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.1. MISSÃO E MINISTÉRIOS DOS CRISTÃOS LEIGOS E LEIGAS Maria Elisa Zanelatto O Documento 62 da CNBB trata de um “tema vasto e complicado”, como reconhece sua mesma introdução. Movimento de cristãos leigos por excelência, o MCC sente que esse documento deverá nortear suas opções e sua escolha de prioridades, até porque deixa claros pontos relativos à missão do cristão leigo que o próprio MCC tem enfatizado à saciedade, em suas Assembléias nos vários níveis, em seus Encontros nacionais e internacionais, em seus artigos e publicações. A síntese que segue não substitui a leitura e o estudo do Documento 62. Ao contrário, pretende incentivar seu aprofundamento e o interesse dos cursilhistas em sua análise. Para facilitar essa busca ulterior, os subtítulos aqui utilizados (às vezes precisamente os mesmos usados no documento), são sempre seguidos das indicações dos números dos parágrafos a que se referem. Esperamos que a leitura desta síntese desperte nos cursilhistas do Brasil o interesse e a convicção de que, para caminhar com a Igreja, Mãe e Mestra, temos que ser, todos, filhos amorosos e discípulos diligentes. Só assim, no limiar do Terceiro Milênio, estaremos preparados não apenas para festejar o Jubileu do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas para brindar o Mestre com o seu melhor presente de aniversário: o esforço sem tréguas para que o Reino não seja um Plano, um Projeto, mas uma realidade. Maria Elisa Zanelatto Grupo Executivo Nacional APRESENTAÇÃO O pós-Concílio inaugurou uma era de notável florescimento em termos de novas formas de associação e de apostolado por parte dos leigos interessados em participar de modo responsável da missão da Igreja. Junto com esse florescimento, surgiram alguns problemas que deram causa a algumas providências – como os critérios de eclesialidade indicados pelo Papa na Christifideles Laici e uma definição mais clara dos ministérios confiados aos leigos. Simultaneamente, é importante ressaltar que a dedicação do leigo a atividades intra-eclesiais, não deve diminuir seu empenho no campo considerado o primeiro e mais condizente com seu estado, e que Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi chamava de mundo vasto e complicado da política, da realidade social, da economia, da cultura, das ciências, das artes, da vida internacional, dos MCS, da família, da educação, da profissão (cf. EN 70). 1 Fenômeno mundial, esse florescimento tem-se revelado extraordinário no Brasil, haja vista o surgimento de inúmeros movimentos animados pelo ideal de evangelização e de novas formas de atuação laical no meio do mundo. A constatação de que involuntariamente se acentuava sempre mais o dualismo, 2

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MISSÃO E MINISTÉRIOS DOS CRISTÃOS LEIGOS E LEIGAS

Maria Elisa Zanelatto

O Documento 62 da CNBB trata de um “tema vasto e complicado”, como reconhece sua mesma introdução. Movimento de cristãos leigos por excelência, o MCC sente que esse documento deverá nortear suas opções e sua escolha de prioridades, até porque deixa claros pontos relativos à missão do cristão leigo que o próprio MCC tem enfatizado à saciedade, em suas Assembléias nos vários níveis, em seus Encontros nacionais e internacionais, em seus artigos e publicações. A síntese que segue não substitui a leitura e o estudo do Documento 62. Ao contrário, pretende incentivar seu aprofundamento e o interesse dos cursilhistas em sua análise. Para facilitar essa busca ulterior, os subtítulos aqui utilizados (às vezes precisamente os mesmos usados no documento), são sempre seguidos das indicações dos números dos parágrafos a que se referem. Esperamos que a leitura desta síntese desperte nos cursilhistas do Brasil o interesse e a convicção de que, para caminhar com a Igreja, Mãe e Mestra, temos que ser, todos, filhos amorosos e discípulos diligentes. Só assim, no limiar do Terceiro Milênio, estaremos preparados não apenas para festejar o Jubileu do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas para brindar o Mestre com o seu melhor presente de aniversário: o esforço sem tréguas para que o Reino não seja um Plano, um Projeto, mas uma realidade.

Maria Elisa Zanelatto Grupo Executivo Nacional

APRESENTAÇÃO

O pós-Concílio inaugurou uma era de notável florescimento em termos de novas formas de associação e de apostolado por parte dos leigos interessados em participar de modo responsável da missão da Igreja. Junto com esse florescimento, surgiram alguns problemas que deram causa a algumas providências – como os critérios de eclesialidade indicados pelo Papa na Christifideles Laici e uma definição mais clara dos ministérios confiados aos leigos. Simultaneamente, é importante ressaltar que a dedicação do leigo a atividades intra-eclesiais, não deve diminuir seu empenho no campo considerado o primeiro e mais condizente com seu estado, e que Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi chamava de mundo vasto e complicado da política, da realidade social, da economia, da cultura, das ciências, das artes, da vida internacional, dos MCS, da família, da educação, da profissão (cf. EN 70).

1

Fenômeno mundial, esse florescimento tem-se revelado extraordinário no Brasil, haja vista o surgimento de inúmeros movimentos animados pelo ideal de evangelização e de novas formas de atuação laical no meio do mundo. A constatação de que involuntariamente se acentuava sempre mais o dualismo,

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separando o que na realidade seriam dois aspectos da mesma missão do laicato – presença na sociedade (atividades ad extra), e serviço à comunidade eclesial (atividades ad intra) – tem levado a um esforço no sentido de aprofundar a reflexão sobre a missão e valorizar a vocação dos leigos e leigas cristãos no mundo atual.

Tal reflexão é urgente à medida que a realidade mostra os problemas surgidos não apenas no interior dos dois âmbitos (tais como a aparente clericalização do leigo), mas entre grupos dedicados exclusivamente a um desses âmbitos (tais como a falta de apoio da comunidade aos leigos dedicados ao seu compromisso nas realidades temporais). Isso sem falar na constatação de que faltava formação doutrinal para um correto enfoque da ação do leigo em ambos os campos.

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Não sem motivo, pois, no décimo aniversário da Christifideles Laici, a Assembléia Geral da CNBB foi solicitada a estudar o tema e elaborar um documento oficial que contribuísse para:

– um claro reconhecimento da dignidade dos leigos na Igreja;

– uma explicitação da eclesiologia conciliar que levasse à harmonização das diversas formas de apostolado e a uma maior clareza na relação entre os ministérios que o leigo devem desempenhar em função do seu Batismo e aqueles conferidos pelo sacramento da Ordem;

– um esclarecimento acerca das dúvidas surgidas das experiências levadas a cabo num contexto cultural que se transforma rapidamente e apresenta sempre novos desafios ao conjunto da Igreja.

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INTRODUÇÃO (1-9)

As esperanças e frustrações do homem moderno que quer paz, saúde, segurança econômica, respeito aos seus direitos e se decepciona porque é vítima da violência, dos desmandos políticos dos poderosos, de doenças velhas e novas, da exclusão política e econômica, até da frieza e pouca fé que encontra entre os cristãos, guardam semelhanças com as esperanças e frustrações dos discípulos que, desolados, saíam de Jerusalém e se dirigiam para Emaús. Convivem, entre nós, os avanços da ciência e da tecnologia, (usufruídos por poucos), e a fome, as doenças, a miséria e o desemprego que uma justa distribuição dos recursos poderia eliminar. O mesmo povo que se pergunta de onde veio e para onde vai, procura, de um lado, achar respostas em múltiplas formas de religiosidade e, de outro, esquecer (no jogo, no álcool, nas drogas) a insatisfação provocada pelas respostas insatisfatórias.

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Como os discípulos de Emaús, nós, cristãos, redescobrimos a palavra e a presença viva de Cristo e nos convencemos sempre mais de que o cristianismo não é apenas uma doutrina ou uma verdade abstrata, mas é a opção de seguir Alguém que caminha conosco mesmo quando não o reconheçamos, Alguém que se faz reconhecer quando nossos irmãos mais despossuídos nos pedem água, pão, roupa, assistência médica, justiça. Quando descobrimos e praticamos a solidariedade e a partilha é porque já acolhemos o Reino e podemos superar as decepções e suas causas. Passamos a ser portadores da esperança de que a morte não é a última palavra, porque assim como Deus ressuscitou seu filho, há de nos dar como herança o Reino definitivo. É a esperança que, ao invés de nos afastar dos outros, nos torna ainda mais solidários, porque tudo o que é

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verdadeiramente humano ressoa no coração dos cristãos. Assim impulsionado, o cristão levanta a cabeça e olha para a libertação que vem, mas, simultaneamente, trabalha como administrador fiel dos bens que Deus criou, para alimentar seus irmãos e irmãs.

I. DESAFIOS E SINAIS DOS TEMPOS (10-12)

O cristão é aquele que olha para o mundo com realismo, com esperança, procura descobrir no mundo os sinais da vontade de Deus e os caminhos que apontam para o Reino, e busca identificar os obstáculos que impedem o mundo de caminhar em direção a esse Reino de justiça, paz e fraternidade. A realidade complexa em que vivemos torna difícil, mas não impossível, analisar e julgar os rumos da história: não devemos ser simplistas e fugir dessa realidade; devemos, isto sim, situá-la num quadro mais amplo, conscientes de que a globalização faz com que essa realidade esteja sujeita a influências externas. Quais são os traços da situação atual que constituem verdadeiros desafios para a missão evangelizadora do cristão? – essa é a pergunta que cada cristão tem que buscar responder em sua comunidade ou movimento para identificar o caminho a seguir.

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1. Desafios econômicos sociais e políticos (13-21)

É um fato que a economia exerce grande influência sobre a sociedade e que a rapidez dos avanços tecnológicos e a globalização tem aspectos positivos (intercâmbio de informações, produtos, serviços), e negativos (redução da autonomia dos Estados, concentração da renda, aumento da pobreza e do desemprego, aumento da migração, exclusão em larga escala). Essa realidade que enfrentamos no dia-a-dia é fruto direto da adoção da política econômica neoliberal em nosso país. Embora o livre mercado seja um instrumento eficaz para dinamizar os recursos de modo que eles correspondam mais eficazmente às necessidades (o próprio Papa reconhece isso na Centesimus Annus), a realidade mostra que as necessidades humanas fundamentais não estão sendo atendidas, o que torna justa e correta a luta contra sistemas econômicos que asseguram a prevalência do capital, da posse dos meios de produção e da terra.

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O crescimento da dívida externa dos países em desenvolvimento, a enorme dívida social dos países para com os seus cidadãos – caracterizada pelos baixos salários e pela falta de condições básicas de alimentação, saúde, educação e moradia – esvaziam a democracia e desmotivam os cidadãos. Os problemas sociais brasileiros (tais como a profunda desigualdade social, a crescente onda de desemprego, a lentidão da reforma agrária), são agravados pelo fato de o país depender demais do sistema financeiro internacional. Isso revela a tendência geral da sociedade moderna de não levar em conta valores éticos (respeito aos direitos básicos, primazia do trabalho, solidariedade), ao lidar com a política e a economia. É nossa obrigação de cristãos ter bem claro que essa inversão de valores deforma as consciências e, como resultado, a sociedade vai deixando de ser capaz de distinguir o justo do injusto, o verdadeiro do falso. Numa sociedade assim, o que é totalmente anti-ético passa a parecer legítimo, com o conseqüente crescimento descontrolado da corrupção, do abuso do poder, da exploração institucionalizada e da impunidade.

