

  • 12

    A teologia de Bruno Forte mostra-se dinmica e dialogante com a histria e

    suas problemticas. Em face de alguns estudos j realizados7, mostra-se relevante a

    abordagem dada por Forte ao tema do sentido, da complexidade da histria e do

    mundo atual com os quais a Teologia deve dialogar e interagir. A especificidade do

    presente estudo est em abordar, de forma sincrnica, as categorias xodo, advento

    e encontro, trabalhando os principais conceitos teolgicos ligados a elas. A partir

    dessas categorias, procura-se identificar como essa elaborao teolgica pode

    dialogar e responder questo do vazio e da crise de sentido do mundo atual.

    Assim, entre a busca humana e sua condio exodal, a revelao apresentada

    como possibilidade do encontro com Deus e com os outros, numa dinmica que

    transforma a vida e a histria. A f crist, atravs da reflexo escatolgica, faz

    entrever o futuro como perene novidade que transforma desde j o mundo em vista

    da Ptria.

    O mtodo utilizado na presente pesquisa, parte de uma leitura sincrnica em

    base a alguns conceitos fundamentais da teologia de Bruno Forte. Deixa-se em

    aberto a questo cronolgica, isto , os diversos momentos evolutivos de seu

    pensamento no conjunto de sua teologia. Algumas consideraes a respeito da

    cronologia sero feitas na concluso. Quanto s obras8, privilegiar-se- aquelas que

    mais se aproximam da temtica do presente estudo, de modo particular as obras da

    Simblica Eclesial, bem como as mais recentes, dentre elas, artigos publicados e

    estudos sobre Bruno Forte.

    Estruturao

    O resultado da pesquisa est articulado em trs captulos, objetivando

    trabalhar as trs categorias de Bruno Forte: xodo, advento e encontro. A 7 Por exemplo, o estudo de Jess Martinez GORDO, intitulado LArmonia della Rivelazione in un Tempo Disarmonico, em que trata a complexidade do mundo atual, a crise de sentido e o desafio da Teologia diante da pluralidade, a partir do pensamento de Bruno Forte. GORDO, Jess Martnez. LArmonia della Rivelazione in un Tempo Disarmonico. In: ASCIONE, Antonio (org). Una Teologia come Storia. Milano: San Paolo, 1998, p. 237-253. Tambm sobre os diversos aspectos da teologia de Bruno Forte, destacam-se os estudos presentes em ASCIONE, Antonio (org). Una Teologia come Storia. Milano: San Paolo, 1998. 8 A obra de Bruno Forte est sistematicamente organizada em trs grupos: A Simblica da F, a Dialgica do Amor e a Potica da Esperana, correspondendo ao pensamento das trs virtudes teologais,. Evocam tambm trs diversas formas de pensar: o argumentar narrando da simblica, o dialogar argumentando da dialgica, e o narrar dialogando da potica. (Cf. FORTE, B. La Parola della Fede, p. 254).

  • 13

    grandiosidade da obra de Forte exige optar por determinadas questes teolgicas

    em detrimento de outras, uma vez que as trs categorias so transversais em

    grande parte de sua obra. Tais opes se fundam na aproximao pergunta sobre

    a qual esto baseadas as demais interrogaes que iro surgir no decorrer da

    pesquisa: diante da atual crise de sentido, possvel redescobrir o sentido do viver e

    do morrer humanos?

    O primeiro captulo trata do xodo humano. Primeiramente define-se a

    categoria xodo na obra de Bruno Forte. Reflete-se a perda de sentido, delineada a

    partir das presunes totalizantes e ideolgicas da poca moderna, passando pela

    crtica do Iluminismo e desembocando no vazio e na crise de sentido da poca ps-

    moderna. A interrogao sobre o sofrimento e a morte leva o ser humano a sair de

    si, a autotranscender-se. Partindo dos cenrios do tempo e dos cenrios do

    corao, abordam-se os sinais da redescoberta do sagrado. Descreve-se como, em

    Jesus, o xodo humano tem delineado o caminho e a meta pelos quais acolhe o

    advento da revelao. O primeiro captulo encerra com a questo: Onde e como o

    Outro se apresenta?9

    O segundo captulo reflete sobre a categoria advento. Aps uma aproximao

    entre advento e xodo, aborda-se a revelao da Palavra e do Silncio, em seu

    carter dialtico. Descreve-se a funo da linguagem nesse processo dialtico da

    revelao, ponto de partida para o entendimento da Trindade como Silncio, Palavra

    e Encontro. Num mundo onde a descartabilidade da palavra evidente, o final do

    segundo captulo apresenta algumas correspondncias de termos da tradio

    hebraico-crist, propriamente firmada sobre a palavra. Essas correspondncias

    evidenciam o valor da Palavra como fundamento da re-velao do Mistrio divino.

    Finalmente, descreve-se como, na cruz de Cristo, a cruz do mundo encontra seu

    sentido, entrevendo, pela ressurreio, uma esperana nova. Entre o j e o ainda

    no da revelao, o ser humano peregrina em direo Ptria. O segundo captulo

    remete s seguintes indagaes: Como se d o encontro entre xodo e advento? De

    que forma a esperana crist apresenta-se como resposta questo do sentido da

    existncia?

    O terceiro captulo trata sobre a categoria encontro. Descreve-se sobre o

    recproco acolhimento entre o xodo humano e o advento divino como aliana entre

    9 Cf. FORTE, B. Escuta do Outro, p. 7.

  • 14

    alteridades. Abordam-se implicaes da redescoberta da escatologia como

    reafirmao da esperana e da novidade crist. relatividade do futuro que passa,

    contrape-se o futuro absoluto que faz entrever a Ptria trinitria, sentido da

    histria, da vida e da morte do ser. Entre o j e o ainda no, descreve-se como os

    cristos, de modo particular, so chamados a viver a reserva escatolgica, fiis ao

    mundo presente e ao mundo que deve vir. O terceiro captulo remete a uma

    pretensa concluso desta pesquisa. Retomando-se sinteticamente os diferentes

    aspectos desenvolvidos, so apresentadas algumas apreciaes crticas, bem como

    caminhos para uma prxis de resgate do sentido e da esperana.

  • 15

    1 XODO E ALTERIDADE

    1.1 A Identidade e a Diferena do xodo

    Para compreender o xodo na teologia de Bruno Forte, preciso entend-lo

    como categoria inserida no seu mtodo teolgico. Seus escritos constituem uma

    teologia histrica, ou melhor, uma teologia como histria.10 No desgnio de Deus,

    que se realiza atravs da economia da salvao, o mistrio escondido em Deus

    alcana a humanidade na histria. Esta vislumbrada a partir da fonte eterna do

    mistrio da Trindade e acolhida nos questionamentos do tempo, do sentir e do existir

    humano. A misso da sua teologia, portanto, explicitar essa economia, esse

    desgnio misterioso de salvao, argumentando a partir do sentido que tem a vida do

    ser humano na sua condio histrica atual. O prprio Bruno Forte assim se

    pronuncia:

    A forma da minha teologia, toda marcada pelo pensar histrico posto a servio da reflexo da f, tende ento a superar uma impostao especulativa, conceitual e abstrata em vista de uma proposta bblica, existencial e dinmica, que na concretude do tempo, apanhe e apresente na experincia fontal da igreja nascente, parte de uma linguagem narrativa e contagiosa, e seja corajosamente e serenamente aberta ao advento. A minha teologia quer ser uma teologia bblica e eclesial, em dilogo com o meu tempo, aberta ao novo e nutrida do desejo ecumnico: disposta sempre, como o velho Simeo, a cantar o seu nunc dimittis frente Luz que vem do alto.11

    Para Bruno Forte, o mtodo histrico representa a aproximao respeitosa do

    j, no prescindindo do valor do passado e da fora do presente, estando ao

    mesmo tempo aberto ao futuro. assim que a compreenso histrica do passado

    10 Cf. FORTE, B. La Parola della Fede, p. 57. 11 FORTE, B. Teologia Viatorum. In: SARTORI, L. Esseri Teologi Oggi, p. 74.

  • 16

    ser sempre carregada de um significado existencial, interpelada pelo hoje,

    interpelando o agora e aberta ao que h de vir - o ainda no. A histria, na

    Teologia exige, portanto, que a reflexo crtica venha a situar-se em relao ao

    passado fontal, na densidade do presente, para orientar o futuro. A memria

    conjugada companhia da f e da vida se faz profecia do amanh. Entre o xodo

    que a condio humana em permanente busca e desejo pelo Mistrio Absoluto e o

    advento, no qual a Palavra de Deus e o seu Silncio habitaram o tempo das

    pessoas, a Teologia parte de dois movimentos. De um lado, o ser humano, peregrino

    na busca pelo sentido da existncia, desejoso por encontrar a ptria, na constante

    luta atravs da vida, contra o vazio do nada e a tragicidade da vida e a morte. De

    outro lado, Aquele que o Incio, o pressuposto e o fundamento de tudo, que vem

    ao encontro do ser humano na Palavra revelada e no seu insondvel Silncio. No

    ato de pura gratuidade e amor, a Palavra vem dar sentido ao tempo e existncia,

    apontando para o horizonte ltimo: a Ptria a ser vislumbrada.

