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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA N.º 422/2019 – SFCONST/PGR Sistema Único n.º 235257/2019 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 396/GO REQUERENTE: Confederação Nacional do Transporte - CNT INTERESSADO: Supremo Tribunal Federal RELATOR: Ministro Edson Fachin ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PROCESSO PENAL. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. INTERESSE DA UNIÃO. PROCESSO E JULGAMENTO DE CRIMES RELACIONADOS AO DESVIO DE RECURSOS DAS ENTIDADES DO SISTEMA S. VERBAS PROVENIENTES DA ARRECADAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO INSTITUÍDA PELA UNIÃO. NATUREZA PÚBLICA DAS VERBAS. ENTIDADES SUBMETIDAS AO CONTROLE DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONFIGURAÇÃO DE HIPÓTESE DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. A competência penal da justiça federal justifica-se quando houver interesse direto, imediato e específico da União. Prece- dente. 2. As entidades integrantes do Sistema S são pessoas jurídicas de direito privado que atuam em cooperação com o Estado e são subvencionadas por recursos públicos decorrentes da arre- cadação de contribuição (CF, arts. 149 e 240). 3. Os serviços sociais autônomos estão sujeitos ao controle do Tribunal de Contas da União, por força do art. 70-parágrafo único da Constituição, do art. 183 do Decreto-lei 200/1967 e do art. 5.º-V da Lei 8.443/1992. 4. É interesse da União assegurar que as verbas públicas geri- das pelas entidades enquadradas como serviços sociais autôno- mos sejam empregadas regularmente, de forma a cumprir as finalidades institucionais que justificaram a sua criação. 5. Configurado interesse direto da União, compete à justiça fe- deral processar e julgar delitos relacionados ao desvio de re- cursos geridos por entidades integrantes do Sistema S. - Parecer pela procedência do pedido. Gabinete da Procuradora-Geral da República Brasília/DF Documento assinado via Token digitalmente por PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE, em 08/08/2019 17:12. Para verificar a assinatura acesse http://www.transparencia.mpf.mp.br/validacaodocumento. Chave B5E50B71.CEFE4D0A.70E67F4E.02A72559

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

N.º 422/2019 – SFCONST/PGRSistema Único n.º 235257/2019

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 396/GO REQUERENTE: Confederação Nacional do Transporte - CNTINTERESSADO: Supremo Tribunal FederalRELATOR: Ministro Edson Fachin

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITOFUNDAMENTAL. PROCESSO PENAL. ORIENTAÇÃOJURISPRUDENCIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL. INTERESSE DA UNIÃO. PROCESSO EJULGAMENTO DE CRIMES RELACIONADOS AODESVIO DE RECURSOS DAS ENTIDADES DO SISTEMAS. VERBAS PROVENIENTES DA ARRECADAÇÃO DECONTRIBUIÇÃO INSTITUÍDA PELA UNIÃO. NATUREZAPÚBLICA DAS VERBAS. ENTIDADES SUBMETIDAS AOCONTROLE DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO.CONFIGURAÇÃO DE HIPÓTESE DE COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA FEDERAL.

1. A competência penal da justiça federal justifica-se quandohouver interesse direto, imediato e específico da União. Prece-dente.

2. As entidades integrantes do Sistema S são pessoas jurídicasde direito privado que atuam em cooperação com o Estado esão subvencionadas por recursos públicos decorrentes da arre-cadação de contribuição (CF, arts. 149 e 240).

3. Os serviços sociais autônomos estão sujeitos ao controle doTribunal de Contas da União, por força do art. 70-parágrafoúnico da Constituição, do art. 183 do Decreto-lei 200/1967 e doart. 5.º-V da Lei 8.443/1992.

4. É interesse da União assegurar que as verbas públicas geri-das pelas entidades enquadradas como serviços sociais autôno-mos sejam empregadas regularmente, de forma a cumprir asfinalidades institucionais que justificaram a sua criação.

5. Configurado interesse direto da União, compete à justiça fe-deral processar e julgar delitos relacionados ao desvio de re-cursos geridos por entidades integrantes do Sistema S.

- Parecer pela procedência do pedido.