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A juventude é gravemente atingida por essa situação e acaba deixando-se seduzir pela droga, tornando-se presa fácil da organização criminal do narcotráfico. Desesperançada, vítima da crise das relações sociais e familiares, a juventude passa a ter uma visão imediatista do mundo reforçada pelos MCS que exaltam a beleza e o consumo. Felizmente alguns jovens procuram os espaços oferecidos

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pelas Igrejas cristãs onde encontram oportunidade de oração, formação, serviço voluntário, exercício da cidadania.

Surgem, entretanto, sinais claros de reação de indivíduos, grupos e povos contra os efeitos perversos da globalização. Cresce o número dos que duvidam da viabilidade do atual modelo capitalista e, temendo suas conseqüências para o meio ambiente, buscam adotar medidas econômicas e sociais alternativas ao neoliberalismo, tomam iniciativas em defesa da própria tradição cultural, étnica ou nacional ameaçadas de nivelamento pela globalização, organizam-se para contestar leis que favorecem os poderosos, reivindicam seus direitos ao pleno exercício da cidadania e não aceitam continuar marginalizados. Cresce também, significativamente, a consciência de que o homem não pode continuar a destruir recursos naturais não renováveis, por causa dos riscos em que isso coloca o futuro da própria humanidade. Procura-se, também, desenvolver uma mentalidade contrária aos excessos característicos do consumismo, com vistas à reconciliação da humanidade com a natureza e à melhor distribuição dos bens. Para os cristãos isso é reconhecimento e respeito para com a obra do Criador.

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O modelo social que está diante de nós incentiva o egoísmo e reduz a pessoa a mero consumidor. É preciso revigorar a solidariedade entre todos os cidadãos para lutar contra esse modelo. É preciso sustentar iniciativas voluntárias de ajuda aos mais carentes e exigir decisões políticas e medidas legislativas em favor da justiça social e da garantia de igualdade de oportunidades. É dever da Igreja, de um lado, fazer uma crítica rigorosa às ideologias que desprezam os valores éticos fundamentais e, de outro, apoiar de todas as formas a construção de uma sociedade solidária. E esse dever se dá simultaneamente com a obrigação que ela tem de se interrogar sobre as suas próprias responsabilidades nos males do nosso tempo.

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2. Desafios culturais, éticos e religiosos (22-33)

Foram certas opções éticas e culturais que determinaram o predomínio da economia na sociedade atual. Por isso, não é suficiente analisar as estruturas políticas e econômicas para compreender as tendências da complexa sociedade atual. A cultura da modernidade (que critica o passado e oferece diferentes modelos de vida), substituiu definitivamente a tradicional. O pluralismo cultural, positivo em si mesmo quando proporciona diálogo e respeito mútuo entre as diversas culturas, é limitado e ameaçado pela influência poderosa dos MCS, transmissores da cultura global (que é regida pela lei de mercado e desprovida de preocupações éticas, razão pela qual manipula as consciências). Embora possam contribuir para aumentar a difusão da informação e do conhecimento, os MCS são usados para criar uma cultura de massa, contra a qual devem resistir a cultura popular, a cultura erudita e a cultura científica.

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Enquanto na sociedade tradicional a cultura determinava a identidade do indivíduo e lhe atribuía um papel, na sociedade moderna a cultura é um supermercado que o indivíduo freqüenta para adquirir elementos que lhe permitam construir sua própria visão de mundo. É a partir dessa visão individualista do mundo que o indivíduo vai responder às questões básicas sobre sua identidade e seu papel na sociedade. Ora, quando não há uma tradição ou cultura comum, enfraquecem-se os laços comunitários... É claro que a valorização da pessoa (processo que o próprio cristianismo acelerou), é algo positivo. Mas quando ela leva ao individualismo em detrimento de relações sociais adequadas, o resultado é uma concepção extremada de liberdade individual e o

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aumento da violência.

Quem tem uma concepção individualista da liberdade e um conceito relativista da verdade, aceita práticas que desprezam o valor da vida humana (aborto, eutanásia, consumismo, acúmulo de bens materiais, desprezo à solidariedade). Como essa é a visão predominante dos indivíduos da chamada sociedade moderna, estamos bem no meio do conflito entre o mal e o bem, a morte a vida, a cultura de morte e a cultura de vida, e não podemos nos furtar à luta em favor da vida.

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Essa mudança da identidade individual (fato decisivo na configuração da modernidade), tem profundas conseqüências também no campo religioso. De fato, nosso tempo observa um novo interesse pela religião. Chamado impropriamente de ‘revanche de Deus’, ‘sedução do sagrado’, ‘retorno do religioso’, esse interesse revela, no mais das vezes, apenas uma busca de solução de problemas pessoais (os indivíduos vão atrás de uma ‘religião’ porque precisam de consolo, cura e querem achar o sentido da própria vida). No meio urbano, as estruturas pastorais da Igreja Católica ainda não se adaptaram a essa situação que exige um atendimento mais diversificado e personalizado.

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É tendência atual as pessoas reverem sua escolha religiosa passando de uma para outra religião (ou Igreja). Os próprios católicos, por carecerem de uma adesão pessoal e viva a Jesus Cristo e de uma integração à comunidade eclesial, têm mudado de religião... Predomina o conceito de que todas as religiões são boas e busca-se satisfação do gosto pessoal, fazendo diferentes experiências aqui e ali. A rápida urbanização (que contrapõe o ambiente pós-moderno da cidade às tradições rurais), e a característica cultural brasileira (que somou elementos indígenas e africanos às práticas católicas), tornam fértil o terreno para essas experiências, levando, às vezes, a uma religiosidade sincretista, pessoal, de contornos indefinidos, como a da Nova Era.

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A sociedade vê positivamente a religião como questão de escolha (e ninguém nega que isso é muito melhor do que uma religião imposta pelo Estado, como antigamente ocorria), mas o indivíduo, que precisa fazer sua opção, às vezes se decide por uma religião individual (invisível, desvinculada das práticas comunitárias), chegando a conceber Deus como o que há de mais íntimo em si mesmo! Outros, recusando o individualismo e o subjetivismo, sentem saudade do passado em que havia uma só religião e todos acreditavam nela. Esses tendem a aderir a igrejas ou movimentos fundamentalistas (os que têm a pretensão de apresentar a verdade original!). Essa escolha proporciona certeza, segurança e apoio aos membros que se sujeitam a jamais discutir a doutrina ou a disciplina interna dessas igrejas ou movimentos. O esoterismo, o ocultismo, a magia, a crença na reencarnação são outras opções daqueles que rejeitam as formas institucionalizadas da religião ou a racionalidade científica, sejam eles indivíduos de pouca ou nenhuma escolaridade, ou de formação científica.

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A maioria, porém, ainda adere à religião tradicional (no Brasil, ao catolicismo), embora com restrições subjetivas (quantos são os católicos que ‘não aceitam isso ou aquilo’ na doutrina da Igreja, ou só aceitam interpretações fundamentalistas e literais da Bíblia e da doutrina!). A melhor resposta do verdadeiro católico a essa situação não é conservar a religião tradicional, mas renovar sua adesão a Cristo, tornando-a mais consciente e responsável, baseada numa experiência profunda de Deus, iluminada por sua Palavra, partilhada na vivência comunitária e sacramental, atenta ao magistério da Igreja. Já agora, e sempre mais no futuro, a

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fé católica será profundamente personalizada, assumida, enraizada na experiência de Deus... ou não será!

3. Força e fraquezas dos cristãos (34-43)

Observa-se entre os cristãos uma intensa busca de espiritualidade (que ocorre mais pela procura de consolo diante do desencanto com a realidade do que como experiência religiosa). Entre os católicos, multiplicaram-se os novos movimentos, revigoraram-se antigas associações e tradições religiosas populares, surgiram novas iniciativas pastorais motivadas pelas novas carências e aspirações e aumentou a busca de formação teológica por parte de leigos e leigas. Apesar das resistências dos grupos radicais, de um lado, e da tendência de confundir experiências religiosas, de outro, tem-se observado um clima favorável ao ecumenismo e ao diálogo entre as religiões.

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Como conseqüência da redemocratização do país, mudou também a presença dos católicos militantes na sociedade: há cristãos que saíram das comunidades eclesiais e levaram para os partidos políticos a inspiração cristã; há cristãos nas CEB’s, nas pastorais sociais e nos movimentos populares procurando organizar o povo na luta pelos seus direitos; há cristãos atuando em diversos órgãos (conselhos municipais, conselhos tutelares, etc.), através dos quais constroem ativamente a cidadania. Isso é particularmente importante numa sociedade em que as estruturas econômicas e políticas perderam as referências éticas.

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O crescimento dos movimentos eclesiais é um fenômeno digno de nota. Eles trazem muita gente ao encontro com Cristo, à experiência de Deus e têm grande força de aglutinação. A partir da participação nos mesmos, muitos cristãos voltam à Igreja e engajam-se nas pastorais. Infelizmente, entretanto, alguns conflitos resultam da visão de Igreja que esses cristãos têm e que é a visão do “seu” movimento, o que dificulta a comunhão com a caminhada pastoral.

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Multiplicam-se, também, as atividades das paróquias do meio urbano, tanto para atender às exigências de orientação espiritual como de serviço social. O grande número de expressões comunitárias (grupos, associações, movimentos e pastorais), revela, ao mesmo tempo, a vitalidade das paróquias e uma certa fragmentação e falta de harmonia. Isso passa a exigir maior participação no planejamento e uma revalorização dos Conselhos Pastorais. Enquanto cresce o esforço para descentralizar as paróquias, transformando-as em ‘redes de comunidades e movimentos’, as CEB’s procuram compreender a religiosidade popular, e abrir-se à dimensão missionária e ao diálogo com os movimentos eclesiais.

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Faltam estatísticas que comprovem o aumento do número de agentes de pastoral. Sabe-se que o número de paróquias é superior a 8.000; que cerca de 70.000 comunidades (nas quais o padre celebra a Eucaristia somente algumas vezes por ano), celebram semanalmente a Palavra; que existem de 300.000 a 350.000 catequistas e que um número ainda maior de leigos e leigas está encarregado de vários ministérios (animação da comunidade e da liturgia, pastoral social, ministério extraordinário do Batismo e da Comunhão, da Palavra, das exéquias e a função de Assistentes Leigos do Matrimônio). Em média, para cada presbítero, há mais de 50 leigos exercendo tarefas ou ministérios pastorais. Digna de destaque é a presença e a atuação das mulheres que, em maior número que os

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homens, participam de todos os setores da vida e da missão da Igreja e estão dando à comunidade um novo rosto graças ao seu modo próprio de viver a fé e o amor. Além de constituírem a grande maioria dos catequistas, de coordenarem setores pastorais e participarem ativamente das decisões, as mulheres começaram a exercer, também, o aconselhamento espiritual e o ensino da teologia.

Os últimos tempos revelaram um aumento do clero diocesano (cerca de 4.500 ordenações nos últimos 15 anos), havendo hoje um total de 16.000 padres, ou 1 para cada 10.000 habitantes, situação mais grave que a de 30 anos atrás, quando havia 1 padre para cada 6.284 habitantes. Isso se explica, também, pela diminuição do número de missionários que, em 1960, representavam 42% do clero e hoje somam 22%. Fica claro que o presbítero tem, ao mesmo tempo, maior sobrecarga em seu dia-a-dia e menor disponibilidade para atender às pessoas.