    Dessa forma, a teologia da histria compreendida por Bruno Forte como

    memria, companhia e profecia: Palavra do homem a Deus na companhia da

    existncia em xodo; palavra de Deus ao homem na memria transformadora do

    advento; palavra sobre Deus e sobre o homem, de Deus com o homem e do homem

    com Deus na profecia da vida nova que h de vir.12 Remetendo-se fonte da f, ou

    seja, revelao, a Teologia memria (docta fides), enquanto escuta e adeso

    do crente revelao conservada e transmitida por meio da Tradio viva da Igreja.

    A Teologia tambm companhia (docta caritatis) enquanto chamada no s a

    acolher a revelao, mas tambm discernir os sinais dos tempos, estabelecendo

    relao dialogal com a atualidade histrica e cultural e procurando responder aos

    desafios e questionamentos de cada tempo de modo inteligvel e significativo.

    Olhando para o futuro, a Teologia no pode descurar de sua ndole escatolgica. Ela

    chamada a ser proftica (docta spes) na dinmica do encontro do divino que vem

    at o ser humano (advento) e do humano que busca a Deus (xodo).

    Nesse itinerrio, sob o sinal da ntima correlao entre f e histria, Bruno

    Forte empreende sua elaborao teolgica, utilizando-se de forma muito singular as

    categorias de xodo, advento e encontro. Com uma linguagem renovada, o telogo

    italiano vale-se dessas categorias para fazer a correlao entre natureza e graa,

    12 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 63.

  • 17

    Deus e o ser humano, tempo e eternidade, Absoluto e histria e tantas outras

    relaes fundamentais da f. Ele tem a preocupao de que o Absoluto no se

    dissolva na histria, mas seja possibilidade nova do ser humano e da histria

    abrirem-se nEle para o futuro.

    Em seu itinerrio teolgico, Bruno Forte dispensa especial ateno ao

    dilogo, seja com as outras religies e expresses de f, seja com o mundo filosfico

    e interdisciplinar. O telogo tem presente, de modo particular, a poca atual, tentada

    pela seduo do nada e da falta de sentido. Dessa forma, o telogo entende que a

    estrutura que sustenta a existncia humana um movimento de xodo, sua

    autotranscendncia, a permanente tenso de sair de si mesmo, de superar-se, rumo

    ao Mistrio absoluto.13 Forte busca favorecer mais do que um simples confrontar

    de idias, mas um verdadeiro encontro, de modo especial, com os indiferentes. De

    fato, a indiferena se apresenta hoje como a nova figura do atesmo prtico.

    Propondo uma vida sem Deus, o indiferente tende a esquivar-se da f pensada, o

    que lhe coloca aqum da possibilidade de pr-se a caminho, de buscar o sentido, de

    estar em xodo.

    1.1.1 Peregrinos na Vida, Mendicantes do Cu

    Quem se aventura na reflexo da prpria existncia, da condio do mundo e

    do ser, instigado a olhar para a histria, para as buscas e os questionamentos que

    movem a existncia em torno do sentido. Falando de Filosofia e de Teologia na era

    da ps-modernidade, um pensar no negligente investigar ento, antes de mais

    nada, no tanto que respostas oferecem, mas sobretudo as verdadeiras questes

    com que se deparam.14 preciso partir das inquietaes do mundo de hoje: talvez

    seja essa a condio faltante no dilogo da Teologia com a atualidade. Talvez se

    tenham demasiadas respostas prontas para perguntas que poucos fazem. Onde a

    vida se faz interrogao, a se torna possvel a revelao do corao e o encontro

    que transforma a vida. E quais so os questionamentos do corao humano, quais

    as angstias e esperanas que movem o existir? O que a vida do ser humano

    13 FORTE, B. Mendicante do Cu, p. 176. 14 Idem. Escuta do Outro, p. 7.

  • 18

    sobre a terra? preciso escutar as perguntas e inquietaes que esto no corao

    da humanidade, levar em conta a dramaticidade da existncia que se reflete nos

    caminhos da prpria histria: so elas que abrem o ser humano ao Mistrio.

    Para Bruno Forte, o vazio e a debilidade da existncia instalados no corao

    do ser humano ps-moderno, trazem lume o fato de que h uma carncia de

    paixo pela verdade. Em sua obra A Palavra da F, o telogo italiano afirma que se

    o homem estruturalmente um peregrino na vida, o que constitui a verdadeira

    tentao paralisante sentir-se chegado, no mais em xodo neste mundo, mas

    possuidores, dominadores de um hoje que quer parar a permanente transcendncia

    do caminho.15 Falta aos homens e mulheres do nosso tempo o desejo de busca,

    aquela inquietao manifestada por Santo Agostinho na abertura de suas

    Confisses na qual revela o desejo profundo do corao humano: Fizeste-nos para

    Ti, e o nosso corao est inquieto enquanto no descansar em Ti.16 Nisso, a

    humanidade ps-moderna vive no exlio da apatia e da indiferena.

    Para Bruno Forte, o advento do Deus vivo nega o movimento exodal do

    tempo enquanto contradiz todo seu possvel fechamento: a presuno do parar ou

    do se possuir estavelmente converte o instante em ato idoltrico.17 Aquele que

    sucumbe no xodo da existncia nada mais lhe resta do que permanecer no exlio

    do indiferentismo: o verdadeiro exlio no comea quando se deixa a ptria, mas

    quando no h mais no corao a nostalgia, o desejo pela ptria. O exlio de quem

    esqueceu o destino, a meta maior, o cu do desejo e da esperana.18 O xodo

    configura-se, portanto, como o sair do exlio da apatia. xodo busca, nostalgia,

    questionamento sobre a vida e seu sentido. O homem est em xodo enquanto

    chamado permanentemente a sair de si, a interrogar-se, e estar em buscar de uma

    ptria.19 Na expresso de Maritain, citada por Bruno Forte, somos mendicantes do

    cu20 e, como na aurora do dia, vislumbramos as luzes do Eterno, sedentos, porm,

    15 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 17. 16 SANTO AGOSTINHO. Confisses n.1, p. 15. 17 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 30. 18 Idem. Confessio Theologi ai Filosofi, p. 17. 19 Ibidem, p. 18. 20 O que sou afinal?... Talvez eu seja uma espcie de rabdomante com o ouvido colado terra, para captar o murmrio das fontes escondidas, o imperceptvel rumor das germinaes invisveis. E talvez, como qualquer cristo... sou tambm um mendicante do cu disfarado de homem do nosso sculo, uma espcie de agente secreto do Rei dos reis nos territrios do prncipe deste mundo... (MARITAIN, J. Ricordi e Appunti, Brescia, 1967, prefcio.) A expresso tambm se aproxima de Santo Agostinho: O homem um mendigo de Deus. (SANTO AGOSTINHO, Sermo. 56,6,9).

  • 19

    do calor, e desejosos da plenitude da luz divina. Assim, carregando a fora das

    verdadeiras perguntas e a humildade da escuta acolhedora, a reflexo teolgica

    quer ser caminho revelador da Verdade, livre de mscaras. No Advento da Palavra

    Encarnada e Silenciosa esto os questionamentos do corao humano em xodo,

    bem como a fora transformadora das respostas. O xodo , assim, o mundo da

    temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro e na f demonstra a procura

    de uma ptria. (...) Enquanto exodal, a condio humana abertura que rompe a

    procura pela identidade absoluta, peregrinar, que atravessa o nada em direo

    ptria, vislumbrada na promessa, ainda que no possuda na realidade.21

    Enquanto ser-no-tempo, o ser humano traz em si a nostalgia da busca pelo

    sentido. Procura vencer a obscuridade ltima da morte, almejando dar valor e

    dignidade sua obra e aos seus dias, face tragicidade do viver e do morrer. O

    telogo italiano exalta a condio histrica humana como lugar do xodo,

    querendo, com ele, definir o movimento de autotranscendncia que atravessa a vida

    e a orienta em direo ao advento. o novum vislumbrado no Totalmente Outro22,

    na Ptria, qual o ser humano encontra o horizonte de sentido. Em seu advento,

    Deus no est acima da histria, mas na histria, transformando e qualificando-a.

    Nisso se evidencia a relao existente entre Deus e o ser humano, de modo que o

    Absoluto no seja esgotado na histria, mas seja possibilidade nova, para a

    histria abrir-se ao que vir. O futuro entendido, aqui, como novum, isto , no

    como condio temporal passageira, e que esmorece, mas como constante

    esperana, vinda e renovao.

