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EditorEditorEditorEditorEditor

Valdinei Aparecido Ferreira

Comissão EditorialComissão EditorialComissão EditorialComissão EditorialComissão Editorial

Eduardo Galasso Faria, Fernando Bortoleto Filho,Gerson Correia de Lacerda, Shirley Maria dos Santos

Proença, Paulo Proença e Valdinei Aparecido Ferreira.

TTTTTeologia e Sociedadeeologia e Sociedadeeologia e Sociedadeeologia e Sociedadeeologia e Sociedade é editada peloSeminário Teológico de São Paulo da

Igreja Presbiteriana Independente do BrasilE-mail: [email protected]

Endereço: Rua Genebra, 180 – CEP 01316-010São Paulo, SP, Brasil

Telefone (11) 3106-2026www.seminariosaopaulo.org.br

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NAPUBLICAÇÃO

Teologia e Sociedade / Seminário Teológico de São Paulo /Vol. 1, nº 1 (agosto 2004). São Paulo: Pendão Real, 2004.

Publicação SemestralISSN 1806-5635

1. Teologia – Periódicos. 2. Teologia e Sociedade.3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bíblia. 5. Pastoral.

Revisão: Gerson Correia de Lacerda

Planejamento Gráfico, Capa e

Editoração eletrônica: Sheila de Amorim Souza

Impressão: Potyguara

As informações e as opiniões emitidas nos artigos assinadossão de inteira responsabilidade de seus autores.

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ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentação

O primeiro número da Re-vista Teologia e Socieda-de é a materialização de

um sonho antigo do Seminário Teoló-gico de São Paulo e a ocasião para olançamento não poderia ser melhor –o ano do Centenário do Seminário.Em geral os seminários protestantestrabalham numa constante tensãoentre o serviço que prestam à igreja,na formação de pastores, e sua voca-ção propriamente acadêmica. Sabe-seque, em alguns momentos, formaçãoe pesquisa se aproximam e que, emoutros, se distanciam. Não poderia serdiferente com a nossa CentenáriaCasa de Profetas. Teologia e Socieda-de deseja oferecer sua contribuição,ainda que modesta, ao labor teológi-co feito no Brasil.

Os artigos deste número estão di-vididos nas principais áreas do traba-lho teológico. No primeiro, o Rev.Archibald M. Woodruff, exegetica-mente, examina as ocorrências e o sig-nificado da expressão “Evangelho deDeus”, no Evangelho de Marcos. No

segundo artigo, o Rev. EduardoGalasso Faria discute a relação entrea teologia da criação e a crise ecológi-ca. A discussão é feita na perspectivada teologia sistemática. O terceiro ar-tigo, escrito pelo Rev. ÁureoRodrigues de Oliveira, destaca a vi-são de João Calvino a respeito daespiritualidade cristã. O autor descre-ve detalhadamente aspectos daespiritualidade medieval popular e,com base na proposta de JoãoCalvino, apresenta sugestões para aespiritualidade contemporânea. A vi-são de Santo Agostinho sobre a His-tória é objeto de exame no artigointitulado “Se Roma perecer, o quese há de salvar? - Santo Agostinho e aQueda de Roma”. O autor, Rev. Ger-son Correia de Lacerda, demonstraque a resposta elaborada por SantoAgostinho em a “Cidade de Deus”

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sobre a queda de Roma é uma verdadei-ra filosofia da história. Deixando o cam-po da história, encontramos o quinto ar-tigo, escrito pela Reva. Shirley Maria dosSantos Proença, que examina os “usos”da Bíblia no aconselhamento pastoral. Porfim, no campo da sociologia, temos o ar-tigo sobre o “desencantamento do mun-do em Max Weber”. Max Weber é umdos fundadores da sociologia da religiãoe um autor fundamental para a compre-ensão das afinidades entre protestantis-mo e modernidade.

Esperamos que Teologia e Sociedadecontinue caminhando na fecunda tensãoentre formação e vida acadêmica. Afinalde contas, todo extremismo está fadadoao fracasso diante da plenitude da vida!

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SumárioSumárioSumárioSumárioSumário

6 O EVANGELHO DE MARCOS Archibald Mulford

Woodruff

16 A CRIAÇÃO MANIFESTA AGRAÇA DE DEUS

Eduardo Galasso Faria

28 NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADEEM CALVINO

Áureo Rodrigues de Oliveira

46 “SE ROMA PERECER, O QUE SEHÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO

E A QUEDA DE ROMA Gerson Correia de Lacerda

60 A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTOPASTORAL

Shirley Maria dos Santos Proença

74 DESENCANTAMENTODO MUNDO EM MAX WEBER

Valdinei AparecidoFerreira

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Evangelho de Deus2 éuma frase encontradano trecho programático

do Evangelho de Marcos, logo no iní-cio (1.14). A frase pode nos surpre-ender. Evangelho de Jesus Cristo(1.1) é uma frase melhor conhecidae soa mais natural para os nossos ou-vidos. Somos, ainda, filhos do sécu-lo XX, o século da teologiacristocêntrica. Entendemos, de an-temão, que o Evangelho de Marcosprocura responder à pergunta:“Quem é Jesus?” Nada nos surpre-ende menos que a existência de uma

O Evangelho de Marcos como

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farta literatura científica sobre acristologia do Evangelho de Marcos3

e a quase inexistência de literaturasobre a teologia de Marcos. Mas jus-tamente esta frase surpreendente,Evangelho de Deus, pode ser frutí-fera quando usada como ponto departida para uma leitura deste Evan-gelho que procura ressaltar as linhasmestras da mensagem de Marcos. Éesse o objetivo do presente ensaio.Outras colocações gerais sobre Mar-cos, como sendo uma narrativa daPaixão com longa introdução, umabiografia, um romance grego ou umanovela judaica, servem a fins que sãoalheios a este ensaio, e não precisa-mos nos deter nelas.4

1 A pesquisa deste artigo se baseia em umapalestra intitulada “God, Mission and Partnershipin the Gospel of Mark”, proferida em inglês em 30de outubro de 2002 em Águas de Lindóia – SPnum retiro chamado “Mission Co-Workers’Retreat”, da PC(USA).2 As traduções do grego neste artigo são do autor.3 Ver esp. Jack Dean KINGSBURY, The Christologyof Mark’s Gospel (Philadephia: Fortress, 1989).4 A bibliografia sobre Marcos é enorme, e o autordeste ensaio tem trabalhado com Marcos duranteos últimos 15 anos. Um relato completo dabibliografia usada seria difícil de se fornecer aqui.As propostas são originais? Esperamos que osejam. Pelo menos, o que está relatado aqui foipor mim observado.

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O método empregado é eclético, mastira proveito da “estrutura” ou “textura”do Evangelho de Marcos na sua íntegra,entendendo que Marcos tem uma coe-rência considerável, desde 1.1 até 16.8,seja a coerência de uma composição lite-rária, seja a coerência de um mosaicomuito bem feito.

O título doO título doO título doO título doO título dolivro já abrelivro já abrelivro já abrelivro já abrelivro já abre

o jogoo jogoo jogoo jogoo jogoO nome de Deus já está destacado

na parte final do primeiro versículo deMarcos, que caracteriza Jesus Cristocomo Filho de Deus. Este primeiroversículo serve como título da obra, e afrase Filho de Deus já abre uma ques-tão, pois o seu sentido não era tão óbviopara os primeiros leitores/ouvintes. Elesnão eram, como nós, filhos de uma cul-tura e de uma educação cristãs. Para eles,um filho de Deus pode ser um rei, umgrande místico ou uma pessoa muito fiela Deus. Os primeiros leitores/ouvintesde Marcos por certo vislumbravam algo,mas ficou a cargo de Marcos explicar isto.Ou melhor, mostrar.

Ao ver este título, o ouvinte poderecordar um outro, o “título” que Pilatospendurou sobre o homem Jesus aocondená-lo: rei dos judeus. O título ou-torgado por Pilatos não é errado, mastambém não capta o que mais importano homem Jesus. Porém Marcos, ao cor-rigir o outro título, destaca aquilo que,

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na perspectiva dele, mais importa. E oque mais importa tem algo a ver comDeus.

Deus fala,Deus fala,Deus fala,Deus fala,Deus fala,ora por umora por umora por umora por umora por umprofeta, oraprofeta, oraprofeta, oraprofeta, oraprofeta, oradiretamentediretamentediretamentediretamentediretamente

do céudo céudo céudo céudo céuNão demora muito, e o leitor/ouvin-

te de Marcos ouve as palavras Eis queeu mando... (1.2). São palavras de pro-fecia pelo tom e pelo contexto e o eu dafrase só pode ser Deus mesmo. Marcosprimeiro promete uma palavra escrita doprofeta Isaías e, ainda antes de citar aspalavras famosas sobre voz e deserto(Isaías 40.3), insere outras palavras deprofecia, de Êxodo 23 e Malaquias 3,criando assim um contexto para Isaias,que identifica a voz com o mensageiro(ou anjo)5 que Deus prometeu, primei-ro, para o êxodo do Egito e depois, parao tempo final.

Desta forma, após a voz autoral dotítulo e a referência ao profeta Isaías, aprimeira voz ouvida no Evangelho deMarcos é a voz de Deus, ouvida atravésde profecia.

5 A palavra normalmente traduzida por anjoanjoanjoanjoanjo, nofundo, significa mensageiromensageiromensageiromensageiromensageiro, tanto no grego como nohebraico. Em conseqüência, um “anjoanjoanjoanjoanjo” prometidopode ser um mensageriomensageriomensageriomensageriomensagerio humano, João Batista. Defato, o mensageiro de Mc 1,2 pode ser ou João ou opróprio Jesus.

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6 Como outros “resumos” em Marcos, 1,14-15 nãoresume informações que são fornecidas de outramaneira. Apesar da generalidade, estes resumos sãobem informativos.7 Em termos de gramática, trata-se de um genitivoobjetivo ou um genitivo subjetivo? A resposta desteensaio será: um genitivo subjetivo.

Entende-se que os profetas ouvirama voz de Deus no contexto de visões.Marcos não tarda em trazer o leitor/ou-vinte o mais próximo possível de umaexperiência semelhante à que foi vividapelos profetas. O que Jesus viu é descri-to para o leitor/ouvinte: o céu abre e nãosó abre, como abre de cima em baixo.Falta pouco para Jesus ver um trono.Enquanto o Espírito desce sobre ele (oEspírito tem semblante de pomba ou adescida é semelhante à de uma pom-ba), Jesus ouve a voz que diz Tu és meufilho, o bem-amado, resolvi favorecer-te (1.11). A voz retorna bem depois, nomeio do evangelho, quando a transfigu-ração fornece um outro momento, comvisual extraordinário (9.7): Este é meufilho, o bem-amado. Dai ouvidos paraele.

Obviamente, Deus vai se fazer pre-sente no Evangelho de Marcos atravésde Jesus. Mas, primeiro, Deus age e faladiretamente. Em seguida, Jesus vai re-presentar a presença de Deus.

O anúncio eO anúncio eO anúncio eO anúncio eO anúncio eo reino sãoo reino sãoo reino sãoo reino sãoo reino são

deledeledeledeledeleA frase citada no início deste artigo

aparece em Marcos 1.14-15. As palavras:Jesus foi para a Galiléia, proclamandoo evangelho de Deus servem como “re-sumo”6 de um período de atividade deJesus antes do chamamento dos pesca-dores e antes da sua estréia em

Cafarnaum. Ganhamos perspectiva aoperceber que evangelho é um quase-si-nônimo de anúncio. Um evangelho é umanúncio bom, forte, oficial. O evange-lho de Deus é o anúncio de Deus. É oanúncio que anuncia a Deus ou o anún-cio que Deus anuncia?7 Considerandoque Deus já entrou nesta história falan-do, a segunda opção deve ser a certa. Seo anúncio no seu conteúdo versa sobreDeus e o que Deus está fazendo, estefato é simples conseqüência do fato pri-mário que é: Deus está falando e se re-velando.

Como a narrativa nesta perícope temcaráter de resumo, as palavras de Jesusresumem a mensagem que ele procla-mou naquela fase. Neste resumo-de-en-sino figura o reino. O reino também éde Deus. Jesus fala, ao longo da primei-ra fase do seu ministério: O tempo cum-priu-se e o reino de Deus chegou per-to. Não é nosso objetivo neste ensaioresolver todas as questões relacionadasao termo reino, mas tentaremos contri-buir com algumas observações. É umapalavra que se encontra bem pouco noEvangelho de Marcos, nem mesmo nocap. 13, que trata das tribulações e dasglórias do futuro. Existem duas fortesreferências à vinda futura do Reino, em

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9.1 e 11.10. As duas parábolas do Reinotratam, na verdade, da vinda do Reino(4,26-29.30-32). Várias vezes aparece aexpressão entrar no Reino (9.47; 10.23-25), ao lado da expressão receber o Rei-no (10.15). O Reino chegou (ou quase)ao bom escriba, que não está longe doreino de Deus (12.34). Os discípulos járeceberam o “mistério” do reino, quenada mais precisa ser do que a informa-ção que Deus já estabeleceu o propósitode que o Reino chegue. Realmente, oque podemos dizer refere-se à vinda doReino, não respondendo à questão sobre“O que é o Reino?” mas “O que é o Rei-no chegar?” O Reino é de Deus, e o queDeus quer e o que vai trazer saberemosde outra maneira e sem precisar de mui-ta retórica. Mais ainda: este termo pare-ce ter um lugar especial no encontro en-tre Jesus e os que o encontram para va-ler, pela primeira vez. Esta linguagem écentral no início de sua pregação. Paraaqueles que ouvem só parábolas de Je-sus, o mistério não lhes é dado ainda(4.11), talvez porque a hora vai chegarpara eles num outro momento (4.26-29).O Reino tem que ser recebido como poruma criança (10.15) – como novidade.Em Jerusalém é aclamado o reino, quan-do Jesus vem chegando de fora (11.10).Para o bom escriba, ouvir que não estálonge do reino (12.34), deve ser umagrande surpresa. Finalmente, José deArimatéia é caracterizado como “espe-rando pelo Reino” (15.43) pois ele é sim-patizante, menos chegado a Jesus do queos seus discípulos. Os discípulos de Je-

sus também têm que entrar, mas a ênfa-se em Marcos não cai sobre isto, pois oque precisa acontecer com eles está acon-tecendo com uma outra linguagem.8

A conseqüência da proximidade doReino é a necessidade do arrependimen-to. Arrepender-se e crer no anúncio es-tão muito ligados, são quase a mesmacoisa. O Reino está próximo, Deus estápróximo, tudo muda, inclusive você.

Oração aOração aOração aOração aOração aDeusDeusDeusDeusDeus

importaimportaimportaimportaimportaNo Evangelho de Marcos a oração a

Deus é um dos fatores mais dramáticos,se não o maior. Jesus olha para o céu aoabençoar os pães e os peixes quando daalimentação dos cinco mil (6.41), e fazquestão de orar em outros momentos(1.35; 14.32-39). O último clamor deJesus é dirigido a Deus (15.34). No en-tanto, é possível olhar para o céu de ma-neira errada, como fazem os fariseus deDalmanuta, que querem um sinal do céu(8.11). A oração certa é feita com fé, emais especificamente com fé em Deus(11.22)9, o que não surpreende o leitor/ouvinte.

8 Em Mateus e Lucas, a linguagem do Reino é maisfreqüente, aparecendo muito em textos da Fonte Q.A análise proposta aqui é somente para Marcos.9 A expressão em grego, pistis theoupistis theoupistis theoupistis theoupistis theou, merece umcomentário maior, que não podemos fornecer nestemomento, por causa do genitivo theoutheoutheoutheoutheou. Cf. diadiadiadiadiapisteos Iesou Christoupisteos Iesou Christoupisteos Iesou Christoupisteos Iesou Christoupisteos Iesou Christou, em Rm 3.22.

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O conflito éO conflito éO conflito éO conflito éO conflito ésobre Deus,sobre Deus,sobre Deus,sobre Deus,sobre Deus,

o Po Po Po Po PoderoderoderoderoderQue o evangelho de Marcos está re-

pleto de conflitos, disso ninguém duvi-da. Intérpretes divergem, no entanto,sobre a natureza destes conflitos. Osconflitos de Jesus registrados em Mar-cos seriam todos com o império roma-no, ou com o judaísmo, ou com Sata-nás, ou com o Templo e os sacerdotes.Na verdade, os conflitos envolvem vári-os grupos diferentes e a particularida-de de cada grupo recebe um tratamen-to diferenciado. Os escribas, quandocumprem bem a sua vocação, não estãolonge do reino, e os seguidores de JoãoBatista recebem um tratamento bran-do (2.18-22). Jesus manda os fariseusentregarem a Deus o que é de Deus(12.17). Somente um grupo Jesus dizque é muito errado: o dos saduceus(12.27). E por que são eles muito erra-dos? Porque eles desconhecem as Es-crituras e o poder de Deus (12.24).Considerando que os saduceus são mui-to versados nas Escrituras, seu desco-nhecimento deve ser explicado pelo se-gundo termo do binômio: eles desco-nhecem o poder de Deus. O fato estávisível no comportamento deles, não só

negando a ressurreição mas ridiculari-zando-a. O Deus deles é distante, mui-to sagrado mas inoperante no mundo.

O mesmo assunto volta no momen-to dramático do confronto entre Jesuse o sumo-sacerdote, em que este, de-sesperado porque o interrogatório vaimal, pergunta (14.61) És tu o Messias,o filho do Bendito? O Deus deste sa-cerdote é o Bendito, sagrado, no céu,gozando de uma perfeição que não exis-te na terra. O Deus dos epicureus gre-gos é também assim. Jesus replica: Eusou, e tu verás o Filho da Humanida-de assentado à direita do Poder e vin-do com as nuvens do céu (14.62). ParaJesus, não é o Bendito mas o Poder, quenão fica longe da bagunça que é estemundo, mas manda um ser interessan-te, que vem. Engana-se quem desprezao poder de Deus, e engana-se quem nãoespera que Deus aja.

O motivo do poder de Deus tam-bém aparece em 10.27 (“Tudo é possí-vel para Deus”) e em 9.1 (“até que ve-jam o reino de Deus vindo em poder”).

Os conflitosOs conflitosOs conflitosOs conflitosOs conflitosdo Fdo Fdo Fdo Fdo Filho deilho deilho deilho deilho de

DeusDeusDeusDeusDeusO Evangelho de Marcos relata dois

grandes ciclos de conflitos: o primeiro,de 1.40 a 3.6 e o segundo, no capítulo12 do qual, parcialmente, acabamos detratar.10 Em geral, o início do evangelhode Marcos prepara o leitor/ouvinte para

10 Os conflitos de Jesus em Marcos não se esgotamnos dois grandes ciclos. Os outros são grandesconflitos com autoridades vindas de Jerusalém paraa Galiléia, em 3.22-30; 7.11-21.

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o final, e os dois ciclos de conflitos ca-bem plenamente neste esquema. No ca-pítulo 2, um desfile de opositores dife-rentes vão entrar em conflito com Jesus:escribas, escribas dos fariseus, discípu-los de João Batista junto com discípulosdos fariseus, os fariseus, uma combina-ção de farsiseus e herodianos, uma com-binação não só improvável comomarcante. No capítulo 12 o desfile é umacombinação de fariseus e herodianos,saduceus e um escriba. Consideradosjuntos, estes dois blocos têm uma estru-tura maior: o primeiro desfile começacom escribas, e o segundo termina comescribas; o primeiro desfile termina comuma combinação de fariseus e herodianose o segundo desfile, retomando o temados conflitos, começa com a mesma com-binação.

O leitor pode perguntar então: os doisciclos de conflito tratam da mesma ques-tão? A questão seria, talvez, sobre a pes-soa de Jesus, de aceitá-lo ou não, ou deaceitá-lo ou não como Messias. A julgarpela moldura11 do primeiro ciclo, a ques-tão envolve a pessoa de Jesus mesmo.Na primeira perícope do ciclo (2.1-12),foi afirmada a autoridade do Filho da Hu-manidade para perdoar pecados (2.10),e na penúltima perícope do ciclo foi afir-mado que o Filho da Humanidade é Se-nhor do Sábado (2.28). A questão do pri-meiro ciclo, portanto, refere-se justa-mente à autoridade do Filho da Huma-nidade, que só pode ser Jesus.12 Jesus,por sua vez, acaba de demonstrar a suaautoridade (a mesma palavra de 2.10)

na sua estréia em Cafarnaum (1.22,27),autoridade esta que se manifesta no en-sino e nos exorcismos, sendo sempre amesma.

Se o primeiro ciclo trata da autorida-de do Filho da Humanidade, o segundociclo não trataria da mesma questão? Aresposta, embasada na moldura do segun-do ciclo, aponta para uma diferença en-tre os dois ciclos. O título de Jesus queestá em jogo é diferente, e a diferençavai ter uma conseqüência enorme. O tí-tulo em jogo no segundo ciclo é “Filhode Deus”.

Na parábola dos vinhateiros, o senti-do do título Filho de Deus está saindodo armário, por assim dizer. O leitor/ouvinte já conhece o armário. Na pará-bola dos vinhateiros, o sentido do títuloFilho de Deus está se tornando claro. Oleitor/ouvinte já conhece o contexto. Porum lado, a voz do céu já anunciou o fato(1.11; 9.7). Os demônios também sabemda filiação de Jesus (3,11; 5,7). A curio-sa colocação do demônio de Cafarnaum(1.24), de que Jesus é “o Santo de Deus”deve ser vista como uma variante domesmo título. O Santo de Deus ou Fi-lho de Deus enlouquece os demônios

11 Por moldura (em inglês, “framing”), entendo oinício e o fim de um trecho maior, tomados juntos,ou uma feicão específica deste início e fim, quefornece o contexto do trecho e marca os seus limites.12 Pelo contexto em Marcos, o Filho da Humanidadedeve ser Jesus. Existem textos nos Evangelhos emque o Filho da Humanidade, representado comouma figura apocalíptica, não tem identidadegarantida com o Jesus que fala sobre o futuroescatológico.

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13 “Sacerdotes aristocráticos” é uma tradução dearchiereisarchiereisarchiereisarchiereisarchiereis, normalmente traduzido como “sumossacerdotes”. O termo aparece repetidas vezes noplural e se refere aos membros das famíliassacerdotais mais prestigiadas de Jerusalém.14 Em tese, sacerdotes não devem possuir terras,“pois Javé é a herança” deles. Na prática, comoFlávio Josefo demonstra, eles possuíam terras.15 Adaptação da expressão em inglês “parable ofreversal”.

porque Deus enlouquece os demônios,e com a presença de Jesus o próprio Deusse faz presente. Ainda mais: os demôni-os são usurpadores de espaços (sinago-ga, terra) que são de Deus e Jesus ex-pulsa-os. No templo Jesus também ex-pulsa usurpadores de um espaço, a co-meçar pelos cambistas (11.15-17).

A moldura do ciclo de Marcos 12 abrecom a parábola dos vinhateiros e o desa-fio sobre a pedra rejeitada. Na parábola,o filho do dono do vinhedo vem recebero aluguel em nome do pai. Os alvos daparábola são as autoridades do temploque acabaram de questionar a Jesus so-bre a expulsão dos cambistas (11.27).Esses sacerdotes aristocráticos13, escribase anciãos são também donos de proprie-dades, vinhedos e outras fazendas.14 Elesnaturalmente torceriam pelo dono dovinhedo, que tem dificuldades para re-ceber o aluguel; eles também mandamservos e filhos para receberem aluguéis.Mas esta parábola é uma parábola de in-versão15, e eles vão perceber logo quetorcer pelo dono do vinhedo da parábolaé cair numa armadilha. O vinhedo é, naverdade, a Judéia e o templo em parti-cular; os maus vinhateiros são eles, en-carregados dos cuidados com o templode Deus, a quem desrespeitam. No fim,entendem que a parábola é contra eles(12.12). O Filho de Deus acabou de che-gar ao templo, que é o vinhedo de Deus,para fazer cobranças. Quais cobranças, oleitor/ouvinte aguarda para saber.

O leitor vai se lembrar do motivo Fi-lho de Deus ao chegar a Marcos 12.35-

37, depois do diálogo com o bom escriba.Esta pequena perícope vai fechar a mol-dura. Acabou-se a fila, já passaram osfariseus com herodianos, saduceus e obom escriba e, diz o texto, ninguém maisousava questioná-lo (12,34b). Com isso,o leitor/ouvinte deverá perceber queJesus está agora saindo das controvérsi-as como tais e passando a oferecer o seuensino, ensinando o que ele quer. Quan-do isto aconteceu na primeira parte deMarcos, Jesus passou a ensinar por pa-rábolas (capítulo 4), depois de passarpelo primeiro desfile de opositores (2.1-3,6), receber a primeira ameaça de mor-te (por parte de incompetentes, 3.6; cf.6.14-29), fulminar contra a inquisiçãovinda de Jerusalém (3.22-30), e mos-trar-se imune às idéias de sua família(3.21,31-35). Dali para a frente vêm asparábolas, que são ensinos dele nãoprovocados pelos conflitos.