Gabinete da Procuradora-Geral da RepúblicaBrasília/DF

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

I

Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de

medida cautelar, proposta pela Confederação Nacional do Transporte – CNT, em face de ori-

entação jurisprudencial que confere à justiça comum estadual a competência para o julga -

mento de ações penais envolvendo recursos percebidos por entidades integrantes do

Sistema S.

A petição inicial indica como preceitos fundamentais desrespeitados o princípio

do juiz natural (CF, art. 5.º-XXXVII e LIII) e a competência da Justiça Federal para julgar in-

frações penais praticadas contra bens e interesses da União (CF, art. 109-IV). Assevera que a

petição inicial impugna orientação jurisprudencial que atribui à justiça comum estadual a

competência para o julgamento de ações penais envolvendo recursos das entidades do Sis-

tema S. Aponta como fundamentos de tal orientação a natureza privada da personalidade ju-

rídica dos serviços sociais autônomos e o enunciado 516 da súmula de jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal.1 Argumenta que a fixação da competência da justiça federal, no

caso de desvio de recursos, deve ser definida de acordo com a natureza da verba. Assim,

tanto a natureza tributária federal dos recursos das entidades do Sistema S quanto o interesse

público federal na consecução das atividades desempenhadas pelas sobreditas pessoas jurídi-

cas atraem a competência da justiça federal para processar e julgar delitos relacionados ao

desvio ou apropriação dessas verbas.

O Ministro Relator determinou a oitiva da Procuradoria-Geral da República

acerca da cognoscibilidade da ADPF (peça 10).

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo conhecimento da argui-

ção, por entender preenchidos os pressupostos processuais e requisitos legais (peça 11).

O Ministro Relator adotou o rito do art. 6.º da Lei 9.882/1999, solicitando infor-

mações à autoridade responsável pela prática do ato questionado e determinando vista su-

cessiva dos autos à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da República (peça

12).

A Presidência do Superior Tribunal de Justiça juntou cópias das decisões menci-

onadas na petição inicial (peça 15).

1 “O Serviço Social da Indústria (SESI) está sujeito à jurisdição da Justiça estadual.”

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 2

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

O Ministro Relator solicitou informações da Presidência do Tribunal de Justiça

do Estado do Paraná (peça 17), que se pronunciou pelo não conhecimento da ação e infor -

mou que a Apelação Criminal 647260-8, que tramitou naquele tribunal, fundamentou-se na

Súmula 516 do Supremo Tribunal Federal (peça 19).

A Advocacia-Geral da União manifestou-se pelo não conhecimento da ação e

pela improcedência do pedido. Ressaltou que as verbas administradas pelos serviços sociais

autônomos possuem natureza privada. Assim, ainda que o Tribunal de Contas da União

exerça o controle finalístico dessas entidades, não há atração da competência da justiça fe -

deral. Concluiu que “os delitos praticados contra o patrimônio das entidades do ‘Sistema

S’ submetem-se à competência da Justiça Estadual, porque os serviços sociais autônomos

prestam atividade de natureza privada e, embora sejam mantidas com recursos provenien -

tes de contribuições instituídas pelo Estado, tais valores perdem o caráter de recurso pú -

blico quando ingressam nas contas dessas entidades” (peça 21).

O Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – SESCOOP solicitou in-

gresso no feito como amicus curiae (peça 23).

É o relatório.

II

O art. 109-IV da Constituição, ao definir a competência da justiça federal em matéria

penal, atribuiu-lhe as “infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse

da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e

ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”. Assim, a competência crimi-

nal da justiça federal abrange não apenas os delitos que afetam bens e serviços da União, mas

também aqueles que atingem algum interesse desse ente político.

Consoante entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, o interesse da

União capaz de atrair a competência da justiça federal deve ser direto, imediato e específico (RE

502.915, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T, DJ de 27-4-2007). Na mesma linha, Vladimir Pas-

sos de Freitas explana que “[p]ara que a competência seja da Justiça Federal, será preciso que

fique demonstrado o efetivo interesse do ofendido e não apenas um interesse genérico”.2

2 FREITAS, Vladimir Passos de. Comentário ao art. 109. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; STRECK, Lenio L.;

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 3

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Cabe, portanto, verificar se o desvio de recursos disponibilizados pela União no âm-

bito do Sistema S é matéria de interesse direto, imediato e específico da União, para fins de defi-

nição de competência da justiça federal na seara penal. Em caso negativo, estará configurada a

competência residual da justiça estadual.