    A busca pelo sentido apresenta-se como contestao radical da vitria da

    morte. A cruz do Ressuscitado, envolvida no silncio e aberta ao encontro, alcana,

    acompanha e transforma a cruz da histria. Manifesta-se a o mistrio absoluto da

    vida, o horizonte que envolve o existir e o guarda mais fortemente do silncio do fim

    trgico. Inquietamente atrado por este horizonte ltimo, o ser humano se auto-

    21 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29. 22 A expresso Totalmente Outro faz referncia a Deus. Sua origem prxima, como compreendem os telogos dialticos, remete diferena qualitativa infinita que separa o homem e Deus, segundo Kierkegaard. No entanto, as origens da expresso so longnquas referindo-se sempre transcendncia de Deus ou do Uno como o outro (thatron em Plotino) ou totalmente outro (aliud valde em Agostinho). Em 1917 no seu livro intitulado O Sagrado, o filsofo neo-kantiano R. Otto resgata a expresso que ser utilizada abundantemente pela Teologia da Crise do jovem Barth e de seus amigos. (cf. LACOSTE, Jean-Yves. Totalmente Outro. In: Idem. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 1737).

  • 20

    manifesta como ser aberto ao Transcendente. Diante da realidade e da existncia,

    experimenta a prpria autotranscendncia como capacidade de pr-se em xodo

    na direo do Mistrio que envolve cada coisa, no desejo e na procura daquele que

    Inefvel. Por sua vez, a autotranscendncia no se realiza como uma

    autodeterminao moral exterior: essa a condio de possibilidade do encontro,

    que exige, para efetuar-se, a deciso livre de abertura e acolhimento da

    Transcendncia.23

    Sem o consentimento gratuito do amor, em si mesmo livre, nem Deus se

    abriria ao ser humano, nem o ser humano se abriria profundidade do ser divino.

    Em sua obra Teologia da Histria, Forte descreve que o xodo acontece quando o

    ser humano se pe diante daquele que a inaudita novidade para o mundo: o livre e

    gratuito oferecimento do Eterno. Assim, o advento do Deus vivo visita o xodo da

    condio histrica e o abre na f e na esperana a um sentido possvel e sempre

    novo: o amor.24 Tal movimento condicionado pela limitao humana, pelo mal e

    pela morte, mas no cessa de provocar no ser que vive essa condio exodal: o

    dinamismo da busca e da esperana. Se de um lado o ser humano se afronta com a

    angstia, a ausncia e as interrogaes da existncia; por outro, possvel abrir-se

    quele sempre disponvel, ao sempre espervel, quele que sempre maior. O

    xodo exprime, em ltima anlise, o carter peregrino do ser humano.

    A autotranscendncia do ser finito no pode acontecer seno em conexo

    com um lugar determinado e a um evento concreto no qual a abertura do corao

    humano se d de forma excelente. Lugar do encontro com o Mistrio onde a

    existncia como xodo se disponha escuta de um possvel advento do Outro no

    horizonte do tempo.25 assim que a abertura transcendental do ser humano

    encontra na Palavra da revelao o seu cumprimento possvel e adequado. De fato,

    na escuta da palavra, carregada de silncio, porque invocativa da realidade que a

    comunica e que sempre a transcende, o homem abre-se livremente livre

    autocomunicao de Deus.26

    23 FORTE, B. Teologia della Storia, p. 166. 24 Ibidem, p. 6. 25 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 15. 26 Ibidem, p. 15.

  • 21

    1.1.2 A Dialtica do xodo

    A categoria xodo na obra de Bruno Forte est intimamente relacionada com

    as categorias advento e encontro. Particularmente, a categoria xodo, entendida

    como sair de si em busca do sentido e do horizonte ltimo da existncia, est

    determinada pelo advento da Palavra e do Silncio de Deus. Aqui, Forte afirma a

    assimetria e a dialtica existente entre os dois movimentos:

    A relao que a f afirma entre o mundo do sujeito histrico e o da Alteridade absoluta entrada na histria, igualmente assimtrica e dialtica. A relao assimtrica porque, se na concepo bblica a identidade se manifesta como xodo humano, a diferena apresenta-se como advento divino. Entre os dois plos no h medida comum, nem de proporcionalidade: nenhuma proporo do finito com o infinito. O Deus que vem incomensuravelmente Outro e soberano a respeito do homem que e permanece criatura.27

    Abrir-se ao advento , para o ser humano, a possibilidade de encontrar o

    sentido e a liberdade diante da existncia histrica, marcada pela angstia do

    sofrimento, da morte e do nada. No livre acolhimento do Eterno, o ser humano

    depara-se com Aquele que a fonte, o caminho e o prprio fim da liberdade, sem o

    qual nem mesmo a existncia seria possvel, quanto mais a liberdade e o prprio

    peregrinar. Abrir-se ao Infinito da Palavra e do Silncio corresponde a estar diante

    do escndalo da impossvel possibilidade do Eterno28 assumir e habitar a histria

    da humanidade, vindo ao encontro de seu xodo.

    Se, biblicamente, o ser humano compreendido como sujeito ativo da aliana

    com Deus, isto se d no reconhecimento da liberdade e aqui aparece o xodo

    como caminho de liberdade. Perante Deus e com Ele, o ser humano decide pr-se,

    ou no, no horizonte do tempo e da eternidade atravs da f:

    O horizonte dos arqutipos e da repetio foi pela primeira vez superado pelo judeu-cristianismo, que introduziu na experincia religiosa uma nova categoria: a f... A f significa a emancipao

    27 FORTE, B. La Eternit nel Tempo, p. 28. 28 Ibidem, p. 28.

  • 22

    absoluta de toda espcie de lei natural e, portanto, a mais alta liberdade que o homem possa imaginar: a de poder intervir sobre o mesmo estado ontolgico do universo... Somente tal liberdade capaz de proteger o homem moderno do terror da histria: liberdade que tem a sua fonte, encontra a sua garantia e o seu apoio em Deus. Toda outra liberdade moderna, por quantas satisfaes possa dar a quem a possui, no justifica a histria, e isso, para cada homem sincero consigo mesmo, equivale ao terror da histria.29

    Enquanto Palavra e Divino Silncio que entram na histria, Deus revela-se

    empenhado e comprometido com a humanidade. A aliana, assim, passa a ser a

    categoria central da f hebraico-crist. O Mistrio da Eternidade no tempo revela o

    advento que se cumpre no xodo, abrindo-se possibilidade do encontro oferecido

    ao ser humano. Longe de lhe fazer concorrncia, a transcendncia do Deus vivo

    representa a possibilidade da preterida liberdade humana. Estabelece-se, dessa

    forma, uma relao de identidade e diferena entre xodo e advento. Se para Bruno

    Forte o xodo o mundo da temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro

    e, na f pe-se procura de uma ptria30; o advento , para ele, o mundo da

    eternidade enquanto se dirige ao ser humano e visita a sua casa, o livre

    autodestinar-se de Deus criatura e o dom gratuito da autocomunicao divina.31 A

    relao entre identidade e diferena, revelada entre xodo humano e advento na

    aliana, no s assimtrica, pela incondicionada primazia do Eterno, mas,

    tambm, dialtica:

    Os dois plos xodo e advento no se anulam reciprocamente, como acontece na antropologia do triunfo da identidade ou naquela do domnio do nada, mas se possuem reciprocamente, mesmo na infinita distncia e diferena, conforme um movimento de negao, de afirmao e de superao do tempo na eternidade.32

    De um lado, o ser humano, na sua condio de xodo, aberto procura do

    sentido e do fundamento, chamado a romper o crculo da identidade absoluta.

    29 ELIADE, M. Il Mito dellEterno Ritorno, p. 162. 30 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 29. 31 Ibidem, p. 29. 32 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29-30.

  • 23

    Nisso, o xodo torna-se peregrinao, atravessando o desafio da angstia e do nada

    em direo Ptria, entrevista na promessa, j realizada e ainda no possuda

    na realidade, pois ainda dever consumar-se plenamente. Aqui a assimetria entre o

    humano andar e o divino vir incomensuravelmente maior e determinante. De outro

    lado, Bruno Forte vale-se da dialtica hegeliana33 afirmao, negao e superao

    estabelecendo a ntima relao entre o humano sair e o divino vir. Na negao de

    si, em direo ao Outro, o humano realiza sua vocao e encontra razes para

    existir, tornando-se criatura nova, partcipe da vida divina, superando assim a

    angstia e a condio finita do nada. No divino vir, a Palavra rompe o Silncio que

    permanece Silncio e assume verdadeiramente a vida e a histria humana. Em

    sua kenose34, o Verbo esvazia-se de sua condio (cf. Fl 2,7s), negando-se, para

    que toda a criatura encontre Nele a salvao, desgnio da Trindade para que Deus

    seja tudo em todos (1Cor 15,28).