Desta vez (12.35-37) é diferente:Jesus toma a iniciativa de desafiar osescribas sobre a questão do Messias. “Osescribas” dizem que o Messias é Filhode Davi (descendente de Davi) e Jesusquestiona-os citando o Salmo 110. En-tende-se que o autor do Salmo é Davi, e

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o Salmista chama o Messias de “meuSenhor”, o que é incompatível com aopinião dos escribas. O Messias é tam-bém Senhor, sentado à direita de Deus.Filho de Deus no início do desfile, à di-reita de Deus depois do desfile, Jesus émarcado como estando bem próximo aDeus. Assim se fecha a moldura do desfi-le de opositores. Que Jesus é Filho deDeus, a confissão do Centurião (15.39)vai reforçar.

Dentro desta moldura, o Filho deDeus, se não estiver exatamente cobran-do aluguel do vinhedo, está fazendo co-branças, em duas perícopes separadas(12.13-17,28-34a), que por sua vez for-mam a moldura que cerca (e, cercando,destaca) a primeira afirmação do poderde Deus (12.18-27, já apresentada).16 Naprimeira destas cobranças, o assunto étributação, pois os fariseus e herodianosquestionam a legalidade de pagar impos-tos a César. A resposta de Jesus é mui-to mais que uma saída inteligente dafamosa armadilha, pois Jesus inverte aquestão. Será que os fariseus eherodianos estão pagando a Deus o queé de Deus? O texto pode ser lido comouma condenação deles, mas ao pé daletra não passa de um desafio. Futura-mente, estas lideranças do povo de Deusserão desafiadas a devolver a Deus o queé de Deus.

Na segunda cobrança (12.28-34a),o bom escriba pergunta: Qual dos man-damentos é o primeiro [em importân-cia] de todos. A resposta de Jesus érecitar o judaiquíssimo xem’a

(Deuteronômio 6.4-5), o mandamentode amar a Deus. Se pairava uma dúvidasobre os fariseus e herodianos, desta veznão há dúvida: o bom escriba aceita estemandamento da boca de Jesus.17 Cabelembrar que Jesus chegou a Jerusalémem nome do Senhor (11.9).

Lembranças da cobrança de Deussão encontradas em outros momentosdo evangelho de Marcos também: otemplo é minha casa (11.17). Os ver-dadeiros irmãos e as verdadeiras irmãsfazem a vontade de Deus (3.35). Os “hi-pócritas” abandonaram a palavra e omandamento de Deus em favor de tra-dição humana (7.6-13). O que Deusjuntou, que nenhum homem separe(10.9). Ninguém é bom a não ser Deus(10.18). Pedro não pensa as coisas deDeus, mas as coisas humanas (8.33).

Fica demonstrado, então, que emMarcos 12 o Filho de Deus apresentaas cobranças de Deus, com uma afirma-ção do poder de Deus em lugar de des-taque, no centro. Em cada perícope den-tro da grande moldura (12.1-12,35-37),a ênfase cai sobre Deus. Nestas

16 A estrutura concêntrica pode ser visualizadaassim:

A – JESUS E DEUS: parábola dos vinhateiros(12.1-12) B – COBRANÇA: confronto sobre tributos (12.13-17) C – PODER DE DEUS: confronto com saduceus(12,18-27) B’ – COBRANÇA: o primeiro mandamento (12.28-34)A’ – JESUS E DEUS: Salmo 110 (12.35-37).17 Em Lc 10.25-29 um escriba recita estemandamento para Jesus. Marcos é diferente, ecoloca Jesus a falar estas já famosas palavras aoescriba.

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18 Um grego pode dizer deste Jesus que ele é deinosdeinosdeinosdeinosdeinoslegeinlegeinlegeinlegeinlegein, poderoso ao falar.19 Mateus, diferentemente de Marcos, relata queJesus também fez milagres no templo.20 Se for aceita a proposta que o Messias sentado àdireita de Deus em 12,35-37 é a mesma figura doFilho da Humanidade sentado à direita de Deus em14,62, uma consequência é que as perícopescristológicas 8,27-30.31-33 apresentam, juntas, amesma mensagem de 12,35-37: o Messias é melhorentendido como Filho da Humanidade. Um estudorecente da relação entre estes dois títulos é: PaulDANOVE, “The Rhetoric of the Characterization ofJesus as the Son of Man and Christ in Mark”, emBiblica, Roma, 2003, v.84, n.1, p.16-34.

perícopes o leitor crítico procura em vãopor detalhes que apontem para a im-portância de Jesus. Jesus nestasperícopes mostra muita habilidade18 nodebate, bem como um jeito de invertersempre as questões. Este Jesus fala comautoridade, mas o leitor/ouvinte de Mar-cos já espera isto. Nas controvérsias doprimeiro desfile no capítulo 2, umaquestão pode ficar resolvida por ummilagre de Jesus que confirme a autori-dade do Filho da Humanidade, mas nosegundo desfile, no capítulo 12, a auto-ridade que resolve as questões é deDeus, que resolve sem ser mencionadae sem outros sinais e milagres.19

O resultado é diferente da nossaexpectativa. Facilmente pensamos quechamar Jesus de Filho de Deus é umamaneira de responder à questão Quemé Jesus? Facilmente pensamos que cha-mar Jesus de Filho de Deus é uma ma-neira de engrandecer Jesus e de dizerque Ele é muito importante. Porém, oque acontece é que, quando o título Fi-lho de Deus está em consideração, umaoutra questão está sendo respondida.Esta outra questão é: Deus está fazen-do o quê no mundo? Mandando seu Fi-lho com cobranças.

Realmente, o que Jesus proclama notemplo pode ser chamado de anúnciode Deus. A perícope que encerra osconflitos do Filho de Deus (12.35-37)deixa a questão sobre Jesus sem con-clusão, mas com uma nova provocaçãotirada do Salmo 110 sobre o Messiassentado à direita do Senhor. Fecha-se

um assunto, abre-se outro. Ou melhor,reabre-se uma questão. A questão daautoridade de Jesus abriu-se no primei-ro desfile de conflitos atrelada ao títuloFilho da Humanidade, como já vimos,e não vai se fechar nos últimos capítu-los de Marcos sem este título, que vol-ta com previsões de glória (13.26;14.62). Na segunda destas previsões,dita ao sumo-sacerdote, o Filho da Hu-manidade estará assentado à direita doPoder, quer dizer, à direita de Deus. Lá,com um título que não é Filho de Deus,a leitura do Salmo 110 receberá umaexplicação maior.20

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O CenturiãoO CenturiãoO CenturiãoO CenturiãoO Centuriãoencerra oencerra oencerra oencerra oencerra o

assuntoassuntoassuntoassuntoassuntoUm dos momentos mais dramáticos

do Evangelho de Marcos é a “confissão”do centurião em 12.39: De verdade,este homem era Filho de Deus. OCenturião é, provavelmente, experien-te no serviço dele, assistiu a outras tor-turas e outras mortes. Agora ele perce-be alguma coisa no último grito de Je-sus e faz a afirmação que, por estar tãopróxima do final do Evangelho de Mar-cos, o leitor/ouvinte vai lembrar. É fácilperceber esta afirmação comocristológica, como a dizer que Jesus foium ser extraordinário, que é provavel-mente a chave da cristologia de Mar-cos.21 Porém, o resultado de um estudodo capítulo 12 é outro: a “confissão” éteológica. Este homem era Filho deDeus. Quer dizer: Deus esteve aqui.

21 Eis a tese de Kingsbury, op.cit.

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A criação manifesta

a graça de Deus a graça de Deus a graça de Deus a graça de Deus a graça de Deus

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Vivemos um tempoem que a consciên-cia ecológica mundial

se manifesta e chama atenção comurgência para os perigos que o pla-neta terra (nossa casa) enfrenta e oque isto pode significar para o fu-turo da humanidade. Previsões ca-tastróficas bastante pessimistas, ourealistas como diriam alguns, indi-cam que, continuando as práticas doser humano como andam, pratica-mente estaremos destruindo o quetemos de belo no planeta ou nãoteremos mais recursos para os nos-sos descendentes.

Do ponto de vista cristão, osquestionamentos clamam para o en-sino bíblico acerca da criação, daprovidência, do destino da terra edos seres viventes, bem como parauma revisão das tradicionais aborda-gens da teodicéia e do problema domal. Para muitos, caminhamos parauma catástrofe final neste mundocomo escape ou única possibilidadesalvadora em uma visão bastante

pessimista. A doutrina da providên-cia divina parece esquecida e sematualidade. Tudo parece indicar queo mundo pode ser destruído mes-mo e o melhor seria aguardar o além.A falta de uma leitura mais conso-ante com o ensino bíblico tem cria-do apatia e desencanto como tam-bém dificultado o surgimento deuma teologia que permita uma com-preensão atual das questões resul-tantes dessa nova situação. Daí, apequena sensibilidade de muitos naigreja para se envolver e atuar a fimde testemunhar a ação providencialde Deus para preservar o mundocriado. Neste escrito, procuramosnos estender sobre a reflexão teo-

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lógica reformada que, nos últimos tem-pos, indica um caminho diferente, evan-gélico e bastante esperançoso para omundo criado por Deus e mantido pelasua providência.

Uma nova leitura teológica do tes-temunho bíblico acerca da criação temproporcionado uma elucidativa reflexãoteológica, que merece ser examinada edesenvolvida. Alguns teólogos têm res-saltado ora a doutrina da encarnação deDeus, ora a idéia de promessa e espe-rança dentro de uma nova visão daescatologia cristã. Ora se fala da natu-reza como expressão do ser de Deus(visão sacramental), ora da criação con-tínua com novos céus e nova terra (res-surreição) juntamente com a chegada doreino de Deus. O primeiro ponto meparece ser a necessidade de tomarmosconsciência da gravidade da situaçãoque o ser humano com a sua ganânciatem criado para, em seguida, reconhe-cermos a parte que nos cabe no que vemacontecendo e, então, recriarmos aorientação que como cristãos temosdesenvolvido na igreja, com reflexos emtoda a sociedade ocidental e no mundo.

A crise ecológicaA crise ecológicaA crise ecológicaA crise ecológicaA crise ecológicaO mundo atual vive enormes proble-

mas com relação ao meio ambiente naterra, lar dos seres humanos no univer-so. Em sua relação com o mundo exteri-or o ser humano, atuando com meiostecnológicos cada vez mais sofisticados

e movido por interesses egoístas, temprovocado enormes prejuízos para simesmo com o esgotamento da natu-reza, sua fauna e flora. A terra estásendo destruída. As águas dos marese rios estão sendo envenenados e osecossistemas se acham ameaçados. Oconsumo exagerado de camadaspopulacionais privilegiadas tem au-mentado a poluição, o clima tem mu-dado, as áreas de plantio perdem suacondição de fertilidade, a água deixade ser potável. Sobre o ser humanopaira a ameaça de uma catástrofe eco-lógica e nuclear. Pela forma irrespon-sável como é tratada, a terra sofre ecorre perigos cada vez maiores. Ahumanidade tem mantido com a na-tureza um relacionamento pouco ami-gável e responsável, prejudicando asobrevivência biológica de muitos.Quantas não são as espécies animaisque desapareceram e continuam adesaparecer a cada dia? Com os paí-ses industrializados veio a destruiçãoda natureza e hoje, com as armas nu-cleares, os perigos são ainda maiores.O mesmo tem acontecido nos relaci-onamentos sociais, na maneira de pen-sar e construir os valores que possibi-litem uma vida cultural e política sau-dável. Sem dúvida, o ser humano éparte de todo um sistema global edeveria ser o primeiro a lutar pela exis-tência verdadeiramente humana queno entanto, se encontra grandementeameaçada.

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Crise ecológica eCrise ecológica eCrise ecológica eCrise ecológica eCrise ecológica ecristianismocristianismocristianismocristianismocristianismo

Durante séculos, a teologia judaico-cristã tem pensado em Deus como umser absoluto e transcendente, criador esenhor, de modo muito mais monoteístado que trinitário. De certa forma, so-mente o Deus Pai tem sido apresentadocomo o criador e senhor da criação. Sen-do Deus absoluto, aparece como o seuúnico criador e preservador. O Filhoaparentemente teria iniciado sua atuaçãocomo redentor muito depois e o Espíri-to, apenas depois. Com a entrada dopecado, a criação foi corrompida e, a par-tir dessa ênfase, faz-se uma diferencia-ção entre Deus e mundo alienado, queacabou se tornando o fundamentojustificador para uma atitude de explo-ração predatória da natureza e de domí-nio irresponsável. O ser humano, feito àimagem de Deus, passou a relacionar oseu papel frente à criação, como de do-mínio inquestionável sobre a terra.

O teólogo reformado alemão, JürgenMoltmann, que tem dado uma original

contribuição à teologia protestante eecumênica na atualidade, observa que “acrise ecológica do mundo moderno par-te dos modernos países industriais... quesurgiram no âmbito da cultura predomi-nantemente determinada pelo cristianis-mo” (Doutrina Ecológica da Criação,1993, p. 42). Isso quer dizer que, decerta forma, o modo como o cristianis-mo tem compreendido e explicado omundo e o papel do ser humano nele,contribuiu para crise ecológica em queestamos envolvidos. O “sujeitai a terra”no âmbito de “uma fé bíblica da criaçãomal-entendida e mal usada” (p. 43) le-vou as pessoas ambiciosas a se atribuí-rem poder semelhante ao do Deus todo-poderoso, no sentido de justificar a suamaneira imprópria de usar o poder paraatender apenas aos seus interesses ime-diatos.

A fé cristã, como está representadano cristianismo europeu e norte-ameri-cano, “não está isenta de culpa na atualcrise mundial.” O mundo passou a sertratado como propriedade humana quan-do deveria ser recebido como “emprés-timo” para ser cuidado como um jardim.Na verdade, o que parece existir é umaconcepção antropocêntrica de mundo (p.56) em que todas as coisas teriam sidocriadas por causa do ser humano, enten-dido como “coroa da criação” de formaerrônea e não a partir do amor e para aglória de Deus.

Com tal pressuposto, a visão do Deusbíblico foi desaparecendo para ser subs-

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tituída por uma imagem distorcida, ide-ológica, como fruto de uma compreen-são conveniente a interesses vários. Ou-tras acusações são feitas ao cristianismoe à teologia cristã pelo descaso com quea natureza é tratada no ocidente. Exis-tem mesmo os que afirmam que só osnaturalistas, que não acreditam em Deuse aceitam este mundo como a única rea-lidade existente, sem preocupação como além, se preocupam com o que estáacontecendo. Outros ainda chegam a di-zer que o cristianismo, muito mais vol-tado para o além e o futuro, é “irremedi-avelmente antiecológico”. Embora se re-conheça que “a base religiosa para umateoria ecológica certamente é rica de fon-tes bíblicas e tradicionais”, também seafirma que os teólogos nem sempre po-dem “apresentar convincentes razõesteológicas para que a responsabilidadeecológica seja levada a sério” ( Haught,2000).

Por outro lado, a doutrina da criaçãotem sido compreendida de mododualista, praticamente colocando emdepartamentos separados o plano da cri-ação e o da redenção. É tempo de seperguntar se os textos bíblicos, muitasvezes, ao serem tirados de seus contex-tos, não foram utilizados apenas para jus-tificar a ganância das pessoas e de gru-pos econômicos.

A TA TA TA TA Trindade narindade narindade narindade narindade nacriaçãocriaçãocriaçãocriaçãocriação

Não há dúvida de que precisamos deuma nova abordagem da doutrina da cri-ação que, atenta aos fundamentos bíbli-cos, evidencie de forma mais pertinenteo evangelho da salvação anunciado emnosso Senhor Jesus Cristo. Há os queafirmam que os reformadores estavamtão preocupados em formular uma dou-trina correta da justificação e da reden-ção que se esqueceram da doutrina dacriação. Para Moltmann, necessitamos deuma doutrina cristã da criação que en-cha de esperança e favoreça uma “con-dição de viver de forma agradável a exis-tência e as relações descontraídas e pací-ficas entre Deus, a pessoa humana e anatureza” (p. 22). E, para isso, seria ne-cessária uma nova maneira de se pensarsobre Deus. Assim, “Deus na verdade,não está separado do mundo mas, semse confundir com ele (panteísmo), estáno seu centro. Por isso, é preciso ensinara “imanência de Deus no mundo.” È pre-ciso saber que Deus está presente no

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mundo e o mundo está presente emDeus. E é preciso compreender a “cria-ção no Espírito” que no futuro, condu-zirá a uma “comunhão ecológica univer-sal, não violenta, pacífica e solidária” (p.31).

De maneira geral, a doutrina da cria-ção é exposta a partir dos dois primeiroscapítulos de Gênesis e sua expressão te-ológica na história da igreja está ligada aoCredo dos Apóstolos: “Creio em DeusPai todo-poderoso, criador dos céus e daterra”. Uma observação mais acurada, noentanto, ensina que desde o princípio acriação tem sido afirmada como um atoda Trindade. Tudo se origina do Pai pormeio do Filho e no Espírito. A comunhãoentre Pai e Filho (Jo 10.30) e o Espíritopode ser recuperada e bastante clareadaatravés do conceito de pericórese (JoãoDamasceno, século VIII), que se explicapela compenetração e comunhão eternaentre eles. Nessa pericórese está presen-te de maneira plena a comunhão e a in-tensidade da vida, não de modo estáticomas dinâmico, “como absoluta paz daque-le amor que é a fonte de tudo o que vive...”fazendo com que o dom do amor nos al-cance também na teologia da criação, paraque nos sintamos partícipes dela, comocomunidade. Moltmann lembra o ditode Agostinho que “nós (re)conhecemosna medida em que amamos.” Nessa for-ma de conhecimento em que se “admira,maravilha e ama, não nos apossamos dascoisas, mas reconhecemos a independên-cia das mesmas e participamos de sua

vida” (p. 58). Esse (re)conhecimento, aocontrário do saber dominador, promoveintensa e genuína forma de comunhãosolidária.

Outras questões estão relacionadascom o ato da criação de Deus e têm afe-tado nossa maneira de lidar com a natu-reza. Como encarar, por exemplo, o pro-blema do mal na criação? E o drama dopecado?

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Criação e graçaCriação e graçaCriação e graçaCriação e graçaCriação e graçaNo mundo teológico, antes de

Moltmann e como uma das primeirasabordagens renovadoras e corretivas dafé criacionista, está a Escola Dialética,no século passado. O teólogo reformadosuíço Karl Barth (1886-1968) está en-tre os que desenvolveram uma nova com-preensão dessa doutrina, com amplas im-plicações para o tempo em que vivemos.Uma boa parte de sua Dogmática Ecle-siástica (II,1 e IV) foi dedicada à com-preensão da criação, suas questões e im-plicações. Barth, que para estranhamentode alguns exegetas, interpreta de modocristológico os três primeiros capítulosde Gênesis, elaborou uma doutrinacristológica da criação enfatizando queCristo, como verdadeiro Deus e parte daTrindade, atua na criação de tal forma queesta só pode ser compreendida a partirdele. O teólogo reformado holandêsG.C. Berkouwer, que analisou o pensa-mento de Barth em um importante li-vro, ainda não traduzido para o portugu-ês, O Triunfo da Graça na Teologia de

Karl Barth (The Triumph of Grace in theTheology of Karl Barth. 1956), apresen-ta um capítulo sobre doutrina da cria-ção do teólogo suíço, “O Triunfo daGraça na Criação”, que merece ser ana-lisado e reproduzido em algumas de suasênfases.

Enquanto os teólogos ortodoxos es-tavam preocupados em mostrar a quedae a superação da inimizade entre a mu-lher e a serpente (Gn 3.14-15) por meiode uma redenção futura, a contribuiçãode Barth foi mostrar como a criação játem manifestados em si os sinais da re-denção, apontando para o triunfo da gra-ça de Deus de tal forma que podemosdizer que nela já estava presente a pro-posta da redenção.

O relato da criação dificilmente podeser compreendido adequadamente como auxílio do pensamento aristotélico, pre-ocupado em provar a existência de Deus,por meio de uma “causa primeira”,cosmológica, na origem de todas as coi-sas, mas sim pelo testemunho bíblicosobre a salvação que nos vem por inter-médio de Jesus Cristo. Para Barth, nãoé possível falar no ato criador de Deusde modo isolado, como cosmologia oucomo uma questão para reflexão teoló-gica, à parte do pacto da graça estabele-cido em Jesus Cristo.

Assim, falar da história da criação é omesmo que falar da história da salvação(p. 53). A criação em si não tem sentidoa não ser à luz da encarnação de Jesus deNazaré. É através do pacto feito com o

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ser humano por meio de Jesus Cristo quea criação e o homem devem ser compre-endidos. O importante, pois, não são ver-dades ontológicas ou cosmológicasexplicativas sobre a criação do mundo,mas o ato da graça de Deus que por meiode Cristo, antes da criação, decide man-ter comunhão com o ser humano e comele faz uma aliança. O pacto precede acriação e revela a obra sempre graciosa ereconciliadora de Deus. Antes do mun-do ser criado, já existia a decisão de Deusde, em Cristo, manter comunhão com oser humano. Por esse motivo é queBerkouwer fala de um “triunfo da gra-ça” na teologia de Barth ( p. 56).

No princípio de tudo está a vontadede Deus em Cristo, que desejou a exis-tência do cosmos e, nele, o ser humanoem comunhão com Deus. Tudo o quefosse neutro ou oposto à vontade divinase transformou no caos, “o mundo im-possível em si”. Aí a explicação da rea-lidade do mal, intimamente relaciona-da com a existência das trevas. “A pos-sibilidade excluída (o caos e as trevas)é, porque está excluída, uma realidadeque existe no limite, o limite exterior,daquilo que Deus criou.” (p. 57)

O caos e asO caos e asO caos e asO caos e asO caos e astrevastrevastrevastrevastrevas

O caos e as trevas são tratados inici-almente por Barth como uma realidadeexistente no limite da criação de Deus,do seu lado de fora. Como ele afirma,eles formam uma realidade que tem exis-tência apenas no limite. O que não é bomnão foi criado, e se vamos admitir a suaexistência “devemos dizer que é somen-te o poder do ser que emerge do não di-vino”. Só pode existir como algo que foirejeitado. A terra “sem forma e vazia”(Gn 1.2) não tem a ver com a existênciade algo que Deus teria utilizado na cria-ção, mas seria um abismo, um “nada”,uma escuridão. Portanto, nada que indi-que uma teoria cosmológica dualista con-trapondo bem e mal, mas o Sim triun-fante de Deus, pelo qual o perigo e ame-aça à criação são vencidos. “Sem forma evazia” (Gn 1.1) refere-se muito mais aomundo que Deus não criou e sim des-prezou, excluindo essa possibilidade te-nebrosa. No entanto, essa sombra, sobrea qual Deus passou e rejeitou, pode setornar realidade na medida em que o ho-mem faz a escolha errada e dela se ena-mora. Essa liberdade do ser humano é o“risco inegável” que Deus resolveu cor-rer e do qual não teve medo.

Apesar disso, a criação da luz, que faza separação das trevas, é a grande e deci-siva marca na obra de Deus. Ela tornaimpossível a existência das trevas. “O diaé o tempo da salvação, o dia bom deDeus, não o tempo do mal... A luz bri-

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lha nas trevas e, portanto, a naturezanão é abandonada a si mesma mas per-manece sob da graça de Deus” (p. 59).Toda a criação existe sob a luz que vemde Deus e como primeira obra (Gn 1.3)em sua criação é o seu “Sim à criatura”.

O que Deus fez mostra a sua bonda-de manifesta no pacto da graça feito como ser humano e a criação e que tem comocentro Jesus Cristo e sua misericórdia.Para Barth, Ele é a luz que inunda toda acriação e significa o triunfo da graça. Comotemos em Gênesis 1.31, “viu Deus tudoquanto fizera, e eis que era muito bom”.Astrevas e o caos só têm lugar na criaçãocomo realidades rejeitadas e escarnecidas.Aqui é levantada a questão da realidade eda existência do mal, pois embora tenhamsido rejeitados “caos e trevas são reais eentão o triunfo do Sim não significa que omundo não esteja no pecado ou que este-ja pleno de luz.”.

Do mesmo modo, Barth rejeita a idéiade que o homem tenha sido criado coma possibilidade de escolher entre o beme o mal, ou seja, a possibilidade do livrearbítrio. A liberdade concedida ao ho-mem “não é a liberdade de escolher en-tre obediência e desobediência”, entre obem e o mal. Não existe para o homemum livre arbítrio neutro. A liberdade lhefoi dada “exclusivamente com o propó-sito de ser verdadeiramente obediente”.O que acontece é que o homem não éinvulnerável e essa sua vulnerabilidadefaz com que as coisas do lado do caosconstituam uma ameaça real.Então, o pe-cado torna-se uma realidade, uma horrí-

vel realidade. E, assim, o homem faz aescolha irracional e absurda que é a pos-sibilidade impossível do pecado. Aí ohomem exerce a “absurda capacidade”de se submeter à influência do caos, des-crita em Gn 3. O pecado é “a invasão docaos, a revolução do nihilismo”, o algoerrado que não tem o mínimo direito dese realizar. Mas isso não deriva do mun-do criado por Deus nem da liberdadeconcedida ao homem. A liberdade con-cedida ao homem é a liberdade saudávelque nunca pode conduzi-lo à destruição.É a liberdade de decisão que lhe permi-te “ser voluntariamente obediente, deacordo com a sua criação”. Por isso, opecado não pode ser explicado. O peca-do é um mistério e, em relação com acriação do homem, ele é simplesmentecaos, trevas.