As entidades integrantes do Sistema S, também denominadas como serviços sociais

autônomos, atuam em cooperação com o poder público e realizam atividades sociais de utilidade

pública. Estão vinculadas à entidade sindical patronal pertinente. Assim, o Senai e o Sesi estão

submetidos à supervisão da Confederação Nacional da Indústria, o Senac e o Sesc são adminis-

trados pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o Sest e o Senat

pela Confederação Nacional do Transporte, o Senar pela Confederação Nacional da Indústria e o

Sescoop pela Organização das Cooperativas Brasileiras. Com efeito, embora desempenhem fun-

ções de interesse público e tenham sua criação autorizada por lei federal, possuem personalidade

jurídica de direito privado e não fazem parte da Administração Pública, direta ou indireta.

São pertinentes, sobre o tema, as palavras de José dos Santos Carvalho Filho:

As pessoas de cooperação governamental são pessoas jurídicas de direito privado,embora no exercício de atividades que produzem algum benefício para grupos so-ciais ou categorias profissionais.

Apesar de serem entidades que cooperam com o Poder Público, não integram oelenco das pessoas da Administração Indireta, razão por que seria impróprio con-siderá-las pessoas administrativas.3

A finalidade primordial do Sistema S é social, voltada para a formação da mão de

obra trabalhadora e para a prestação de serviços de amparo aos trabalhadores. Nessa linha, tais

entidades não prestam serviço público, mas exercem funções de interesse coletivo, em coopera-

ção ao Estado, por desempenharem um papel coadjuvante na prestação de serviços essenciais à

sociedade. Em outras palavras, por meio da autorização por lei da criação de entidades, o Estado

fomenta a iniciativa privada a realizar funções de interesse público.

O Ministro Teori Zavascki traçou o desenho institucional das entidades do Sistema S

nos seguintes termos:

As características gerais básicas desses entes autônomos podem ser assim enuncia-das: (a) dedicam-se a atividades privadas de interesse coletivo cuja execução não é

MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1463.

3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2014, p. 539.

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 4

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atribuída de maneira privativa ao Estado; (b) atuam em regime de mera colaboraçãocom o poder público; (c) possuem patrimônio e receita próprios, constituídos, majo-ritariamente, pelo produto das contribuições compulsórias que a própria lei de cria-ção institui em seu favor; e (d) possuem a prerrogativa de autogerir seus recursos,inclusive no que se refere à elaboração de seus orçamentos, ao estabelecimento deprioridades e à definição de seus quadros de cargos e salários, segundo orientaçãopolítica própria. (RE 789.874/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 19/11/2014)

O financiamento dos serviços prestados pelas entidades do Sistema S dá-se prioritari-

amente por meio da arrecadação compulsória das contribuições, previstas nos arts. 149 e 240 da

Constituição.4 Embora haja divergência acerca da natureza jurídica tributária (contribuição social

geral ou contribuição de intervenção no domínio econômico5), trata-se de tributo de competência

da União, o que significa dizer que cabe a esse ente político a produção legiferante sobre esse tri-

buto.6

As contribuições são instituídas pela lei federal de criação da organização e incidem

sobre a folha de salários das empresas pertencentes à categoria profissional respectiva. Assim, os

recursos são recolhidos no âmbito do setor produtivo ou categoria econômica beneficiada pela

atuação da entidade. Em regra, a Receita Federal do Brasil arrecada os referidos recursos, com

fundamento na Lei 11.445/2007. Contudo, admite-se igualmente a arrecadação direta das contri-

buições pelas entidades interessadas.