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A co-responsabilidade de todos os cristãos deverá ajudar a repensar as prioridades do ministério presbiteral face à ação evangelizadora e às exigências da comunidade eclesial e da sociedade. As carências não diminuíram a pronta e generosa adesão e acolhida ao Projeto de Evangelização Rumo ao Novo Milênio; ao contrário, mostraram novas possibilidades de ação pastoral e grande criatividade na evangelização. As características dessa realidade rica de promessas mas carente de discernimento e orientação, mostram a necessidade de recordar alguns fundamentos teológicos e traçar algumas diretrizes práticas, o que permitirá às comunidades eclesiais e aos cristãos e cristãs, continuarem, junto a seus pastores, procurando respostas corajosas, livres e criativas aos apelos de Deus e dos irmãos.

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II. A MISSÃO DO POVO DE DEUS – FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS

1. A missão (44-62)

A missão: obra de Deus, a serviço do Reino, através do Diálogo

A Igreja á chamada por Deus a realizar no mundo a missão iniciada por Jesus Cristo e, como Ele, deve servir. A própria Igreja compreende mais e melhor sua missão à medida que lê os sinais dos tempos e as mudanças da história humana. O Magistério da Igreja e a reflexão desenvolvida desde o Concílio mostra claramente isso. A Lumen Gentium diz que a Igreja é sacramento de Cristo, isto é, sinal da união íntima com Deus e da unidade do gênero humano. A Gaudium et Spes diz que a Igreja é sacramento universal de salvação pois manifesta e torna atual o mistério do amor de Deus pelos homens, isto é, ela não é apenas sinal mas, de algum modo, realização do Reino. Ao explicar a identidade da Igreja, a Lumen Gentium trata-a como o fruto da missão do Filho e do Espírito Santo enviados pelo Pai. Este é um elemento fundamental da teologia da missão, pois deixa claro que a missão é ação de Deus que atua no mundo através do Filho e do Espírito Santo, verdadeiro protagonista da missão neste tempo que antecede a Parusia.

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O Concílio afirmou, também, que toda a Igreja é missionária e evangelizar é dever fundamental do Povo de Deus. Assumir a missionariedade não é apenas ‘implantar’ a Igreja, mas servir ao mundo servindo ao Reino e à Paz, principalmente na América Latina, onde esse empenho se concretizou na luta pela justiça e pela libertação humana. O diálogo inter-religioso passou, principalmente a partir do Sínodo de 1974, a integrar a reflexão sobre a missão.

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No diálogo com a sociedade e com as outras Igrejas cristãs, deve-se buscar a verdade que convém à pessoa humana. Esse diálogo deve ser fruto do profundo respeito por tudo o que o Espírito – aquele que sopra onde quer – operou em cada homem, e deve levar a Igreja a descobrir as sementes do Verbo que se abrigam nas pessoas e nas tradições religiosas da humanidade.

A Missão: Evangelização e nova Evangelização

O tema da Evangelização é o que melhor exprime a própria missão da Igreja e, após o Concílio, a Evangelii Nuntiandi, as Conferências de Puebla e Santo Domingo e a Encíclica Redemptoris Missio, aprofundaram esse tema. Mas essa reflexão prossegue descobrindo novos aspectos da missão da Igreja, pois não lhe basta anunciar a mensagem. É seu dever reconhecer os sinais dos tempos, interpretá-los à luz do Evangelho e responder, de modo adaptado a cada geração, às eternas perguntas dos homens sobre o sentido desta vida e da outra e da relação entre elas. Na Redemptoris Missio o Papa examina alguns problemas levantados pela teologia da missão após o Concílio e fala em nova evangelização. Assim como na Evangelii Nuntiandi Paulo VI já falava na necessidade de superar a ruptura entre fé e vida, entre o evangelho e a cultura, João Paulo II fala agora na necessidade de se fazer isso precisamente nos lugares onde os próprios batizados perderam o sentido vivo da fé, vivem distantes de Cristo e seu Evangelho, não se reconhecem como membros da Igreja. A nova evangelização deve, pois, levar em conta as mudanças que acontecem e os desafios que surgem.

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A Evangelização nas diretrizes da Igreja no Brasil

Desde a Assembléia da CNBB de 1995, vem-se falando nos quatro aspectos essenciais para uma evangelização inculturada: serviço, diálogo, anúncio e testemunho de comunhão. Essa opção se fundamenta em duas razões: o seu caráter prático (a experiência da Igreja antiga capacita e ajuda a apreender as tarefas de hoje), e a sua capacidade de expressar a novidade da prática que Jesus inaugurou e confiou aos discípulos.

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Outra forma de descrever a missão de Cristo é a que ressalta a continuidade do plano de Deus para o seu povo. Como o Povo de Deus fora guiado por profetas, sacerdotes e reis, o novo povo, fruto da nova aliança, é guiado por Cristo que é, ao mesmo tempo, profeta, sacerdote e rei. Assim, todo o Povo de Deus se torna, com Jesus, partícipe do tríplice múnus profético (no ministério da Palavra de Deus), sacerdotal (no ministério litúrgico ou do culto), e real (no ministério do governo ou pastoreio do Povo de Deus). Por isso acentua-se mais a constituição do Povo de Deus na segunda parte deste documento e, na terceira, retomam-se as exigências da evangelização, acentuando a missão confiada à Igreja. É em virtude de sua participação no tríplice múnus que a Igreja é chamada a anunciar a salvação em Cristo e o Reino, através da solidariedade, do serviço e da capacidade de gerar comunidade onde já se vive a comunhão com Deus e com os irmãos, semente do Reino. As diferentes exigências se interligam e são expressões necessárias da única missão. Por isso, não seria autêntica uma evangelização que só promovesse a libertação humana, nem seria legítimo anunciar o Reino se não se mostrassem, ao mesmo tempo, os sinais de libertação do ser humano dos males que o oprimem, já presentes nas iniciativas de solidariedade e justiça.

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Anúncio do Evangelho e sinais de Solidariedade

Como Jesus, a Igreja deve não apenas anunciar o Reino mas realizar as obras e os sinais que revelam o amor de Deus pela humanidade. Também na Encíclica

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Evangelium Vitae, expressa João Paulo II a missão da Igreja ao falar que são um único e indivisível Evangelho, o Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida. Isso mostra que o Papa une o anúncio de Cristo e o empenho da Igreja pela vida humana em todas as suas dimensões. O coração da mensagem do evangelho e o conteúdo fundamental da missão da Igreja e do serviço que ela presta à humanidade é este: Cristo, nossa esperança, é a vida em plenitude. Novamente, na Exortação Ecclesia in America, evidenciam-se as mesmas preocupações: o Sínodo convoca os povos da América para um encontro com Jesus Cristo vivo e demonstra a solidariedade dos cristãos com todos os cidadãos.

Assim, para realizar a missão da Igreja impõe-se a comunhão eclesial, testemunho de unidade dos cristãos entre si e com Cristo. Sinais indispensáveis para o mundo e para os que estão distantes de Cristo e do seu Evangelho, são a solidariedade da Igreja com todos os homens sem distinção e os serviços que ela presta. E esses sinais se concretizam: na presença animadora dos presbíteros ajudando a superar a dificuldade natural de reconhecer a dimensão da fé e da caridade no social e no político e na luta pela justiça; nas diversas instâncias (Conselhos de Justiça e Paz, Cor Unum, Fundação Populorum Progressio), que buscam promover o diálogo entre os povos em conflito, a reconciliação entre nações divididas, o desenvolvimento social, os direitos dos mais fracos; no empenho pessoal do Papa que procura levar seu apelo à justiça e à paz em suas homilias e viagens.

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A competência dos leigos

A tarefa de promover a justiça e a paz e efetivamente prestar solidariedade e serviço aos irmãos é, em primeiro lugar, responsabilidade dos cristãos que têm competência na economia, na política, nas relações internacionais, nos sindicatos, nas organizações assistenciais, nos movimentos populares e nas pastorais sociais. A Lumen Gentium afirma claramente que cabe aos leigos tornar a Igreja presente e operante nos lugares onde só por meio deles ela pode vir a ser sal da terra, ou seja, eles devem agir lá onde estão por suas circunstâncias de vida, fazendo aquilo para o que têm competência e preparo específico. Inúmeros são os exemplos (públicos ou humildes e escondidos), da luta desenvolvida pelos leigos e leigas cristãs em favor da justiça e da paz. Ao mesmo tempo, os leigos e leigas contribuem para a edificação da comunidade eclesial, servindo-a com generosidade e competência. Fica claro, pois, que a missão evangelizadora da Igreja é realizada por todo o Povo de Deus que tem variadas vocações e ministérios (presbíteros, religiosos, leigos), que se harmonizam sem se confundir na realização da tarefa comum.

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2. O Povo de Deus (63-110)

A Igreja, que está no mundo mas não é do mundo, é uma presença diferente no mundo; não é apenas uma sociedade como qualquer outra, mas é mistério de comunhão, cujo modelo e princípio é a unidade na Trindade das pessoas de um só Deus: Pai e Filho no Espírito Santo. Por isso a Lumen Gentium chama a Igreja de povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Esse mistério de comunhão reflete, apesar das limitações dos seus membros e do tempo e do espaço em que a Igreja se insere, o mistério da comunhão trinitária, fonte da vida e da missão da Igreja, modelo de suas relações, fim último de sua peregrinação. A mesma Lumen Gentium apresenta a Igreja também como Povo de Deus. Assim, presente desde sempre no desígnio de Deus, a Igreja se concretiza no tempo que

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transcorre entre a Ascensão e a Parusia do Senhor, ou seja, o mistério de comunhão exprime-se na comunhão articulada do Povo de Deus.

Povo de Deus

A expressão Povo de Deus nos remete ao momento decisivo em que a revelação de Javé a Moisés trouxe resposta ao anseio humano do Absoluto. Aquele povo que não teria outro Deus além de Javé, faz com Deus uma Aliança e conquista a liberdade, a dignidade e a segurança através do êxodo. Em Cristo, entretanto, é que se dará a nova e perfeita Aliança entre Deus e o povo chamado, não segundo a carne, mas no Espírito, para ser o novo povo escolhido, um povo messiânico que tem Cristo por cabeça, a dignidade e a liberdade de filhos de Deus por condição, o mandamento novo do amor por lei, e o Reino de Deus por meta.

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Além de nos remeter ao primeiro povo escolhido, a expressão Povo de Deus nos recorda que a Igreja é uma realidade histórica, fruto da proposta de Deus e da livre resposta do homem – eis porque ela não pode deixar de fazer escolhas e abrir caminhos em todos os momentos marcantes da civilização e da cultura, tal como o que hoje vivemos. E, por situar-se entre a primeira e a segunda vinda do Senhor, a Igreja participa, ao mesmo tempo, da transitoriedade deste mundo e da definitividade de Deus. Os discípulos que acolheram Jesus de Nazaré pela fé, precisam hoje acolhê-lo de novo nos famintos, nos sedentos, nos migrantes, nos despojados, nos doentes e nos encarcerados, pois cabe à Igreja Povo de Deus evangelizar os pobres, proclamar a remissão aos presos, aos cegos a recuperação da vista, aos oprimidos a liberdade e anunciar a todos um ano de graça, ou, em outras palavras, o serviço à vida e à esperança.