    1.1.3 O xodo como Desafio dos Contextos

    Para o telogo italiano, o desafio e a busca pelo sentido so marcados, de um

    lado, pelos contextos da histria e da existncia humana: o xodo a existncia

    humana (existir estar fora).35 Por outro lado, o xodo deve vislumbrar e

    direcionar-se ao inaudito advento da revelao. O desafio da Teologia est na

    tentativa de fazer falar a um s tempo o xodo e o advento, no como quem fala s

    margens, mas no meio da cidade, isto , na histria concreta, na dramaticidade da

    33 Assim afirma Bruno Forte: Com deciso e coragem, Hegel quer pensar a vida, levando palavra o movimento, a contradio, o superamento, que so o sangue quente do nosso existir na histria. Nele, a verdade no contemplao assptica de essncias imutveis e eternas, no um objeto: ela devir perene que afirma, nega e completa, para novamente superar-se a si mesmo. (FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 115). 34 O termo kenose, formado pelos Padres gregos a partir do verbo kno, esvaziar (e, portanto, com o pronome reflexivo esvaziar-se de si mesmo), encontra sua origem numa expresso do hino de Filipenses 2,7. A designao de Jesus como Senhor (2,9) precedida nesse contexto de uma seqncia que descreve a humilhao daquele que era de condio divina (2,6). Outrossim vemos tambm que um esquema kentipo intenso est no cerne do sistema hegeliano: a Idia absoluta se esvazia como Verbo. Foi ele Hegel que fundou, em filosofia, o vocbulo Entusserung que traduz kenose na Bblia de Lutero. (cf. BRITO, E. Kenose. In: LACOSTE Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 983, 985). 35 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 13.

  • 24

    existncia humana.36 Nele, a Palavra vem preencher e perturbar o comodismo, o

    silncio e a apatia humana. assim que, entre xodo e advento, a Teologia vem a

    se propor como palavra no s margens, mas no meio da cidade: verdadeiramente

    algum se torna telogo vivendo, ou melhor, morrendo e tomando posies.37

    O pensamento teolgico, entre xodo e advento, quer ser um interrogar-se

    sobre o significado que Deus e o ser humano tm um para o outro, a partir da boa-

    nova revelada e da concretude do tempo real. De fato, enquanto a Teologia

    linguagem reflexiva sobre a f, ela realiza seu verdadeiro sentido e misso no

    encontro entre o viver humano e a Palavra de Deus. De um lado, a Palavra do

    advento se expressa na condescendncia de Deus com relao ao homem

    segundo o esprito dos Padres gregos.38 De outro, o xodo manifesta-se na

    nostalgia do Totalmente Outro que existe no corao humano.39 assim que, entre

    o humano sair e o divino vir, desenvolve-se o itinerrio da teologia do xodo em

    direo ao advento na obra de Bruno Forte.

    1.2 O xodo nos Cenrios do Tempo

    Bruno Forte empreende sua reflexo sobre a histria recente pesquisando

    nela a busca pelo sentido do ser e do existir. Partir da histria partir da concretude 36 Bruno Forte cita repetidas vezes o filsofo Dietrich Bonhoeffer para explicitar a dramaticidade da condio humana, do falar de Deus e com Deus: As pessoas religiosas falam de Deus quando a conscincia humana chegou ao limite (talvez por preguia de pensar) ou quando falham as foras humanas...; mas este sistema funciona apenas at quando os homens conseguem com suas energias lanar adiante os limites e Deus se torna suprfluo como deus ex machina... Eu gostaria de falar de Deus no nos limites, mas no centro, no na debilidade, mas na fora, no na morte e na culpa, mas na vida e na bondade do homem... A Igreja no reside onde a capacidade do homem nada mais pode, nos limites, e sim no meio da cidade. (BONHOEFFER, D. Resistncia e Submisso, p. 132). Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi telogo luterano, oriundo da culta burguesia alem. Em 1931, Bonhoeffer foi nomeado capelo universitrio de Berlim. Nos debates provocados no seio das Igrejas protestantes pela tomada do poder por Hitler em 1933, Bonhoeffer se distanciou vigorosamente do movimento dos cristos alemes e do regime social-nacionalista. Sua participao na resistncia anti-hitleriana lhe trouxe a seguir novas experincias profanas, s quais deveria dar forma em uma tica que ficou inacabada. Detido em abril de 1943, pde, graas complacncia de certos guardas, manter uma correspondncia teolgica no censurada com seu amigo E. Bethge, que publicar suas cartas em 1951, sob o ttulo Resistncia e Submisso. Pouco antes do fim da guerra, foi enforcado no campo de concentrao de Flossenbrg. Sua despedida foi marcada pelo pensamento: o fim, e para mim, o comeo de uma nova vida. (Cf. SHARFFENOTH, Ernest-Albert. Bonhoeffer. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 320). 37 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 13. 38 Ibidem, p. 12. 39 Ibidem, p. 12.

  • 25

    do ser que, mesmo s apalpadelas, procura o sentido da prpria existncia. O

    telogo italiano destaca dois momentos histricos, ao mesmo tempo filosficos, que

    so paradigmticos: primeiro, a modernidade e o Iluminismo, perodo em que o

    idealismo de Hegel aparece como chave de leitura; e a ps-modernidade, passando

    pela dialtica do Iluminismo, onde F. Nietzsche e a morte de Deus so os

    smbolos. A esses cenrios do tempo, correspondem tambm diferentes

    antropologias que assim so definidas por Bruno Forte: a antropologia do domnio

    da identidade, caracterstica da ideologia moderna; a antropologia da diferena

    irredimvel, caracterstica do niilismo ps-moderno e a antropologia da Eternidade

    no tempo, caracterstica de um novo humanismo cristo.40 Outrossim, entender o

    ser humano e sua histria corresponde a vislumbrar tambm para onde aponta seu

    horizonte de sentido.

    1.2.1 A Modernidade e os Totalitarismos: da Luz ao Declnio...

    No primeiro cenrio, Bruno Forte denuncia o pensamento hegeliano, em sua

    pretenso de aprisionar e esgotar o Mistrio de Deus nos limites do conceito.

    mrito de Hegel ter reduzido totalmente o devir na mente e nas mos do ser

    humano, libertando o sujeito histrico de toda dimenso transcendente e

    responsabilizando-o at o fim como nico artfice do prprio destino. O totalitarismo

    da ideologia , segundo Bruno Forte, o resultado final do sistema elaborado por

    Hegel, promovendo o triunfo do sujeito e do ato da razo em todas as frentes. Com a

    pretenso de dar sentido a tudo, os totalitarismos histricos acabaram aprisionando

    a reflexo e sufocando as diferenas. A racionalidade ideolgica fez o mundo

    mergulhar num contexto onde a realidade deve se dobrar diante do poder

    onipresente do conceito41, engendrado pelas ideologias totalitaristas. A metfora da

    luz revela o princpio inspirador da modernidade que tem na razo emancipada a

    ambiciosa pretenso de compreender e dominar tudo.

    40 Cf. FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 99s. 41 Ibidem, p. 14.

  • 26

    A emancipao uma espcie de palavra-chave, capaz de identificar toda a poca que est sob o signo do Iluminismo: ela exprime o projeto caracterstico da razo moderna de tornar o homem finalmente adulto, livre de hipotecas ultramundanas, capaz de querer e ser sujeito da prpria histria. Como tal, ela significa o processo de auto-libertao e de auto-afirmao do homem, quer considerado individualmente numa espcie de triunfo da subjetividade, quer entendido coletivamente como dinamismos histricos de mudana revolucionria. A emancipao projeto de fundo, a nsia e a meta cobiada da modernidade.42

    O projeto emancipatrio do ser humano a base do Iluminismo em todas as

    suas expresses. o que Bruno Forte define como antropologia do domnio da

    identidade.43 Seu objetivo no seno compreender o mundo e suas relaes de

    forma racional, concedendo ao ser humano a plena liberdade, tornando-o senhor e

    protagonista do prprio futuro e alheio a qualquer possvel dependncia.44 A razo

    adulta e emancipada de todo condicionamento , ao mesmo tempo, protagonista e

    meta do modernismo. Ela , em poucas palavras, o horizonte de sentido a ser

    alcanado. Desde Descartes, na exaltao e primazia do sujeito que pensa,

    passando pelo chamado sculo das Luzes, at o desencadear da Revoluo

    Francesa e da ousada sistematizao especulativa do sistema hegeliano, a razo

    tende a abraar toda a realidade da histria e do mundo. Tudo deve ser reduzido s

    normas e medidas da razo, de tal forma que tudo que se ope emancipao, ou

    no seja iluminado clara luz da compreenso racional, seja rejeitado. Somente

    assim, pode tomar corpo o projeto prtico de fazer do ser humano o nico sujeito do

    evoluir histrico.