Conquanto a competência tributária pressuponha a capacidade ativa, é possível que a

lei instituidora do tributo atribua a pessoa diversa as funções de arrecadação e fiscalização do tri-

buto, podendo igualmente conferir-lhe o produto da arrecadação tributária. Nesse caso, ocorre o

fenômeno da parafiscalidade, conforme explica Paulo de Barros Carvalho:

Em algumas oportunidades, porém, verificamos que a lei instituidora do gravameindica sujeito ativo diferente daquele que detém a respectiva competência, o quenos conduz à conclusão de que uma é a pessoa competente, outra a pessoa cre-denciada a postular o cumprimento da prestação. Ora, sempre que isso se dê,apontando a lei um sujeito ativo diverso do portador da competência impositiva,estará o estudioso habilitado a reconhecer duas situações juridicamente distintas:

4 “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio eco-nômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas res-pectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, §6.º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.”“Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadoressobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vin-culadas ao sistema sindical.”

5 RE 849.126 AgR, rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/08/2015, DJe-1746 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 218.

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 5

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a) o sujeito ativo, que não é titular da competência, recebe atribuições de arreca-dar e fiscalizar o tributo, executando as normas legais correspondentes (CTN, art.7.º), com as garantias e privilégios processuais que competem à pessoa que legis-lou (CTN, art. 7.º, §1.º), mas não fica com o produto arrecadado, isto é, transfereos recursos ao ente político; ou b) o sujeito ativo indicado recebe as mesmas atri-buições do item a, acrescidas da disponibilidade sobre os valores arrecadados,para que os aplique no desempenho de suas atividades específicas. Nesta últimahipótese, temos consubstanciado o fenômeno jurídico da parafiscalidade.

Colocado esse preâmbulo, podemos definir parafiscalidade como o fenômeno ju-rídico que consiste na circunstância de a lei tributária nomear o sujeito ativo di-verso da pessoa que a expediu, atribuindo-lhe a disponibilidade dos recursosauferidos, para o implemento de seus objetivos peculiares.

Dois aspectos, por conseguinte, hão de ser atendidos para que venhamos a isolaro chamado tributo parafiscal: 1) sujeito ativo indicado expressamente na lei insti-tuidora da exação, diferente da pessoa política que exerceu a competência; e 2)atribuição, também expressa, do produto arrecadado, à pessoa apontada para figu-rar como sujeito ativo.7

Tratando-se de recurso proveniente de tributo federal, o produto decorrente da

arrecadação da contribuição possui natureza de recurso público federal, o que impõe a ob-

servância dos princípios da moralidade, eficiência, economicidade, impessoalidade e publicidade

e a submissão ao controle estatal. Nessa linha, por força do art. 183 do Decreto-lei 200/1967, do

art. 70 da Constituição e do art. 5.º-V da Lei 8.443/1992, as entidades do Sistema S estão subme-

tidas ao controle finalístico do Tribunal de Contas da União.8

A Corte de Contas tem a atribuição constitucional não apenas de fiscalizar, mas tam-

bém de exercer papel de aperfeiçoamento institucional do Sistema S. A título exemplificativo, no

autos do processo TC 027.202/2016-0, determinou-se que as entidades do Sistema S devem utili-

zar as normas contábeis aplicadas ao setor público. No Acórdão 7596/2016, estabeleceu-se que as

essas pessoas jurídicas sujeitam-se a regulamentos próprios de licitações e contratos, mas com

7 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 237.8 “Art. 183. As entidades e organizações em geral, dotadas de personalidade jurídica de direito privado, que

recebem contribuições parafiscais e prestam serviços de interêsse público ou social, estão sujeitas à fiscaliza-ção do Estado nos têrmos e condições estabelecidas na legislação pertinente a cada uma.” “Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entida-des da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das sub-venções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelosistema de controle interno de cada Poder.Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade,guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que,em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.”“Art. 5.° A jurisdição do Tribunal abrange: […] V - os responsáveis por entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado que recebam contri-buições parafiscais e prestem serviço de interesse público ou social; […]”

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observância dos princípios estabelecidos pelas leis 10.520/2002 e da Lei 8.666/1993. No TC-

011.750/2017-0, deliberou-se pela instauração de auditoria nas entidades componentes do Sis-

tema S quanto às gestões dos exercícios financeiros de 2015 e 2016, considerando que as nove

maiores entidades possuíram, para o exercício de 2017, orçamentos que somam mais de 32 bi-

lhões de reais. O referido processo resultou no “Relatório de Levantamento de Auditoria Revi-

sado após oitiva das entidades fiscalizadas”, por meio do qual se emitiu uma série de

recomendações aos serviços sociais autônomos, parametrizando as regras de direito público apli-

cáveis ao gasto desses recursos públicos que lhe são disponibilizados.