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A expressão Povo de Deus mostra na Igreja aquilo que é comum a todos os seus membros. A partir do Concílio a Igreja não é mais vista como uma sociedade desigual, noção que favorecia aquela distância entre hierarquia e laicato que o Novo Testamento não conhecia e que prejudicou o testemunho cristão no mundo. Quando se fala em Povo de Deus quer-se exprimir a unidade, a dignidade comum, a habilitação de todos os membros da Igreja a participar em sua vida e ser co-responsável em sua missão. Mais importante que as diferenças carismáticas e ministeriais é a condição cristã comum a todos os membros da Igreja, já que existe um só povo eleito, um só Senhor, uma só fé e um só batismo. É comum a todos a dignidade de membros, a vocação à perfeição, a esperança, a caridade. É, pois, também comum, a participação nas funções profética, sacerdotal e real de Cristo.

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O Povo de Deus participa da função profética de Cristo pelo testemunho de sua vida de fé e caridade e pelo louvor. Essa fé suscitada e sustentada pelo Espírito da Verdade, faz com que o Povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério – apegue-se à fé transmitida aos santos e, penetrando-a mais profundamente, aplique-a mais plenamente à própria vida. A essa função profética pertencem as várias modalidades de relação entre a comunidade dos fiéis e a palavra de Deus. A palavra (cuja pregação não foi confiada a alguns, mas a todos), deve ser acolhida na fé, vivida no amor, testemunhada exteriormente, aprofundada pela catequese e pela reflexão teológica, celebrada na liturgia comunitária, anunciada pela pregação e motivadora de denúncia das realidades contrárias ao Reino.

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O Povo de Deus é um povo sacerdotal à medida que participa da função sacerdotal de Cristo. O sacerdócio único e indivisível de Cristo (que não é ritual, nos moldes do Antigo Testamento), é um sacerdócio existencial e revelou-se na entrega de todo o seu ser e existência ao Pai, no Espírito, e aos homens, através

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da qual realizou-se uma perfeita e insuperável mediação entre Deus e os homens. Aderindo integralmente a Cristo, os cristãos podem prestar a Deus um culto autêntico que consiste na transformação de sua existência pela caridade. Elevando a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso sacrifício de louvor, fazendo o bem e praticando a mútua ajuda comunitária (sacrifícios que agradam a Deus), apresentando-nos a nós mesmos em sacrifício, pondo nossa confiança no sacrifício existencial de Cristo – assim exercemos o sacerdócio comum. É na nossa vida totalmente transformada por meio da caridade divina, é na vivência da nossa vocação à santidade suscitada e sustentada pelo Espírito que nos leva a nos colocar a serviço de Deus e de seu Reino – eis no que consiste o nosso culto agradável a Deus.

A proclamação e a instauração do Reino de Deus são, ao mesmo tempo, centro e resumo, objetivo e missão de Jesus. Jesus é Rei porque, nEle, o Reino se faz presente. O Povo de Deus participa da função real de Jesus à medida que sua vida ajuda a tornar cada vez mais presente esse mesmo Reino. Acontecimento que se manifesta no coração humano (pela relação com Deus, pela fé e pela conversão), o Reino se manifesta também nas relações entre as pessoas e nas estruturas em que elas vivem. Como o Reino diz respeito a todos – pessoas, sociedade, mundo – trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino presente na história humana e capaz de transformá-la; construir o Reino significa trabalhar para a libertação do mal, sob todas as formas. O próprio Jesus enviou os discípulos a proclamarem o Reino – sempre caracterizado pelo amor aos pequenos, aos pobres, aos inimigos, aos oprimidos.

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O Reino é, pois, maior que a Igreja e que o mundo, mas está presente e atuante tanto na Igreja como no mundo: na Igreja, de modo sacramental e consciente; no mundo, de modo oculto e inconsciente. A Igreja não é o Reino, mas o seu sacramento, enquanto sinal e instrumento do agir salvífico de Cristo no Espírito. A Igreja não existe para si mesma, mas para o Reino de Deus, por isso faz suas as tristezas e as angústias, as alegrias e as esperanças dos homens de hoje e, como o Filho do Homem veio para servir e não para ser servido, a Igreja toda deve-se colocar sempre mais a serviço do Reino.

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Uma só missão, vários ministérios

A expressão Povo de Deus lembra também que a missão da Igreja – que é por natureza peregrina pois se origina da missão do Filho e do Espírito Santo, conforme o desígnio do Pai – não é responsabilidade de alguns, mas de todos. O Concílio enfatizava que os pastores sabem quanto os leigos contribuem para o bem da Igreja, pois Jesus não os constituiu para desempenharem sozinhos a missão salvadora da mesma Igreja, mas para pastorear os fiéis e reconhecer seus serviços e carismas (cf. LG 30). Por isso a Igreja toda é ministerial, e é chamada de comunidade de serviço, de comunhão e participação.

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Na variedade católica dos carismas, das funções, das Igrejas Particulares, das tradições e das culturas a expressão Povo de Deus ilumina a unidade da Igreja – um só corpo no qual cada membro tem uma função – cuja plenitude é suscitada e vivificada pelo Espírito. É preciso ressaltar, ainda, que a expressão Povo de Deus evoca a variedade de carismas, serviços e ministérios que o Senhor reparte entre os fiéis para o fiel cumprimento da missão da Igreja. Ensina o Concílio que o Espírito Santo não apenas santifica e conduz o Povo de Deus através dos sacramentos e dos ministérios mas dos dons que confere a esse mesmo Povo, tornando-o apto e pronto a responsabilizar-se pelo trabalho em favor de todos. O

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Povo de Deus deve receber esses carismas com gratidão e consolação, pois eles são úteis a toda a Igreja. E não deve pedir temerariamente dons extraordinários (cuja autenticidade e adequado exercício compete aos que governam a Igreja [cf. LG12b]).

Na verdade, no que diz respeito aos ministérios eclesiais, a Igreja, que está atenda às indicações do Espírito Santo, vai-se organizando e estruturando sempre levando em conta suas necessidades internas e os desafios que sua missão no mundo lhe apresenta. Para isso ela se inspira no Novo Testamento – que mostra diversos modelos do modo de se estruturar a Igreja de acordo com diferentes contextos históricos e culturais – e cria novos modelos que satisfaçam as exigências de sua missão nos diferentes contextos em que atua.

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Dois elementos fundamentais, que se inter-relacionam, estão na base desse processo: um de dimensão transcendental: a atuação do Espírito Santo na comunidade dos fiéis; outro de dimensão humana: a busca humana das melhores opções. O exemplo mais claro dessa busca ativa e criativa está na Igreja primitiva: quando surgia um conflito, os Apóstolos convocavam a assembléia dos fiéis para propor soluções (cf. At 6, 1-6). Vários trechos do Novo Testamento mostram uma íntima relação entre carisma e serviço, como por exemplo a Carta aos Romanos (12, 4ss), que fala da diversidade de dons, carismas, ministérios, modos de ação – tudo operado pelo mesmo Espírito.

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É preciso ter claro o que se entende por ministério, e a tendência atual é defini-lo como o carisma que assume a forma de serviço à comunidade e à sua missão no mundo e na Igreja, e que essa mesma Igreja acolhe e reconhece como tal. O ministério é, portanto, em primeiro lugar um carisma, isto é, um dom do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, que faz com que seu portador esteja apto a desempenhar determinadas atividades, serviços e ministérios orientados para a salvação. Quando se fala em carisma não se pretende dar destaque aos mais extraordinários e espetaculares, mas aos que sustentam a fé e a ajudam a encarnar-se, pois, ao lado da capacidade de operar milagres, Paulo recorda o carisma da assistência e do governo da comunidade e afirma o valor dos serviços mais humildes e estáveis, destacando que todos os carismas, serviços e ministérios de que a Igreja é dotada pelo Espírito para cumprir sua missão, completam uns aos outros e se integram como os membros de um mesmo corpo; no respeito ao princípio de subsidiariedade (cf. 1Cor 12 e CIC 48).

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É preciso ter claro, também, que, de outro lado, nem todo carisma é ministério. Ministério é o carisma que, na comunidade e em vista da missão na Igreja e no mundo, assume a forma de um serviço determinado e envolve um conjunto de funções que respondem a certas exigências permanentes da comunidade e da missão. Além disso, esse ministério deve ser assumido com estabilidade, comportar responsabilidade e ser reconhecido pela comunidade eclesial. É essencial que a comunidade eclesial reconheça o ministério porque ele é uma atuação pública e oficial da Igreja e torna seu portador um representante dessa mesma Igreja.

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A reflexão teológica e pastoral distingue quatro grupos de ministérios (sendo os três primeiros os não-ordenados: a) os que são simplesmente reconhecidos (embora ligados a um serviço importante para a comunidade, não são tão permanentes e podem vir a desaparecer quando mudarem as circunstâncias); b) os que são confiados (conferidos ao seu portador por algum gesto litúrgico simples ou alguma forma canônica); c) os que são instituídos (conferidos pela

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Igreja através do rito litúrgico da ‘instituição’); d) os que são ordenados (conferidos ao seu portador através do sacramento da Ordem). Numa Igreja toda ministerial, o ministério ordenado não detém o monopólio da ministerialidade mas, sem ser ‘a síntese dos ministérios’, é o ‘ministério da síntese’, cujo carisma específico é a presidência da comunidade e, portanto, sua animação e coordenação, com a indispensável participação ativa e adulta dessa comunidade. O ministro ordenado está a serviço do Espírito – que deve ser sempre de novo reconhecido e acolhido na Igreja e no mundo – e a serviço de Cristo.

São ministérios instituídos, na Igreja latina, o de Leitor e Acólito, criados por Paulo VI, em 1972. Embora tendo esse ‘modelo’, a Igreja tem preferido formas menos institucionalizadas de ministérios (os reconhecidos e os confiados). Em algumas Dioceses, têm-se desenvolvido outros ministérios, a partir das necessidades das comunidades, os quais são conferidos através de um rito litúrgico presidido pelo Bispo. Como os membros da comunidade que recebem esses ministérios são escolhidos pela própria comunidade, eles configuram uma espécie de ‘instituição’ daquela Igreja particular. É claro que a instituição oficial de ministros leigos numa comunidade (seguindo o ritual litúrgico previsto para tal circunstância), tem grande significado para o fortalecimento da dimensão eclesial dos ministérios leigos, mas deve fazer parte de um projeto diocesano e ser o ponto alto de um processo de valorização dos leigos nas comunidades.

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Diversos valores eclesiais são fortalecidos com esse processo: (1) o envolvimento da comunidade na indicação dos seus ministros, recuperando a dinâmica da Igreja primitiva, na qual a comunidade participava das responsabilidades do ministério apostólico; (2) a indicação clara de leigos para assumirem responsabilidades eclesiais indica a superação da mentalidade segundo a qual apenas pessoas ordenadas podem exercer ministérios na Igreja; (3) a instituição de ministros ajuda a comunidade a compreender que todos os cristãos participam da missão da Igreja; (4) a instituição de ministros possibilita uma distribuição de tarefas que deixa ao ministro ordenado mais tempo para as tarefas mais específicas do seu ministério; (5) a instituição de ministros leigos em ato que conte com a presença do Bispo, torna visível a unidade de atuação de todos os ministérios na Diocese e abre caminho para a diversidade e para a descentralização, indo ao encontro das necessidades específicas de cada comunidade.