Embora a Bíblia fale do pecado, domal e da morte, o que se pode dizer éque Deus é o vencedor “desse absurdo,dessa possibilidade impossível...”. Mas,mesmo existindo a realidade do caos, épreciso muito cuidado para não enxergá-lo onde ele não se encontra. Ou seja, ocaos não existe como algo negativo quefaz parte da criação, mas como algo es-tranho que precisa ser vencido. E é sódessa forma que a realidade pode sercompreendida. Para Barth existe umaharmonia na criação e esta inclui o as-pecto negativo que está no limite da vida.O caos pertence à obra criada. Para ognosticismo, ao contrário, as trevas cons-tituem o caos ameaçador que submete aboa criação de Deus ao mal.

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Em Jesus Cristo,Em Jesus Cristo,Em Jesus Cristo,Em Jesus Cristo,Em Jesus Cristo,a vitória sobre oa vitória sobre oa vitória sobre oa vitória sobre oa vitória sobre o

caoscaoscaoscaoscaosComo vemos, Barth não nega que

existe um aspecto negativo da criação,que é o seu lado tenebroso,e que beira ocaos. O choro, a derrota, a morte, o so-frimento estão presentes mas não dei-xam de constituir a boa criação de Deus.Esse lado tenebroso pode até ter afini-dade com o caos, mas não identidade. Omundo imperfeito, a parte carente dacriação, as trevas e a miséria da existên-cia são diferentes do caos ameaçador.Mesmo ameaçada e em perigo, toda cri-atura é algo, nunca é o “nada”. A criaçãoem sua totalidade é boa sim, como estáem Gn 1.31: “Viu Deus tudo quanto fi-zera, e eis que era muito bom”. É a me-lhor possível e o próprio criador quismanter a contradição da existência cria-da. Pode-se então falar, isto sim, da mi-séria da existência, de um duplo destinoque tem sua base na vontade divina.

Esses dois lados da realidade consti-tuem o teatro da ação divina mas “o

mundo, embora imperfeito, está sob opoder da ação reconciliadora de Deus”.Mesmo tendo esses dois aspectos – ne-gativo e positivo – a criação não participado caos. O lado das trevas apenas mos-tra o caos no limite do que vivemos. Porcausa da bondade de Deus manifestadaconcretamente na eleição e encarnaçãode Jesus Cristo, não podemos identifi-car o lado tenebroso com o caos ameaça-dor. Daí porque os dois lados da criaçãoconstituem a boa criação de Deus, emoposição ao caos.

Todos os aspectos da criação – choro,riso, derrota e êxito, morte e nascimen-to – constituem a boa criação de Deus, ooposto do caos. A harmonia da criaçãoinclui o limite negativo que está no limi-te da vida. O caos não constitui o polooposto da boa criação de Deus, em umaespécie de dualismo. Ele só tem existên-cia por causa da rejeição que está implí-cita na eleição de Deus. Da parte de Deussó podemos esperar boas dádivas e gra-ça. É por isso também que toda a criaçãoé um hino de louvor ao criador que feztodas as coisas muito boas. As trevas e ocaos ameaçador não podem submeter aboa criação de Deus, como ensinavamos gnósticos.

Em sua Dogmática, Barth ilustra oque quer dizer sobre a bondade da cria-ção referindo-se à música de Mozart, queapreciava de modo especial. Para ele, amúsica desse grande gênio musical de-via ser adotada pela teologia, já que comela foi capaz de perceber e expressar as-pectos da boa criação de Deus que a or-

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todoxia e os reformadores não enxerga-ram. No tempo em que ocorria o trágicoterremoto de Lisboa (1755) quando mi-lhares morreram e as pessoas pergunta-vam onde estava Deus, ele continuava aexpressar musicalmente um lado da cri-atura que estava no limite, mas não era omal. Barth vê aí uma música que expres-sa a harmonia da criação, onde está in-cluído o aspecto negativo e o limite davida. São trevas é certo, mas não é o caosdos gnósticos.

Embora a tristeza nos alcance no li-mite do mal, a luz triunfante de Cristoraia sobre o mundo. O caos na verdade éa realidade não-existente, pela qual Deuspassou e rejeitou. O caos não é criaçãode Deus e “a base de sua existência ésomente o não querer de Deus”. A ver-dadeira obra de Deus se encontra na cri-ação, na eleição e na sua graça. O caosexiste como sua antítese, sua obra alie-nada, o seu não querer. O caos é umarealidade impossível e intolerável. Por-tanto, é uma possibilidade real, mas nãodesejada por Deus. A vitória sobre ele sópode ser alcançada pela graça de Deus.Contra o caos Deus pronuncia o seu Nãoao mesmo tempo que diz o seu Sim àcriação. Em sua misericórdia, Deus, atra-vés de Jesus Cristo, se pronuncia contraa ameaça caótica à sua criação. Aí temoso triunfo sobre a contradição que o caosrepresenta. O caos só existe à esquerdade Deus. Não é sua criatura embora sejareal e, mesmo assim, está sujeito ao seupoder. É justamente por não ser criaturade Deus que ele existe. Assim, Barth

afirma que o caos não foi criado mas “es-tabelecido”. E isso nada tem a ver com acriação do bem e do mal. Por isso o caosnão é o eterno antagonista do poder divi-no. Na cruz esse dualismo está excluído.Em Cristo, Deus tomou sobre seus om-bros essa contradição ameaçadora e a der-rotou. A fidelidade de Deus para com acriação se manifestou triunfante ao serpronunciado o “haja luz!”

Em Cristo, diz Barth, temos a reden-ção vitoriosa sobre o caos para já e nãocomo possibilidade futura. O medo e amelancolia podem querer prevalecer emnós, mas isto não é a fé cristã. A existên-cia de um otimismo cristão tem lugar,mas não resulta de qualquer visão super-ficial e sim da alegria que vem de JesusCristo. Ele tem a ver com “a alegria dotriunfo divino revelado na salvação domundo pela primeira obra de Deus cha-mada à existência, a luz”. Na verdade,para o teólogo suíço, o cristianismo nãotem vivido com seriedade a alegria dessacondição triunfante e por séculos temerrado, não sendo obediente a essa vi-são. Ao ser rejeitado em Cristo, o caosfoi esvaziado e agora seu único papel é ode inimigo derrotado. Não devemos nosiludir com o seu real poder (vencido) queainda é atuante, porém aparente. EmCristo, mantém-se o triunfo de Deus naseparação entre luz e trevas. Com Ele,Deus não permite a desintegração da suacriação. Aí está a transformação que dávida ao mundo, superando as coisas ve-lhas que se passam e trazendo o reino deDeus.

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Os demônios,Os demônios,Os demônios,Os demônios,Os demônios,o mal e o pecadoo mal e o pecadoo mal e o pecadoo mal e o pecadoo mal e o pecado

Quanto aos demônios como adversá-rios de Deus, é preciso vê-los apenas “derelance”, diz Barth. Demorar-se nisso éo que os próprios demônios desejam.Eles querem ser importantes no estudoda teologia, mas para eles devemos olharcom rapidez, sem nos deter. Nada de sequerer construir uma demonologia. Mastambém não precisamos ficar negando asua existência, como fez o Iluminismo.A Bíblia trata deles, mas faz isso princi-palmente rejeitando-os ou falando da lutacontra eles. Para nós, o importante é sa-ber que o mal é “essencialmente o caos”.É o elemento de contradição que conti-nua a existir ao lado de Deus.

Os demônios existem como o caosem sua manifestação dinâmica. Existempelo fato de que Deus, ao dizer Sim a simesmo e às suas criaturas, necessaria-mente diz Não a eles. Mesmo assim, con-tinua Barth, o caos e os demônios se apre-sentam como algo que deve ser levado a

sério. Eles se manifestam como o reinoda mentira (Jo 8.44), como imitação doreino dos céus e seus anjos. No entanto,principalmente no NT, eles são mostra-dos como um exército derrotado e emfuga. Satanás caiu como um relâmpagoe o reino está próximo! É preciso viver aseriedade e a alegria dessa confissão triun-fante que nasce da obediência. Por nãoser obediente a essa visão, durante sécu-los o cristianismo tem errado.

Quanto ao problema da origem domal, Barth diz que para ele não temosresposta. O que temos, e isso nos parecesuficiente, é a possibilidade da conquis-ta do mal com o triunfo da graça na cria-ção, por intermédio de Jesus Cristo.

Nesse contexto, Barth ainda trata dopecado. A base de sua existência é o nãoquerer de Deus. A verdadeira obra deDeus é a criação, a eleição, a sua graça.Embora não se queira negar a sua reali-dade ou seu caráter horrível, o pecado éa obra da negação divina. Sem a Palavrade Deus, o homem está desesperada-mente sujeito à tragédia da existência hu-mana. O pecado é a realidade impossí-vel e intolerável. É o fator anormal quese esforça por barrar o caminho de aces-so do homem à graça. Para entender oquanto ele é sério, devemos olhar para acruz de Cristo. Mas, ao mesmo tempo,temos de enxergá-lo à luz da derrota quelhe é impingida pela graça triunfante.

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As coisas velhas seAs coisas velhas seAs coisas velhas seAs coisas velhas seAs coisas velhas sepassarampassarampassarampassarampassaram

Entender o pecado não é se deixardominar pelo pessimismo, mascompreendê-lo à luz do amor de Deusem Jesus Cristo, na criação da luz e narejeição das trevas e na obra da reconcili-ação. O ato da reconciliação se consumano triunfo da graça (separação entre tre-vas e luz). Na verdade, o pecado só podeser conhecido à luz da reconciliação e dopacto graça que se encontram na basemais profunda da criação. Também adoutrina do pecado só pode ser compre-endida se estiver precedida da doutrinade Cristo. A graça é maior que o pecado.Nem o aumento da transgressão e a re-beldia anulam a relação graciosa de Deuscom os seres humanos. Onde abundouo pecado superabundou a graça. Este é omilagre do Deus que é “por nós”. O tri-unfo da reconciliação em Cristo é o tri-unfo da criação.

Em Cristo, temos “Deus conosco”, omilagre da história. “No evento reden-

tor de Jesus Cristo podemos ver a base eo começo de tudo, bem como o destinooriginal do homem para a salvação comoo sentido e a base da vontade do cria-dor” (Berkouwer, p. 73). Este é o triun-fo que Deus opera sobre o caos. Em Cris-to, Deus tomou a contradição e ameaçasobre seus ombros e as derrotou com oseu Não triunfante. Esta é a fidelidadede Deus para com a sua criatura. O sen-tido dessa vitória está no Haja Luz! Essaé a transformação que dá vida ao mun-do. As coisas velhas se passaram, é ocântico que encontramos na teologia deBarth!

BERKOUWER, G.,C. The Triumph of Grace in theTheology of Karl Barth. London, Paternoster Press,1956.HAUGHT, J.F. Deus após Darwin. UmaTeologia Evolucionista. Rio, José Olympio, 2002.

MOLTMANN, Jurgen . Doutrina Ecológica da Criação– Deus na Criação, Petrópolis, Vozes, 1993.

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Notas sobre a espiritualidade

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odrigues de Oliveira

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Muitas previsões fo-ram feitas no sen-tido de que a religião

tenderia a desaparecer na medida queo ser humano fosse instruído e edu-cado, não mais necessitando assim dassuas explicações para ordenamentodo mundo ou para a construção deuma sociedade mais justa. Profeciascomo estas foram abundantes desdemeados do Séc.XIX entre círculosiluministas, marxistas, positivistas eaté existencialistas. Todavia, contra-riando todos estes prognósticos, a re-ligião tem ressurgido de uma manei-ra extraordinária e intensa no nossotempo, de tal modo que a questãoda espiritualidade se coloca não ape-nas como tema teológico mas comoum fenômeno mais amplo e compor-tando várias análises. Há umaefervescência de espiritualidades,que força necessariamente o cristia-nismo e, por extensão, o segmentoprotestante em suas múltiplas ex-pressões a se perguntarem em queconsiste a sua espiritualidade. No âm-

bito reformado, em meio a essaspressões, há um empenho no senti-do de definir o que é essencialmen-te reformado, bem como percebersuas implicações. Não se pode fazerisso sem recorrer à história, sem es-quecer também que a espirituali-dade calvinista não pode ser enten-dida à parte seu tempo.

Pouca atenção tem sido dada aotema da espiritualidade estritamen-te falando uma vez que o protes-tantismo histórico não considerourelevante o assunto, focalizando suaatenção nas questões teológico-dogmáticas. O receio de incorrer em

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uma proposta neoplatônica talvez tenhacontribuído. Isto se refletiu na tendên-cia em analisar Calvino tão somente comoreformador e um cerebral teólogo siste-mático. Digna de nota, porém, é a ênfa-se de Calvino sobre a vida cristã e a ora-ção, inclusive dedicando mais espaço nasInstitutas a este assunto do que ao temada predestinação. Há, de modo eviden-te, uma separação entre doutrina e ex-periência. Todavia, isto não ocorreu so-mente no âmbito do protestantismo. JoséComblin, teólogo e biblista católico, aoanalisar as causas do fenômeno do esque-cimento do Espírito Santo na teologia,encontra exatamente ao Séc XVI umadas razões desse esquecimento. A teolo-gia jesuítica que surge ali, e foi referen-dada pelo Concílio de Trento, acentuoua separação entre graça e experiência(1987: p.33). Esta teologia separou es-sas duas realidades e lançou desconfian-ça sobre as experiências de vida cristã va-lorizando apenas as definiçõesdogmáticas.

No âmbito do protestantismo, isto setorna evidente a partir do chamadoescolasticismo protestante que primavapela conceituação precisa da doutrina emdetrimento da experiência. As confissõesseriam, em parte, expressões dessa ên-fase na definição e conceituação teológi-ca. O Pietismo surge exatamente comomovimento de oposição ao escolas-ticismo protestante, priorizando a expe-riência individual como critério de au-tenticidade da vida cristã. Em muitos

casos, ocorreu efeito inverso quando ateologia, suas formulações e a atividadeinvestigativa passaram a ser vistas comdesconfiança.

O resgate, portanto, da maneira comoCalvino constrói sua teologia é oportunono sentido de não vê-lo apenas interes-sado em discutir questões abstratas,dogmáticas, mas também preocupadocom a piedade que a vida cristã requer.Em segundo lugar, o reexame das moti-vações e fundamentos de Calvino sãooportunos também diante de tantas ou-tras propostas e modelos disponíveis.Este artigo, portanto, propõe-se a deli-near algumas características daespiritualidade do Séc XVI em confron-to com a proposta que emerge de Calvinopara posteriormente estabelecer algunsparalelos e desafios de nossa época.

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II – MODELI – MODELI – MODELI – MODELI – MODELOS DE ESPIRITUOS DE ESPIRITUOS DE ESPIRITUOS DE ESPIRITUOS DE ESPIRITUALIDADEALIDADEALIDADEALIDADEALIDADENO SÉCULNO SÉCULNO SÉCULNO SÉCULNO SÉCULO DE CALO DE CALO DE CALO DE CALO DE CALVINOVINOVINOVINOVINO

O movimento monástico e místico - A vida monástica desdeseus primórdios no século III sempre representou um modelo aser buscado por aqueles cristãos que ansiavam por umaespiritualidade mais intensa. Antão, Pacônio e Antônio têm sidoapontados como os precursores deste movimento que não é exclu-sivamente cristão. Curiosamente, tanto o monasticismo pagão comoo judaico e o cristão tiveram origens no deserto egípcio. À medidaque cessavam as perseguições, e o martírio deixava de representaro grande ideal de vida cristã, o ascetismo passa a assumir este papelexpresso principalmente através do monasticismo. O ascetismo éuma das características constantes do monasticismo, embora ten-dências ascéticas já pudessem ser encontradas na igreja primitiva.O ascetismo passou a ser visto como um treinamento rigoroso quehabilitava para competir e vencer a luta contra o diabo, o mundo ea carne. Com o processo de constantinização, a partir do século IV,a igreja assume contornos e atitudes que a distanciam dos princípi-os do Evangelho.

O monasticismo representava um protesto e, ao mesmo tem-po, uma alternativa a esse processo de institucionalização da igrejae cooptação pelo estado. Adolf von Harnack resumiu essa situaçãonestes termos: “Esses atletas monásticos não estavam apenas fu-gindo do mundo; eles estavam fugindo de uma igreja mundana...”(Apud Pelikan: p.114). O ascetismo era uma metodologia ou es-tratégia para se atingir o alvo de todo monge que era a perfeição.Antônio, um dos precursores do monasticismo, teria optado pelavida ascética diante das palavras de Jesus ao moço rico: “Se queresser perfeito, vai vende tudo quanto tens...” A perfeição se torna,portanto, o alvo monástico e acaba criando dois padrões dediscipulado tomando o ensino de Jesus: os mandamentos que eramextensivos a todos e os conselhos de perfeição que eram para osque desejassem tomá-los seriamente. Vida monástica com os con-

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seqüentes votos de castidade, pobreza eobediência foram considerados não ape-nas como um chamado à perfeição, masum estado de perfeição. Os votos foramainda considerados um segundo batismona medida que o primeiro significava amorte para o pecado e estes a morte parao mundo (Steinmetz 1995: p.189-192).Todavia, ao longo da história, o movimen-to monástico, que tinha sido apontadocomo protesto à secularização epaganização da igreja, acabou por assu-mir rumos totalmente distintos da suaorigem, principalmente na Idade Média.Por ocasião da Reforma, tanto Luterocomo Calvino, sem deixar de reconhe-cer o papel do monasticismo na vida daigreja, nem por isso deixaram de apon-tar as mazelas e incongruências dessemovimento.1

O final do século XV e início do XVIé repleto de acontecimentos que vãomarcar a civilização ocidental. Grandeparte desses acontecimentos teve origemreligiosa ou implicações religiosas. A Re-nascença, as grandes descobertas, a cir-cunavegação, a invenção da imprensa, oesgotamento do modelo feudal e osurgimento de um novo modelo econô-mico e social e conseqüentemente a Re-forma Protestante constituem-se nessacategoria de acontecimentos que marca-ram profundamente a civilização ociden-tal. Na esfera católica, tanto a Contra-Reforma como o surgimento de um novomodelo de espiritualidade ilustram es-sas transformações principalmente noâmbito espanhol. Inácio de Loyola, con-

temporâneo de Calvino desde os tem-pos de universidade, juntamente comTeresa de Ávila e S.João da Cruz são per-sonagens destes acontecimentos. Emborao movimento jesuíta tenha adquiridooutras configurações bem distintas dosmísticos, porém, em determinados pon-tos, ele foi profundamente influenciadopor esta busca da perfeição, procurandocombinar tanto ação como contempla-ção. Parte desse processo foi o que seconvencionou chamar de movimento deinteriorização que incluía a oração men-tal (técnica de meditação), reflexão2 eiluminação.

Inácio de Loyola praticava essa téc-nica de imaginação contemplativa na qualprocurava visualizar as cenas da vida, pai-xão e morte de Jesus. A reflexão consis-tia de três partes: auto-conhecimento,imitação de Cristo e união com Deus.Esta união não se dava através do inte-lecto, mas do amor, implicando em umatransformação da alma em Deus, o equi-valente a tornar-se um espírito com ele,assim como duas chamas se tornam umaou como as gotas d´água que caem nooceano e se fundem com ele (Kavanaugh

1 Calvino assim escreveu: “Não há classe de homensmais corrompida com toda sorte de vícios. Emnenhuma parte predominam tantas facções, ódios,parcialidades e ambições. Em poucos monastériosse vive honestamente... De cada dez monastériosencontrareis um que não seja um bordel ao invés deum tabernáculo de castidade...” (1960: LivroIV.13,15).2 Esta palavra tem o sentido mais amplo como ummomento de retiro específico para meditar e refletir

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1989: p.71). Este encontro com Deustoma lugar no mais profundo interior daalma. Em outras instâncias do movimen-to místico esta ascese era apresentada naseguinte ordem: purificação, iluminaçãoe união com Cristo, aqui visto como onoivo da alma. A alma deveria serpurificada dos seus pecados para atingira união, união esta inspirada principal-mente pela linguagem de Cantares, quefacilmente assumiu um tom não apenassentimental, mas também erótico.Jaroslav Pelikan acrescenta que “a linhaentre a emoção e sentimentalismo facil-mente se cruzou assim como a linha en-tre ‘agape’ e ‘eros” (Op. cit., p.131). Aliberdade consistia na sujeição da razão àlei de Deus e a conseqüente indepen-dência tanto das pressões exterioresmundanas como dos apetites pelo poder,prazeres ou dinheiro. Este modelo deespiritualidade produziu abundante lite-ratura e iconografia tematizando a pai-xão e morte de Cristo (Kavanaugh, op.cit., p.71-72).

John Mackay (1988), no seu

memorável estudo sobre aespiritualidade espanhola que marcou acolonização e a alma latino-americana,nos fala do Cristo guerreiro3 bem comodo Cristo sofredor, o qual foi retratadoprincipalmente por Velásquez. “As ima-gens e pinturas apresentavam este Cris-to dilacerado, exangue, moribundo oumorto. Ele é a própria ‘encarnação damorte’, o ‘Cristo cadáver’ sempre nacruz.” (Mackay, op., cit. p. 116-17). Estetipo de cristologia ou espiritualidade teveimpacto profundo na América Latina naanálise de Saul Trinidad, produzindo pa-drões de subjugação, resignação emarginalização (Trinidad, Saul, 1984,p.55).4

Paralelamente floresceu ainda no sé-culo XVI, entre os que se convencionouchamar de os “iluminados”, a tendênciaà desvalorização das orações verbalizadas,jejuns, penitências, ritos e cerimônias. Oimportante era experimentar o amor deDeus como alvo da perfeição e não rarasvezes enveredando para experiênciasextáticas, arrebatamentos e profecias.

3 A concepção do Cristo guerreiro teria sido forjadano processo das longas lutas pela libertação dapenínsula ibérica ocupada durante séculos pelosárabes. As cruzadas bem como o passado de lutascontra os árabes criaram entre os ibéricos umespírito de guerra. Todavia, este espírito se reveloucom mais ferocidade entre os espanhóis. JohnMackay (1988) descreve a alma espanhola comoapaixonada e tendo como supremo ideal de vida serum soldado. Até os sacerdotes, frades e freirastinham um espírito militar.

A Contra-Reforma teve na península ibérica o seuapoio mais decidido através da Sociedade de Jesusfundada por Loyola, um ex-soldado que ferido em

batalha e que, durante a sua convalescença,consagra sua vida à Virgem e em especial ao serviçodo papa. Eduardo Hoornaert (1974) tem uminteressante estudo sobre o catolicismo brasileiroonde descreve o “catolicismo guerreiro” que nesteperíodo se direciona contra os infiéis protestantesfranceses na Baía de Guanabara e os holandeses noNordeste. Antonio G. Mendonça (1984) ainda noslembra que o espírito guerreiro não foi exclusividadedo catolicismo ibérico. Entre os protestantes essefenômeno também se manifestou conforme eleconstata na análise da hinologia protestante doséculo XIX.

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Tais práticas foram vistas ou identificadascomo protestantes em determinados mo-mentos e lugares, principalmente na pe-nínsula ibérica onde a Inquisição estevesempre mais visível. A repressão e des-confiança, todavia, não impediram quesurgisse uma das maiores expressões daespiritualidade mística do século XVI:Teresa de Ávila (1515-1582). Teresa tevevárias experiências místicas. Em uma de-las teria contemplado o rosto de Cristo acaminho da cruz. Seu modelo de oraçãoera a chamada “oração passivacontemplativa” que mais tarde assumiuduas formas: a “silenciosa” e “união”. Noseu mais elevado grau de experiênciasmísticas ela referia a uma perfeita união“casamento espiritual” entre a alma eCristo (Kavanaugh, Op.cit., p.75-79). Atemática da união ou casamento místicocom Cristo não era novidade dentro domovimento místico como nos referimosacima. O livro de Cantares, lido alegori-camente em alguns círculos judaicos,adquire uma importância fundamentalcomo leitura predileta e, conseqüente-mente, como fonte de inspiração para

essas interpretações do movimento mo-nástico e místico. Bernardo de Clairvaux,o grande nome do misticismo medieval,escrevera um dos maiores comentáriossobre Cantares (Séc. XII) que se temnotícia, o qual consistia de oitenta e seissermões apenas nos dois primeiros capí-tulos (Pelikan, op.cit., p. 126).

São João da Cruz, contemporâneo deTeresa de Ávila, em parte obscurecidoinicialmente por ela, todavia, teve maistarde reconhecida a sua influência comomístico que usa a poesia como instru-mento. O uso da linguagem simbólicasempre foi uma alternativa aos místicospara expressar experiências que não po-diam ser definidas ou aceitas racional-mente. Um dos seus conceitos predile-tos era “a noite escura” para se referiraos percalços na trajetória da alma emsua busca da união com Deus, união estade amor na qual a alma se tornava seme-lhante ou igual a Deus (Kavanaugh, op.cit.,p.80-83).