Segundo dados da Receita Federal divulgados pela mídia, apenas no ano de 2018, fo-

ram repassados, pelo sistema de arrecadação tributária a essas entidades, o montante de R$17,08

bilhões e, em 2017, foram repassados R$16,47 bilhões9. Ou seja, o Estado brasileiro deixa de

aplicar diretamente aproximadamente 20 bilhões anuais de arrecadação tributária em suas fun-

ções essenciais e transfere tais recursos à entidades privadas, para prestação de serviços relevan-

tes. Não há como se justificar a ausência de interesse federal, da União, no acompanhamento da

gestão e aplicação desses recursos.

Destaquei a relevância desse tema para o Estado brasileiro e sua afetação ao interesse

público federal, ou seja, da União Federal, em Ofício que encaminhei ao Exmº Ministro Relator,

no TCU, dos autos do Processo TC 040.887/2018-9:

“A atuação do Tribunal de Contas da União e também da Controladoria-Geral da

União, em suas esferas de atribuição, para levantamento dos dados e atividades

de controle, advém da natureza pública do recurso (tributo), não obstante tratar-se

os “serviços sociais autônomos” de entidades privadas, que atuam em

colaboração ao Estado nas atividades de interesse coletivo não privativa, possuem

autonomia patrimonial, gerencial e orçamentária dos recursos auferidos,

constituídos, basicamente, de contribuições compulsórias, conforme já

preconizado pelo STF no RE 789.874.

No entanto, não há como olvidar duas premissas essenciais e que se

fundamentam na Constituição Federal: a natureza tributária – e, portanto, pública

desse expressivo valor arrecadado – e a vinculação finalística da execução dessa

9 https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/06/30/apos-decreto-de-bolsonaro-sistema-s-tera-de-detalhar-suas-contas.ghtml.

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receita na prestação dos serviços de ensino, aperfeiçoamento profissional,

cultura, lazer, dentre outros, sem fins lucrativos.

(…)

A natureza privada das entidades beneficiárias desses recursos não constitui óbice à

aplicação das regras de controle orçamentário e financeiro, sob pena de a sociedade

não ter o devido esclarecimento e acompanhamento da gestão de recursos de

natureza essencialmente pública, arrecadados de forma compulsória pelos sujeitos

passivos dessa obrigação tributária.”

No que tange aos delitos relacionados ao desvio de verbas públicas, a jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal orienta-se pela natureza dos recursos para firmar a competência do

órgão jurisdicional. Assim, tratando-se de recurso federal submetido à fiscalização de órgão fede-

ral, entende-se que a controvérsia deve ser proposta perante a justiça federal. Confiram-se os se-

guintes julgados:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL.CRIMES DE CORRUPÇÃO DE TESTEMUNHA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. AR-TIGOS 343, PARÁGRAFO ÚNICO E 299 DO CÓDIGO PENAL. COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA COMUM DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. INEXISTÊNCIADE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLAGRANTE ILEGALIDADE.AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. A competência da justiça federal está adstrita ao processo e julgamento de delitos pra-ticados em detrimento ou envolvendo desvio de bens, serviços ou interesses diretamenteafetos à União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas, bem como apropriaçãode verba federal para serviços de atribuição exclusiva da União ou de verbas fiscalizadaspelo órgão federal, hipóteses que não se encontram presentes no caso ora analisado. […](HC 123.784 AgR/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 12/9/2018)

COMPETÊNCIA – MEDICAMENTOS – MATERIAIS HOSPITALARES – DESVIO –FUNDO NACIONAL DE SAÚDE – JUSTIÇA FEDERAL. Compete à Justiça Federalapreciar processo-crime versando o desvio de recursos oriundos do Sistema Único deSaúde, considerada a atribuição dos órgãos de controle federais fiscalizarem a respectivaaplicação. Precedente: recurso extraordinário nº 196.982/PR, relator o ministro Néri daSilveira, acórdão publicado no Diário da Justiça de 27 de junho de 1997. HONORÁ-RIOS ADVOCATÍCIOS. Descabe a fixação de honorários recursais, previstos no artigo85, § 11, do Código de Processo Civil de 2015, quando se tratar de extraordinário forma-lizado em processo cujo rito os exclua. (RE 986.386 AgR/PE, Rel. Min. Marco Aurélio,DJ 1/2/2018)

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 8

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No mesmo sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que editou in-

clusive enunciado de súmula para solucionar a controvérsia:

Súmula 208 - Compete a Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio deverba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.