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Alguns ministérios exercidos por leigos são chamados ‘ministérios de suplência’: embora seu exercício não dependa da ordenação, suas funções são historicamente consideradas próprias de ministérios ordenados e são assumidos para suprir a falta ou impossibilidade dos ministros ordenados. A existência dos ‘ministérios de suplência’ levanta uma pergunta: se funções próprias do ministério ordenado podem ser assumidas por leigos e leigas, em determinadas circunstâncias, por que não se parte para uma organização mais avançada, criando ‘ofícios’ que seriam conferidos aos leigos de modo estável e não com caráter de suplência? É bom que se diga que, de um lado, do ponto de vista teológico, se um leigo pode suprir um ministro ordenado é porque os sacramentos de iniciação o habilitam para isso; de outro, em alguns lugares, a suplência não é algo eventual ou provisório, mas uma situação pastoral normal, habitual, sem previsão de mudança.

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Outro ponto que merece reflexão é a distinção entre ministérios ‘ad intra’ e ministérios ‘ad extra’. A realidade mostra que existem funções mais voltadas para a edificação e manutenção da comunidade eclesial e funções destinadas à

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atuação da Igreja na sociedade. A realidade mostra, também, que há um número muito maior de leigos engajados nas tarefas catequéticas e litúrgicas do que, por exemplo, nas pastorais sociais ou nas atividades missionárias. Essa distinção baseia-se numa visão teológica que separa de forma rígida e inadequada, Igreja e mundo, vida da Igreja e missão da Igreja, vida interna da Igreja e missão da Igreja no mundo. Na verdade, quando se fala em missão ou ministério da Igreja, está-se englobando no mesmo dinamismo a vida interna da Igreja e sua atuação no mundo. Ora, Igreja é aquela porção da humanidade que professa, proclama, vive, celebra e serve ao mistério da salvação que Deus opera no mundo e na história. Portanto, tudo na Igreja e todos na Igreja estão a serviço desse plano de salvação e libertação.

Assim, não é preciso sair da Igreja para ir ao mundo, nem sair do mundo para entrar na Igreja! A palavra será sempre palavra da Igreja que é serva do projeto de salvação de Deus na história e no mundo; a liturgia celebrará as maravilhas que Deus opera nos homens como um todo, também nas suas relações com a história e com todo o universo; o serviço será a face concreta da missão da Igreja no mundo e não da presença da Igreja no mundo através de alguns dos seus membros. Não se deve pensar, pois, numa divisão de tarefas e ministérios – uns dedicados exclusivamente à vida interna da Igreja e outros à presença da Igreja no mundo – porque isso seria o mesmo que confirmar que existem dois gêneros de cristãos! Entender a Igreja como ‘sacramento de salvação’ significa superar a divisão entre ad intra (Igreja funcionando em si e para si), e ad extra (Igreja servindo ao mundo). Não há, pois, ministérios para a vida interna e ministérios para o exterior da Igreja; há somente ministérios na Igreja e para a Igreja; Igreja que é sacramento de salvação e libertação do homem todo e de todos os homens na única história da salvação.

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É importante deixar claro que os ministérios não estão limitados a determinadas áreas da missão da Igreja (por exemplo, culto, palavra, coordenação eclesial). Verdadeiros ministérios se desenvolvem na função profética, na função sacerdotal e na função real. Os agentes da pastoral da criança, de uma área da pastoral social, os catequistas – esses não são ‘menos’ ministros do que os ministros da Eucaristia... As pastorais sociais – atuação de pessoas ou grupos de pessoas, em nome da Igreja, em determinado campo da vida humana – podem ser consideradas verdadeiros ministérios. Por isso, deve-se usar o termo ministério e não serviço para todas as funções importantes exercidas em nome da Igreja, que respondam a uma necessidade permanente.

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Na verdade, a diferença entre ‘serviço cristão’ e ‘ministério’, está em que o ministério sempre implica representatividade da Igreja e compromisso das autoridades eclesiais em relação à pessoa que o exerce. É preciso reconhecer, também, que nem toda atuação cristã no social e no político pode ser considerada ministério. Conforme a teologia do laicato, há distinção entre agir ‘como’ cristão e agir ‘enquanto’ cristão, ou entre ‘agir cristão’ e ‘agir eclesial’. A atuação dos cristãos nas realidades, respeita a autonomia dessas realidades, enquanto o agir eclesial representa e empenha publica e oficialmente a Igreja. Os ‘serviços’ cristãos não são chamados ministérios porque não é preciso nenhuma designação ou reconhecimento para testemunhar a fé no mundo, estar a serviço uns dos outros na Igreja, exercer tarefas que cooperam para o anúncio do Evangelho e para a construção do Corpo de Cristo. Fique claro que, quando se diz que o exercício cristão de uma profissão civil ou atividade política não é um ministério, não se está desmerecendo nem diminuindo seu valor (que é o do

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testemunho), mas respeitando a natureza das coisas e a legítima autonomia das realidades terrestres e do cristão envolvido nelas.

Também é importante enfatizar que embora assuma ministérios ‘reconhecidos’, ‘confiados’ ou ‘instituídos’, os cristãos leigos permanecem leigos e, por isso, devem viver esses ministérios e exercê-los na sua condição laical, condição essa que os coloca numa relação característica com Cristo, com a Igreja e com o mundo. Dizia o Concílio que a delegação que os leigos recebem para o apostolado vem de sua união com Cristo, Cabeça do Corpo Místico, ao qual foram inseridos pelo Batismo (cf. AA3). Por isso, é importante que os leigos saibam com clareza que, vivendo sua condição cristã na família, na profissão, no apostolado, em alguma forma de ministério, com ou sem mandato canônico, eles o fazem por causa do Batismo que os torna pertencentes ao Corpo de Cristo, e da Confirmação que os envia em missão.

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Identidade Teológica dos Leigos e Leigas

É preciso aprofundar o estatuto teológico dos leigos com base no Vaticano II (considerado o Concílio da Igreja e também o Concílio dos leigos e leigas). Para o Concílio, a estrutura social da Igreja se compõe de hierarquia (realizando a missão do povo cristão basicamente na Igreja), e laicato (realizando a missão do povo cristão basicamente no mundo). A Lumen Gentium não dá uma definição de leigo mas o descreve (cf. LG 31), apontando sua diferença em relação à hierarquia e aos religiosos, ressaltando sua condição cristã e eclesial e enfatizando sua índole secular. É aos leigos que compete buscar o Reino exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Na vida familiar e social, os leigos são chamados a se deixar guiar pelo espírito evangélico e, a modo de fermento, isto é, a partir de dentro, contribuir para a santificação do mundo, manifestando Cristo aos outros pelo testemunho de uma vida de fé, esperança e caridade. É função dos leigos iluminar e ordenar de tal modo as coisas temporais, que elas se desenvolvam segundo Cristo, para louvor do Criador e Redentor.

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O Concílio deixou claro, portanto, que os leigos são antes de tudo, cristãos. A Nova Aliança prometida por Javé, da qual deveria nascer um povo novo, santo e universal, consumou-se no sacrifício de Cristo. Quem nEle crê, regenerado pela Palavra, pela água e pelo Espírito, é transformado em ‘cristão’. Como pertencem a Cristo, graças ao Espírito, os leigos são filhos de Deus e irmãos entre si na Igreja. Essa condição cristã comum a todos os batizados define sua identidade e os diferencia do mundo. É, aliás, precisamente essa a condição acentuada no Novo Testamento: internamente, os primeiros seguidores de Jesus se chamavam de discípulos, crentes, fiéis, irmãos, santos, eleitos; os de fora, porém, os chamavam de ‘cristãos’.

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O leigo é, portanto, antes de tudo, cristão porque desfruta dessa identidade comum a todos os batizados. O que o distingue dos demais fiéis é a ‘definição negativa’ pela qual o termo leigo tem o sentido técnico de ‘não pertencente ao clero’. Por isso o Concílio fala que leigos são todos os cristãos, exceto os membros de ordem sacra ou estado religioso. Mas como está interessado em descrever positivamente o leigo, afirma, na seqüência, sua incorporação a Cristo pelo batismo, sua constituição em povo de Deus, sua participação na tríplice função de Cristo e na missão comum a todo o povo cristão, na Igreja e no mundo. Com expressões como ‘a seu modo’ e ‘pela sua parte’, o Concílio acentua o caráter distintivo dessa participação. E ao acentuar que o leigo desempenha a missão do povo cristão na Igreja e no mundo, o Concílio não ‘reparte a missão’ designando a

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Igreja aos clérigos e o mundo aos leigos.

Depois de deixar claro que os leigos participam plenamente da missão da Igreja, a Lumen Gentium descreve sua peculiaridade usando o termo índole secular, que deixa claro que os leigos são chamados a evidenciar a missão da igreja no mundo, seguindo sua vocação de procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais, ordenando-as segundo Deus e contribuindo para a santificação do mundo à maneira de fermento (cf. LG 31).

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O Concílio é preciso ao informar que, em relação aos clérigos e aos religiosos (os primeiros chamados a se dedicar ao ministério e os segundos a acentuar a transfiguração-oblação do mundo pelo espírito das bem-aventuranças), o leigo é o cristão que vive no mundo. É claro que os clérigos e religiosos também vivem no mundo, mas os leigos vivem no mundo de modo diferente. Atuando como fermento, eles devem manifestar Cristo aos outros pelo testemunho de uma vida de fé, esperança e caridade (cf. LG 31, ChL 15).

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Do ponto de vista teológico, pois, a condição de vida do leigo é a sua primeira vocação. Sua própria existência tem valor evangélico e é vivendo sua própria vida segundo Deus que o leigo busca o Reino. É de novo o Concílio, agora na Gaudium et Spes que vai exortar os leigos a desempenharem suas tarefas terrestres guiados pelo Espírito do Evangelho. E mais, deixa claro que se afastam da verdade aqueles que, sabendo que “não temos aqui cidade permanente”, acham que podem negligenciar o cumprimento dos seus deveres terrestres. Porque é precisamente por causa da própria fé e de acordo com a sua vocação pessoal, que eles estão ainda mais obrigados a cumpri-los! O contrário também constitui erro: dedicar-se às atividades terrestres como se elas nada tivessem a ver com a vida religiosa, como se a vida religiosa fosse constituída apenas dos atos de culto. Esse divórcio entre vida e fé é um dos erros mais graves do nosso tempo. Tanto assim é que, ao negligenciar seus deveres temporais, o cristão negligencia, ao mesmo tempo, seus deveres para com o próximo, para com Deus e coloca em perigo sua própria salvação (cf. GS 43).

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Ao enfatizar que a índole secular é própria e peculiar aos leigos, não diz o Concílio que ela é exclusiva destes (existem ministros ordenados exercendo profissões civis e diáconos permanentes vivendo as condições ordinárias da vida). Isso supera todo o separatismo e descortina diante dos leigos várias das atividades que durante muito tempo foram atribuídas apenas aos ministros ordenados, além, é claro, do vasto campo das realidades terrestres. Ao falar das primeiras, o Concílio compara os leigos aos homens e mulheres que ajudavam o apóstolo Paulo no trabalho da Evangelização e esclarece que eles gozam de aptidão para serem designados pela hierarquia para cooperar mais imediatamente com o seu apostolado, exercendo alguns ofícios eclesiásticos com finalidade espiritual (cf. LG 33, LG 18, AA 10 e 12, AG 15). No chamado vasto campo das realidades terrestres, os leigos agem com responsabilidade própria e iluminados pela fé – não precisam esperar que os pastores da Igreja lhes apresentem uma doutrina ou solução concreta para as situações que vierem a enfrentar.