A espiritualidade medieval popular– Uma das expressões da espiritualidadepopular no século XVI era o dissemina-

4 Uma das evidências mais nítidas dessa cristologia/espiritualidade pode ser vista nas celebrações dasemana santa onde o ponto alto é a sexta-feira dapaixão. O domingo da ressurreição é obscurecido eperde importância religiosa para a sexta-feira. Nelamilhares comparecem às missas, observam jejuns,praticam penitências e realizam a procissão doSenhor morto. Na zona rural uma atmosfera detristeza e luto envolvem as pequenas comunidades.Nenhum comércio aberto, nem passeios, música oudanças. Nos grandes centros essa é uma prática emvias de desaparecimento. É preciso observar que o

encontro dessas cristologias com a cultura afro-ameríndia produziu diferentes reações e resultados.Os derrotados indígenas e os escravos subjugadosem nome de Cristo identificam-se com o Cristosofredor e agonizante da cruz que expressa ascondições na qual eles estavam vivendo. Osmarginalizados de hoje também experimentam umsentimento generalizado de impotência e resignaçãodas forças e condições que os massacram. Pobreza,

riqueza, sofrimento são desígnios de Deus e nãoresultados de situações históricas. Logo, não podemser mudados.

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do culto das relíquias. Calvino, de modomais específico, tratou dessa situação emduas obras: “Tratado das Relíquias” e “In-ventário das Relíquias” (1543). Emambas expõe a forma supersticiosa emágica que assumiu a espiritualidadepopular, preconizando a necessidade devolta à Palavra de Deus. Todas as situa-ções que envolviam o culto às relíquiassão descritas por Calvino com uma iro-nia que ora resvala para o humorísticoora para o satírico. Geralmente seus tex-tos se nos apresentam sisudos e densos.Todavia, estes fogem à regra. Alguns au-tores chegaram a ver neles a influênciado estilo de Erasmo em sua crítica à reli-gião estabelecida de seu tempo (Eire,1990, p.268). Ao listar numerosos itens,ele ressalta o absurdo e a falsidade decada um aos olhos da razão evidencian-do seu caráter propositalmente fraudu-lento. Se alguém não for convencido teo-logicamente, ao menos fique evidentequão afrontoso é ao bom senso e à razãoesse culto. Ele faz um inventário dessasrelíquias e inicia mencionando aquelasrelativas a Cristo como a lança do solda-do que o feriu: “Esta deveria ser uma,porém talvez por obra de um alquimistaela tem aumentado e multiplicado. Exis-tem quatro além daquelas que existemem diferentes lugares os quais eu nãotenho o nome...” (Calvin, 1983, p.304).Da mesma maneira, os espinhos da co-roa eram tantos que provavelmente elestinham sido plantados e multiplicados.Calvino lista pelo menos vinte um locais

que reivindicavam possuir os legítimosespinhos da coroa de Cristo (Idem,p.304). Porém a relação continua e en-vereda para objetos e situações bizarras:o prepúcio de Cristo preservado desde asua circuncisão, a manjedoura, a primei-ras fraldas de Cristo, vasilhas utilizadaspara a transformação da água em vinho,remanescentes do vinho de Caná que to-dos anos era oferecido em pequenas do-ses aos peregrinos mediante, é claro, umaoferta e que milagrosamente tambémnunca se acabava; sapatos de Jesus, mi-galhas do pão da última ceia, a faca utili-zada para cortar o cordeiro pascal, pra-tos, a toalha com que Jesus lavou os pésdos discípulos, migalhas remanescentesda multiplicação dos pães, ramos usadosquando Jesus entrou em Jerusalém, omanto que cobriu Jesus perante Pilatos,dentes de Jesus, leite da virgem Maria...Calvino não resiste e de modo mordazcomenta: “Se os seios da virgem Mariativessem produzido tão abundantemen-te mais que uma vaca ou tivesse ela ain-da produzido leite a vida inteira, dificil-mente ela teria fornecido a quantidadeexibida [...] teria ela dado aos magos oupastores que visitaram o menino leitecomo lembrança da visita?” (Ibidem,p.317). A bizarra lista segue adiante: orabo do jumento que carregou Jesus,pedaços do peixe assado que Jesus co-meu com os discípulos, lágrimas de Je-sus quando lavava os pés dos discípulos,pregos e pedaços da cruz de Cristo. Aoque mais uma vez ironicamente acres-

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centa que, se todas as lascas da cruz deCristo fossem amontoadas, dariam umacarga de navio, embora os evangelhos re-gistrem que uma pessoa sozinha a carre-gou.

Calvino tem conhecimento do epi-sódio histórico no qual Helena, mãe deConstantino, teria feito várias gestõespara se conseguir a cruz bem como ospregos. Supostamente ela teria encontra-do a cruz e três pregos, dos quais teriamandado colocar um no capacete deConstantino e outro dois nos freios doseu cavalo. De lá para cá, esses pregos elascas da cruz se multiplicaram e Calvinolistava pelo menos quatorze igrejas oulocalidades que reivindicavam possuir oslegítimos pregos (Ibidem, p.303). Ao queele aduz:

“Comediantes e atores teriam ridodisto, mas monges e sacerdotes im-postores não têm deixado de enga-nar as pessoas de boa fé. [...] Comcerteza não existe homem ou mu-lher idosa tão estúpidos que nãovejam quão ridículas são estas coi-sas, mas porque as mentiras são co-bertas com o véu da religião, a ini-qüidade de assim ridicularizar aDeus e anjos não são assim perce-bidas”. (Ibidem, p.320-321)

A questão fundamental para Calvinoé esta: os evangelhos nada dizem e nãohá registro na história da igreja. O silên-cio dos antigos escritos é por demais elo-qüente, segundo Calvino (Ibidem,p.320-321). Finalmente, ele sugere queos expositores de tais relíquias deviampelo menos entrar em acordo para nãoexporem objetos em duplicata, zomban-do da inteligência dos fiéis.

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IIII – A PROPOSTII – A PROPOSTII – A PROPOSTII – A PROPOSTII – A PROPOSTA DE CALA DE CALA DE CALA DE CALA DE CALVINOVINOVINOVINOVINO

Richard Gamble (1998, p.33), um “scholar” calvinista, nos apre-senta um conceito espiritualidade que brota em Calvino e que estáalicerçado na maneira como ele estrutura as Institutas: o conheci-mento de Deus e do ser humano; a necessidade de honrar a Deusatravés da fé, obediência e serviço; a total dependência de Cristo, oVerbo Encarnado, e a resposta humana em piedade e adoração. Es-tritamente falando, a espiritualidade seria, portanto, a resposta hu-mana àquilo que Deus tem feito. Calvino, no entanto, usa o termopiedade para descrever esta resposta. Esta piedade/espiritualidade éa resposta através da imitação amorosa de Cristo ao preço que elepagou pelo nosso pecado. Esta imitação encontra na lei de Deus oreferencial que impedia os excessos e distorções no catolicismo ro-mano.5 A vida cristã tem um duplo objetivo: Deus ordena aos cris-tãos uma vida de santidade e ele mesmo proporciona a redençãopara aquela santidade através de Cristo. A obra de Cristo não seesgota, portanto, no pagamento dos nossos pecados, mas tambémcomo modelo de obediência e santidade a ser seguido, acrescentaGamble (Op. cit., p.34). A espiritualidade é, portanto, entendidacomo a resposta humana ao conhecimento Deus e sua ação em favordo eleito, tendo Cristo como modelo. Seguir a Cristo implica emaceitar os sofrimentos de Cristo que se manifestam também emnossa vida, pois ali aprendemos paciência e a obediência.

Há um paralelo entre os sofrimentos terrenos de Cristo e os docristão. Se Cristo como nosso cabeça aprendeu a obediência atravésdos sofrimentos (Hb 5.8) por que deveríamos considerarmo-nosisentos dessas experiências, uma vez que se submeteu a isso pornossa causa e exemplo de paciência, pergunta Calvino, pois Deus

5 O papel da lei na vida cristã dividiu luteranos e calvinistas, principalmenteno chamado terceiro uso da lei. Ambos os grupos concordavam com os doisprimeiros usos da lei: a lei na sua função civil restringindo e coibindo opecado e a lei na sua função pedagógica levando o pecador a Cristo. Oterceiro uso da lei, para Calvino, consistia na adoção da lei como guia para ocristão na sua obediência a Deus. Luteranos rejeitavam veementemente essaalternativa e não raras vezes Calvino foi acusado de legalista, ao quereformados respondia acusando Lutero de antinomista.

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tem destinado todos seus filhos a quesejam conformes à imagem de Cristo(Calvin, 1960, III, 8.1). Sem dúvida ne-nhuma, sua trajetória de vida foi marcadapor intensos e agudos sofrimentos des-de a oposição que enfrentou nos primei-ros anos em Genebra, que culminaramcom sua expulsão juntamente com Farel(1538), até as dores pela perda da espo-sa querida após nove anos de casamen-to, dos filhos que também morreram pre-maturamente, bem como das enfermi-dades que o atormentaram. Segundo umrelato contido em uma das suas cartas aoseu médico em Montpellier, ele padeciade várias enfermidades como pedra nosrins, gota, constipação intestinal,hemorróidas, dores nas juntas, problemasrespiratórios e uma prosaica colônia devermes (Cooke, 1990, 59-60). Os sofri-mentos procedem da mão de Deus, deacordo com seu propósito, pois devido ànossa natureza humana corrupta neces-sitamos desse tipo de corretivo. As afli-ções cobrem-nos como uma sombra demorte, assim a vida terrena é como umamorte contínua (Calvin, 1998a). As afli-ções ou as poucas coisas boas que des-frutamos têm o objetivo de não distraira atenção do cristão daquilo que Deustem preparado na vida futura. Simplici-dade e frugalidade devem ser marcaspermanentes da vida cristã. A disciplinada vida cristã exercida pela igreja deveajudar o cristão a viver de modo separa-do de toda sorte de impurezas, manten-do-se afastado da corrupção do mundo.Mundo para Calvino significa tudo aqui-

lo que é adverso ao Espírito de Deus: acorrupção da nossa natureza, concupis-cência e artimanhas que o Diabo usa paranos afastar de Deus. No mundo estão osprazeres e todas as atrações que cativamo ser humano afastando-o de Deus(Calvin, 1998b). 6

Calvino (1960, III, 6-10) ainda trataextensivamente da vida cristã que temnas Escrituras a base para produzir o amorpela justiça em nossos corações e pro-porcionar uma regra para justiça. A per-feição é o nosso objetivo, porém imper-feição é a nossa porção terrena. A sínte-se da vida cristã consiste na negação denós mesmos, porque não pertencemos anós mesmos, mas a Deus e assim deve-mos viver e morrer para Ele (Idem, 7.1).Seguir a Cristo, segundo Calvino, signi-fica renunciar cada dia a nós mesmos etomar a cruz. Somente assim podemosexperimentar verdadeira devoção aDeus, pois a renúncia nos liberta de de-sejos egoístas, aspirações de poder, lutapor posses e glória, etc. O mundo de ví-cios que habita a alma humana somentepoderá ser vencido pela renúncia, a qualnos possibilita não apenas o correto rela-cionamento com Deus, mas tambémcom nosso próximo e além disso pode-mos suportar mais facilmente as adver-sidades da vida humana (Ibidem, 4-10).Ao se referir à cruz como chamado, eleacrescenta que não há verdadeiro segui-mento de Cristo sem nos identificarmos

6 Calvin. Commentary on Catholic Epistles. Agessoftware. Albany, USA, 1998.

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com ele, logo, a cruz é um caminho ine-vitável.

O que Calvino considera ser a cruz?Seguir a Cristo é identificar-se com elepartilhando dos seus sofrimentos. Tomara cruz ou aceitar essa identificação comCristo é necessário para nos ensinar pa-ciência e obediência, remédio divino con-tra nossa auto-indulgência, paternal cor-reção através das aflições e dos sofrimen-tos decorrentes das perseguições. Porém,o cristão nunca é abandonado porquedesfruta do consolo divino; segundo, aatitude do cristão diante do sofrimentonão se equipara à “apatheia” estóica quebuscava um controle pleno (autarquia)sobre a dor, sofrimento, etc. pela nega-ção (Ibidem, III, 8.2-10). A propostaestóica tornava a vida apática, cinzenta,indiferente à dor e alegria. A fé cristã,segundo Calvino, admite o conflito e ascrises, porém não se deixa dominar porelas e permanece na firme convicção queo plano de Deus para nós é que enfren-temos as adversidades com gratidão elouvor.

O lugar da oração na vida cristã.

Tradicionalmente a oração nem semprefoi considerada um assunto que pudesseser inserido em obra teológica ao lado dostemas clássicos. Ela sempre foi vistacomo exercício da piedade pessoal, por-tanto um assunto de caráter prático.Nesse particular Calvino inova ao intro-duzir o tema da oração, situando-a exa-tamente no capítulo que antecede a dou-trina da eleição e, contrariando uma vi-são simplista que reduz a teologiacalvinista à predestinação, nas Institutas,ele escreve mais sobre oração do que so-bre a predestinação (Ibidem, III, 20). Aprincipal obra do Espírito Santo é a fé eesta se expressa de modo mais efetivoquando oramos. O ponto de partida deCalvino reside no fato de que o ser hu-mano encontra-se desprovido de qual-quer bem e que a oração é o único meiopara ter acesso a esses bens que Deusdispõe somente em Cristo. A oração écomo “escavação dos tesouros que sedescobrem em nossa fé pelo Evangelho”(Ibidem, III, 20.2). A fé nos leva a reco-nhecer que o que necessitamos encon-tramos em Cristo. O mesmo evangelhoque ao ser pregado produz a fé nos ins-trui a invocar a Deus. A fé é produzidapela Palavra e Espírito e estes nos levama orar. Assim a fé nos inspira a orar e estapor sua vez é fortalecida pela oração. Aoração é uma comunhão dos seres hu-manos com Deus, na qual buscam o queEle já tem prometido em sua palavra paraassim nos livramos do ceticismo ou qual-quer tentação de colocar como ilusãoaquilo que Deus tem nos prometido em

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sua Palavra.Calvino alinha seis razões fundamen-

tais pelas quais devemos orar: 1) embo-ra Deus saiba o que necessitamos, a ora-ção foi instituída por nossa causa, é uminstrumento para que nossos coraçõespossam ser incendiados com zelo e ar-dente desejo de amá-lo e servi-lo bus-cando refúgio nele em tempos de neces-sidade; 2) que nenhum desejo ou vonta-de do qual venhamos a nos envergonharpossam adentrar às nossas mentes aomesmo tempo em que aprendemos aderramar perante ele todo nosso coração;3) para que estejamos preparados parareceber seus benefícios com gratidão decoração; 4) para que tendo recebido oque pedíamos, compreendamos e medi-temos fervorosamente em sua liberali-dade; 5) para que aprendamos a acolhercom grande alegria aquilo que obtivemosmediante oração; 6) para confirmar a re-alidade da providência em nossas men-tes (Ibidem, III, 20.2). A seguir, Calvinopropõe quatro regras básicas da oraçãosem, contudo, pretender transformá-las

em normas rígidas porque oramos a umPai indulgente que aceita nossas orações,embora imperfeitas. A primeira regra dizrespeito ao controle dos nossos pensa-mentos. A oração deve ser feita com en-tendimento e coração, nada pedindoexceto o que está em conformidade àvontade de Deus. Em segundo lugar, aoração deve expressar um sentimentointenso da nossa necessidade, como men-digos que suplicam, ou seja, não há lugarpara orações superficiais; em terceirolugar, as orações devem brotar de cora-ções humildes e despojados de qualquerarrogância ou pretensão, pois o funda-mento da oração está na misericórdia deDeus. Ela não é uma obra meritória emsi. Finalmente, a quarta regra é a certezae convicção da fidelidade de Deus emsuas promessas (Ibidem, III, 20.4-16).

Calvino ainda toca em outras ques-tões fundamentais: a oração do Pai Nos-so como modelo para nossas orações, amediação de Cristo e a intercessão dossantos. Com relação ao Pai Nosso, elealerta para o risco de transformá-la emuma fórmula rígida e mecânica. Há ou-tros exemplos de oração nas Escrituras enós devemos orar no espírito do Pai Nos-so. No seu comentário destacamos duaspetições: “venha o teu reino” e “dá-noso pão de cada dia”. Ao orarmos “venha oteu reino”, entre outras coisas significapara Calvino a súplica diária para que“Deus reúna as igrejas para si de todas aspartes da terra, que ele expanda e as au-mente em número, que ele as adornecom dons” (Ibidem, III, 20.43.2). Ao ex-

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planar a súplica pelo pão diário, Calvinoacrescenta que esta petição é o antídotocontra anseios e cobiça por bens materi-ais. Tendo a porção diária e confiantesno cuidado divino, podemos viver emsimplicidade (Ibidem,III, 20.44). Poroutro lado, a doutrina da intercessão dossantos coloca Deus em segundo plano.Aqui Calvino foi mais contundente queos demais reformadores que não derama este assunto maior importância, segun-do Henri Strohl (1963).

Calvino argumenta a partir do ele-mentar: não há nenhuma baseescriturística para este tipo de prática.Todas as vezes que abandonamos o ensi-no das Escrituras adentramos terrenoescorregadio. Elas nos ensinam que so-mente Cristo é nosso mediador eficaz.A singularidade da sua pessoa e obra nospermite crer na eficácia da sua interces-são, além do que buscar ou esperar a in-tercessão dos santos seria desconfiar deDeus em suas promessas, bem como rou-bar a Cristo e esvaziar a cruz. Finalizan-do seu argumento, Calvino insiste aindano papel das Escrituras como referencialpara nossas orações. A fé está alicerçadana Palavra que é a “mãe da correta ora-ção”. Fora da Palavra, ela se corrompe. Aoração é a expressão da fé e a fé tem suaorigem no ouvir a Palavra (Op. cit., 1960,III, 20.21).

Polêmica contra idolatria e concei-to de culto. De acordo com Calvino, opropósito da vida humana é conhecerDeus e glorificá-lo através do culto eobediência. O fundamento da teologia

de Calvino está em seu ataque à idola-tria. Conhecimento de Deus e culto sãoinseparáveis. Ninguém pode conhecer aDeus sem experimentar anseio ou dese-jo ardente em cultuá-lo. Em Calvino, doisprincípios fundamentais subjazem na suaconcepção de culto: “soli Deo Gloria”;“finitum non est capax infiniti”. Ou seja,o objetivo central da vida humana é a gló-ria de Deus e, em segundo lugar, Deus éo totalmente outro, a realidade transcen-dente que não pode ser reduzido, con-fundido ou aprisionado em uma dimen-são material. Segundo Calvino, o catoli-cismo romano se equivocava exatamen-te por confundir ou não discernir essarealidade, domesticando Deus e privan-do-o da sua glória. Por essa razão, Calvino,ao enumerar os males que afligiam a igre-ja e acentuavam a necessidade de refor-ma, começa exatamente com o culto. Elediz:

“Se nós perguntarmos, então, porquais coisas principalmente a reli-gião cristã tem permanecido entrenós e mantém sua verdade, encon-traremos nestas duas coisas seguin-tes as quais não somente ocupamlugar primordial, mas dão sentidoàs demais partes e conseqüente-mente à totalidade da fé cristã, ouseja, o conhecimento do modocomo Deus é devidamente cultuadoe em segundo lugar a fonte da nos-sa salvação.”(1983, p.126).

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Calvino assim afirma que não se podeser cristão sem o conhecimento do queseja o culto devido a Deus. Culto corre-to ou adequado precede o conhecimen-to da salvação. O culto tem como princi-pal propósito o reconhecimento do queDeus é como única fonte de justiça, san-tidade, sabedoria, verdade, poder, bon-dade, misericórdia, vida e salvação. Por-tanto, o culto é a oportunidade de ren-der-lhe a glória devida bem como buscarnele todo bem ou recurso de que neces-sitamos. Esta é a genuína santificação doseu nome que lhe devemos. Na reverên-cia devida à sua grandeza e excelência,as cerimônias, os instrumentos, são au-xílios que devem envolver tanto o corpoquanto a alma (Idem, p.127).

Calvino identifica as origens da ido-latria na queda, a qual afetou profunda-mente o ser humano. Este já não maispode conhecer a Deus. Seus dons natu-rais (razão, vontade, etc.) se corrompe-ram e seus dons espirituais (fé, amor aDeus e ao próximo, desejo de santidadee justiça, etc.) foram removidos (Calvin,1960, II, 2.12). As conseqüências forammaiores na dimensão espiritual. Todavia,persiste no ser humano um anseio pelaverdade o qual não pode ser realizado. Amente humana foi embrutecida e ape-nas tateia em busca da verdade. Assim,acaba por inevitavelmente encaminhar-se rumo à ignorância, destruição e mor-te. Este anseio pela verdade nada mais éque um resquício da sua condição de cri-atura segundo a imagem e semelhança.Calvino chamou-o de “sensus divinitatis”

7 Esta afirmação de Calvino e que Barth assumiuplenamente sustentando a exclusividade darevelação de Deus em Cristo e conseqüentemente anegação de qualquer elemento revelatório emqualquer outra religião ainda se constitui emconsiderável embaraço aos que propugnam pelomacro-ecumenismo.8 Calvin. Commentary on Psalms. Ages Software.Albany, USA, l998

ou “semen religionis”, o qual está pre-sente mesmo nos ímpios e perversos.Como evidência disso, ele lembra o fatode não haver nação que não tenha algu-ma expressão religiosa. A idolatria e su-perstição seriam ainda evidências dessevelho anseio humano que se manifestade maneira equivocada em relação aDeus. Esta semente religiosa, ironica-mente, não aproxima o ser humano deDeus, pelo contrário, o aliena e o distan-cia mais ainda.7 Devido à sua condiçãopecaminosa, o ser humano responde aeste anseio negativa e pervertidamente(Idem, I, 3.1; 4.1). Comentando o Sal-mo 97, ele acrescenta que somente o ver-dadeiro conhecimento de Deus dissipaa idolatria como o sol dissipa as trevas.Todos trazemos naturalmente algo dereligião conosco, mas devido à cegueirae fraqueza das nossas mentes ela estádepravada. Assim esta semente de reli-gião ou senso de divindade se torna defato a fonte de toda superstição e idola-tria (Calvin, 1998c). 8

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III III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE

A título de conclusão, vamos alinhar alguns tópicos tentando estabe-lecer um diálogo entre o pensamento de Calvino em resposta a determi-nadas situações do seu tempo e ao mesmo tempo tentar algumas cone-xões. É evidente que Calvino viveu e enfrentou um contexto totalmentedistinto do nosso. Todavia, alguns princípios e valores podem e devem serretomados. Um dos primeiros aspectos a ser novamente observado é aênfase em todos assuntos que Calvino dá sobre a importância da funda-mentação nas Escrituras na discussão de todos os temas. É corrente afir-mar que as Escrituras se revestem de caráter normativo para a vida cristãe que a Reforma deu ênfase ao “sola Scriptura” como princípio distintivo.Todavia, não basta proclamar a supremacia da Escritura em termos de fé edoutrina, é preciso interpretá-la adequadamente dialogando com tradi-ção e a realidade. Nesse particular, Calvino, dispondo dos recursos quelhe estavam acessíveis, foi exegeta e intérprete primoroso quando nãoapenas alinha textos bíblicos aleatoriamente para comprovar suas assertivas,mas interpreta com perspicácia dando consistência bíblica, teológica ehistórica às suas afirmações. Receios equivocados de uma identificaçãocom um biblicismo raso ou fundamentalista têm marginalizado a Palavraem muitos círculos reformados. Este é um desafio que necessita ser en-frentado sem receios.

A temática da oração é tratada como assunto teológico relevante, nãoapenas um tema prático, reservado para piedade pessoal e privada. Aoestabelecer princípios para sua prática tanto privada como pública, Calvinonos mostra que a oração precisa ser encarada não apenas como assunto daesfera individual, mas é um assunto teológico que deve ocupar e permeara reflexão teológica bem como a própria vida da igreja. Comumente osrótulos de pietista ou piegas assustam, marginalizando a oração não ape-nas como tema teológico, mas também da própria prática cristã. A oraçãoficou assim restrita aos livros devocionais e aqui entendidos como obrassem densidade.

Para Calvino, a vida cristã consistia em renúncia e em tomar a cruz.Para o nosso tempo que enfatiza a teologia da prosperidade, o sucessomaterial como indicativo da bênção divina, o conforto e bem estar como

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alvos da vida ao alcance de uma fé que“decreta e ordena” a Deus que concedaesses bens aos “filhos do Rei”, a compre-ensão reformada da vida cristã soa estra-nha, distante ou superada. A busca deum cristianismo sem cruz, sem renúnciae sem despojamento são velhas tentaçõesque emergem com diferentes roupagense justificativas teológicas. Falar em cruze renúncia em uma sociedade hedonistae que vê no consumo e posse o caminhopara realização humana é, sem dúvida,uma tarefa no mínimo ingrata e que nãofunciona como estratégia para o aumen-to do número de membros das igrejas.Não é de se estranhar a tentativa de fa-zer do evangelho um bem de consumoadequado às “exigências do mercado”. Acompreensão calvinista a respeito deDeus é que, em sua soberania, ele graci-osamente nos permite acesso pela ora-ção, porém, a finalidade primeira é queo nosso coração seja tomado por um zeloe desejo ardente de amá-lo e servi-lo. Aoração não se esgota em pedir o que ne-cessitamos, mas em produzir em nós umacompreensão mais profunda e intensa dagraça de Deus. Além disso, Deus não estáà mercê dos caprichos e desejos huma-nos. De outra sorte, não seria Deus.