No caso dos autos, as verbas públicas são federais e estão sujeitas ao controle do Tri-

bunal de Contas da União, o que se alinha à jurisprudência do STF e do STJ apresentada acima.

Além disso, é evidente o interesse da União na gestão dos recursos provenientes das

contribuições e atribuídos aos serviços sociais autônomos. Ora, conforme assinalado, a União

identifica áreas de fomento à mão de obra trabalhadora, edita lei autorizadora da criação da enti-

dade e institui contribuição para subvencioná-la. Em outras palavras, a União manifesta seu inte-

resse no desenvolvimento de funções voltadas à formação do trabalhador e os serviços sociais

autônomos, subvencionados pela União, executam tais atividades. Embora não prestem serviço

público, tais entidades desempenham atividades de interesse coletivo a que a União manifestou

especial atenção, de maneira que se apresenta o interesse público federal na correta gestão dos re-

cursos públicos submetidos aos serviços sociais autônomos.

O Plenário do TCU, no acórdão 1.904/2017, ressaltou a relevância da atuação dos

serviços sociais autônomos e os prejuízos causados pela malversação de recursos:

No que tange à relevância, as ações executadas pelas entidades do Sistema S têm grande

impacto social, principalmente porque afetam diretamente os trabalhadores vinculados a

cada Sistema, uma vez que ações em saúde, educação regular e profissional, lazer e des-

porto devem ser colocadas à disposição dos trabalhadores. Importante destacar, que

potenciais desvios ou má-aplicação de recursos impactam negativamente na atuação

finalística desses entes, representando elevado risco a execução orçamentária, finan-

ceira e operacional destes entes. (sem grifo no original)

É, portanto, interesse da União assegurar que as verbas públicas geridas pelas entida-

des enquadradas como serviços sociais autônomos sejam empregadas regularmente, de forma a

cumprir as finalidades institucionais que justificaram a sua criação.

Reforça o argumento da existência de interesse da União sobre a gestão dos recursos

repassados aos serviços sociais autônomos a recente edição do Decreto 9.781, de 3 de maio de

2019, que impôs a essas entidades o detalhamento de suas contas na internet, exigindo mais

Arguição de descumprimento de preceito fundamental 396/GO 9

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transparência e publicidade quanto às informações relacionadas aos recursos provenientes das

contribuições e a outras verbas públicas.10

Na linha da argumentação acima exposta, o Plenário do Supremo Tribunal Federal

já se manifestou no sentido de competir ao TCU a fiscalização da aplicação de recursos fede-

rais repassados pela União ao FUNDEB a título de complementação do valor mínimo por

aluno. Afirmou, inclusive, ser atribuição do Ministério Público Federal a apuração de irregu-

laridades na aplicação desses recursos e, por conseguinte, competir à Justiça Federal processar

e julgar ação que envolva desvio de tais verbas (Súmula 208 do STJ).11 No julgamento da

ACO 1.159/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, Red. para o acórdão Min. Luiz Fux, DJe de 7.3.2012,

ressaltou-se que o interesse de ordem moral da União justifica a fixação da competência da

justiça federal. Confira-se trecho da ementa:

CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. CARACTERIZAÇÃO. AUSÊN-CIA DE DECISÕES DO PODER JUDICIÁRIO. COMPETÊNCIA DO STF.ART. 102, I, F, CF. FUNDEF. COMPOSIÇÃO. ATRIBUIÇÃO EM RAZÃO DAMATÉRIA. ART. 109, I E IV, CF.