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“Hierarquia e Laicato” ou “Comunidade – Carismas e Ministérios”?

O Concílio lançou as bases para uma compreensão da estrutura social da Igreja como comunhão. A realidade mostra, porém, que essa mesma estrutura continua a se caracterizar pelo binômio hierarquia e laicato. Esse binômio distingue muito a hierarquia e o laicato entre si mas não realça a unidade batismal, crismal e eucarística que os liga no mesmo e único espírito, deixando na sombra a

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condição cristã e a missão comum a todos (que os distinguem em relação ao mundo), como se hierarquia e laicato não pertencessem à mesma comunhão eclesial. De outro lado, ao expressar as duas condições – hierarquia e laicato – esse binômio deixa na sombra a imensa variedade de carismas, serviços e ministérios que o Espírito suscita para a vida e a missão da Igreja.

Por essa razão, vários teólogos começaram a desenvolver as perspectivas já presentes no Concílio e, com base nelas, passaram a propor uma abordagem diferente da estrutura social da Igreja: ao invés de “hierarquia e laicato”, “comunidade – carismas e ministérios”. No primeiro termo, comunidade, estaria incluído tudo o que há de comum a todos os membros da Igreja; nos dois últimos, carismas e ministérios, estaria incluído tudo aquilo que distingue positivamente esses membros. Entende-se que é esta a perspectiva do Novo Testamento, onde a palavra leigo nunca aparece. No Novo Testamento são sublinhados os elementos comuns a todos os cristãos e valorizadas as diferenças de seus carismas, ministérios e serviços. E para designar os membros desse Povo de Deus, as palavras escolhidas acentuam a condição comum a todos aqueles que nasceram pela água e pelo Espírito: santos, eleitos, discípulos, irmãos.

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Esse novo binômio – comunidade - carismas e ministérios – deve ser completado pela perspectiva da missão que a Igreja toda (pastores e leigos, consagrados e não consagrados), deve desempenhar no mundo. Essa Igreja toda é sacramento de salvação e seus membros realizam essa missão de acordo com os carismas recebidos e com os serviços ou ministérios que exercem. Essa perspectiva confere nova maneira de ver a índole secular (ou secularidade, ou laicidade), distinguindo a laicidade do próprio mundo e a laicidade da própria Igreja.

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A laicidade do próprio mundo é a sua consciência própria, a sua autonomia em relação à Igreja, a organização da convivência humana com critérios e por caminhos elaborados pela sociedade civil. A laicidade da própria Igreja está no fato de que ela toda (não só os leigos), está no mundo e participa das atividades de todos os campos do mundo. Como há uma índole secular própria e peculiar dos leigos, o Concílio liga a vocação dos leigos com o mundo de modo especial, acentuando que lhes cabe tornar a Igreja presente e operosa nos lugares e circunstâncias onde apenas por meio deles ela pode chegar como sal da terra, agindo ao mesmo tempo como testemunha e instrumento vivo da missão da Igreja (cf. LG 33). Na Evangelii Nuntiandi essa idéia é explicitada em detalhes: o campo próprio da atividade evangelizadora do leigo é o mundo da política, da realidade social, da economia, da cultura, das ciências, das artes, da vida internacional, dos meios de comunicação social de massa, e de outras realidades que podem ser permeadas pela Evangelização, por exemplo, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional, o sofrimento (cf. EN 70).

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A laicidade da Igreja precisa ser reconhecida se a Igreja quiser ser coerente com a mensagem cristã e digna de crédito na sociedade moderna e pluralista. E essa laicidade da Igreja consiste em viver na Igreja os valores (chamados laicos mas de origem cristã), que são o referencial ideal da convivência na sociedade civil (liberdade, fraternidade, solidariedade, igualdade), e que são pregados pela Igreja embora nem sempre tornados concretos na vida e nas relações intra-eclesiais. Esses dois binômios (hierarquia e laicato; comunidade – carismas e ministérios), levam à percepção da mesma realidade eclesial a partir de ângulos diferentes que podem complementar-se.

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Ao usar-se o termo leigo, é preciso não esquecer que o leigo é, em primeiro lugar 70

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cristão e membro da Igreja na mais plena acepção do termo, apenas não fazendo parte da hierarquia... Pergunta-se se, de fato, não seria melhor evitar o termo leigo (que acabou adquirindo uma conotação negativa e reporta imediatamente ao sentido de ignorante ou desinformado), e usar, ao invés, o termo cristão ou católico sem acentuar sua diferença em relação à hierarquia.

III. COMUNIDADE EM MISSÃO – DIRETRIZES PARA A EVANGELIZAÇÃO (111-113)

Todo o povo de Deus participa da única e mesma missão que é servir à edificação da Igreja e de uma sociedade justa e fraterna. A graça de Deus que receberam no batismo, enriqueceram e fortaleceram na Crisma e alimentam na Eucaristia para testemunhar sua fé, faz com que os membros desse povo se ajudem mutuamente e se complementem. Partindo do conceito de que toda a Igreja é missionária e ministerial, e todos os ministérios se fundamentam sobre a mesma base que é a comunidade evangelizadora, é possível apontar diretrizes práticas a serem aplicadas com criatividade a situações específicas de cada diocese, paróquia, comunidade, movimento, pastoral.

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Guiada pelo Espírito Santo – o verdadeiro protagonista da missão, que confere carismas diversos aos cristãos – a comunidade forma seus ministros e lhes confia a missão de anunciar a Boa Nova de Jesus através do serviço e participação na transformação da sociedade, pela prática do bem, do diálogo com as culturas e com outras religiões, do anúncio do Evangelho, da vivência e do testemunho.

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1. Por uma comunidade profética, missionária, acolhedora, participativa e misericordiosa (114-125)

Como Deus decidiu salvar os homens não individualmente mas em comunidade e como a comunidade exerce as funções sacerdotal, profética e real de Cristo, ela é sinal da presença de Deus no mundo. Assim, embora o testemunho individual seja importante – mostra o Novo Testamento e reafirma o Concílio – ele deve estar integrado à comunidade cristã, que deve ser missionária e estar a serviço do Reino de Deus. Para ser sinal de unidade e paz no mundo, as comunidades devem cultivar atitudes de acolhida, misericórdia, profecia e solidariedade. Como a nossa sociedade se caracteriza pela existência de inúmeros excluídos, pela competição exacerbada que dificulta a fraternidade, pela injustiça e a corrupção, as comunidades devem ser – principalmente para os mais pobres – uma referência de esperança.

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A comunidade é fraterna quando evidencia a igual dignidade de todos os fiéis e estimula a participação ativa de todos. Essa fraternidade deve ser colocada em relevo nas celebrações litúrgicas, de modo que os que se aproximarem da comunidade reconheçam-na como um sinal da presença de Deus. A comunidade deve, também, receber e introduzir na vida comunitária, as pessoas que vêm de outros lugares ou voltam para a vida eclesial; deve, pois, ser acolhedora, mais semelhante a uma família do que a uma “organização”. Como a acolhida é uma atitude e não um ato, ela exige de nós uma postura de permanente abertura ao outro, de contínua conversão. As comunidades cristãs primitivas não discriminavam ninguém por sua raça, por seu gênero ou por sua classe; assim, também as atuais devem exercitar o acolhimento aos “diferentes”, isto é, aos que vêm de outra comunidade cristã, de outra religião, de outra cultura. E devem dar particular atenção aos que estiveram afastados da Igreja ou vivem em situação canônica irregular.

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É preciso notar que as comunidades às vezes sequer merecem esse nome, tão grandes e massificadas se tornaram. É preciso formar comunidades menores ou grupos que facilitem um relacionamento direto e pessoal entre seus membros. Embora seja mais difícil no ambiente urbano do que na sociedade tradicional, grupos ou comunidades ambientais (trabalhadores de uma empresa, profissionais da saúde, professores), podem constituir uma importante experiência eclesial e contribuir para a transformação das estruturas sociais. As possibilidades de comunicação hoje existentes permitem que pessoas, grupos e comunidades permaneçam em comunicação entre si, como numa rede, trocando informações e experiências e alimentando-se da riqueza da vida cristã umas das outras. É importante, também, promover a participação dos fiéis não apenas na execução, mas também no planejamento e nas decisões da vida eclesial e da ação pastoral, através dos conselhos pastorais em todos os níveis.

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Uma participação efetiva, consciente e responsável na missão, supõe oportunidade real de informação sobre a vida eclesial e de formação cristã. O esforço amplo e constante de formação suscitado pelo Projeto “Rumo ao Novo Milênio” deve ter apoio e continuidade pois abre ao povo cristão as riquezas da palavra de Deus e contribui para formar sua consciência crítica, diante da cultura de massa que é pobre de valores éticos, além de ser individualista e consumista. Aprofundar o conhecimento e a prática da doutrina social da Igreja para, a exemplo de Jesus e dos profetas, denunciar tudo o que se opõe ao Evangelho, tudo o que contraria os princípios éticos de uma sadia convivência humana, é prioritário num país marcado, como o nosso, por formas graves de injustiça e marginalização social. As comunidades cristãs, atentas aos sinais dos tempos, confiantes no Senhor que nos precede na missão e na história, devem atuar em parceria com outros construtores da sociedade pluralista.

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O pluralismo cultural e religioso, característico principalmente das grandes cidades, torna inadequadas as estruturas pastorais normais e exige que se procurem meios para que as paróquias e suas estruturas pastorais se tornem mais eficazes, organizando-se em comunidades cujas dimensões possibilitem verdadeiras relações humanas entre seus membros. Experiência disso são as comunidades e grupos que se destinam a acolher um público determinado (como moradores de condomínios ou prédios), ou a prestar serviços específicos (formação teológica, pastoral, política, catecumenato, etc.).

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Há que se considerar, também, o fato de que nem todos freqüentam a paróquia em que residem, mas aquela comunidade ou aquele movimento em que se sentem acolhidos, e que muitos fatores da vida urbana não se limitam a uma paróquia, mas atingem toda a cidade, ou toda uma região. O desafio da pastoral urbana não se limita à necessidade de organização de novas formas de comunidade eclesial ou serviços pastorais, mas de novas formas de experiência religiosa, de espiritualidade, da linguagem que as novas gerações urbanas esperam de uma comunidade cristã criativa e, ao mesmo tempo, fiel ao Evangelho.

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2. Serviço e participação na transformação da sociedade pelo bem dos pobres (126-135)

Por ser a sociedade seu ambiente próprio, a atuação dos leigos na construção de uma sociedade justa e fraterna é insubstituível. A luta contra a miséria e o que degrada a vida humana, e a defesa da ética pública são tarefas prioritárias dos leigos. O Concílio urge, pois, que os leigos se empenhem para dar, pelo espírito cristão, nova forma à mentalidade, aos costumes, às leis e às estruturas da

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comunidade em que vivem, o que, só por eles pode vir a ser feito. Reflexões levadas a efeito após o Concílio, pelos Sínodos e pelos Episcopados, mostraram a relação direta entre a evangelização e a animação cristã da sociedade, ou seja, entre evangelização e libertação, promoção humana, desenvolvimento. Para que se realize a animação cristã das realidades terrestres é preciso transformar profundamente a sociedade lutando contra as estruturas injustas, contra o pecado social.