Resguardadas as devidas proporçõespresenciamos uma espiritualidade extre-mamente supersticiosa. Se a religião nãofoi banida pela tecnologia, ciência ou sis-temas políticos, ela aflorou e se constatauma espiritualidade mística com forteapelo ao mágico. Objetos e rituais mági-cos estão na ordem do dia. Apesar da ne-

cessidade humana de um suporte concre-to para fé, o uso do “tocar” chega às raiasda manipulação, à semelhança do cultomedieval das relíquias. É preciso dizer queas formas sutis e refinadas de idolatria queafloram com justificativas religiosas nãopodem ser ignoradas. Portanto, não é dese estranhar que o mercado – entidadepoderosa e invisível – é obedecido ecultuado religiosamente, bem como omercado de bens religiosos está em plenaexpansão.

Uma das características mais proemi-nentes da teologia reformada é a distin-ção entre Criador e criatura. A ênfasecalvinista de que o finito não pode con-ter o infinito perpassa sua teologia e en-contra na teologia de Karl Barth especialressonância, principalmente na sua lutacontra as reivindicações da teologia libe-ral do século XIX, quando o transcen-dente foi domesticado e reduzido à ra-zão, experiência ou sentimento. O mis-ticismo tinha pretensões idênticas. Deacordo com Pelikan, “facilmente se cru-zou a linha entre Cristo-misticismo epanteísmo. O anseio pela união com oCristo, em muitas circunstâncias,obliterava a distinção entre Criador eCriatura”(Op. cit., p.131). Outros mís-ticos, no anseio de descrever esta união,chegavam a falar que tudo vindo de Deusseria reabsorvido em Deus. A perspecti-va calvinista da oração procura não so-mente preservar nitidamente a distinçãoCriador-criatura, mas a oração em si járepresentava a própria debilidade e ne-cessidade humana, o que excluía de prin-

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cípio qualquer pretensão de união mís-tica.

A contemplação mística ou o isola-mento monástico tinham como pressu-posto uma concepção de mundo e ne-cessidade de fugir a esta realidade. Em-bora não pudesse ser enquadrado neces-sariamente como uma piedade munda-na, Calvino não deixa de ver o mundocomo teatro da glória de Deus e a partirda sua concepção de vocação desenvolvee lança as bases de uma ética do traba-lho, relações econômicas e sociais quevão influenciar a Europa e a civilizaçãoocidental profundamente. Pode-se atri-buir a Calvino uma espiritualidade mun-dana no melhor sentido da palavra, poisa sua maneira de conceber a relação comDeus e o mundo como lugar onde glori-ficamos ao Criador pelo nosso engenhoe trabalho teve e tem profundas impli-cações no ambiente.

Em alguns círculos pietistas, a ênfasena experiência e subjetividade que tantainfluência teve no protestantismo levoua uma perda da visão histórica e da pró-pria ação de Deus dentro da história.Deus ficou encapsulado na subjetivida-de, reduzido ao indivíduo e com gravesconseqüências também para a compre-ensão da igreja como comunidade. A fal-ta de articulação entre fé e história/soci-edade ilustra isso. Muitas divisões têmorigem nessa falta de percepção da igre-ja como comunidade. Tem se desenvol-vido um tipo de espiritualidade indivi-dualista e verticalizada que oblitera oenvolvimento com a comunidade.

Esse modelo de espiritualidade, namaioria das vezes, se torna separatista ouexcludente. Na prática repete-se o equí-voco cometido pelo movimento monás-tico contemporâneo a Calvino. No an-seio de escapar de um mundo e igrejacorrompidos e em busca do que se en-tendia ser perfeição, o movimento mo-nástico, segundo Calvino, enveredava parauma atitude separatista rompendo com aigreja ao adotar um ministério peculiar eadministração privada dos sacramentos,bem como, deixando de participar dasreuniões com o povo de Deus. Em assimprocedendo, estava quebrando o vínculoda unidade da igreja (Calvin, 1960, IV,13,14). Algumas manifestações daespiritualidade protestante têm exata-mente enveredado por esse rumo. Ofracionamento de muitas igrejas aponta,entre outras causas, para esse tipo deespiritualidade personalista.

Uma espiritualidade sadia brota deuma relação com Deus mediada pelaPalavra, enraizada na comunidade e com-prometida com a realidade. À parte daPalavra, adentramos um terreno escor-regadio das subjetividades, revelaçõesparticulares, etc. Sem o enraizamentocomunitário, perdemos a rica noção daigreja mãe e escola, a qual aprendemoscom Calvino e, sem compromisso com arealidade, repetimos o equívoco domonasticismo místico interessado ape-nas nas experiências pessoais, alienadode um mundo que anela por propostasmais consistentes.

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“Se Roma perecer, o que se há de salvar?”

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Na vida de Santo Agos-tinho (354-430), o anode 410 teve tremenda

importância. Em 410, Roma foisaqueada pelos godos. Agostinho nãovivia em Roma. Era bispo de Hipona,no norte da África. Contudo, ele foiprofundamente afetado pelo acon-tecimento. Roma não chegou ao fimde sua história com aquele saque. Acidade sobreviveu ao ataque dosgodos e a parte ocidental do Impé-rio Romano durou mais algumas dé-cadas. Os godos não pretendiam des-truir o Império Romano, mas parti-cipar nos benefícios de suas rique-zas. Brown afirma que:

Alarico viveu a maior parte desua vida dentro das fronteirasdo Império Romano...Ele usoua força destruidora de sua tri-bo para barganhar vantagens econquistar um posto no altocomando do estado romano;ele e seus sucessores dependi-am dessa posição para teremabertura para negociações como governo romano.(1969, p.288)

Apesar disso, o saque de Romapelos godos teve um grande impac-to. Naquela época, o Império Ro-mano era oficialmente cristão. Emconseqüência disso, a fé cristã tevede responder às acusações e às dú-vidas levantadas pelo saque. Os pa-gãos acusaram a religião cristã de sera responsável pela queda da cidade.Os cristãos ficaram com incertezasa respeito da validade de sua fé.

Pretendemos examinar aqui aresposta providenciada por SantoAgostinho tanto às acusações quan-to às dúvidas em sua obra A Cida-de de Deus. Nosso objetivo é estu-dar o que Santo Agostinho afirmou

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sobre a queda de Roma em 410 e avaliara importância de suas colocações para anossa realidade. Seguiremos os seguin-tes passos:

1) Análise da relação entre a quedade Roma e A Cidade de Deus;

2) Exame da resposta de SantoAgostinho aos pagãos e aos cris-tãos;

3) Estudo da relevância dessa respos-ta para a nossa realidade.

A Queda deA Queda deA Queda deA Queda deA Queda deRRRRRoma eoma eoma eoma eoma e

A CidadeA CidadeA CidadeA CidadeA Cidadede Deusde Deusde Deusde Deusde Deus

A Cidade de Deus foi uma obra queconsumiu vários anos para ser escrita.TeSelle (1970, p.269) sugere as seguin-tes datas para sua composição: em 412,Agostinho planejou redigir o texto; em415, terminou os dez primeiros livros;entre 415 e 418, ele escreveu mais qua-tro livros; entre 419 e 421, acrescentouquatro outros livros; e, de 421 a 426, eleconcluiu o seu projeto com mais quatrolivros.

Se levarmos em consideração queAgostinho nascera em 354, concluiremosque ele era um homem maduro quandoconcebeu este texto. Na verdade, Agos-tinho terminou esta obra no final de suavida, visto que morreu em 430. Portan-to, A Cidade de Deus não foi um livroescrito por alguém no começo de sua car-

reira. Ao contrário, foi “uma cuidadosa epremeditada publicação de um homemjá idoso, com uma grandeobsessão”(Brown, 1969, p. 312). Emoutras palavras, é um livro que pertence“aos anos mais produtivos e repletos deocupação de Agostinho”(Loetscher,1935, p. 17).

De fato, a expressão acima é profun-damente verdadeira para descrever a si-tuação de Agostinho no período em queescreveu A Cidade de Deus. Por umlado, ele estava realmente muito ocupa-do. “Ao escrevê-la, ele está em luta con-tra Pelágio e os pelagianos, respondelongamente a questões de exegese e deteologia, prega sem cessar e coloca o pon-to final em De Trinitate” (Rondet e ou-tros, 1953, p. 139). Por outro lado, Agos-tinho vivia seus anos mais fecundos. Se-gundo Chadwick, ele não era mais o jo-vem Agostinho que, às vezes, acreditavano estabelecimento da justiça “por umimperador que conhecesse a verdadeiraadoração ao único Deus revelado emCristo” (Chadwick, 1980, p. 99). Aocontrário, ele era o maduro Agostinhoque “não mais usava tais expressões oti-mistas a respeito das estruturas políti-cas. A conversão de Constantino forabem-vinda, mas não trouxera omilênio”(Idem, p.100).

A Cidade de Deus está dividida em22 livros, tendo o seguinte plano, segun-do apresentação de Marrou:

Primeira parte (de caráter polêmi-co, negativo) – refutação ao paga-nismo contemporâneo (livros I-X):

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a) os deuses pagãos não tiveramnenhuma influência sobre o desen-volvimento da história, especial-mente na história do povo romano(livros I-V); b) os deuses não asse-guram a seus fiéis a vida eterna (li-vros VI-X).Segunda parte (de caráterdogmático, positivo) – a visão cris-tã da história: a) fundamento teo-lógico da Cidade de Deus, da cria-ção à queda (livros XI-XIV; b) his-tória da Cidade de Deus inserida nacidade terrestre, de Caim ao tem-po presentes (livros XV-XVIII); c)história futura: os últimos tempos(livros XIX-XXII).(1938, p.65,66)

Portanto, A Cidade de Deus é umagrande obra, com um esquema comple-xo, redigida por um atarefado bispo, nafase final de sua vida. Por que Agostinhoescreveu essa obra imensa? Essa pergun-ta é muito importante. Ela pode ser for-mulada de outra maneira: Qual o papelque a queda de Roma desempenhou naorigem desse texto?

Existem diferentes respostas paraesta questão. A primeira delas pode servista no texto de Peter Brown. Ele afir-mou:

“A Cidade de Deus não pode serexplicada em termos de sua origemimediata. É especialmente superfi-cial considerá-la como um livro arespeito do saque de Roma. Agosti-nho poderia perfeitamente ter es-crito um livro sobre a Cidade deDeus sem aquele evento. O que osaque fez foi providenciar a Agosti-nho uma audiência específica e de-

safiadora em Cartago. Nesse senti-do, o saque de Roma assegurou queuma obra de pura exegese para pou-cos eruditos cristãos...se transfor-masse num deliberado confrontocom o paganismo” (Op. Cit., p.312)

De acordo com esse ponto de vista,Agostinho utilizou a queda de Romacomo uma oportunidade para expor seupensamento. Em outras palavras, a que-da de Roma não é importante para a com-preensão da obra. A queda de Roma for-neceu somente um contexto ou pretex-to para um livro que poderia ter sido es-crito mesmo sem a queda de Roma.Thomas Merton concorda com tal inter-pretação. Para ele, A Cidade de Deus éuma “monumental teologia da história”.A discussão a respeito da queda de Romaem termos de oposição entre cristianis-mo e paganismo “não nos empolga hojecomo questão atual. Além disso, tam-bém não era uma questão digna do gê-nio de Agostinho...Ele não começou a tra-tar do tema real de sua obra senão de-pois de ter chegado ao livro onze”(Rondet e outros, 1953, pp. 141, 142).

O mesmo posicionamento é manti-do por A. Lauras e H. Rondet. Eles afir-mam que o propósito de Agostinho erao de escrever um livro a respeito da ori-gem, desenvolvimento e julgamento fi-nal das duas cidades. Este era um assun-to que ele tinha esboçado em 405, noseu texto De Catechizandis Rudibus eem muitos sermões. Contudo, quandoAgostinho começou a escrever “foi ne-cessário acrescentar alguns capítulos con-

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tra aqueles que acusavam a religião cris-tã de ter provocado desgraças a Roma aointerditar os sacrifícios...Felizmente paranós, o grande bispo não esqueceu seu de-sejo primitivo...” ( Idem, 1953,p.141,142)

Portanto, existe uma corrente de in-terpretação que afirma que A Cidadede Deus é uma obra de teologia da his-tória incidentalmente relacionada com aqueda de Roma. Essa corrente de inter-pretação atribui valor maior à segundaparte da obra, ao mesmo tempo em quereduz a importância da primeira parte.

Contra tal forma de interpretação,existe uma segunda resposta à questãosobre as relações entre a queda de Romae a origem do livro. Descobrimos tal res-posta nas palavras de Hans VonCampenhausen:

Em dois aspectos, o livro no qualAgostinho trabalhou, com interva-los, durante metade de sua vida,permanece sempre relacionado àscircunstâncias específicas de suaorigem, como resposta aoquestionamento levantado pelaqueda de Roma, o que se tornouimperativo. Seu objetivo era o dedefender a fé cristã em Deus preci-samente no ponto em que sua va-cuidade estava sendo aparentemen-te desmascarada pelas catástrofesque tinham ocorrido... (1968,p.204)

O mesmo tipo de posicionamento ésustentado por TeSelle:

A ocasião imediata para a redaçãodo livro A Cidade de Deus foi o

saque de Roma e, especialmente, asperguntas ansiosas ou escarne-cedoras por ele provocadas...Se nãohouvesse o surgimento de tais ques-tões, Agostinho nunca teria escritoA Cidade de Deus. (Op. Cit.,p.268)

Concordamos com esse tipo de in-terpretação. Pensamos até que a discus-são sobre a possibilidade de Agostinhoescrever A Cidade de Deus sem a que-da de Roma não tem o menor fundamen-to. O fato histórico irrefutável é que eleescreveu essa obra no contexto desse im-portante evento. O fato literário é queAgostinho redigiu quase metade desselivro para apresentar uma resposta tantoàs acusações como às dúvidas provocadaspela queda de Roma.

É claro que Agostinho não começoua refletir a respeito das “duas cidades”depois do saque de Roma pelo godos.Como bem afirmou TeSelle, A Cidadede Deus “representa não uma nova li-nha de pensamento, mas a continuaçãode antigas reflexões” (Idem, p.268).

Por outro lado, também é claro queo saque de Roma pelos godos não foi oprimeiro sinal de decadência do impé-rio. Na verdade, os sinais dessa decadên-cia já estavam sendo visíveis há muitotempo. Courcelle, por exemplo, afirmaque a diferença entre o segundo e o ter-ceiro século na história do Império Ro-mano era a seguinte:

O segundo século foi o da Paz Ro-mana... Os romanos possuíam, me-lhor que ninguém, a ciência do go-

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verno e garantiam a liberdade detodos. Em decorrência disso, cadaum dos povos do império era ane-xado e considerava Roma como suapátria...Pouco a pouco, as incursõesbárbaras se multiplicaram no Renoe no Danúbio, cada vez mais auda-ciosas. No terceiro século, sob osimperadores Valeriano e Galiano,bandos de francos ultrapassaram asdefesas da fronteira, atravessarama Gália, a Espanha, e tomaram osnavios que lhes permitiram desem-barcar na Mauritânia; ao mesmotempo, os alamanos penetraram novale do Reno. (1964, p.18-19)

É claro que é impossível compreen-der o pensamento de qualquer pessoa àparte de seu tempo ou de sua situaçãohistórica. Tem razão Salustiano Álvares(1986, p.55) quando afirma que preci-samos conhecer a época bem como acultura do tempo de Agostinho para en-tender suas idéias. Se o saque de Romapelos godos era um fato insignificante, adecadência do Império Romano era ple-na de significado. E A Cidade de Deus,inegavelmente, é a reflexão de um pen-sador e pastor cristão a respeito de uma“cidade” com a qual o cristianismo esta-va vinculado. Desde Constantino, o cris-tianismo estava ligado ao Império Roma-no. As palavras de Armstrong servempara descrever bem essa situação:

...para Constantino, o bem-estar doimpério dependia da igreja, especi-almente da unidade da igreja, o queele demonstrou em muitos aspec-tos de seu programa de construções.Para Constantino, na condição de

subgerente de Deus, não havia umalinha definida de separação entre aigreja e o estado. O império era ouestava se tornando a seus olhos oreino divino na terra, e ele tinha adivina missão de apoiar, e até mes-mo dirigir, este curso de aconteci-mentos. (1967, p.13)

A relação entre o cristianismo e oImpério Romano era demasiadamenteforte para ser negligenciada durante a de-cadência do Império. Jerônimo expres-sou bem a perplexidade de toda umageração diante dessa situação, quandodisse a respeito do saque de Roma pelosgodos: “O mundo todo pereceu em umasó cidade” (apud Battenhouse, 1955, p.259). “Se Roma perecer, o que se há desalvar?” (apud Brown, 1969, p. 289).

No sentido mais estreito, A Cidadede Deus é uma resposta dada por Agos-tinho às dúvidas dos cristãos e às acusa-ções contra eles provocadas pelo saqueda cidade de Roma.

No sentido mais amplo, A Cidadede Deus representa uma profunda re-flexão provocada pelo fim de uma “ci-dade terrena” com a qual a “cidadecelestial” parecia ter vinculado o seu des-tino.

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Em agosto de 410, Alarico coman-dou os godos no ataque a Roma. “De re-pente, as sombras do grande declínio equeda desceram, mesmo sobre a seguraÁfrica” (Meer, 1961, p. 157). Os refu-giados foram os responsáveis pela ampli-ação do alcance de tais sombras. Eles fu-giram de Roma e chegaram a Cartago,onde divulgaram os horrores cometidospelos bárbaros no ataque à cidade. Comorepresentante do grupo que propalou asmás notícias, havia um jovem chamadoVolusiano. Ele era um dos membros daantiga aristocracia romana. Volusiano eraseguidor da religião pagã de seus ances-trais. Naquela época, o paganismo per-tencia ao passado. É claro que Volusianonão teve contato com o paganismo nostemplos existentes em Roma. Ele des-cobriu a antiga religião nos livros. E, emCartago, ele divulgou suas idéias de quea cidade de Roma tinha caído porque osensinamentos cristãos eram inadequadosà vida política.

A pregação e a doutrina cristãs nãosão, de forma alguma, convenien-tes à condução dos negócios do es-tado, pois seus preceitos são os se-guintes: não retribuir ao outro o malcom o mal (Rm 12.17); se algumapessoa nos ferir uma face, devemosapresentar-lhe a outra... Todas es-

sas normas são nefastas para a con-dução do estado... Se grandes des-graças alcançaram o estado, issoocorreu por culpa dos imperadorescristãos que seguem o melhor quepodem a religião cristã. Isso tudo émuito claro! (Courcelle, 1964, p.68.)

Em tais palavras podemos perceberque as idéias de Volusiano tinham fortepoder de atração. Elas forneciam umaexplicação, simples e compreensível,para a queda de Roma. A mensagem deVolusiano parecia ter sentido. Roma ti-nha construído um vasto império que ti-nha sobrevivido com o paganismo; poroutro lado, Roma perecia com o cristia-nismo. Portanto, o cristianismo era res-ponsável pela queda de Roma.

Com a finalidade de apresentar umaresposta a semelhante acusação, Agosti-nho estudou a história e a religião daRoma antiga. Segundo Marrou

Ele escreveu a parte apologética (1.I-X), onde abundam as lembrançasda história romana (sobretudo noslivros I-V), tendo sob seus olhos ostextos de Tito Lívio, de Florus e deEutropus, e , no que concerne às ins-tituições, as “Antiquidades” de seugrande informante, o velho Varron.( Op. cit., p.418)

Utilizando-se de tais fontes, Agosti-nho defendeu a fé cristã contra as acusa-ções pagãs com os seguintes argumen-tos:

a) Demonstrando que a violência eraum costume da guerra e que, mesmo

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durante o saque de Roma, a fé cristã ofe-receu uma contribuição positiva. Foi gra-ças à fé cristã que os godos chegaram amanifestar clemência. Na verdade, osgodos respeitaram os santuários por oca-sião do saque:

Assim escaparam multidões, que,agora, reprovam a religião cristã eimputam a Cristo os males que caí-ram sobre a cidade; mas a preserva-ção de sua própria vida – um benefí-cio que eles tinham recebido porcausa do respeito revelado pelos bár-baros a Cristo – eles atribuíam nãoao nosso Cristo, mas à sua própriaboa sorte. (Agostinho, 1950, p. 23)

b) Ele analisou a história da religiãopagã e demonstrou que seus deuses nãoprotegeram seus fiéis, que foram con-quistados pelos romanos. Portanto, osdeuses pagãos não poderiam ter salvoRoma dos godos. Na verdade, nem mes-mo o poder do Império Romano era umadádiva dos deuses:

Conclui-se que tais deuses...nuncapoderiam, de forma alguma, ter sidocapazes de desenvolver ou preser-var o Império Romano. Se eles ti-vessem poder para tanto, certamen-te teriam concedido esta grandebênção aos gregos, os quais, no quediz respeito ao relacionamento comos deuses,... haviam adorado a elescom mais honra e de forma maisdigna... (Idem, p. 135)

c) Agostinho analisou osensinamentos do paganismo e provouque eles não elevaram a moral dos roma-nos. Ao contrário, os filósofos gregos ti-nham melhores ensinos do que seus deu-

ses (Ibidem, p. 45,46,53) e mesmo osromanos antigos

não recebiam nem podiam esperarreceber leis para regulamentar suaconduta e a de seus deuses, visto queas leis que eles próprios elaborarameram superiores e faziam com quea moralidade dos deuses ficasse en-vergonhada. Os deuses exigiam en-cenações em sua própria honra; osromanos excluíram os encenadoresde todas as honras cívicas: os pri-meiros ordenaram que eles deveri-am ser celebrados pela representa-ção cênica de suas próprias desgra-ças; os últimos determinaram quenenhum poeta deveria denegrir areputação de qualquer cidadão.(Ibidem, 53)

d) Ele analisou a história de Roma eprovou que não havia sido somente umahistória de vitórias e de glórias. Romasofreu fracassos contra inimigos exter-nos, quando ainda não era cristã. Romatambém passou por desastres internos,por causa de seus problemas sociais. Nãoobstante, mesmo com tais reveses, erainegável que a Roma pagã construíra umgrande império. Agostinho, entretanto,afirmou que, sob a soberana providênciade Deus, “em primeiro lugar, por amor àliberdade e, em segundo lugar, tambémpor ânsia de domínio, louvor e glória, osromanos concretizaram grandes feitos”(Ibidem, 159,160).

É importante acrescentar que, segun-do Agostinho, a edificação de um gran-de império por intermédio de guerras nãodevia ser colocada entre as boas coisas

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realizadas pelos romanos:Será que alguém iria replicar con-tra a afirmação de que o ImpérioRomano nunca poderia ter sido tãoamplamente estendido nem ter sidotão glorioso, a não ser por meio deconstantes e intermináveis guerras?Na verdade, este é um argumentocorreto! Por que um reino deve serperturbado com a finalidade de seengrandecer? No pequeno mundodo corpo humano, não é melhor teruma estatura moderada, com saú-de, do que alcançar as enormes di-mensões de um gigante por meio detormentos não naturais e, ao che-gar a tal tamanho, não ter um mo-mento de descanso, mas sofrer deacordo com o tamanho de seusmembros? (Ibidem, p. 268)

Agostinho deu uma resposta comple-ta às acusações pagãs. Por um lado, eledemonstrou os defeitos e limitações dopaganismo. Ao mesmo tempo, apresen-tou os defeitos do Império Romano.Dessa maneira, ele arrasou a crença nasuperioridade do paganismo em provi-denciar felicidade neste mundo. Alémdisso, aniquilou a crença da superiorida-de do Império Romano na promoção dobem-estar dos povos.