    A pretenso de encontrar em si mesmo o sentido do ser e da histria, acabou

    por desviar o ser humano de seu caminho, fazendo-o refm do prprio desejo

    libertador. Por querer abraar e compreender toda a realidade, a razo moderna

    postula a sede de totalidade que a torna conseqentemente violenta. Essa

    antropologia da identidade absoluta, em sua pretenso de tudo explicar e mudar o

    mundo atravs da razo totalizante, acaba desencadeando um verdadeiro reverso 42 FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 81. 43 Ibidem, p. 99. 44 Desde que houve o sol no firmamento e os planetas comearam a girar ao redor, jamais se havia visto que o homem se punha ereto e de cabea erguida, ou seja, sobre o pensamento e construa a realidade segundo este ltimo... Somente agora o homem foi capaz de compreender que o pensamento deve reger toda a realidade do esprito. E esta uma aurora preciosa. (HEGEL, F. Lezioni sulla Filosofia della Storia, p. 204).

  • 27

    tico. assim que a modernidade, tempo do sonho emancipatrio, torna-se tambm

    o tempo das vises totais do mundo. As ideologias surgem como tentativa de impor

    a luz da razo realidade inteira, at o ponto de estabelecer a equao entre o ideal

    e o real. A pretenso de abarcar o entendimento da realidade, da histria e do ser

    humano atravs dessas vises totais, no tardar em converter-se nos

    totalitarismos. Por sua vez, esses totalitarismos passam a fazer da histria uma

    realidade dura e violenta. De fato, o sonho da emancipao esbarra na inaudita

    violncia que a poca da emancipao produziu. Os sinais mais evidentes podem

    ser vistos nas guerras, nas limpezas tnicas, nos tantos genocdios do sculo

    passado e deste sculo tambm, do terrorismo, at o drama das gritantes

    desigualdades e a prpria fome que cada dia extermina milhares de vidas no mundo.

    O desenvolvimento da modernidade ocidental constitutivamente ambguo.

    De um lado, ela abraa os sonhos e os projetos de emancipao que visam tornar o

    ser humano sujeito e no objeto da prpria histria. Nesse sentido, delineiam-se

    importantes iniciativas pela emancipao dos povos explorados, passando pela

    libertao e valorizao das minorias tnicas, das classes e raas oprimidas at a

    emancipao da mulher. A modernidade iluminada produziu conquistas decisivas e

    representou expectativas de grande valia. Porm, o perodo a partir do Iluminismo

    tambm marcado pela violncia ideolgica praticada pelos diversos totalitarismos

    histricos. Se o projeto de emancipao demonstrou ser positivo em muitos

    aspectos, no entanto produziu tambm efeitos devastadores:

    O sonho de totalidade se faz inexoravelmente totalitrio: a totalidade assim como compreendida pela razo produz totalitarismo. No por acaso, nem por um simples acidente de percurso, todas as aventuras da ideologia moderna, tanto de direita como de esquerda, desde a ideologia burguesa como a revolucionria, vo desembocar em formas totalitrias e violentas. E precisamente a experincia histrica da violncia dos totalitarismos ideolgicos que produz a crise e o ocaso das pretenses da razo moderna.45

    A parbola das ideologias modernas, com todas as suas presunes,

    evidenciar uma assustadora cadeia de conseqncias desastrosas, tanto em

    45 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 15.

  • 28

    termos humanos como sociais e ecolgicos. A dialtica do Iluminismo surge, ento,

    como reao s presunes totalizantes da razo, como denncia dos limites e das

    pretenses da razo emancipante.

    1.2.2 Do Declnio Noite do Mundo: o xodo carente de Advento

    A dialtica do Iluminismo e a conseqente crise da razo iluminada que na

    Europa se manifestou com a falncia dos vrios totalitarismos ideolgicos d lugar,

    nas culturas do Ocidente, chamada ps-modernidade.46 Diante das certezas das

    ideologias, ela aparece como reao violncia totalizadora da idia e das

    presunes absolutistas. Afinal, onde esto os novos cus e a nova terra que os

    relatos ideolgicos tinham prometido? O drama com o qual se encerra o sculo XX

    um drama moral, uma crise de sentido, um vazio de esperana. Se para a razo

    moderna e as pretenses ideolgicas tudo tinha sentido, para o pensamento fraco

    da condio ps-moderna nada mais parece ter sentido: tempo de naufrgio e de

    queda; a indiferena substitui a paixo ideolgica. A crise de sentido torna-se a

    caracterstica peculiar da inquietude ps-moderna. Neste tempo, o que triunfa a

    indiferena, a perda do gosto em procurar as razes ltimas do viver e do morrer.

    Perfila-se, deste modo, o extremo rosto do sculo que chega ao fim. Corresponde a

    uma antropologia que Bruno Forte define como da diferena irredimvel 47: o rosto

    do niilismo.

    46 Aps algumas ocorrncias espordicas, a histria do termo ps-modernidade comea com a nova crtica americana, que o tomou de emprstimo a Arnold Toynbee (1889-1975), no final dos ano 1960 (S. Maier 1989). Tinha, ento, um sentido pejorativo e designava o abandono do agir prprio verdadeira modernidade. Mas, seduzidos pela fuso da modernidade e do veio popular que encontravam em certas obras literrias, Leslie A. Fiedler e Susan Sontag lhe deram logo um sentido positivo. Hassan (1980) aplicou o termo para a cultura em geral: para ele, as idias que foram de vanguarda so hoje recuperadas por uma sociedade em que reinam a publicidade e os mass media, e em que o equvoco e a transgresso se tornam, assim, de uso corrente. Para Lyotard (1979), na poca ps-moderna a verdade dos diferentes jogos de linguagem, adquire um estatuto plural. A ps-modernidade niilista, onde no existe verdade objetiva tanto quanto no existe unidade do sujeito. Apesar de sua ambigidade, o termo ps-modernidade pode designar trs fenmenos recentes. O primeiro a passagem, no domnio esttico, da abstrao e da evocao da verdade subjetiva ao uso irnico de modos mais antigos de narrao e de representao. O segundo a combinao de procedimentos de vanguarda e de manipulao comercial das imagens. O terceiro a passagem, no domnio filosfico, de uma teoria do conhecimento que supe que haja um sujeito e um objeto reconhecveis a uma filosofia do evento, em que se mesclam aspectos objetivos e subjetivos. (Cf. MILBANK, John. Ps Modernidade. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 1412). 47 FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 101.

  • 29

    O niilismo no o abandono dos valores ou a renncia a viver alguma coisa

    pela qual valha a pena, mas um processo mais sutil. Ele priva o ser humano do

    gosto de se empenhar por uma razo mais alta, despojando-o daquelas motivaes

    fortes que a ideologia ainda parecia oferecer. Segundo Forte, a doena que hoje

    mais se alastra a falta de paixo pela verdade. Cresce o imediatamente desfrutvel

    e calculvel, o interesse pelo consumo imediato. o triunfo da mscara, em

    detrimento da verdade. At os prprios valores so, muitas vezes, reduzidos mera

    roupagem que se exibe para esconder a ausncia de sentido. rfo das ideologias,

    o ser humano corre o risco de tornar-se mais frgil e sujeito tentao de fechar-se

    na solido do prprio egosmo. Isso corresponde ausncia daquela vontade e do

    desejo de procurar o sentido da vida e da morte. As sociedades ps-modernas esto

    se tornando sempre mais multides solitrias, onde cada um cuida de seu prprio

    interesse, segundo uma lgica exclusivamente egosta e instrumental. Diante do

    vazio do sentido ltimo, a pessoa se agarra ao interesse penltimo, conquista da

    posse imediata.

    No clima da decadncia, tudo conspira a levar os homens a no pensar mais, a fugir da fadiga e da paixo do verdadeiro, para abandonar-se ao imediatamente fluvel, calculvel, s com o interesse do consumo imediato. o triunfo da mscara em prejuzo da verdade: o niilismo da renncia a amar, onde os homens fogem da dor infinita da evidncia do nada, fabricando-se mscaras, atrs das quais se d a tragicidade do vazio.48

    O niilismo uma espcie de xodo sem advento. essa a razo do triunfo do

    consumismo escancarado, do hedonismo e do imediatamente desfrutvel; tambm

    este o motivo do emergir e do afirmar-se das lgicas sectrias, tnicas e

    nacionalistas que se difundiram no fim do milnio. Quando algum no tem

    horizontes grandiosos de verdade, facilmente se afoga na solido egosta daquilo

    que lhe particular e penltimo. Justamente esse processo mostra a necessidade

    de um pai-me comum que liberte da priso da solido, que oferea um horizonte

    pelo qual se possa esperar e amar. No se trata de um horizonte violento como o da

    ideologia, mas um horizonte libertador para todos. 48 FORTE, B. La Riconciliazone, dono di Dio e sorgente di vita nuova. Presenza Pastorale, v. 67, p. 20, 1997/5.