Por isso, na Christifideles Laici, o Papa acentua a estreita vinculação entre o anúncio do Evangelho e o serviço da pessoa e da sociedade (cf. ChL 36-40). Essa exortação apostólica mostra que o leigo participa da nova evangelização enquanto vive o Evangelho servindo ao homem e à sociedade, através da promoção da dignidade da pessoa, da veneração do direito à vida, da promoção da liberdade religiosa e da família. E para praticar a caridade e a solidariedade, os cristãos devem participar da política e reconhecer que a vida econômica e social devem estar a serviço da pessoa humana, o que exige a evangelização da cultura e das culturas. Com tal amplo horizonte de missão, o leigo deve ter presentes e vivas diante de seus olhos algumas orientações que buscam oferecer respostas aos questionamentos da atual conjuntura.

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Através da sua ação solidária para a promoção humana, a justiça, a paz, a conservação da criação, os cristãos exprimem os laços que os unem entre si e a face de Cristo servidor. Esse esforço deve-se desenvolver também em conjunto com cristãos que não são membros da Igreja Católica e com seguidores de outras religiões. Se as divergências ainda existentes entre as diversas confissões limitam a união entre os cristãos, a cooperação pode ajudá-los a ultrapassar os obstáculos à comunhão. Entretanto, enquanto inúmeros leigos testemunham o Evangelho no ambiente familiar, no trabalho, na política, nos diversos setores da sociedade civil, grandes parcelas do povo de Deus vivem um divórcio entre fé e vida, e se deixam influenciar pelo ambiente e cultura dominantes ao invés de impregná-los de Evangelho. Testemunhar o Evangelho no mundo da política tem-se revelado uma difícil tarefa para os leigos, principalmente porque o preconceito faz com que os próprios membros da comunidade não apóiem os que decidem abraçar essa forma de serviço.

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É claro que a transformação da sociedade só se dará com a transformação das estruturas de poder hoje existentes, o que exige a participação dos leigos na política partidária e em grupos de reflexão que os leve a entender a relação direta entre seu compromisso de fé e o exercício da justiça. Esses grupos de Fé e Política possibilitam o acompanhamento crítico do trabalho dos políticos nos diversos níveis, principalmente municipal (fiscalização da execução do orçamento público, elaboração de projetos de lei de iniciativa popular, sensibilização da opinião pública sobre fatos relevantes, etc.).

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As próprias práticas de caridade e assistência social têm sofrido renovação em vista das exigências da solidariedade e do serviço aos mais pobres, já que novas situações de pobreza pedem novas atitudes por parte dos cristãos, que procuram ir além da mera assistência para criar iniciativas de economia solidária, auto-ajuda, promoção e transformação social. Essas novas formas de atuação têm suscitado grande número de agentes voluntários (pastoral da criança, pastoral do menor, pastoral da saúde, pastoral carcerária, recuperação de dependentes químicos e marginalizados, etc.) São promovidas, além disso, campanhas de solidariedade que mobilizam jovens e adultos. O agravamento da miséria em nosso meio requer iniciativas comunitárias mais ágeis que levem

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solidariedade e esperança aos menos favorecidos. Uma maior coesão e organização entre os esforços das comunidades cristãs resultará em frutos mais eficazes, e o intercâmbio entre as comunidades para troca de experiências mostrará que iniciativas que dão bons resultados num local podem ser implantadas noutro.

3. Diálogo com as culturas e outras religiões (136-143)

É a certeza de que o Espírito Santo está presente nas mais diversas Igrejas, religiões e culturas que deve levar a comunidade eclesial a buscar, no diálogo com elas, o conhecimento mútuo, o aprofundamento da verdade e a parceria na construção de uma nova sociedade justa e fraterna. Como está em permanente relação com pessoas de diferentes religiões e culturas, o leigo tem grande responsabilidade nesse diálogo, devendo tomar iniciativas e manter uma atitude de abertura, cooperação e valorização do diferente.

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O pluralismo cultural e religioso de nossa sociedade transparece até nas famílias católicas onde os costumes e a religião dos pais não são mais seguidos sem questionamentos pelos filhos. Os cristãos precisam, pois, estar preparados para desenvolver um diálogo autêntico e proveitoso, ou seja, precisam ter equilíbrio para ser abertos e realistas; precisam ter convicção para expressar com sinceridade e integridade sua fé; precisam de disposição para acolher com gratidão os dons de Deus e para reconhecer os próprios erros (cf. DGAE 209).

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Compreender as interrogações e os anseios dos que buscam a verdade e o encontro com Deus deverá ser o objetivo do diálogo com os homens e mulheres de boa vontade, pois essa busca é às vezes dificultada pela imagem que o mundo tem da pessoa e da mensagem do Cristo em virtude dos pecados que os próprios cristãos cometeram e cometem ao longo da história. Experiências concretas de ecumenismo têm se realizado não apenas em cursos e seminários, mas também em circunstâncias fundamentais para o resgate da cidadania. Iniciativas como a “Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos” e experiências como a do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, ampliam a consciência e o movimento ecumênico. Desnecessário dizer que tudo isso exige a formação de leigos cristãos aptos para o diálogo com a cultura moderna e para o testemunho da fé numa sociedade pluralista e indiferente ao Evangelho.

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4. Anúncio do Evangelho (144-155)

A nova evangelização é o maior desafio missionário hoje, no Brasil, já que a maioria dos brasileiros recebeu o batismo e um anúncio elementar do Evangelho mas não vive a fé de modo concreto em sua vida. Por isso os católicos não-praticantes são um grande desafio missionário, uma vez que o ambiente sócio-econômico não favorece a comunicação da fé às novas gerações, as quais precisam ser de novo evangelizadas, a partir do contexto urbano que é diferente do contexto rural e tradicional no qual a religiosidade antigamente se conservava. No passado, as missões objetivavam renovar a fé do povo que vivia isolado. Hoje as pessoas não vivem isoladas: vivem anônimas no meio da multidão, vivem no ‘meio do mundo’ através da televisão, e tudo aquilo que as rodeia incentiva-as a pensar apenas em si mesmas e a desejar a felicidade do ter, esquecendo-se do próximo e de Deus. A avalanche de informação é simultânea à falta de comunicação entre as pessoas, e a situação assim criada exige novos métodos de evangelização que ajudem essas pessoas a encontrar sentido para a vida e razão para a fé. É essa consciência de que é necessária uma nova evangelização, mais ardorosa e inculturada, que impulsiona o movimento

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missionário. Esse movimento missionário não apenas realiza missões em áreas pouco atendidas pastoralmente, mas também difunde experiências comunitárias e dedica-se à pregação itinerante, à fundação de círculos bíblicos, grupos de rua, missões populares, etc., buscando revalorizar e purificar a religiosidade popular, articulando melhor a relação entre fé e vida.

A exigência do anúncio da Boa Nova é bem recebida nas comunidades, movimentos e pastorais. São também formas de apresentar esse anúncio os santuários que procuram reforçar a fé dos romeiros e os eventos promovidos pelas CEB’s e pelos diversos movimentos que procuram avivar o fervor dos fiéis. Produz também frutos o ministério da visitação, pois os agentes visitam as famílias em ocasiões específicas (nascimentos, doenças, mortes), no lugar onde elas vivem e trabalham, mesmo que não participem habitualmente da comunidade eclesial. Acompanha esse ministério a prática do aconselhamento através da qual os agentes, para isso preparados, procuram ouvir, compreender, apoiar, orientar e consolar as pessoas que atravessam dificuldades afetivas, espirituais e materiais. Desempenham também um papel missionário marcante aquelas iniciativas comunitárias e movimentos que possibilitam uma experiência de encontro com Cristo às pessoas que estão afastadas da comunidade eclesial.

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Não se pode esquecer de que, ao lado do testemunho dado pelas comunidades, é importante o papel do apostolado individual e o testemunho de cada cristão no coração no mundo, no meio das atividades temporais ou seculares (mundo da política, da realidade social, da economia, da cultura, das ciências, das artes, da vida internacional, dos MCS, da família, da educação, do trabalho profissional, do sofrimento). Quanto mais leigos houver impregnados do Evangelho nessas realidades, mais elas poderão estar a serviço da edificação do Reino (cf. EN 70). A irradiação desse testemunho é constante, porque mostra a coerência entre fé e vida e é incisiva porque à medida que partilha as condições de vida e trabalho, o leigo pode atingir o coração dos que com ele convivem, mostrando-lhes as possibilidades de comunhão com Deus e entre os homens, como sal da terra e fermento na massa.

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Grande número de leigos assume missões em áreas longínquas e além das fronteiras do país. O espírito que os anima é o da partilha de recursos humanos e materiais com as comunidades mais carentes. A atividade missionária requer o testemunho ecumênico, pois os desafios atuais exigem o testemunho de uma fé amadurecida; o ministério da visitação e as experiências das missões populares são provas da urgência desse testemunho que dará aos leigos a oportunidade de se alegrarem de que a graça de Deus frutifique entre os membros de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais que merecem carinho e respeito. Desafios missionários mais amplos e árduos são representados, por exemplo, pela constatação de que a grande procura por religiosidade atualmente observada não ultrapassa a esfera da vida privada, e certas áreas (economia, política, ciência), são fortemente secularizadas, prescindindo inteiramente da religião que consideram irrelevante e desnecessária. Os cristãos que atuam nesses meios vivem na pele o conflito entre as exigências do meio e as suas convicções éticas de inspiração cristã. E como o sistema econômico-político exerce poderosa influência sobre a cultura e a mentalidade do povo através dos MCS, é urgente a presença de cristãos nesses meios.

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5. Vivência e testemunho da comunhão eclesial (156-174)

Sendo missionária por sua própria existência, a comunidade eclesial deve dar 91

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testemunho de comunhão fraterna e da unidade com o Pai, pelo Filho, no Espírito, necessária para que o mundo creia. Para isso, deve alimentar-se permanentemente da Palavra e da Liturgia. Essas duas fontes de vida cristã foram extremamente valorizadas pelo Concílio, o que levou à renovação da liturgia, à mais ampla divulgação e leitura da Bíblia, à revalorização dos carismas e a uma nova repartição das tarefas e ministérios que tornassem a Palavra e a Liturgia mais acessíveis à comunidade.

Ao valorizar os carismas e ressaltar a atuação do Espírito Santo na origem e na missão da Igreja, o Concílio ajudou-a redescobrir a presença do Espírito Santo em seu meio. Por isso, valoriza-se sobremodo o sacramento da Crisma que consagra o cristão batizado para sua missão no seio do povo de Deus. Impulsionados pela Confirmação, os leigos passaram a assumir novos ministérios, cujo florescimento foi aprovado e encorajado por Paulo VI e por João Paulo II (EN e ChL), e cujo exercício tem sido regulado pela Igreja. O Código de Direito Canônico prevê a nomeação de leigos para participar do cuidado pastoral de uma paróquia, integrando uma equipe pastoral que ajude o pároco no desempenho de suas responsabilidades, assumindo o serviço de animação das pequenas comunidades ou CEB’s. O ministério da Palavra, que suscita e educa a fé, está, em inúmeras comunidades, a cargo de leigos e leigas que presidem a celebrações dominicais da Palavra; muitos leigos e leigas cuidam da educação da fé de crianças, jovens e adultos, no ministério da catequese – para uns e outros é necessária uma formação que atenda aos desafios da cultura e das circunstâncias de vida, que atingem as crianças, os jovens, os adultos.