Contudo, existia também a necessi-dade de providenciar uma resposta àsdúvidas dos próprios cristãos. Ao tratardas violações cometidas contra virgensconsagradas e contra outros cristãos,Agostinho afirmou: “Ao abordar taisquestões, precisamos ser mais cuidado-sos em confortar nossos irmãos do queem responder aos nossos acusadores”

(Ibidem, p. 21). E acrescentou as seguin-tes palavras, ao recapitular o conteúdodo primeiro livro:

...Eu consumi considerável espaço,especialmente para que pudesse ali-viar as ansiedades que perturbam amuitos, quando eles observam queas bênção de Deus e os desastrescomuns e diários caem sobre a sor-te dos maus e dos bons, sem distin-ção; mas, principalmente, para queeu pudesse ministrar alguma con-solação àquelas santas e castas mu-lheres que foram ultrajadas peloinimigo, de uma maneira que cho-cou sua modéstia, embora não te-nha manchado sua pureza, e paraque eu pudesse preservá-las de se-rem envergonhadas, embora nãotenham culpa para serem envergo-nhadas. (Ibidem, p. 41)

Com a finalidade de ajudar os cris-tãos, Agostinho apresentou os seguintesargumentos:

a) Existe um propósito divino no so-frimento. As experiências de sofrimen-to não são sinais da ausência de Deus nemde fraqueza divina. Ao contrário, os so-frimentos representam o julgamento deDeus. No seu julgamento, Deus nãosepara os bons dos maus:

Eles são punidos juntos, não porcausa de terem tido uma idênticavida corrupta, mas porque os bonse os maus, embora não de igualmaneira, amam esta vida presente;...há uma outra razão pela qual osbons são afligidos pelas calamidadestemporais – a razão exemplificadapor Jó: para que o espírito humanopossa ser provado... (Ibidem, p. 13)

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b) Em tal situação, os cristãos nãosofrem dano com os sofrimentos, massão aperfeiçoados por eles:

Todos os membros da família deDeus...têm portanto sua própriaconsolação – uma consolação quenão falha e que traz uma esperançasegura que as coisas deste mundo,que vacilam e caem, não podemperturbar. Eles não recusam a dis-ciplina desta vida temporal, pelaqual são preparados para a vida eter-na; eles não lamentam sua experi-ência, pois as boas coisas da terraeles usam como peregrinos que nãosão detidos por elas, ao passo quesuas coisas ruins servem para prová-los ou aperfeiçoá-los. (Ibidem, p. 34)

c) Os sofrimentos podem provar ouaperfeiçoar os cristãos porque eles nãosão cidadãos deste mundo. Se fossemcidadãos deste mundo, os sofrimentosnão poderiam ser utilizados por Deuspara prová-los ou aperfeiçoá-los. Ao con-trário, Deus teria de proteger os cristãosdos sofrimentos e de garantir-lhes felici-dade neste mundo. Porém, segundoAgostinho, os cristãos são, de fato, umpovo em peregrinação. Sua cidade nãoestá neste mundo. Em tal situação, nemmesmo a morte é um mal para eles:

...a morte não pode ser considera-da um mal que acaba com uma boavida; pois a morte torna-se um malsomente pela retribuição que vemdepois dela. Aqueles, então, queestão destinados à morte não pre-cisam ter o cuidado de inquirir deque morte eles vão morrer, mas para

qual lugar a morte irá conduzi-los.E, visto que os cristãos estão bemcientes que a morte dos piedosospobres, cujas feridas são lambidaspelos cães, é bem melhor do que ados ímpios ricos que se vestem comtecidos de púrpura e linho fino, queprejuízo poderiam trazer as mortesterríveis para aqueles que viverambem? (Ibidem, p. 16)

Além disso, o cativeiro num país es-trangeiro não altera em nada a condiçãodos cristãos:

Mas como a nossa preocupação ago-ra é com aqueles cristãos que foramtomados como prisioneiros, que elesaproveitem a oportunidade destacalamidade para revelar a superio-ridade de nossa religião... eles sa-bem, em confiante expectativa dopaís celestial, que são peregrinosmesmo em seus próprios países.(Ibidem, p. 21)

Com tal argumentação, Agostinho pro-videnciou conforto aos cristãos e afirmou:

...pois os membros da família doCristão possuem esta resposta: onosso Deus está presente em todosos lugares, de maneira plena, nãosendo confinado a um só lugar. Elepode estar presente, sem ser per-cebido, e pode estar ausente, semde mover. Quando Ele nos expõeàs adversidades, ou é para provarnossas perfeições ou corrigir nossasimperfeições; e, em retribuição ànossa paciência em suportar os so-frimentos deste mundo, Ele nos re-serva uma recompensa eterna.(Ibidem, p. 34,35)

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de Agostinhode Agostinhode Agostinhode Agostinhode Agostinhopara a nossapara a nossapara a nossapara a nossapara a nossa

épocaépocaépocaépocaépocaDepois de haver respondido às acu-

sações dos pagãos e às dúvidas dos cris-tãos, Agostinho passou a tratar do“surgimento, desenvolvimento e fim dasduas cidades” (Ibidem, p. 38).

Todavia, esse assunto não faz partedo interesse deste trabalho. Pretendemosdirigir nossa atenção para outra direção.Na primeira parte, tentamos provar queexiste uma estreita conexão entre o li-vro de Agostinho A Cidade de Deus e aqueda de Roma. Na segunda parte, pro-curamos resumir a interpretação cristãde Agostinho a respeito da queda deRoma, a partir dos cinco primeiro livros desua obra. Temos agora, diante de nós, umúltimo problema, a saber: qual a importân-cia de tudo isso para a nossa realidade?

Agostinho providenciou uma boa aná-lise do paganismo, mas o paganismo porele examinado pertence ao passado dahistória da religião, sem, aparentemen-te, nenhuma relevância para a nossa si-tuação. Agostinho também providenciouuma boa consolação aos cristãos, dizen-do que eles eram cidadãos de uma cida-de celestial. Mas, como afirmouCampenhausen,

A resposta de Agostinho poderia servista como uma completa e deses-

perada fuga do mundo real e de suasquestões políticas, que leva ao esta-belecimento de uma atitude de vidaascética e individualista, que, ante-cipando-se a toda preocupação como processo histórico de nosso mun-do, abandonado-o sem qualquer re-sistência às forças terrenas e às for-ças malignas. (Op. cit., p. 208)

Contudo, o que queremos afirmar éque a obra de Agostinho possui um gran-de valor para a nossa época e para o nos-so mundo. Em primeiro lugar, é muitoimportante reconhecer que Agostinhodesnudou a própria essência do paganis-mo. Ele demonstrou que o paganismoconsiste numa religião puramente mer-cantil, sem qualquer senso ético. No pa-ganismo, os seres humanos cultuam osdeuses para obtenção de bênçãos. Elespagam com culto para terem paz, poder,saúde e riqueza:

...Esta é a característica da cidadeterrena: ela presta culto a Deus ouaos deuses que possam ajudá-la areinar vitoriosa e pacificamente so-bre a terra, não por causa do amorpela prática do bem, mas por causada paixão pelo poder. Os bons usamo mundo para poderem usufruir deDeus; os maus, ao contrário, parapoderem usufruir do mundo tentamusar Deus. (Agostinho, 1950, p. 485)

Esta idéia estava presente na base daacusação pagã contra o cristianismo porcausa da queda de Roma. O cristianismoera condenado porque Deus não haviaprotegido a cidade de Roma. E o paga-nismo tinha se infiltrado, de maneira su-

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til, no cristianismo. Na verdade, se oscristãos estavam cheios de dúvidas porcausa da queda de Roma, o motivo desuas dúvidas era a concepção religiosamercantil que os estava dominando. Elesestavam prestando culto a Deus com afinalidade de obterem aquilo que dese-javam. E esse tipo de atitude representaa essência do paganismo. Nesse sentido,o paganismo não é alguma coisa que per-tence ao passado da religião. O paganis-mo está presente em todos os tempos,inclusive em nosso próprio tempo.

Contra tal concepção religiosa, Agos-tinho apresentou o cristianismo quecultua a Deus por amor a Deus. Por isso,existe uma enorme distância entre o pa-ganismo e o cristianismo. É a distânciaque separa as duas cidades que estão“emaranhadas conjuntamente nestemundo”(Ibidem, p.38):

...as duas cidades foram formadas apartir de dois amores: a cidadeterrena, pelo amor egocêntrico, comdesprezo a Deus; a cidade celestial,pelo amor a Deus, com desprezo aoegocentrismo. A primeira, numa pa-lavra, glorifica-se em si mesma; aúltima, no Senhor. Uma busca a gló-ria para os seres humanos; mas amaior glória da outra é Deus...Umaexalta a cabeça em sua própria gló-ria; a outra diz ao seu Deus: “Tu és aminha glória e aquele que exalta aminha cabeça”. Numa, o príncipe eas nações que ele domina são gover-nados pelo amor ao poder; na outra,o príncipe e os súditos servem unsaos outros em amor, os últimos obe-decendo, ao passo que o primeirose preocupa com todos. Uma delicia-

se em sua própria força, representa-da na pessoa de seus governantes; aoutra diz ao seu Deus: “Eu te amo, óSenhor, porque tu és a minha for-ça”. (Ibidem, p. 477)

Outro ponto importante para nós nopensamento da Agostinho é que ele nosensina a desconfiar que os impérios,mesmo os assim chamados impérios cris-tãos, possam trazer o Reino de Deus.Peter Brown escreveu que Agostinho“considerava os antigos romanos com amesma intensa ambivalência que nósconsideramos nossos eminentesvitorianos” (Op. cit., p. 308). De fato,por um lado, parece que Agostinho ad-mirava algumas das virtudes dos funda-dores do império romano. Contudo, poroutro lado, ele criticou a “luxúria da do-minação”, que os levou a montarem umimpério.42

42 cf. Agostinho, p. 158, 163.

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A mesma espécie de ambivalência érevelada quando Agostinho fala a respei-to do império cristão de Constantino ede Teodósio. Por um lado, ele reconhe-ceu a prosperidade de Constantino comouma dádiva terrena dada por Deus e exal-tou a fé e piedade de Teodósio. Entre-tanto, ele também afirmou:

Mas, a fim de que nenhum impera-dor se tornasse cristão só para ter amesma felicidade que Constantino,porque cada um deveria ser cristãopor amor à vida eterna, Deus lan-çou fora Joviano muito mais rapi-damente do que Juliano e permitiuque Graciano fosse batido pela es-pada de um tirano. (Ibidem, p. 170)

Fica muito claro que Agostinho, comtal ambivalência, revelou aquilo queTeSelle chama de “realismo político”(Op. cit., p. 2). Foi esse realismo políti-co que lhe permitiu ver as qualidades dosantigos romanos, sem, ao mesmo tem-po, esquecer seus defeitos. Foi esse rea-lismo político que o capacitou a elogiarConstantino e Teodósio, sem, ao mesmotempo, acreditar que seu governo era ocumprimento do milênio. O fundamen-to do realismo político de Agostinho eraa idéia de que os cidadãos da Cidade deDeus eram peregrinos e estrangeiros naterra. Seu reino não é deste mundo. Con-seqüentemente, o fim do Império Ro-mano não era motivo para desespero. Osimpérios sempre chegam a um fim. Elesnão são a Cidade de Deus.

Esta concepção de Agostinho é muitoimportante para todos nós. O cristianis-

mo tem sido associado à civilização oci-dental, que chega a ser chamada de “civi-lização cristã”. A experiência histórica deAgostinho deve nos levar a evitar qualquertipo de confusão entre esta civilização, ouqualquer outra, com a Cidade de Deus.A civilização ocidental não é o Reino deDeus. Mesmo vivendo na civilização oci-dental, os cristãos precisam reconhecerque, nela, eles não estão em seu própriolar. Eles são sempre peregrinos e estran-geiros, mesmo nessa civilização.

Finalmente, é importante acrescen-tar que as idéias de Agostinho sobre aCidade de Deus não querem dizer fugado mundo da realidade. A afirmação deque os cristãos são peregrinos neste mun-do não levou Agostinho a esquecer queeles estão neste mundo. Em outras pala-vras, segundo Agostinho, os cristãos têmum papel a desempenhar na sociedade.Peter Brown afirma:

De fato, Agostinho chegou a espe-rar que os cristãos tivessem consci-ência da tenacidade dos laços quesempre os atam a este mundo. Opensamento que sustentou quandoestava na maturidade era marcadopor uma crescente apreciação daimportância de tais laços. Dessamaneira, A Cidade de Deus, longede ser um livro sobre a fuga e o aban-dono do mundo, era uma obra sobre“nosso envolvimento com esta vidamortal comum” (Op. cit., p. 324)

De fato, quando escreveu A Cidadede Deus, Agostinho indicou alguns avan-ços que a fé cristã trouxe a este mundo.Por exemplo, ele comparou o ataque dos

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gregos à cidade de Tróia com o ataquedos godos a Roma e concluiu:

...os amáveis gregos se apropriaramdo templo de Juno para concreti-zar os propósitos de sua avareza eorgulho, ao passo que as igrejas deCristo foram escolhidas mesmo pe-los selvagens bárbaros para cenasadequadas de humildade e de mi-sericórdia. (Agostinho, Op. cit.,p.8)

Além disso, Agostinho sustentou aidéia de que é bom ter cristãos comogovernantes para o progresso do mundo:

Portanto, se o verdadeiro Deus éadorado e se Ele é servido com ri-tos genuínos e virtude verdadeira,é vantajoso que homens bons rei-nem por muito tempo e em todaparte. Não é tão vantajoso para elesmesmos quanto para aqueles sobreos quais reinam, visto que, no quediz respeito a eles mesmos, sua pie-dade e probidade, que são grandesdádivas de Deus, são suficientespara lhes dar a verdadeira felicida-de, capacitando-os a viver bem avida atual e, depois, a receberemaquela que é eterna. Portanto, nes-te mundo, o domínio dos homensbons é vantajoso, não tanto para elesmesmos como para os interesseshumanos.(Idem, p. 112)

Por que Agostinho admitiu a possi-bilidade de governantes cristãos? Seráque as responsabilidades com a Cidadede Deus não impedem o envolvimentocom a cidade humana? Agostinho acre-ditava na providência divina que se ma-nifesta na história humana. Ele falou a

respeito de Deus, dizendo que Deus estáocupado com as coisas humanas. “Osreinos deste mundo são dados por Eletanto aos bons como aos maus”. (Ibidem,p.140)

...todas as outras bênçãos e privilé-gios desta vida, bem como o pró-prio mundo, a luz, o ar, a terra, aágua, os frutos e até mesmo a almahumana, seu corpo, sentidos, men-te, vida, Ele concede generosamen-te tanto aos bons como aos maus.E, entre essas bênçãos, tambémdeve ser contada o domínio de umimpério, cuja extensão Ele determi-na segundo as exigências de sua pro-vidência em todos os tempos.(Ibidem, p. 181)

Portanto, se o próprio Deus trabalhana cidade terrena, a atuação neste mun-do deve ser entendida como um deverpara os cristãos. Quando os cristãos agemna história, eles não estão abandonandoa Deus. Ao contrário, estão sendo com-panheiros de Deus.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoEdward Hardy afirma que, em A

Cidade de Deus, Agostinho...está descrevendo um conflito hu-mano muito mais do que propondoum programa político. Ele vê a hu-manidade ocupando um campo debatalha entre duas lealdades, acelestial e a terreal, a do amor aDeus que nega o amor a si mesmo ea do amor a si mesmo que nega oamor a Deus. Todas as áreas da vidahumana são o campo espiritual des-ta batalha.(1955, p.257-258)

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Concordamos com Hardy. Além dis-so, é preciso acrescentar que Agostinhoescreveu sobre este conflito humanoporque viveu numa época de decadên-cia de uma civilização com a qual o cris-tianismo tinha se vinculado profunda-mente. A Cidade de Deus não é um li-vro da época de Constantino, quandomuitos chegaram à conclusão de que oReino de Deus havia chegado. A Cida-de de Deus é um livro a respeito do pe-ríodo em que o Império Romano mar-chava para o seu final. Contudo, isso nãosignifica que a obra seja irrelevante. Aocontrário, exatamente porque ser um li-vro profundamente ligado à sua época éque é uma obra para todos os tempos.

Agostinho desnudou a essência dopaganismo do seu tempo que está pre-sente também nas manifestações religi-osas de nosso tempo. Na época de Agos-tinho e na nossa, Deus está sendocultuado pelo amor às vantagens e bene-fícios mundanos. A mensagem de Agos-tinho para o seu tempo e para o nossotempo é a de que devemos cultuar aDeus por amor a Deus.

Agostinho também nos ensina a des-confiar da afirmação de que impérioshumanos possam trazer o Reino de Deus.E este era um erro do seu tempo e donosso tempo. No tempo de Agostinho,o cristianismo tinha sido vinculado aoImpério Romano. No nosso tempo, ocristianismo tem sido associado com acivilização ocidental e com alguns de seusimpérios.

Agostinho, finalmente, enfatizou o

papel da fé cristã neste mundo, o qualmuitas vezes tem sido negligenciado emnome da cidade celestial.

Jerônimo perguntou: “Se Roma pe-recer, o que se há de salvar?” Santo Agos-tinho respondeu: “...os reinos humanossão estabelecidos pela providênciadivina...Nunca se deve imaginar queDeus tenha deixado os reinos humanos,suas dominações e servidões, fora das leisde sua providência”. (Agostinho, Op. cit.,p.142,143, 158)

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A Bíblia no Aconselhamento

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As pessoas que trabalhamna área de Teologia Prá-tica, especificamente no

Aconselhamento Pastoral, encon-tram poucos recursos teóricos, ela-borados a partir da realidade latinoamericana, que forneçam reflexãosistematizada a respeito da práticado aconselhamento. Dentre as pou-cas publicações sobre o assunto, al-gumas fornecem embasamento bí-blico-teológico, informações psico-pedagógicas e orientações metodo-lógicas com o objetivo de capacitaros aconselhadores e as aconselhado-ras que desejam participar do pro-cesso de aconselhamento.

Para iniciar a reflexão sobre oassunto proposto, serão abordadas,em primeiro lugar, algumasconceituações sobre aconselha-mento e suas implicações para a re-alização do mesmo. Em seguida, se-rão discutidas metodologias aplica-das no processo de aconselhamento,dentre elas, as que priorizam o mé-todo diretivo, as que recorrem aos

pressupostos teóricos de outras ci-ências e as que usam o métodoparticipativo, em que o aconselha-do constrói o caminho para a solu-ção do seu problema. E, por fim,abordar-se-á o uso da Bíblia comoum recurso relevante para o proces-so de aconselhamento; para tanto, épreciso conhecer o modo pelo qualos textos bíblicos são utilizados pe-los modelos aqui mencionados edescobrir pistas para suaaplicabilidade no processo libertadordo aconselhamento.

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73II - CONCEITOS A RESPEITO DOI - CONCEITOS A RESPEITO DOI - CONCEITOS A RESPEITO DOI - CONCEITOS A RESPEITO DOI - CONCEITOS A RESPEITO DOACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PASTORALASTORALASTORALASTORALASTORAL

A sistematização da prática do aconselhamento pastoral, realizadapor pastoralistas e pesquisadores da área de Teologia Prática, tem comobjetivo oferecer subsídios teóricos para a reflexão a respeito desta ati-vidade desenvolvida nas Igrejas.

São freqüentes por parte dos estudiosos e das pessoas que se utili-zam desta forma especifica de procedimento perguntas como: O que éAconselhamento Pastoral? Para que serve? Qual a melhor metodologiapara aplicá-lo? Quais os recursos disponíveis? Estes questionamentosdemonstram a preocupação constante quanto à eficácia doaconselhamento, o qual ocorre numa relação complexa, explicitada emdiversas elaborações teóricas, conceituais e metodológicas. Há de seconsiderar a dificuldade para a sistematização da prática doaconselhamento pastoral, tendo em vista a própria terminologia, quetraduz, em primeira instância, o seu caráter restritivo.

O termo “aconselhamento pastoral” é traduzido do inglês pastoralcounseling. Numa compreensão literal, “aconselhamento” é entendidocomo o ato de dar conselhos, de direcionar a uma resposta; por sua vez,o termo “pastoral” é entendido como as atribuições de quem exerce opastorado.

Recentemente, a partir da década de 1990, a reflexão a respeito doAconselhamento Pastoral despertou o interesse de pesquisadores paraa publicação de estudos sobre o tema, numa perspectiva brasileira, oque contribuiu para re-elaborações no campo prático.

Esses avanços, contudo, não mudaram a compreensão a respeito doagente do aconselhamento. Algumas igrejas têm se empenhado nacapacitação de pessoas da comunidade para desempenharem o papelde aconselhadoras; no entanto, a figura representada por quem exerceo ministério pastoral continua tendo a primazia. Pastores e pastoras re-presentam importante papel institucional, legitimado comunitariamente,para realizarem a mediação nas relações interpessoais no aconselhamento.

A tarefa de conceituar “aconselhamento pastoral” é realizada porpastoralistas e pesquisadores que articulam teoricamente a experiênciae fornecem pressupostos fundamentais para a construção dialética en-

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tre o saber prático e o saber teórico. Al-guns conceitos a respeito do processo deaconselhamento têm desafiado a práticado mesmo. Segundo Ronaldo SatherRosa,

Aconselhamento pastoral não é darconselhos, no sentido usual do ter-mo, que denota a idéia de “aconse-lhar” as pessoas a fazerem isto ouaquilo, ou a não tomarem uma ououtra decisão...Não é resolver “problema dos ou-tros”. As diversas situações-proble-mas das pessoas são oportunidadesde avanços em termos de capacida-de para enfrentar e superar condi-ções adversas...Não se trata... de minimizar os dra-mas humanos. As inquietações, an-gústias e tristezas humanas não sãodesconsideradas, ainda que possamparecer superficiais para o olhar deoutrem...Não deve haver espaço para julga-mento moral a respeito de atitudesou comportamentos das pessoas.Aconselhamento Pastoral não é“exortação”, “pregação” ou censura...Não é substituto ou concorrente depsicoterapia...Aconselhamento pastoral é proces-

so no qual as pessoas se encontrampara repartir lutas e esperanças.(1996, p.66,67)

O autor, antes de conceituar“aconselhamento pastoral”, desconstróiimagens aceitas pelo senso comum e asreconstrói como uma nova possibilidadede cuidado para com os aflitos edesesperançados.

Outros autores, como ChristophSchneider-Harpprecht, entendem oaconselhamento como “a práticametodologicamente refletida e organiza-da de ajuda a pessoas com problemas desaúde, problemas psíquicos, sociais oureligiosos através do relacionamento decurto ou médio prazo com uma pessoaou um grupo qualificados” (1998a,p.79). A identificação da problemáticaque envolve o aconselhado permiteorientá-lo para um tratamento específi-co, porém integrado.

Para James Reaves Farris, “oaconselhamento pastoral é o processopelo qual um pastor, ou outro represen-tante da igreja, trabalha com indivíduos,grupos ou famílias, num contexto relati-

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vamente estruturado, com um programade conhecimento emocional, psicológi-co e espiritual, tentando curar suas feri-das” (1996, p.19). Esta conceituação de-monstra o diálogo entre a Psicologia e aTeologia. A interdisciplinaridade temcomo objeto a integralidade humana, ins-taurando um processo para sarar as feri-das; “a cura é uma atividade que abrangedesde tratamentos hospitalares, sessõesde aconselhamento, formas de reconci-liação humana e de perdão até os minis-térios de reconciliação, de renovação ede educação na igreja” (Idem, p.21).

Howard J. Clinebell propõe um mo-delo de aconselhamento pastoralcentrado em libertação e crescimento econceitua o processo como “uma funçãoreparadora, necessária quando o cresci-mento das pessoas é seriamente compro-metido ou bloqueado por crises”(1987,p.25). Para ele, o “aconselhamento pas-toral é a utilização de uma variedade demétodos de cura (terapêuticos) para aju-dar as pessoas a lidar com seus proble-mas e crises de uma forma maisconducente ao crescimento e, assim, aexperimentar a cura de seu quebran-

tamento”(Idem, p.25).Dos conceitos a respeito do

aconselhamento pastoral pode-se obser-var a preocupação em ter a pessoa doaconselhado como central no processo.O aconselhador torna-se um facilitadorpara que a pessoa que o procura encon-tre as respostas ou pelo menos novas al-ternativas para resolver sua situação decrise.

Tão importante quanto acolher oaconselhado é o aconselhador não per-mitir que se estabeleça uma relação depoder opressor que julga, que direcionaou que seja hierárquica.

Ao ser instaurado o processo deaconselhamento, as pessoas envolvidastornam-se cooperadoras, ao tecerem fiosdiferentes na construção de novos rumospara as histórias de vida.

Conceituar “aconselhamento pasto-ral” não é dado suficiente para uma prá-tica efetiva; faz-se necessário conheceros vários métodos aplicados, a fim de sereformular o que for necessário e esta-belecer novos parâmetros para o desen-volvimento deste processo de cuidadopara com as pessoas em situação de crise.

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III I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DOI I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DOI I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DOI I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DOI I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DO

ACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PASTORALASTORALASTORALASTORALASTORAL

Não há dúvida que ao se iniciar o processo de aconselhamento estabe-lece-se uma relação de poder entre os envolvidos. Por esta razão, torna-seimprescindível ao aconselhador e aconselhado reconhecer que a

assistência pastoral, fundamentada no poder igualador da aceitação eação libertadora de Deus, procura desmascarar esquemas destrutivosde poder e mudar a dinâmica do poder de tal maneira que os/as parti-cipantes da assistência tornem-se agentes e receptores de justiçarelacional... O termo “justiça relacional” significa “as condições pelasquais todas as pessoas possam estar em termos mutuamente benéficosumas com as outras e com a ordem natural. (Graham, 1998, p.9)

Que tipo de relação se estabelece entre quem aconselha e quem éaconselhado? Quais os recursos teóricos de que o aconselhador dispõe?Quais os materiais de apoio que são acessíveis ao aconselhador a fim dedesenvolver o processo instaurado? Como fazer a leitura do problema ex-posto pela pessoa que busca o aconselhamento? Quais as necessidadesverbalizadas e as ocultas pelo aconselhado? Qual o contexto social a que oaconselhado pertence? E como a sua história de vida foi tecida até o mo-mento inicial do processo? Estas e outras perguntas devem ser inseridas noprocesso de aconselhamento, para que não se torne, por um lado, um aten-dimento descomprometido ou mero cumprimento de exigênciasinstitucionais e, por outro lado, uma sessão de psicoterapia realizada porpessoas desprovidas do instrumental teórico adequado, o que pode causarsérios danos à saúde emocional daqueles que estão em sofrimento.

Aconselhamento pastoral (aqui entendido como cuidado) tem suaespecificidade e seus limites demarcados pela necessidade do reencontrodo aconselhado com Deus, consigo mesmo e com o próximo. A relaçãocom o sagrado e as experiências de fé diferenciam este procedimento daspráticas psicoterapêuticas e estabelece a tênue linha entre o que competeao aconselhador e o tipo de atendimento de que o aconselhado necessita.