  • 30

    Se na ideologia tudo fazia sentido, no pensamento fraco da condio ps-

    moderna nada mais parece ter sentido. Vivemos uma verdadeira era do vazio49,

    onde esmorece a paixo pela verdade. As motivaes fortes e coletivas da

    humanidade, que ilusoriamente as ideologias pareciam oferecer, cederam lugar ao

    imediatamente til e conveniente s particularidades subjetivas e difusas.

    antropologia da presuno das ideologias ope-se, agora, uma antropologia da

    contaminao com ausncia de valor. O todo, abarcado pela razo ideolgica, cai

    agora no domnio absoluto do nada. violncia induzida pelo totalitarismo,

    corresponde a trgica solido do ser humano, incapaz de comunicar-se e de amar

    de modo verdadeiro e autntico. Para o telogo italiano, a ps-modernidade revela o

    extremo rosto da crise: o rosto da decadncia.50 A decadncia priva a pessoa da

    paixo pela verdade, despoja-a da busca pelo sentido ltimo, afirma nica e

    exclusivamente a fragilidade e a imediatez do penltimo:

    o triunfo da mscara em detrimento da verdade, a cujo servio e com tanta freqncia trabalham os persuasores ocultos da civilizao da multimdia que foi se impondo com impressionante acelerao nos ltimos decnios do sculo. A cultura forte, expresso da ideologia, deu origem s culturas fracas, s multido das solides em que a penria de esperanas amplas dobra cada um no curto horizonte do pormenor. As razes de viver e de viver juntos so substitudas pela reivindicao do imediatamente til e conveniente: os conflitos tnicos e a emergncia de particularismos muitas vezes absurdos e caprichosos neste fim de sculo so uma difusa prova disso.51

    49 sugestivo o ttulo, bem como a obra de LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: Ensaio sobre o Individualismo Contemporneo. Relgio DAgua: Lisboa, 1983. 50 Bruno Forte pe-se em continuidade com a reflexo de Bonhoeffer que assim escreve, refletindo sobre o drama da conscincia ps-moderna: No havendo nada durvel, enfraquece o fundamento da vida histrica, ou seja, a confiana, em todas as suas formas. E por no haver confiana na verdade ela substituda pelos sofismas da propaganda. Faltando a confiana na justia, declara-se justo o que convm... essa a situao de nosso tempo, que um tempo de autntica decadncia. (BONHOEFFER, D. tica, p. 64). 51 FORTE, B. La Trinit, Fonte di ispirazione per la Comunit dei Popoli Europei. Il Nuovo Areopago, v.18, p. 27, 1999/3.

  • 31

    1.2.3 Procura do Outro: da Noite do Mundo Aurora

    Perfilam-se alguns sinais de expectativa e de esperana. H uma nostalgia

    que se deixa reconhecer nas inquietaes do presente, como uma espcie de

    procura pelo sentido perdido. No se trata, porm, de um saudosismo simples e

    imediato. Trata-se do esforo em resgatar o sentido para alm do naufrgio, a fim de

    reconhecer o horizonte ltimo em vista do qual se possa avaliar o caminho, o que

    penltimo, fundamentando assim, eticamente, a prxis. A essa esperana Bruno

    Forte define como a aurora de uma antropologia da Eternidade no tempo52. Ela

    corresponde redescoberta do sentido do senhorio de Deus sobre a histria e da

    sua absoluta transcendncia, opondo-se a toda absolutizao indevida das

    possibilidades do ser humano. Essa concepo contrape-se ao advento do

    atesmo. assim que o mundo fechado da razo totalizadora abre-se s surpresas

    do Totalmente Outro que advm, e arma sua tenda entre os seres humanos. Graas

    ao dom da revelao, que se realiza atravs de eventos e palavras intimamente

    ligadas, o advento vem habitar no tempo do xodo e o manifesta como capaz de

    uma aliana. A verdadeira consistncia da criatura est na sua existncia, isto , no

    estar fora, no abrir-se ao Outro e em hosped-lo em si. a realizao do xodo

    humano.

    De um lado, Deus parece uma idia insensata diante do humano feito adulto e

    emancipado: vive-se em um mundo sem Deus, o que nem sempre corresponde

    negao de Deus ou oposio contra Deus, mas um gradual processo de

    indiferena. De outro lado, aflora no corao humano a nostalgia do Totalmente

    Outro. Evidentemente, tanto esse processo de emancipao, quanto a prpria volta

    ao sagrado, mostraram e ainda mostram suas ambigidades. No obstante

    indiferena, a busca religiosa muitas vezes se faz ao gosto do mercado. Pseudo-

    religies pregam uma espiritualidade difusa e subjetivista, que satisfaz as

    necessidades do imediato egosmo, vazio de sentido.53 Mas h uma saudade do

    52 Cf. FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 103. 53 No momento em que o crescimento econmico se esgota, o desenvolvimento psquico reveza-o; no momento em que a informao se substitui produo, o consumo da conscincia se torna uma nova bulimia: ioga, psicanlise, expresso corporal, zen, terapia piramidal, dinmica de grupo, meditao transcendental... Canalizando as paixes no sentido do Eu, promovido assim categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura indita de Narciso. (LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio, p. 52).

  • 32

    amor e da beleza, um desejo de esperana e de justia a se realizar: o homem

    secular no encontra Deus nas experincias limitadas, mas no limite de toda

    experincia, quando percebe a priso do imanente, do semelhante, do interesse

    penltimo, e comea a ter sede de uma palavra que rompe o silncio da morte, e

    sustente, na esperana, a luta de hoje.54

    A indiferena ao Mistrio divino, a afirmao absoluta do finito e do dado

    imediato no conseguiram abafar a nostalgia do Infinito inscrita no corao humano.

    Podemos dizer, ento, que a experincia da ausncia de Deus, fruto do desejo

    emancipador do ser humano, pode ser caminho para uma redescoberta da prpria

    dignidade, de novos ideais e sentido para a prpria existncia. Se o cenrio do

    tempo contempla um estado de frustrao e descrdito, de perda do rumo e direo

    do caminho a percorrer, o cenrio do corao, no vazio do individualismo e da falta

    de sentido, tambm lugar da escuta do divino, da busca e do retorno ao sagrado

    como horizonte unificador da vida e da existncia humana. preciso oferecer s

    conscincias caminhos para que a vida e a histria possam redescobrir seu sentido.

    Para negar a frustrao, ser preciso optar pela verdade. As verdadeiras

    perguntas do corao humano encontram-se no rosto escondido e revelado Daquele

    que o pai-me no amor, sentido da vida e da esperana do mundo. Na pergunta

    que cada pessoa se faz, no mais profundo do corao, toma consistncia a nostalgia

    da imagem do pai-me no amor. Para o telogo italiano, essa imagem metafrica diz

    respeito necessidade de cada pessoa confiar sem reservas, de ter um porto

    seguro onde possa fazer repousar o cansao e o sofrer, na certeza de no ser

    lanada no abismo do nada. Delineiam-se, assim, os cenrios do corao humano.

    1.3 Cenrios do Corao: da Tragicidade da Existncia Esperana

    O ser humano essencialmente inquieto na busca pelo sentido do ser e do

    existir, do fazer e do no-fazer, do viver e do morrer. A prpria histria tambm

    parece estar sob os encalos da dor, manifestada nos conflitos, guerras entre povos,

    raas e classes. A dor verdadeiramente a categoria universal do ser humano, quer

    seja a dor fsica da doena, da fome, da violncia, a dor moral da falta de amor, do 54 FORTE, B. Jesus de Nazar, Histria de Deus, Deus da Histria, p. 16.

  • 33

    abandono, ou mesmo, a dor social da excluso que aliena milhes de pessoas das

    dignas condies de sobrevivncia. Frente dor e morte como aparente caminhar

    e finitude trgicos da vida humana, a existncia caracterizada pelo xodo, revela que

    o homem nostalgia de plenitude; enquanto um ser para o mistrio (K. Rahner),

    o seu corao permanece insatisfeito diante de toda oferta parcial.55 Em tudo isso, a

    pergunta sobre a dor e a morte caminho que propicia a abertura da vida como

    xodo em direo ao sentido ltimo do ser e do existir.

    1.3.1 A Interrogao sobre a Dor e a Morte

    Basta um olhar sobre a vida humana e logo se revela a precariedade do

    existir, donde nasce a angstia e a certeza. A morte o grande limite do ser e do

    existir da pessoa. De fato, a vida no est seno misturada dor e angstia da

    condio finita da existncia. Nisso a grande pergunta, sobre a qual recai a verdade

    de cada interrogao, a questo da dor:

    Se no houvesse a morte, no haveria tampouco o pensamento, tudo seria uma montona eternidade, ao menos para nossa limitada capacidade de pensar: neste sentido, viver tambm aprender a morrer, educar-se para conviver com o silencioso, resistente e persistente desafio da morte.56

    A vida humana parece, de fato, estar lanada no abismo da angstia,

    condenada tragicidade do nada. Por que tudo isso? Por que a dor? E, sobretudo,

    por que a dor inocente? o problema de J, a eterna questo que desde o peso da

    morte eleva-se para a ansiada plenitude da vida.57 A interrogao sobre o

    sofrimento tem uma inevitvel e quase certa direo: Se Deus existe, por que o

    sofrimento? O que significa sua ausncia e silncio diante do sofrimento do mundo e

    especialmente do sofrimento inocente?