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Além de participarem dos conselhos pastorais e econômicos das paróquias e dioceses, os leigos ainda exercem o ministério extraordinário da Sagrada Comunhão (prestando assistência espiritual aos enfermos e idosos), o ministério do Batismo (ocasião preciosa de contato com as famílias católicas, principalmente as que não freqüentam assiduamente os sacramentos), Assistentes Leigos do Matrimônio (função que pode ser pastoralmente mais proveitosa quando inserida num processo de pastoral familiar) e a celebração das exéquias (que pode ser também confiada a ministros não ordenados). Todos esses ministérios estão regulados por normas da Igreja universal e possuem longa tradição.

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Entretanto, as mudanças recentes nas situações sociais e culturais do País e determinadas situações particulares ou regionais têm favorecido a criação de outros tipos de serviços pastorais que respondam às necessidades das pessoas e comunidades. Prova disso é o recente incentivo e valorização do ministério da acolhida que visa receber pessoas novas na comunidade ou a escutar e aconselhar os que se sentem sozinhos ou desorientados. A busca da espiritualidade e oportunidades de oração comunitária tem suscitado a procura e a formação de animadores de grupos de oração, retiros, círculos bíblicos, celebrações de louvor, reza do terço, etc., além das equipes que cuidam da preparação da missa dominical e da celebração dos sacramentos, favorecendo maior e melhor participação do povo.

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Cresce, também, na Igreja do Brasil o número de teólogas e teólogos leigos que dão assessoria teológica às comunidades e ensinam em diversas escolas de teologia do país. E são também muitos os cursos de teologia para leigos sendo, portanto, necessário investir mais recursos na formação dos leigos (através de bolsas de estudo ou remuneração adequada às atividades de ensino e pesquisa). Os leigos também atuam no serviço de administração, tão importante na gestão

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dos recursos da comunidade que são sempre insuficientes para a construção de Igrejas, capelas, centros comunitários, sustentação dos ministros, do culto, assistência aos pobres, etc. Outros leigos, ainda, assessoram gratuitamente as comunidades nas áreas jurídica, de comunicação social, etc.

A pastoral do dízimo vem substituindo as espórtulas em algumas comunidades, organizando a sustentação financeira das atividades pastorais e desvinculando-as da ‘administração’ dos sacramentos. Jovens e adultos leigos reúnem grupos de jovens para lhes proporcionar formação, crescimento, engajamento, opção vocacional. Devem, pois, ser incentivados os grupos de adolescência e infância missionárias, tarefa que exige paciência e perseverança, já que esses grupos se renovam e mudam muito rapidamente. Outros dedicam-se a tarefas mais especializadas no campo da educação ou do ensino religioso. E há, ainda, leigos com funções de coordenação pastoral (nos conselhos ou coordenações comunitárias, paroquiais e diocesanas), a pedido das comunidades ou dos respectivos organismos pastorais. A coordenação pastoral exige grande dedicação mas é imprescindível para o êxito do planejamento da ação pastoral.

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6. Formação, espiritualidade e organização (175-193)

A atuação eficaz dos leigos na evangelização exige séria e profunda preparação. Como o leigo necessita de vida interior e espírito de responsabilidade, ele precisa de formação espiritual adequada para poder enfrentar o ambiente cultural que é orientado em sentido contrário aos valores cristãos. Devem, pois, ser criadas condições para que os leigos encontrem os caminhos da descoberta e do aprofundamento de uma espiritualidade cristã baseada na oração pessoal e comunitária, na leitura da Bíblia e na vida sacramental, de onde tirem sustentação para sua atuação no mundo, para testemunhar o Evangelho e transformar a sociedade.

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A espiritualidade do leigo consiste em caminhar nas estradas da vida, com Cristo, no vigor do Espírito Santo, ao encontro do Pai, construindo seu Reino. Como no tempo de Jesus, as pessoas que se sentem chamadas a segui-Lo, desinstalam-se, entram na caminhada para ‘experimentá-Lo’ e depois partem para anunciá-Lo ao mundo. É fundamental, pois, na vida cristã, a espiritualidade do seguimento. O Espírito nos ensina o verdadeiro seguimento de Jesus e suscita uma espiritualidade mais integrada que contempla todas as dimensões humanas (corporal, afetiva, emocional, racional, criativa, social). Os discípulos de Emaús caminharam junto com Jesus, experimentaram sua presença, renovaram-se e, com os corações aquecidos, voltaram para a comunidade. Essa é a experiência do Mistério: envolve e seduz as pessoas, dá sentido novo às suas vidas, apaixona-as e leva-as a viver a compaixão, a solidariedade e a fazer da partilha um estilo de vida. A espiritualidade não é, portanto, um aspecto da vida, mas a vida inteira guiada pelo Espírito de Jesus, na qual a oração ajuda a ver a realidade com um olhar que permite reconhecer a Deus em todas as coisas, contemplá-lo no próximo e cumprir sua vontade nos acontecimentos.

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A espiritualidade não afasta da vida cotidiana, pois os leigos devem buscar a santidade em suas condições normais de vida, como por exemplo, na convivência diária em família. A convivência cotidiana em família é espaço para a vivência da espiritualidade, para a promoção de relações de igualdade e de respeito à dignidade e às diferenças, possibilitando real diálogo entre os membros, dando oportunidade para uma inserção criativa e crítica na sociedade. Uma vida sustentada pela espiritualidade construirá unidade entre fé e vida, evangelho e

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cultura, pois não existem duas vidas, uma espiritual e uma secular. Toda atividade, toda situação, todo compromisso (o trabalho, a dedicação à família, a educação dos filhos, o serviço social e político, a cultura), são ocasiões de contínuo exercício de fé, esperança e caridade. Os instrumentos do trabalho cotidiano de cada um são transformados por leigos e leigas no seu altar, pois, imersos no mundo do trabalho, inspiram-se no carpinteiro de Nazaré e em Maria que serve sua prima Isabel.

É Maria, a primeira discípula de Jesus, que nos mostra como segui-Lo pela sua generosidade e docilidade ao Espírito. Por isso ela é modelo de reflexão sobre a vida à luz da fé: corajosa, diz sim a Deus e não às injustiças ao proclamar que Deus é vingador dos oprimidos e derruba os poderosos de seus tronos; forte, enfrenta a pobreza, o sofrimento, a fuga e o exílio (cf. Marialis Cultus 37). A espiritualidade do seguimento de Jesus vivida por suas testemunhas (mártires, místicos, simples fiéis), impressiona e inspira a vida e a prática de muitos cristãos que buscam ser presença solidária junto aos mais sofridos e estão atentos aos sinais dos tempos que pedem uma presença de qualidade na sociedade.

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O leigo necessita de formação integral para atuar conforme sua vocação e desenvolver a riqueza dos dons e talentos recebidos. Essa formação integral vai ajudá-lo a desenvolver sua dimensão humano-afetiva, sua capacidade de comunicação e relacionamento com os outros, sua capacidade de compreender, discernir e avaliar, sua perseverança no compromisso e sua fidelidade aos valores. Essa formação, conforme as DGAE, deve ser programada e sistemática (não ocasional); deve ligar os aspectos antropológico e teológico; deve ter como ponto de partida as perguntas dos leigos oferecendo-lhes respostas para uma presença cristã no mundo; deve ser orientada para a atuação na transformação social onde o testemunho dos leigos é especialmente qualificado; deve desenvolver sua capacidade de comunicação e diálogo, aprimorando o relacionamento humano; deve ser diversificada e adaptada à diversidade de situações e tarefas dos mesmos leigos, com especial atenção aos que atuam no campo da vida pública e política.

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A dimensão ética merece destaque na formação permanente dos leigos, pois deles se espera, como ‘construtores da sociedade pluralista’, a elaboração de uma ética social que responda às questões de hoje. O diálogo, a escuta sincera e acolhedora deverá colaborar para que se descubram normas e critérios para aprofundar e atualizar a Doutrina Social da Igreja, de modo a ajudar a formular respostas cristãs aos grandes problema da cultura contemporânea. Da hierarquia e dos presbíteros espera-se efetiva disposição de acompanhar os leigos que atuam nos diferentes campos da evangelização, incentivando sua formação e apoiando seu crescimento. Dos bispos, de modo especial, espera-se a escolha de assessores eclesiásticos e diretores espirituais para os movimentos e organizações dos leigos, que os ajudem a se manter na sã doutrina, aconselhando, estimulando, dialogando e promovendo a unidade.

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Reconhecer o protagonismo do leigo supõe profundas mudanças no estilo do governo e no exercício da autoridade por parte da hierarquia, com vistas à comunhão, à participação e à co-responsabilidade, no momento de tomar decisões pastorais, valorizando e incentivando a participação dos fiéis em Sínodos e Concílios particulares (o que, aliás, já está previsto nos documentos oficiais da Igreja).

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Devem os leigos buscar valorizar suas diversas formas de organização, em especial os Conselhos de Leigos, para que estes sejam lugares de encontro, serviço, troca de experiências e articulação das iniciativas pastorais, organismos e movimentos. Por iniciativa da CNBB, desde 1976 a organização dos leigos é promovida pelo Conselho Nacional de Leigos e Leigas Católicos do Brasil – CNL (que hoje articula 12 Conselhos Regionais, 80 Diocesanos e 30 Movimentos e Pastorais organizados no plano nacional) e quer:

– articular e integrar as organizações e os leigos católicos entre si e representá-los junto aos organismos eclesiais e da sociedade civil;

– incentivar a organização dos leigos e leigas católicos nos diferentes níveis;

– despertar nos leigos e leigas católicos a consciência crítica, à luz da opção pelos pobres, enfatizando a dignidade da pessoa humana e da família;

– incentivar a participação dos leigos e leigas católicos nos processos de planejamento, decisão, execução e avaliação da Ação Evangelizadora, fortalecendo a consciência da Igreja-Povo de Deus;

– criar e apoiar estruturas de formação e capacitação, que ajudem os leigos a descobrir sua identidade e missão com vistas à construção de uma sociedade justa e fraterna;

– ser presença nos espaços sociais, políticos e culturais do País;

ser presença na caminhada ecumênica, incentivando a comunhão entre católicos e cristãos de outras Igrejas cristãs bem, como estimular o diálogo inter-religioso;

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Espera-se que as dioceses e paróquias favoreçam a organização dos leigos – não apenas dos que atuam em tarefas intra-eclesiais, mas também dos que se dedicam à transformação da sociedade.

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CONCLUSÃO (194-197)

Ao valorizar a missão e os ministérios dos cristãos leigos e ao conclamar a Igreja a acolher os dons do Espírito a serviço da sua vida e missão, este documento contribuirá para a obra que Cristo nos confiou de confessar, anunciar, servir e celebrar seu Nome. Nele buscou-se contemplar a Igreja fiel à Trindade, servidora do Evangelho, companheira de caminhada da humanidade, missionária, dialógica e ministerial. É com esse espírito que queremos ingressar no terceiro milênio da história e celebrar os quinhentos anos da primeira evangelização de nosso país. Que o Espírito Santo infunda no coração de todos aqueles que abraçam a missão de evangelizar, sua força capaz de multiplicar seus dons. E que Maria Santíssima, modelo de fé, esperança e amor, mantenha viva em todos a abertura ao Espírito, ajudando-nos a discernir os sinais da presença do Deus que está no meio de nós.

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Maria Elisa Zanelatto atua no MCC desde 1970, nos níveis diocesano, nacional e internacional tendo sido vice-coordenadora nacional e secretária do GEN, secretária do OMCC e, por designação do GLCC, por duas vezes integrou a comissão de revisão do livro Ideias Fundamentais.