O processo de aconselhamento será construído a partir do tipo de rela-ção que se estabelece entre a pessoa que aconselha e a que é aconselhada.Quando o aconselhador é procurado para mostrar a solução de determina-

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do problema e assume este papeldiretivo, o aconselhado torna-se coadju-vante e receptor-objeto no processo.Neste caso, o aconselhamento se reves-te de juízo de valor e de visão unilateralda realidade. O aconselhado aprenderá asublimar suas inquietações e frustraçõese se sentirá satisfeito com uma soluçãomomentânea para os seus problemas. Poroutro lado, se a relação estabelecida forconduzida pelo aconselhado, toda e qual-quer palavra do aconselhador será ape-nas um reforço para decisões já refleti-das, que serão aceitas ou descartadas con-forme a necessidade de reafirmação depontos de vista prévios. Tanto no primei-ro caso quanto no segundo o processode aconselhamento será desarticuladoem função da relação de dominação im-plantada entre os envolvidos.

Por se tratar de um processo, se faznecessário identificar com clareza a rela-ção de aconselhamento, a fim de dimi-nuir a possibilidade de desvirtuamentoda meta proposta. A perda do objetivopode ocasionar o envolvimento emocio-nal entre a pessoa que aconselha e a queé aconselhada, originando situações cons-trangedoras e destrutivas para ambas.

Para a realização do aconselhamentopastoral diversas metodologias são apli-cadas. Todas elas levam em consideraçãoa pessoa que se encontra em crise e bus-ca ajuda. O que diferencia os vários mé-todos são os procedimentos, a amplitu-de da compreensão a respeito do outro ea inserção do aconselhado num determi-

nado contexto social. Algumas aborda-gens se ocupam do indivíduo; outras, doindivíduo em suas relações sociais numdeterminado contexto histórico.

No modelo do ponto de vistafundamentalista, o aconselhamento éum instrumento para induzir o aconse-lhado a tomar uma decisão radical aoenfrentar determinado problema. “Seumétodo é a conversação que confronta apessoa com o mal que ela faz (alcoolis-mo, medo, falta de fé etc), a responsabi-liza pelos seus atos e busca uma nova ori-entação” (Schneider-Harpprecht,1998b, p.303) com o objetivo de mos-trar o caminho que o aconselhado devetrilhar para se aproximar de Cristo. Apessoa que busca aconselhamento, nes-te modelo, recebe do aconselhador asdiretrizes para a solução de seus proble-mas individuais. Não há preocupaçãocom os contextos social e histórico emque ela vive. Diversos manuais seguemesta linha de aconselhamento; neles sãoapresentadas as diretrizes para que oaconselhado consiga resolver seus proble-mas à luz dos ensinamentos bíblicos. Umtexto conhecido e usado paraaconselhamento diretivo é o de Jay E.Adams, Conselheiro Capaz, no qual sãooferecidas respostas para se enfrentar osmomentos de crise.

Howard J. Clinebell apresenta outromodelo de aconselhamento no qual seenfatiza a libertação e o crescimento doaconselhado. O aconselhamento é usa-do para “salvar as áreas de nossa vida que

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naufragam nas tempestades do nosso dia-a-dia, que se despedaçaram nos arreci-fes ocultos de ansiedade, culpa e faltade integridade” (Op. cit., p.14). Assimsendo, o resgate da integralidade do acon-selhado se inicia quando o aconselhadoré procurado e se estabelece um vínculode cuidado entre as pessoas envolvidas.“O aconselhador orientado para o cres-cimento visa a ajudar as pessoas a fazermais do que simplesmente sobreviver erecuperar seu nível anterior de ajusta-mento. A meta é capacitar a pessoa aaprender e, assim, a crescer em decor-rência do enfrentamento do problema.”(Idem, p.87)

A abordagem feita pela PsicologiaPastoral tem como um dos seus repre-sentantes Jorge A Léon, para quem oaconselhamento tem como meta o apren-dizado e a mudança de comportamento.Neste método procura-se realizar aintegração entre

...psicologia moderna e cristianismobíblico numa visão psicoteológica doser humano que leva, por um lado,a uma prática psicologicamentebem refletida, porém, por outro

lado, deixa fora a parte da críticapsicológica da religião, leva a umapsicologização da fé e a umateologização da psicologia, que nãodeixa de ser problemática.(Harpprecht, 1998b, p.305)

O modelo contextual tem como re-ferência o sofrimento em que as pessoasse encontram e propõe a capacitação dasmesmas para enfrentarem a opressãocomo fruto de estruturas injustas. Aindaé um modelo em busca de construçãoteórica. Tem feito uso de referenciais daPsicologia, da Antropologia e da Sociolo-gia para compreender melhor o ser hu-mano e estabelecer modelos para oaconselhamento pastoral que cooperempara o crescimento individual e comuni-tário na perspectiva da fé cristã.

A identificação de modelos demons-tra a complexidade da ação doaconselhamento. As pessoas que buscamos aconselhadores podem sofrer proble-máticas semelhantes; no entanto, as si-tuações sociais e históricas são diferen-ciadas; os valores morais e éticos são di-versificados e as expressões daespiritualidade são plurais. Não há uma

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cartilha diretiva que encerre as etapasaplicáveis para que se atinja o objetivode tal prática. Por se tratar de um pro-cesso, os modelos se entrecruzam e es-tabelecem novos padrões que estão su-jeitos a novas interpretações. Por isso,aconselhamento é um desafio único paraas pessoas envolvidas; ainda que se con-te com pistas orientadoras, elas não setornam regras definitivas a conduzir oprocesso.

Ainda que não haja modelo único deaconselhamento, torna-se fundamentalobservar alguns princípios norteadorespara a realização do mesmo. Em primei-ro lugar, compreender o significado doprocesso de aconselhamento para evitarequívocos relacionais entre os envolvidos.Em segundo, reconhecer que há diferen-tes pontos de vista sobre o mesmo pro-blema. Em terceiro lugar, descobrir ospossíveis caminhos que levam à solução

dos problemas geradores da crise. E, porfim, aconselhador e aconselhado realizamuma desconstrução e construção conjun-ta. Uma pessoa procura a outra e ambasprecisam se respeitar em suas posturasideológicas, éticas e percepções do mun-do para que haja comunicação efetiva eo processo seja salutar, principalmentepara o aconselhado.

Os princípios acima enumerados pro-põem uma reflexão quanto ao exercíciodo aconselhamento pastoral, à busca denovos paradigmas e ao envolvimento co-operativo da comunidade.

Para se entender as novas propostasa respeito do aconselhamento cristão, sefaz necessário identificá-lo como um pro-cesso relacional que tem por objetivocriar oportunidades para a descoberta desi, do outro e de Deus, tendo como refe-rência situações específicas de vida e decrises geradoras de sofrimento.

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IIIIII - A BÍBLIA NO PROCESSO DEIII - A BÍBLIA NO PROCESSO DEIII - A BÍBLIA NO PROCESSO DEIII - A BÍBLIA NO PROCESSO DEIII - A BÍBLIA NO PROCESSO DEACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PACONSELHAMENTO PASTORAL.ASTORAL.ASTORAL.ASTORAL.ASTORAL.

Ao ser instaurado o processo de aconselhamento numa situação decrise1, um dos questionamentos mais freqüentes diz respeito àmetodologia adequada a ser utilizada.

Como foi lembrado anteriormente, não existe um manual prontoa ser seguido. Existem pistas para que o processo de aconselhamentoflua e se transforme em instrumento libertador para a vida das pessoasque dele necessitam. Alguns cuidados devem ser considerados paraque o aconselhador seja um facilitador no processo de aconselhamento.

Em primeiro lugar, mapear a situação que levou o aconselhado aprocurar ajuda e conhecer, ainda que minimamente, as circunstânciasque impulsionaram o aconselhado a compartilhar a sua situação an-gustiante. Geralmente, a pessoa que necessita do aconselhamento en-contra-se confusa, se sente culpada, e se reconhece incapaz de resol-ver determinado problema.

Após um breve mapeamento do contexto, segue-se o diálogo paraidentificar o que se espera no decorrer do processo. O aconselhadorprecisa ser acolhedor, solidário para com a pessoa aflita; respeitá-la narevelação dos fatos e na eventual omissão de pormenores. O aconse-lhador, para que o aconselhado se sinta seguro, necessita demonstrarpredisposição para caminhar lado a lado, sem prévio julgamento e cons-ciente da sua responsabilidade no processo de descoberta do aconse-lhado. A realização de perguntas abertas pode ajudar a colher as infor-mações necessárias para conhecer o estado emocional em que se en-contra o aconselhado que, ao expor seus dramas se coloca diante deum espelho e vê a si mesmo, ou a imagem que faz de si. Ao revelarseus medos, dúvidas e desencantos, o aconselhado cria com o aconse-lhador vínculos recíprocos de cuidado e de serviço.

Os recursos mais usados no aconselhamento pastoral são a oraçãoe a leitura da Bíblia, os quais contribuem para que este procedimento

1 Para compreensão a respeito da crise ver artigo FARRIS, James Reaves, “Intervenção nacrise: perspectivas teológicas e implicações práticas”. In: TTTTTeologia Peologia Peologia Peologia Peologia Pastoralastoralastoralastoralastoral, Ano XI, no.12, p. 101-118, dez. 1996.

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não se transforme em uma conversa des-provida de significado e de objetivo, ouem uma sessão de psicoterapia conduzidapor profissional não qualificado.

Os textos bíblicos, no aconselha-mento pastoral, em algumas diretrizesmetodológicas, legitimam posturas mo-ralistas, discriminatórias e hierárquicas;em outras, defendem os ensinamentosencontrados na Bíblia como necessáriospara o processo de restauração da vidado aconselhado. Reafirma-se, neste caso,o caráter libertador, conciliador e reno-vador das orientações bíblicas.

A leitura das histórias bíblicas traz àmemória das pessoas em situação de cri-se o ato gracioso de Deus manifesto emamor, compaixão e misericórdia. A graçadivina é revelada a todas as pessoas, prin-cipalmente às necessitadas, às aflitas, àsdesamparadas que lhes oferece a possi-bilidade de rompimento com as estru-turas que oprimem e destroem os indi-víduos e as relações interpessoais.

Para os aconselhadores que utilizamo modelo fundamentalista,

... a Bíblia, que é verbalmente ins-pirada, revela em todas as suas par-tes a verdade de Deus e oferece aoser humano pecador regras paraconduzir a vida. Ela lhe mostracomo a desobediência em relação aDeus cria todo o sofrimento e a do-ença nos seres humanos...Deus cha-ma as pessoas para o arrependimen-to por causa do pecado e para umamudança radical de comportamen-to. (Harpprecht, 1998b, p. 303)

Neste caso, a Bíblia é utilizada comoum manual que contém as obrigaçõesque o aconselhado deve cumprir pararesolver seus problemas. Tendo em vistaque a causa dos males encontra-se na si-tuação de pecado, todo sofrimento serácurado, pois os ensinamentos bíblicosmostram que, diante do arrependimen-to, o pecado é perdoado; portanto, a cau-sa do sofrimento está resolvida.

Há outros aconselhadores que utili-zam a Bíblia como um talismã. Ela étransformada num fetiche e dela se es-peram as soluções mágicas para os infor-túnios. Aos textos bíblicos são atribuí-dos poderes que advêm do sobrenatu-ral; portanto, o que na Bíblia se encontraescrito nada mais é do que o parecer deDeus em relação aos atos humanos, prin-cipalmente aqueles que foram realizadosem desobediência aos preceitos divinos,o que ocasiona as crises existenciais, fa-miliares, etc...Ao ser usada como umtalismã, encerra em si mesma o objetivodo aconselhamento; torna-se o centro detal prática, pois ela traz as respostas paratodo e qualquer problema. Paraexemplificar: quando uma pessoa pro-cura quem aconselha e conta seu pro-blema, o aconselhador abre a Bíblia e lêtextos que lembram o pecado causadordo conflito. A solução oferecida, quan-do se usa a Bíblia neste sentido, é ler tex-tos que demonstram a devassidão huma-na e a necessidade do retorno a Deus.Deus é perdoador, mas também é juiz e,ao perdoar a pessoa arrependida, ele a

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livra do conflito e, conseqüentemente,da crise.

Outros aconselhadores têm comoreferências as promessas bíblicas, queservem para consolar e confortar o cora-ção aflito com ênfase na misericórdia di-vina. Neste caso as causas dos conflitosque geram a crise devem ser esquecidas,pois Jesus Cristo já as esqueceu. Sob estaperspectiva; ele restaura toda e qualquersituação que pode ser fruto de ação de-moníaca na vida da pessoa.

Ao se usar a Bíblia no aconselhamentopastoral se faz necessário atentar para oaspecto reducionista e fragmentado, quemuitas vezes seduz o aconselhador, e per-ceber se este recurso não está sendo paramanipular o aconselhado.

Para outro modelo usado noaconselhamento, que tem por palavraschave “libertação” e “crescimento”, “otestemunho bíblico enfatiza reitera-damente as notáveis potencialidades dosseres humanos” (Clinebell, Op. cit., p.48). Com o objetivo de se atingir umcrescimento integral, em que se reflita avida abundante, o uso da Bíblia consisteem:

1. Permitir que a sabedoria bíblicainforme o processo, o espírito eos objetivos de relações deaconselhamento...

2 . Consolar e fortalecer pessoas emcrises.

3. Realizar um diagnóstico de ques-tões de crescimento de ordem psi-cológica, interpessoal e espiritual...

4. Ajudar a curar patologia espiritu-al e a mudar crenças patogênicas...

5. Conscientizar as pessoas a respei-to da vida cristã. (Id., p.119-122)

Há, ainda, aconselhadores que usamas histórias dos personagens bíblicos, eas identificam com as histórias de vidados aconselhados. Propõe-se umainteração entre as histórias bíblicas e ahistória pessoal, por meio da análise dasdiversas fases da crise e as possíveis so-luções encontradas pelos personagensbíblicos. Ao aproximar estas históriascomo um recurso metodológico para aprática do aconselhamento, o aconselha-dor pode se tornar o condutor do pro-cesso, colocando-se como agente diantedo receptor que necessita de direção.Este método leva em consideração queas histórias conhecidas e narradas no tex-to bíblico demonstram a fragilidade hu-mana. Assim como, no contexto bíblico,homens e mulheres cometeram erros, seangustiaram, sentiram-se aflitos, tiverammedo etc e buscaram respostas que lhesrestaurassem a vida, também, no presen-te, os dramas humanos podem ser solu-cionados e as crises superadas, dandolugar a uma vida mais plena, mas não isen-ta de novas crises. Esta metodologia podeajudar o aconselhado a encontrar respos-tas para sua situação de crise; no entan-to, é preciso ter cautela e sabedoria parausar histórias outras, pois, ainda que se-melhantes, guardam especificidades quesão fundamentais para a solução das

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questões que afligem e causam pertur-bação pessoal e relacional.

A Bíblia, para o cristianismo, é fontede inspiração para o desenvolvimento dafé, é norteadora para o culto e para a éti-ca. A fé, que provém da relação com osagrado, encontra sustentação nosensinamentos bíblicos e, por esta razão,a Bíblia torna-se importante instrumen-to no processo de aconselhamento.

Quando os textos bíblicos são estu-dados com seriedade, não se tornam pre-texto para julgamento e punição do acon-selhado; tampouco, se transformam emexigências ideológicas e religiosas, masatuam como aliado do processo de liber-tação e amadurecimento do aconselhado.

Tendo em vista a importância da Bí-blia no processo de aconselhamento pas-toral, quais as pistas para que a leitura damesma não se torne pregação e direcioneo aconselhado a tomar decisões?

Em primeiro lugar, identificar os dra-mas em que estiveram envolvidos os per-sonagens bíblicos (ciúme entre irmãos;abuso de poder; esquemas para benefi-ciar alguns em detrimento de outros;desejo de possuir objetos ou pessoas; cri-ses familiares; violência sexual etc) nosfornece elementos para compreender acomplexidade das relações humanas; apartir disso pode se reconhecer nas es-truturas sociais e religiosas as articulaçõesde poder e refletir a respeito do proces-so de aconselhamento como processorestaurador de vidas. As várias crisesenfrentadas pelos personagens bíblicos,

ainda que descritas em histórias particu-larizadas, refletem o aspecto relacionalcom o semelhante e com o sagrado.

O aconselhado procura o aconselha-dor com uma história, que está interliga-da a outras, formando o contexto em queele vive. Ao se fazer uso de histórias de-terminadas precisa-se reconhecer suasparticularidades a fim de não transformá-las em modelo acabado. A semelhançacom determinada história bíblica podeajudar a identificar os aspectos da situa-ção de crise com que se pretende traba-lhar; mas o processo de aconselhamentoé totalmente outro, tendo em vista queas pessoas não são as mesmas e nem ascircunstâncias se repetem.

O uso das histórias bíblicas reafirmaa fé no Deus que age no meio do povoque enfrenta crises de toda espécie e que,mesmo nos caminhos de degradação, demiséria, de deserto e solidão, Deus estápresente. A humilhação da deportaçãodo povo judeu não foi suficiente para eleabandonar a sua crença. A dispersão emorte dos cristãos não conseguiram apa-gar a fé em um projeto salvífico de Deus.

A libertação como chave para oaconselhamento é sustentada pela men-sagem central da Bíblia. Libertar-se dostemores, enfrentar os medos, opor-se àsopressões e lutar contra a discriminaçãosocial, étnica, de gênero, de geração sãopressupostos para possíveis soluções dosdramas humanos.

Nesta perspectiva libertadora, a Bí-blia traz relatos que nos chamam a aten-

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ção para o que se pretende noaconselhamento. Se buscarmos uma pa-lavra de exortação, de consolação, de in-centivo, certamente a encontraremos.Mas é impossível se construir novas re-lações se não forem reconhecidas as qua-lidades e os defeitos, os horizontes e aslimitações de cada pessoa envolvida noaconselhamento.

A leitura da Bíblia no aconselhamentoé fonte de inspiração para repensarmosnossa condição de vida no momento es-pecífico. Não é um receituário paliativopara encobrir a necessidade de transfor-mação cotidiana, e fornecer receituárioespiritual. Trata-se de uma proposta devida, e de aquisição de valores que nostornam mais humanos.

A leitura fragmentada nos leva a in-terpretações fragmentadas e transferempara o sobrenatural o que precisamosenfrentar e resolver para que sejamossaudáveis na nossa integralidade.

Em segundo lugar, a Bíblia é fontesabedoria para o aconselhador que, comofacilitador do processo deaconselhamento, organiza-o comdiscernimento e prudência. Nela seaprende a lidar com a transitoriedade davida, com a construção contínua de no-vas perspectivas e relacionamentos, coma re-visitação aos dogmas e preceitos,com a valorização dos outros, com ascertezas e incertezas religiosas e com osmistérios da fé.

A Bíblia ensina ao aconselhador e aoaconselhado que racionalidade e misté-

rio são componentes fundamentais paraque vidas sejam restauradas e consigamviver em harmonia pessoal e relacional,ainda que novas crises surjam.

No aconselhamento pastoral, a Bíblianão se esgota numa caixinha de promes-sas, não se limita às advertências e não seesgota em interpretações exclusivistas.Ela é recurso fundamental para se com-preender a diversidade de problemas, aspossíveis soluções e principalmente o ho-rizonte de inegável esperança.

As ciências humanas oferecem ins-trumental para o aconselhamento pasto-ral; seus modelos e metodologias tentamoferecer condições para esta prática es-sencial na vida das igrejas; mas a Teologiaainda não tem aprofundado os aportesteóricos para a reflexão sobre o processode aconselhamento, o que reforça o ca-ráter empírico de tal procedimento.

CONCLCONCLCONCLCONCLCONCLUSÃOUSÃOUSÃOUSÃOUSÃO

A partir desta reflexão, concluímosque o Aconselhamento Pastoral é impor-tante instrumento para o amadurecimen-to pessoal e comunitário, se aplicado deforma planejada, com critérios definidose preparo dos aconselhadores. Este pro-cesso, uma vez instaurado, conta com oimportante recurso dos ensinamentosbíblicos para que o aconselhado construasua história de vida e aprenda a lidar comas crises que, porventura, surgirem.

O uso da Bíblia como recurso para o

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aconselhamento precisa ser amplamen-te discutido para que os textos bíblicosnão sejam usados como cartilhas diretivase possam trazer libertação para as pesso-as envolvidas no processo deaconselhamento. A mensagem bíblicapode ser renovadora num momento decrise, de angústia, de sofrimento em queas pessoas estão imersas.

Se partirmos do pressuposto que oaconselhamento é uma desconstrução econstrução conjunta em que o aconse-lhado encontra seu próprio caminho, ouso da Bíblia trará o aporte necessáriopara reflexão sobre a situação de crise,os danos ocasionados e as novas perspec-tivas. O aconselhador, como facilitadordo processo, torna-se acolhedor, solidá-rio, encorajador, e procura ouvir o tem-po todo, falar de vez em quando, e nun-ca direcionar o aconselhado. Facilitar oprocesso não significa não saber a dire-ção, os atalhos, as pausas para se chegarao objetivo, mas, isto sim, estar prepara-do para chorar com os que choram e so-frer com os que sofrem. Viver osensinamentos bíblicos de cuidado, paci-ência e amor é o melhor uso da Bíblia nadesafiadora tarefa do aconselhamento.

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O presente trabalho, emprimeiro lugar, pro-põe-se a rastrear o con-

ceito de desencantamento do mun-do ( Entzauberung der Welt) nos tra-balhos sociologia da religião elabora-dos por Max Weber. Trata-se de umexercício de compreensão de um as-pecto específico da obra de MaxWeber. Embora o objetivo se apre-sente como modesto, na verdade,pela aproximação que o tema dodesencantamento tem com os temasda perda de sentido, da dominaçãoe do racionalismo, torna-se bastanteamplo e de difícil sistematização.Pretendemos, em segundo lugar, si-tuar a importância da discussão dotema desencantamento do mundopara a análise do campo religioso naatualidade, buscando compreenderprincipalmente os rumos que oracionalismo tomou na religiosidadebrasileira e latino-americana.

Jürgen Habermas (1987), se-guindo a interpretação de F.Tenbruck, considera que os ensaios

de sociologia da religião elaboradospor Weber fornecem, tomando-sepor base a relação entre racionaliza-ção e desencantamento, o fio con-dutor para a compreensão da uni-dade de sua obra. Os textos queserão examinados são os seguintes:A Ética Protestante e o Espírito doCapitalismo, elaborado entre 1904-1906; “Rejeições Religiosas doMundo e suas Direções” – cuja pri-meira versão foi feita em 1915 e a3ª versão, que é a última, em1920;”A Ética Econômica das Reli-giões Mundiais”, escrito em 1913e publicado em 1915. Vale ressal-tar que estes textos foram publica-dos num só volume em 1920 sob otítulo de Ensaios de Sociologia da

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Religião. Na medida em que for neces-sário abordaremos outros textos deWeber, especialmente A Ciência comoVocação, uma conferência proferida em1918 e publicada em 1919, que trata darelação entre ciência e desencantamento.

A construção da idéia de desencan-tamento do mundo aparece pela primei-ra vez na Ética Protestante. Weber estáinteressado em encontrar a origem daatitude moderna de racionalização. Con-sidera infrutífera qualquer tentativa detraçar o desenvolvimento do racionalismonum esquema de etapas, das quais oprotestantismo seria apenas mais uma.Isto porque a história do racionalismo“não segue linhas paralelas nos vários se-tores da vida” (Weber, 1987, p.51).Weber criticou o uso genérico do con-ceito de racionalismo, pois é preciso con-siderar que se pode “racionalizar a vidade pontos de vista básicos, fundamen-talmente diferentes e em direções muitodiferentes” (Idem, p.51). Isto conduzWeber para a investigação daquele queseria, segundo suas palavras, “o dogmacentral de todos os ramos do protestan-tismo” - o conceito de vocação. Escolhe,portanto, examinar uma forma concretae particular de pensamento racional. Aoabordar o conceito de vocação no pro-testantismo Weber estará demonstran-do como ocorre, num determinado se-tor da vida, no caso a religião, o processode racionalização e qual a sua direção.Podemos perceber na expressão “seto-res da vida” o que nos trabalhos sistemá-

ticos Weber viria a chamar de esferas devida. Lutero, segundo Weber, produziuuma desvalorização da vida monacal e porconseqüência um aumento no valor mo-ral do trabalho secular e profissional. Avida monacal foi vista por Lutero comoproduto de uma egoística falta de cari-nho que afasta o homem de suas respon-sabilidades neste mundo (Ibidem, p.54).Todavia, devido à compreensão queLutero tem da doutrina da Providência– segundo a qual o lugar de cada indiví-duo na sociedade seria determinado porDeus e a melhor forma de agradar a Deusé permanecer na vocação para a qual sefoi chamado – o conceito de vocaçãopermaneceu em sua forma tradicional.Faltava ao conceito de vocação de Luteroa valorização da mobilidade social.