    55 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 38. 56 Idem. Escuta do Outro, p. 7. 57 Idem. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 38.

  • 34

    Alm da espada e da fome, existe uma tragdia maior, aquela do silncio de Deus, que no se revela mais e parece estar fechado em seu cu, como que desgostoso do agir da humanidade. As perguntas a ele dirigidas tornam-se tensas (...). Se o povo se converter e retornar ao Senhor, tambm Deus mostrar-se- disposto a ir ao seu encontro para abra-lo.58

    Diante das grandes barbries humanas, de ontem e de hoje, nem as falsas

    esperanas ideolgicas da modernidade, nem mesmo o vazio trgico do niilismo

    ps-moderno que, como num xodo sem advento, renuncia ao prprio desejo de

    perguntar entregando-se a superficialidade do imediato, podem dar sentido ou

    mesmo respostas sobre a dor. Se, de um lado, a voz atia diante do sofrimento

    parece proclamar o fim da esperana derradeira, de outro, isso no significa seno

    a morte de um Deus sem corao, do Deus dos piedosos e dos justos seguros de

    seus prprios direitos perante ele convencidos da justia da dor no mundo.59 Ao

    lado do inocente que morre, junta-se a cruz de Cristo. O Deus da cruz faz-se

    compassivo com as dores humanas, no como quem longnquo e estranho. o

    Deus que, segundo Forte, fez sua a dor do mundo para dar-lhe sentido e consolo.

    O evangelho da cruz no esvazia o valor da condio de xodo em que se acha o homem: entrando na vida dos homens, o Filho faz sua a sada deles da morte, at o ltimo e doloroso xodo da paixo. Igualmente, o evangelho da cruz no enfraquece o sentido do advento: Deus continua Deus, at sujando as mos na histria do vencidos e dos sem Deus, que ele faz sua e a redime, a fim de que os que esto longe se tornem vizinhos e seja anunciada a boa-nova aos prisioneiros.60

    Bruno Forte no pretende solucionar o mistrio do mal e da morte. A prpria

    existncia humana, vivida como xodo e advento, capaz de transformar a pergunta

    sobre a morte em inaudita certeza de que a proximidade divina aos sofredores,

    atravs da companhia do Crucificado, pode transformar a dor em amor, o desespero

    em esperana, a renncia em empenho, a histria do sofrimento em histria de amor

    58 JOO PAULO II, Audincia Geral, quarta-feira, 11 de dezembro de 2002. Apud FORTE, B. Guerra e Silncio de Deus, p. 5. 59 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 40. 60 Ibidem, p. 41.

  • 35

    para o mundo. Nisso, a razo e o sentido do existir no so renncia nem atalho,

    mas companhia de Deus no caminho da existncia.

    1.3.2 Seres para a Vida

    Para o nosso telogo, a pergunta que habita no fundo de nosso corao,

    aquela que nos torna inquietos e pensativos, a interpelao da infinita dor do

    mundo, a pergunta inevitvel sobre a morte e sobre o fim de tudo.61 A

    provisoriedade e a fragilidade do ser que sofre e que morre, suscita no homem a

    pergunta, desperta a sede de busca, abre o desejo de sentido. Atravs do flagelo da

    dor, revela-se no s a precariedade e a debilidade da vida, mas tambm, a vida

    que supera a prpria morte. O ser humano instigado a tomar conscincia de no

    ser simplesmente lanado na morte e na finitude vazia, mas chamado vida.

    assim que da morte move-se o pensar peregrino em direo vida:

    A luta contra a morte se perfila nas questes que nascem dentro do corao como feridas lancinantes, muitas vezes de improviso ou inesperadas: O que ser de mim? Que sentido tem a minha vida? Para onde vou com a bagagem dos meus sofrimentos, das consolaes e alegrias? E quando houver, enfim, conquistado o alvo dos meus desejos, o que ainda poderei desejar seno a ltima vitria, a vitria sobre a morte? Justamente o fato de que a morte nos faz pensativos e de que sentimos a necessidade de dar sentido s obras e aos dias, o sinal de que, no mais fundo do corao, os peregrinos da morte so, na realidade, chamados vida.62

    O itinerrio do pensar humano se desloca da morte vida como pensar

    peregrino, existncia em xodo. As falsas esperanas e o niilismo trgico

    constituem, em si, o exlio humano na dor e na tragicidade de uma vida sem meta e

    sem sentido. Colocar-se em xodo a perene afirmao de que a morte no tem a

    61 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 22. 62 Ibidem, p. 24.

  • 36

    ltima palavra. De que o ser humano destinado vida; vida que, no encontro com

    o advento, adquire significado radicalmente novo.63

    De fato, a vida humana enquanto est em xodo, revela-se aberta ao futuro.

    Para Forte, o futuro constitui a qualidade do ser, nas palavras de Ernst Bloch.64 Isto

    quer dizer que somente o qualitativamente novo rompe o cerco do eterno retorno;

    somente o no-evolutivo, o no-programado e o no-programvel quebra o encanto

    mortal do no obstante sedutor enlevo da realizao.65 Se o Crucificado

    companhia divina nos sofrimentos do mundo, o Ressuscitado esperana

    qualitativamente nova do ser humano em direo vida em plenitude: Eu vim para

    que todos tenham vida e a tenham a abundncia (Jo 10,10).

    1.3.3 Abertos Esperana e ao Amor

    O ser humano, no xodo de si, anseia pela Ptria. No aparente triunfo da

    morte e da dor, permanentemente provocado, interrogado e atrado ao horizonte

    ltimo do sentido. Contra a renncia niilista e o negativismo da dialtica iluminista,

    renasce o sentimento e a busca pelo Totalmente Outro atravs da redescoberta do

    sagrado. o despertar e a conscincia da necessidade de um horizonte ltimo e de

    uma ptria. De formas mais diversas, perfila-se um retorno ao Pai, embora nem

    sempre desprovido de ambigidades e at de saudosismo ideolgico. Na realidade,

    se a crise da modernidade representou o fim das pretenses absolutistas da razo,

    os sinais dessa superao apontam para a redescoberta do Outro, capaz de

    oferecer razes para a vida e para a esperana.

    A morte suscita o pensamento. Faz refletir sobre a vida e suas possibilidades,

    sobre suas razes e seu fim, sobre seu sentido derradeiro: viver tambm aprender

    a morrer, a conviver com o desafio silencioso, resistente, perseverante da morte.66

    Mesmo num mundo marcado pelo sofrimento, mesmo mergulhados na angstia da

    evidncia da morte, no mais fundo do corao toma vulto uma indestrutvel 63 Assim expressa Santo Agostinho: Quando eu estiver inteiramente em Vs, nunca mais haver dor e provao; repleta de Vs por inteiro, minha vida ser verdadeira. (SANTO AGOSTINHO, Confisses, p. 27). 64 Cf. FORTE, B. Jesus de Nazar, Histria de Deus, Deus da Histria, p. 28. 65 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 43. 66 Idem. Deus Pai no Amor quer todos salvos em Cristo, o Filho Amado. Teocomunicao, v. 33, n. 142, dez. 2003, p. 719.

  • 37

    nostalgia da face de Algum que possa acolher a nossa dor e as nossas lgrimas,

    que resgate a infinita dor do tempo.67 Se do fundo do corao humano brotam

    questes sobre a vida e a morte, sobre as razes da existncia e seu fim, brota

    tambm o desejo de, na aparente vitria da morte, na aparente desiluso em face

    aos sofrimentos, sentir a proteo e o consolo que superem o aparente abandono do

    nada. Bruno Forte trabalha a metfora do pai-me para expressar o desejo

    humano de proteo e consolo. Essa caracterstica tipicamente italiana revela que,

    diante da angstia, do desafio da morte e do sofrimento, a figura paterno-materna

    representa o descanso do corao humano, o sentido do xodo para a ptria

    desejada. No xodo, como sada de si, o ser humano peregrino em direo ao

    Totalmente Outro. No obstante, so dois os possveis caminhos: a vida, ou

    peregrinao ou antecipao da morte... ou a vida paixo, procura e, por isso,

    inquietao, ou deixar-se morrer cada dia um pouco... 68 Voltar a ser peregrinos,

    pr-se a caminho ao encontro do Pai: este o desafio de um mundo feito adulto,

    extraviado e distante da casa paterna, porm sedento de sua paz.