O calvinismo fornecerá o elementode mobilidade social ausente no concei-to de vocação do luteranismo. Para opuritano “não é trabalho em si, mas umtrabalho racional, uma vocação, que épedida por Deus” ( Ibidem, p.115). Masporque se pede um trabalho racional, de-vemos nos perguntar: o que operou essamudança? A resposta para essa questãoencontra-se no capítulo em que Webertrata dos fundamentos religiosos doascetismo laico. Neste capítulo, Weberconcentra-se na compreensão dos seguin-tes movimentos religiosos: calvinismo,pietismo, metodismo e as seitas batistas.Valendo-se do método de construção detipos ideais, Weber busca compreendera “influência daquelas sanções psicológi-

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cas que, originadas da crença religiosa eda prática da vida religiosa, orientavama conduta e a ela prendiam o indivíduo”(Ibidem, p.67). A crença religiosa queexerceu maior influência sobre a condu-ta dos homens daquele tempo foi a dou-trina calvinista da predestinação. Segun-do esta doutrina, Deus previamente, semqualquer previsão de fé ou de obras,predestinou alguns homens para a salva-ção e outros para a perdição eterna. Tra-ta-se de um pensamento de grande con-sistência lógica, pois segue rigorosamen-te o pressuposto de que “Deus não exis-te para os homens, mas estes por causade Deus”. Desta forma, Deus é glorifi-cado tanto na perdição quanto na salva-ção dos homens. A questão que passariaa angustiar os homens é a seguinte:“como sei que sou um dos eleitos para asalvação?” Segundo Weber, essa questãodeve ter empurrado para segundo planotodos outros interesses (Ibidem, p.76).O homem não podia mais contar com amediação da Igreja, do sacerdote ou dossacramentos para a sua salvação. Estavaabsolutamente sozinho diante da ques-tão mais importante para sua vida – suasalvação eterna. Nem sequer restou es-paço para a emoção religiosa, uma vezque “Calvino encarava com desconfian-ça todos os sentimentos e emoções puras,não importando quão exaltados pudes-sem parecer ser, a fé tinha de ser prova-da por seus resultados objetivos, a fimde proporcionar uma base segura para acertitudo salutis”(Ibidem, p.79).

Esta tensão insuportável para os fiéisencaminhou como solução a doutrina daprova. Os eleitos para a salvação podemser conhecidos por um tipo de condutacristã que glorifica a Deus. Weber apon-ta dois tipos de recomendações que eramfeitas aos fiéis: a) combater as dúvidascom o reforço da autoconfiança ; b) en-tregar-se a uma intensa atividade profis-sional. Deveria ser privilegiado, na me-dida do possível, um trabalho sistemáti-co e racional, segundo as recomendaçõesde Richard Baxter. A mudança de pro-fissão já não era mais condenada, masdeveria ser o resultado de uma escolharacional. A caridade cristã, expressa pormeio de boas obras, deveria também sercoordenada num sistema racional. A dou-trina da prova e a racionalização da con-duta devem ser compreendidas como“meios técnicos, não de compra da sal-vação, mas de libertação do medo da con-denação” (Ibidem, p.80). Weber finalizaa análise do conceito de vocação afirman-do:

...Mas, apenas pela prova de umtipo específico de conduta, inequi-vocamente diferente do modo devida do homem “natural”. Disto de-rivou-se um incentivo para que o in-divíduo metodicamente supervisi-onasse seu próprio estado de graça,em sua própria conduta, e assim in-troduzisse nela o ascetismo. Mas,como vimos, esta conduta ascéticasignificou um planejamento racio-nal de toda vida do indivíduo, deacordo com a vontade de Deus. Eeste ascetismo não era mais uma

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opus superrogationes, mas algo quepodia ser requerido de todo aqueleque estivesse certo da salvação. Avida religiosa dos santos, desligan-do-se da vida “natural”, não eramuito vivida – este é o ponto maisimportante – fora do mundo, emcomunidades monásticas, mas den-tro do mundo e de suas instituições.Esta racionalização da conduta den-tro deste mundo, mas para o bemdo mundo do além, foi a conse-qüência do conceito de vocação doprotestantismo ascético. (Idem,p.109)

Duas razões, de ordem interna aopensamento religioso, foram fundamen-tais para converter o calvinismo numareligião ética e, por conseqüência, numareligião portadora das sementes do de-sencantamento do mundo. Weber apon-ta, simultaneamente, o afastamento damagia e a crença em um Deus transcen-dente.1 Isto está presente no conhecidotrecho da Ética Protestante, no qualWeber afirma:

Aquele grande progresso histórico-religioso da eliminação da magia domundo, que começara com os ve-lhos profetas hebreus e conjunta-mente com o pensamento científi-co helenístico, repudiou todos osmeios mágicos de salvação como su-perstição e pecado, chega aqui à suaconclusão lógica. (Ibidem, 72).

Sobre este processo de desencanta-mento do mundo, Weber remete-nos,numa nota, para o texto da “Ética Eco-nômica das Religiões” (1982a). Porém,antes de abordarmos o que encontramosneste texto sobre o referido processo dedesencantamento do mundo, devemosressaltar que Weber, ainda na Ética Pro-testante, faz mais algumas importantesobservações sobre o assunto. Um poucomais adiante afirma que “os católicos nãolevaram tão longe quanto os puritanos(e antes deles os judeus) a racionaliza-ção do mundo, a eliminação da mágicacomo meio de salvação” (1987, p.81).Por conseqüência, os católicos continua-

1 Weber, como é próprio de seu método, faz umaressalva: “Embora importante, a concepção de umDeus supramundano, apesar de sua afinidade com aprofecia emissária e o ascetismo ativo,evidentemente não agia sozinha, mas sempre emconjunto com outras circunstâncias. A natureza daspromessas religiosas e os caminhos da salvação quedeterminaram destacam-se entre essascircunstâncias.” (1982b, 373)

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ram presos ao que Weber chama de umciclo essencialmente humano de: peca-do, arrependimento, reparação, relaxa-mento, seguidos de novo pecado (Ibidem, p.82). Diferentemente, porexemplo, o metodismo buscará a perfei-ção, ou seja, uma vida sem pecado. Oideal de vida cristã que domina o purita-nismo não é cíclico, mas linear. O alvodo puritano é “progredir” na graça deDeus. Disto decorre o hábito de contro-lar em um diário os progressos obtidos navida espiritual. Weber, ainda na Ética Pro-testante, conclui que “a eliminação damagia do mundo não permitiu nenhumoutro curso psicológico, que não a práticado ascetismo laico” (Ibidem, p.106).

Na “Ética Econômica das ReligiõesMundiais”, Weber continua refletindosobre a relação entre a crença em umDeus transcendente e o desenvolvimen-to de uma religião ética. Isto é feito pormeio do contraste entre a profecia emis-sária e a profecia exemplar. Profeciaemissária e profecia exemplar são doispólos de uma religião de negação domundo. Na profecia emissária, os fiéisconsideram-se como instrumentos deum deus e, na profecia exemplar, consi-deram-se como vasos do divino. A pri-meira enfatiza a ação e a segunda, a con-templação. Weber aponta que a atitudetípica da profecia emissária dominou asreligiões iraniana e do oriente e as religi-ões ocidentais derivadas delas. (Weber,1982a, p.329) Para a compreensão quebuscamos do processo de desencanta-mento do mundo na obra de Weber é

importante assinalar a relação que esta-belece entre a conduta ascética, exigidapela profecia emissária, e atranscendência de Deus, diz ele: “Essaprofecia emissária teve uma profundaafinidade eletiva com um conceito especi-al de Deus: o conceito de um Senhor daCriação supramundano, pessoal, irado,misericordioso, amante, exigente, puni-tivo” (Ibidem, p.329). Trata-se do Deusdo calvinismo. Os seres humanos encon-tram-se separados de Deus por um “gol-fo intransponível” ( Weber, 1987, p.71).Nenhum tipo de ritual pode modificaros desígnios de Deus. Resta ao fiel ape-nas viver a ética dos eleitos, que nadamais é que uma técnica para produzir alí-vio do medo da condenação. Desta for-ma, conclui Weber:

Quando os virtuosos religiosos com-binaram-se numa seita ascética ati-va, dois objetivos foram totalmen-te alcançados: o desencantamentodo mundo e o bloqueio do caminhoda salvação através da fuga do mun-do. O caminho da salvação é des-viado da “fuga contemplativa domundo”, dirigindo-se ao invés dissopara um “trabalho neste mundo”, ati-vo e ascético. (Weber, 1982a, p.334)

Weber, porém, antes desta afirmaçãoassinalou que duas coisas foram neces-sárias para que isso pudesse acontecernuma determinada religião. Primeiro, ovalor supremo e sagrado não devia ser denatureza contemplativa. Segundo, essareligião deve ter desistido, na medida dopossível, do caráter mágico (Ibidem,p.334). Até aqui procuramos demons-

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trar como o protestantismo, principal-mente na versão calvinista, preencheuadequadamente essas condições para queo desencantamento do mundo ocorres-se internamente.

Vimos até aqui que Weber estabele-ce uma relação muito forte entreascetismo e desencantamento do mun-do. A religião a partir da qual o desen-cantamento do mundo ocorre é sempreuma religião ascética. Isto fica claro noexame do conceito de vocação apresen-tado na Ética Protestante e também nasformulações teóricas dos textos posteri-ores. O ascetismo gera uma religião compouco misticismo e muita “doutrina”, oque torna fundamental a apologética ra-cional. Weber apresenta-nos da seguinteforma a tensão entre a religião racionali-zada e a esfera intelectual:

Quanto mais a religião se tornoulivresca e doutrinária, tanto mais li-terária tornou-se e mais eficiente foino estímulo ao pensamento leigo ra-cional, livre do controle sacerdotal.Dos pensadores leigos, porém, saí-ram os profetas, que eram hostis aossacerdotes; bem como os místicos,que buscavam a salvação indepen-dentemente deles e dos sectários;e, finalmente, os céticos e filósofos,que eram hostis à fé (1982b, p.402)

Evidentemente esta é uma conse-qüência não desejada. A observação fei-ta por J. Habermas - de que a ética pro-testante põe em marcha o capitalismo,porém, sem poder garantir as condiçõesde sua própria estabilidade como ética

(Op. cit., p.299), vale também para a re-lação com a esfera intelectual. Oascetismo gera uma religião racionaliza-da, mas que sempre pedirá o sacrifíciodo intelecto – credo non quod, sed quiaabsurdum. O ascetismo protestante vi-verá sempre o seguinte dilema: para nãoceder ao misticismo, deve incentivar aapologética racional, mas ao incentivá-lapode gerar “inimigos da fé” dentro dospróprios muros. Temos aqui, embora nãoseja este o objetivo de nosso trabalho,uma importante referência para compre-ender as duas grandes causas de cismasnas Igrejas Protestantes: as reaçõespentecostais (místicas) e as reações doliberalismo teológico (intelectuais). As-sim, o desencantamento do mundo ge-rado no seio de uma religião ascéticaquase que inviabiliza a sua existênciacomo religião. Não foi por acaso que acrítica bíblica e a teologia da morte deDeus foram produzidas em círculos pro-testantes.

Weber mostrou-se interessado emelucidar a origem do modernoracionalismo, o que foi feito através doexame do ascetismo intramundano pre-sente na ética calvinista, porém, procu-rou destacar também os elementos irra-cionais presentes na conduta racional fo-mentada pelo ascetismo. Desta formachegamos ao tema da perda de sentido,presente na obra weberiana. Na ÉticaProtestante, Weber afirma, logo após fa-zer a advertência que a vida pode ser ra-cionalizada de pontos de vista diferentes

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e em direções muito diferentes, estar“particularmente interessado no elementoirracional que precisamente se ausentanesta, como em toda concepção de “vo-cação” (1987, p.51). O paradoxo desta-cado por Weber reside no fato de que,embora a religião busque atribuir um sen-tido para o mundo, seu ponto de partidaé essencialmente irracional e seu pontode chegada pode ser também irracional.J. Habermas observa que Weber com-preendeu a conduta ascéticaintramundana, como um comportamen-to orientado pela ação racional visandofins, mas sustendado pela ação com rela-ção a valores (Op. cit., p.263). Dito deoutra forma: o puritano adota uma con-duta metódica porque acredita ser estaa vontade de Deus para sua vida. Portan-to, o seu ponto de partida é por excelên-cia irracional, aliás como Weber afirmaclaramente: “As várias grandes formasde levar uma vida racional e metódicaforam caracterizadas pelas pressuposi-ções irracionais, simplesmente aceitascomo ‘dadas’, e que foram incorporadasa esses modos de vida” (1982a: p.325).Weber, na “Ética Protestante”, assinala-ra, de passagem, que o calvinista subme-tia-se a um destino cujo sentido lhe es-capava, uma vez que os desígnios deDeus são compreendidos, por suas cria-turas, sempre de forma fragmentada.Porém, em seu último texto, “RejeiçõesReligiosas do Mundo e suas Direções”,Weber afirma claramente que a teodicéiacalvinista desemboca numa renúncia da

busca pelo significado do mundo: “acrença na predestinação realiza essa re-núncia, de fato e com plena coerência. Areconhecida incapacidade do homem emescrutinizar os caminhos de Deus signi-fica que ele renuncia numa clareza semamor à acessibilidade do homem a qual-quer significado do mundo” (1982b:p.409-10). Ao desvendar a origem oracionalismo moderno Weber encontroutambém a origem do irracionalismo mo-derno.

Weber, no último capítulo da “ÉticaProtestante”, afirmou: “o puritano que-ria tornar-se um profissional(berufsmench) e todos tiveram que se-gui-lo”(Op.cit., p.130). Nesta etapa aação racional com relação a fins despren-de-se de seu fundamento racional comrelação a valores e passa a seguir uma ló-gica própria (Op. cit., p.305). Weberdescreve esse processo da seguinte for-ma:

Desde que o ascetismo começou aremodelar o mundo e a nele se de-senvolver, os bens materiais foramassumindo uma crescente, e, final-mente, uma inexorável força sobreos homens, como nunca antes naHistória. Hoje em dia – ou definiti-vamente, quem sabe – seu espíritoreligioso safou-se da prisão. O capi-talismo vencedor, apoiado numabase mecânica, não carece mais deseu abrigo. Também o róseo caráterde sua risonha sucessora: aAuflärung parece estar desvanecen-do irremediavelmente, enquanto acrença religiosa no “devervocacional”, como um fantasma,

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ronda em torno de nossas vidas.Onde a “plenitude vocacional” nãopode ser relacionada diretamenteaos mais elevados valores culturais– ou onde, ao contrário, ela tambémdeve ser sentida como uma pressãoeconômica - o indivíduo renuncia atoda tentativa de justificá-la. Nosetor de seu mais alto desenvolvi-mento, nos Estados Unidos, a pro-cura da riqueza, despida de sua rou-pagem ético religiosa, tende cadavez mais a associar-se com paixõespuramente mundanas, quefreqüentemente lhe dão o caráterde esporte. (1987, p.131)

Desta forma o desencantamento domundo produz a separação entre as di-ferentes esferas da vida. A esfera econô-mica ganha uma legalidade própria quenão mais depende da legitimação religi-osa. O mesmo processo ocorre com asdemais esferas: arte, ciência, política,erótica, estética e intelectual. Cada es-fera ganha a sua legalidade própria, pas-sando a orientar-se por princípios que sãoauto-referenciados. Gabriel Cohn afirmaque a separação entre as esferas desem-penha um papel de extrema importân-cia no esquema analítico de Weber, comose pode ver:

...no processo que percorrem, asdiversas esferas da existência – aeconômica, a religiosa, a jurídica, aartística e assim por diante – são au-tônomas entre si, no sentido de quese articulam em cada momento eao longo do tempo conforme à sualógica interna específica, à sua “le-galidade própria”, para usar o ter-

mo weberiano. (1997, p.25) O conceito de separação entre as

diferentes esferas e seu permanente es-tado de tensão só foi desenvolvido ple-namente nas “Rejeições Religiosas doMundo e suas Direções” (1982b).Catherine Colliot-Thelene observa queWeber utilizará o termo desencantamen-to do mundo, nos textos de 1913 a 1919,com um sentido mais amplo do que ti-vera na Ética Protestante. SegundoCatherine Colliot-Thelene, o termo de-sencantamento do mundo designa, nosúltimos textos de Weber, “a deprecia-ção do religioso sobre as representaçõesgerais que os homens fazem do mundode sua existência” (1985, p.90). O de-sencantamento do mundo, na obra deWeber, desemboca no antagonismo ab-soluto entre as diferentes esferas, isto é,no politeísmo de valores:

Vista dessa forma, a ‘cultura’ surgecomo a emancipação do homem emrelação ao ciclo da vida natural, or-ganicamente prescrito. Por essa ra-zão mesma, cada passo à frente dacultura parece condenado a levar aum absurdo ainda mais devastador.O progresso dos valores culturais,porém, parece tornar-se uma agita-ção insensata a serviço de finalida-des indignas e, ainda mais,autocontraditórias e mutuamenteantagônicas. O progresso dos valo-res culturais parece ainda mais in-sensato quanto mais ele é tomadocomo uma tarefa sagrada, uma ‘vo-cação’.[...] A toda construção da na-tureza específica de cada esfera es-pecial existente no mundo, esse

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conflito parece destacar-se cada vezmais e de forma mais insolúvel.[...]E não só o pensamento teórico, de-sencantando o mundo, levava a essasituação, mas também a própriatentativa da ética religiosa de raci-onalizar prática e eticamente omundo. (1982b: p.407-08)

A perda de liberdade, refletida peladominação, é o outro aspecto negativoque acompanha o processo de desencan-tamento do mundo. Weber nos diz queo ascetismo, desde os primórdios de seuaparecimento, já revelara as suas faces deJano, a saber, de um lado a renúncia aomundo, e, do outro, o domínio do mun-do (1982b, p.375). Trata-se da combi-nação puritana entre restrição ao consu-mo e a liberação para o acúmulo racionalda riqueza. Esta nova atitude contribuiupara a formação da moderna ordem eco-nômica a qual, segundo Weber, “atual-mente determina de maneira violenta oestilo de vida de todo o indivíduo nasci-do sob esse sistema” e, ao que parece,“determinará até que a última toneladade combustível tiver sido gasta” (1987,p.131). A dominação sobre o mundo,paradoxalmente, exercida pelo puritano(e pelo homem de profissão que o se-guiu) volta-se contra ele mesmo; é o tê-nue manto que se transforma na jaula deferro. O desencantamento do mundoacaba por lançar-nos num mundo semsentido e sem liberdade.

A efervescência religiosa deste finalde século está mexendo com as idéias

estabelecidas sobre a interpretação dofenômeno religioso. O que causa perple-xidade não é a sobrevivência das religi-ões, mas o seu intenso processo de ex-pansão, especialmente das religiões comum forte apelo mágico. Diante destefato, o conceito weberiano de desencan-tamento do mundo tem sido revisitadopor diferentes autores.

A idéia popularizada na modernidadesegundo a qual as religiões iriam decli-nando, chegando até mesmo ao desapa-recimento histórico, não encontra nenhu-ma base de defesa no trabalho de Weber,muito menos no conceito em questão.Os principais propagadores desse sensocomum foram os próprios teólogos cris-tãos. Estes, aliás, sempre exageram, tan-to a força de sua religião, quanto a suafraqueza. Duas obras teológicas foramfundamentais para a popularização daidéia que o cristianismo estava irremedi-avelmente destinado ao desencantamen-to - Honest to God de John Robinson(1963) e The Secular City de HarveyCox (1965). O primeiro foi publicadona Inglaterra e o segundo nos EUA. Nãosó assumiram o desencantamento, quechamavam de desmitologização, comoum processo que tendia para auniversalização, mas trataram deincorporá-lo de forma positiva ao cristia-nismo moderno.

O conceito weberiano de desencan-tamento é uma construção histórica e nãouma lei histórica, do tipo comtiano. Istofica muito claro em toda obra Weberiana.

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A afirmação feita por Lísias N. Negrãonos ajuda a entender isto:

As análises de Weber foram válidaspara um período já encerrado dahistória do Ocidente: o apogeu daracionalidade num mundo desen-cantado, em que o sagrado se exi-lou. Mais recentemente vivemos operíodo dos chamados “retorno dosagrado” ou da “revanche de Deus”,em que este mundo, de alguma for-ma, se reencanta. Mesmo se consi-derarmos a realidade do TerceiroMundo em geral e do Brasil em par-ticular, em que o sagrado persistiu,é inegável que a religião aí serevitalizou, paralelamente aoreencantamento primeiro-mun-dista. (1994, p.134)

Tanto o seu conceito não pode ser lidode uma forma linear, que o próprioWeber salienta que o catolicismo foi umaespécie de contra-marcha numa tendên-cia de racionalização que havia começa-do com os profetas hebreus.

Isto significa que o conceito não te-nha nenhuma significação teórica para a

leitura do campo religioso na atualida-de? De forma alguma. O que pode sergeneralizado para a modernidade não é oprocesso de desencantamento, entendi-do como a racionalização do cristianis-mo, mas suas implicações secularizantes.2

Uma das principais implicações do de-sencantamento foi a separação entre Igre-ja e Estado. Neste sentido, a expansãotransnacional do capitalismo, encarregou-se de fazer com que os Estados nacio-nais adotassem o modelo de separaçãoentre Igreja e Estado, relegando os as-suntos religiosos para o âmbito da vidaprivada. Porém, no modelo europeu ana-lisado por Weber, podemos dizer que odesencantamento, entendido como oprocesso de racionalização interno à reli-gião, conduziu à secularização. Mas nocaso dos países latino-americanos, nãoseria verdadeiro dizer que a seculariza-ção, entendida como processo de sepa-ração entre religião e Estado, tenha con-duzido ao desencantamento. Desta for-ma, não há, pelo menos se estiverem cor-

2 Adotamos a distinção feita por Pierucci entreracionalismo, desencantamento e secularização: “EmWeber, o processo de racionalização é mais amplo emais abrangente que o desencantamento do mundoe, neste sentido, o abarca; o desencantamento domundo, por sua vez, tem a duração histórica maislonga, mais extensa que a secularização e, nestesentido, a compreende. (1998, p.51)

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retas as distinções que fizemos, nenhumequívoco em afirmar que as sociedadeslatino americanas continuam encantadas,embora no século XX tenham se secula-rizado significativamente. A necessida-de de buscar uma compreensão da secu-larização na América Latina, escapandode uma simples transposição da análisefeita no contexto da Europa, foienfatizada por Cristián Parker, como se-gue:

Em nosso continente subdesenvol-vido e dependente, os processos desecularização assumiram outras ca-racterísticas que obedecem, em par-te, à evolução histórica e estruturalde nossos processos de moderniza-ção capitalista e, em parte, ao phatoscultural dos latino-americanos, vi-gente de forma especial em nossasculturas populares.[...] Os ciclos deemprego ® desemprego Þ misériasubstituíram os ciclos de semeadu-ra ® chuva Þ colheita, o que, emtodo caso, prolonga o sentido sub-jetivo de dependência de condiçõesexternas incontroláveis que pormeio do recurso simbólico à medi-ação do transcendente procura setornar “controlável” e, por conse-guinte, reduzir a ameaça do sem-sentido, do absurdo. (1996,p.103,115)

Porém, convém não menosprezar aracionalidade ocidental, cujos caminhose desdobramentos mereceram a dedica-ção da “vocação” científica de Weber. Oque Cristián Parker afirma acima nãodeve significar que a religiosidade lati-no-americana não foi “contaminada” pelaracionalidade ocidental, ou ainda, que poralguma outra razão, esteja isenta de qual-quer influência. “Inspirados” pelo mé-todo histórico utilizado por Weber, de-vemos buscar entender a partir de quelugar a religiosidade brasileira (ou latino-americana) está sendo racionalizada, poisnão nos esqueçamos que se pode “raci-onalizar a vida de pontos de vista bási-cos, fundamentalmente diferentes e emdireções muito diferentes” e, diria nova-mente, a religião também. No caso daatual efervescência religiosa, há uma ra-cionalização dos meios de divulgação damensagem e não do conteúdo da men-sagem propriamente. Daí ser acertada apercepção de Ricardo Mariano ao desta-car que a IURD combina “o que há demais moderno e eficiente na área de pro-paganda e comunicação com o que há demais ‘arcaico’ no plano religioso”(1996,p.125). Podemos afirmar que a crescen-te racionalização das técnicas de propa-gação orientadas para uma população quenunca se desencantou, no conteúdo desuas crenças, podem ser um dos cami-

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nhos teóricos para analisar o crescimen-to das religiões na atualidade. Além dis-so, Weber torna possível pensar quemesmo onde os indivíduos estão desen-cantados pode ocorrer um “surto” dereencantamento, conforme veremosabaixo, mas este assunto precisa ser tra-tado em separado.

As camadas do proletariado, maisbaixas, mais instáveis, para as quaisas concepções racionais são menosacessíveis, e, ainda, as camadasproletaróides da pequena burguesia,constantemente carentes eameaçadas de proletarização, po-dem facilmente ser captadas pormissões religiosas, sobretudo quan-do estas apresentam um carátermágico, ou, - onde a magia propria-mente dita já foi exterminada –quando oferecem sucedâneos dadispensa de graça-orgiástica – comofazem, por exemplo, as orgiassoteriológicas de tipo metodistapraticadas pelo Exército da Salva-ção. (1991, p.331-332)

O que dissemos, julgamos suficientepara demonstrar a fecundidade da análi-se weberiana, evitando-se todavia umatransposição mecânica de seus resulta-dos.

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