    1.4 O Trplice xodo de Jesus e o Trplice xodo do Discpulo

    Com a categoria xodo, Bruno Forte exprime a busca e o caminho em

    direo ao horizonte ltimo, no qual o ser humano possa repousar e encontrar o

    fundamento do prprio existir. A Teologia deve, assim, dar conta do caminho do ser

    humano, peregrino rumo Ptria definitiva que , ao mesmo tempo, a origem e o

    fundamento de sua condio exodal. Para a f crist, esse horizonte ltimo, ao qual

    anseia o corao humano, o Cristo. Diante do abandono do sentido totalizante e

    do emergir de uma nova nostalgia de sentido frente ao vazio da ps-modernidade,

    tendo presente as angstias e perguntas do existir frente morte e finitude

    humana, a f crist encontra em Jesus Cristo no s o sentido, mas tambm o

    caminho de sua condio exodal. Em suas recentes obras, o telogo italiano traa o

    trplice xodo que caracteriza a vida do Verbo feito carne:

    67 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 24. 68 Idem. Deus Pai no Amor quer todos salvos em Cristo, o Filho Amado. Teocomunicao, v. 33, n. 142, dez. 2003, p. 724.

  • 38

    O xodo do Pai (exitus a Deo); o xodo de si mesmo (exitus a se); e o xodo para o Pai (reditus ad Deum). esse trplice xodo que vem quebrar o crculo fechado da razo ideolgica ou do pessimismo niilista e, de modo geral, a priso de um mundo sem Deus: e luz desse xodo que se pode compreender, em toda sua profundidade, a revelao que Jesus faz do Pai e do Esprito Consolador e, portanto, a boa-nova do Deus Trindade, histria eterna do amor que se oferece tambm s outras religies como plena autocomunicao da vida divina.69

    O trplice xodo de Jesus o fundamento da busca empreendida pelo ser

    humano. No trplice xodo de Jesus, o xodo humano encontra o advento de Deus

    que se revela. Ao utilizar o termo xodo, o telogo italiano adota uma linguagem

    que se identifica intimamente com o termo advento; categoria que abordaremos no

    segundo captulo deste trabalho. Aqui importante ter presente que para Bruno

    Forte, assim como o desejo no propriamente o fundamento da realidade, o xodo

    humano no propriamente a razo do advento. o advento que, pela sua

    misteriosa alteridade, fundamenta, constitui e provoca o xodo humano com a

    nostalgia pelo sentido e pelo descanso que inunda sua existncia e seu ser. assim

    que o Deus Trino, revelado na histria por meio do Verbo Encarnado Jesus Cristo,

    a resposta absoluta nostalgia de Infinito que se manifesta no ser humano.

    graas ao advento que a autotranscendncia exodal encontra-se com a

    autocomunicao divina. Portanto, o advento o incio, uma vez que a iniciativa do

    encontro sempre divina, e fim, enquanto horizonte ltimo. O Deus de todo

    testemunho bblico um Deus em xodo de si mesmo, um Deus que encontrou

    tempo para o ser humano e, vindo histria, estabeleceu uma aliana com ele.70

    69 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 47. 70 Ibidem, p. 49.

  • 39

    Se Jesus o caminho e ao mesmo tempo o fim das aspiraes humanas,

    verdadeiro Deus e verdadeiro Homem71, o trplice xodo de Jesus apresenta-se

    como itinerrio e como meta do xodo humano. De fato o mesmo Verbo de Deus,

    por Quem todas as coisas foram feitas e se encarnou e habitou na terra dos homens

    (cf. Jo 1, 3 e 14), entrou como homem perfeito na histria do mundo, assumindo-a

    em Si mesmo e em Si recapitulando todas as coisas (Gaudium et Spes, n. 38).

    Jesus caminho, enquanto Homem, j revelado; fim, enquanto Deus. Ele

    um na Trindade, que com o Pai e o Esprito Santo constituem a Ptria ainda no

    alcanada, somente vislumbrada. O contedo profundo da verdade seja a respeito

    de Deus seja da salvao do homem se nos manifesta por meio dessa revelao em

    Cristo que ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda revelao (Dei Verbum,

    n. 2). De fato, mostra-se assim que Jesus eficaz e eficiente, meio e fim. Ele

    Caminho que aponta para a Verdade, j realizada nEle mesmo. Vida ainda no

    plenamente consumada, mas j nEle realizada. O meio j antecipa o fim, mas

    no o esgota. O fim j plenifica o caminho dando-lhe sentido.

    Segundo o trplice xodo de Jesus xodo do Pai, de si e para o Pai o

    discpulo instigado a viver, na prpria existncia, um trplice xodo ao encontro do

    sentido da prpria existncia. Nos passos de Cristo, com Cristo e em Cristo, na fora

    do Esprito Santo, deve pr-se, ento, a caminho da Ptria.

    71 Partindo do Prlogo de Joo (Jo 1,1-5.14), Bruno Forte assim se expressa: Os dois plos dessa relao paradoxal so o Verbo (ho logos) e a carne (sarx): o primeiro a Palavra, que no princpio estava com Deus e era Deus (...). Em virtude desta co-eternidade na distino que ser caracterizada pelo Conclio de Nicia (325) como consubstancialidade do Filho com o Pai (homosion to patri) o Verbo mediador indispensvel do ato criador e o lugar da vida, que brilha como luz para os homens. O outro plo da relao, a carne, nos indica, em sentido oposto, o horizonte concreto deste mundo: aquilo que humano, com sua condio de debilidade e finitude, com sua corporeidade determinada, sujeita aos condicionamentos do espao e do tempo e, portanto, com suas potencialidades limitadas e, no obstante, acentuadamente dramticas, porque capazes de escolher ou rejeitar o Esprito, nico que vivifica. A carne simultaneamente, a humanidade concreta do homem, o mundo com sua caracterstica terrena determinada e finita; numa palavra, o ser histrico com toda a riqueza das relaes que o condicionam e diante das quais capaz de se situar graas sua origem. Se, por um lado, o Verbo indica o sujeito divino do evento da encarnao, com toda a riqueza da sua divindade consubstancial ao Pai e com toda sua especfica distino pessoal em relao a ele, carne, por sua vez, nos evoca o horizonte encorpado da histria, enquanto determina o homem e produzido pelo homem. (FORTE, B. Teologia da Histria, p. 105-106).

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    1.4.1 Discpulos do nico

    No trplice xodo do discpulo, a expresso discpulos do nico usada por

    Bruno Forte para caracterizar o discpulo em xodo para a Ptria. preciso ler a dor

    do tempo com todas as suas crises e escutar as angstias do corao humano.

    Diante da perda do sentido e da renncia a questionar-se sobre o vazio, os cristos

    so chamados a encontrar em Cristo o sentido de suas vidas. Apaixonados pela

    verdade, os cristos tornam-se discpulos do nico, do Deus vivo que liberta e

    salva, o Deus revelado em Jesus Cristo. A Palavra que se fez carne e que acolhida

    na f, faz do discpulo uma pessoa que tudo recebe de Deus, que tem a Deus como

    primazia, que tem no encontro com o Outro o horizonte de sentido. Para Bruno Forte

    essas razes no esto em ns mesmos ou no horizonte exclusivo deste mundo,

    mas fora de ns, no Outro que vem a ns, naquele ltimo horizonte que a f

    reconhece como revelado e dado em Cristo.72 Assim, o primado da f revela-se em

    Bruno Forte como o primeiro passo no trplice xodo do discpulo, no modelo do

    trplice xodo de Jesus. Viver a unio com Deus por Cristo, na fora do Esprito

    Santo, viver a memria poderosa do Deus-conosco, abandonar-se sua

    verdade e ao seu amor, no seguimento do prprio Jesus que, em seu xodo de

    Deus, revela-se verdadeiramente como o autor e o consumador da f (Hb 12,2).

    A f a posse antecipada do que se espera, meio de demonstrar as realidades que no se vem (Hb 11,1). Enquanto tal, ela exige completo sair de si para ir ao Outro, xodo sem arrependimento e sem retorno rumo ao Estrangeiro que convida, e tambm aceitao do que ele prope, assentimento s palavras de sua verdade. Crer em Deus o movimento do xodo do corao, entrega de si; crer tudo o que se revela profisso de f, acolhimento expresso e reflexo do mundo que vem do alto nas obras e nos dias dos homens.73

    A existncia da f, portanto, um contnuo receber a vida das mos do Pai e,

    ao mesmo tempo, uma entrega e um abandono sua verdade. Jesus, saindo de

    Deus, jamais cessou de viver no Pai. Portanto, compreende-se que o xodo da f 72 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 109. 73 Idem. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 54.

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    nos faz livres das sedues da posse e da busca obsessiva das seguranas

    humanas.

    1.4.2 Servos do Amor

    Como servos do Amor, a caridade o segundo passo do xodo do

    discpulo. Jesus, no xodo de si, entrega-se totalmente na Cruz. Ele entrega a

    prpria vida por amor. Portanto, fazer-se servos por amor o grande passo a ser

    dado pelos cristos. Isto se torna ainda mais evidente na nossa poca ps-moderna,

    poca de solides e renncia de amar, reflexo do niilismo e da decadncia. Nenhum

    discpulo pode furtar-se a, como Cristo, tambm assumir as cruzes da humanidade,

    vivendo o xodo de si mesmos sem retorno, seguindo o exemplo Dele, solidrios

    especialmente com os mais fracos e os mais pobres dos seus com