[…]

10 Art. 1.º O Decreto n.º 7.724, de 16 de maio de 2012, passa a vigorar com as seguintes alterações:“Art. 64 […] Parágrafo único. As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de ser-viço social autônomo, destinatárias de contribuições, são diretamente responsáveis por fornecer as informa-ções referentes à parcela dos recursos provenientes das contribuições e dos demais recursos públicosrecebidos.” (NR)“Art. 64-A. As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviçosocial autônomo, destinatárias de contribuições, divulgarão, independentemente de requerimento, as infor-mações de interesse coletivo ou geral por elas produzidas ou custodiadas, inclusive aquelas a que se referemos incisos I ao VIII do § 3º do art. 7º, em local de fácil visualização em sítios oficiais na internet.§ 1.º A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos pro-venientes das contribuições e dos demais recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo dasprestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.§ 2.º A divulgação das informações previstas no caput não exclui outras hipóteses de publicação e divulga-ção de informações previstas na legislação, inclusive na Lei de Diretrizes Orçamentárias.§ 3.º A divulgação de informações atenderá ao disposto no § 1.º do art. 7.º e no art. 8.º.” (NR)“Art. 64-B. As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviçosocial autônomo, destinatárias de contribuições, também deverão criar SIC, observado o disposto nos arts.9.º ao art. 24.Parágrafo único. A reclamação de que trata o art. 22 será encaminhada à autoridade máxima da entidade so -licitada.” (NR)“Art. 64-C. As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviçosocial autônomo, destinatárias de contribuições, estarão sujeitas às sanções e aos procedimentos de que tratao art. 66, hipótese em que a aplicação da sanção de declaração de inidoneidade é de competência exclusivada autoridade máxima do órgão ou da entidade da administração pública responsável por sua supervisão.

11 “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal”.

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4.A competência penal, uma vez presente o interesse da União, justifica a compe-tência da Justiça Federal (art. 109, IV, CF/88) não se restringindo ao aspecto eco-nômico, podendo justificá-la questões de ordem moral. In casu, assume peculiarrelevância o papel da União na manutenção e na fiscalização dos recursos doFUNDEF, por isso o seu interesse moral (político-social) em assegurar sua ade-quada destinação, o que atrai a competência da Justiça Federal, em caráter excep-cional, para julgar os crimes praticados em detrimento dessas verbas e aatribuição do Ministério Público Federal para investigar os fatos e propor açãopenal.

Em sentido semelhante, o Superior Tribunal de Justiça entende que a malversação de

recursos públicos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB),

na esfera municipal, está submetida à competência penal da justiça federal, ainda quando não es-

teja comprovado o repasse de verba federal, porquanto se evidencia interesse direto da União

na coordenação das ações relativas ao direito fundamental da educação (CC 164.113/PR,

Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJ 17/5/2019).

Não se desconhece o enunciado 516 da súmula do Supremo Tribunal Federal, que

possui o seguinte teor:

Súmula 516. O Serviço Social da Indústria (SESI) está sujeito à jurisdição da Justiça es-tadual.

Ocorre que os precedentes que embasam o enunciado são anteriores à Constitui -

ção, datam da década de 60 e versam, em sua maioria, sobre matérias cíveis, como a co-

brança judicial das contribuições e ação de despejo. Há apenas um precedente em matéria

criminal, que se refere a crime de apropriação indébita praticado por empregado do Serviço

Social da Indústria (CJ 2.843, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ 12/11/1964). Conforme

apontou a petição inicial, à época do julgado, sequer existia a justiça federal, que havia sido

extinta pela Constituição de 1937, e o SESI ainda não era submetido a controle de órgãos

federais, o que apenas foi consolidado a partir do Decreto-Lei 200-1967.

Deve prevalecer a orientação jurisprudencial que fixa, como regra, a competên-

cia da justiça federal para processar e julgar delitos relacionados ao desvio ou apropriação

de verbas em detrimento dos serviços sociais autônomos. Vejam-se, a propósito, os seguin -

tes julgados:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. PECULATO. DESVIO DE VERBAS DO SER-VIÇO SOCIAL DO TRANSPORTE - SEST/SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZA-GEM DO TRANSPORTE - SENAT. ENTIDADES CUJA APLICAÇÃO DOS

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RECURSOS ESTÁ SUJEITA À FISCALIZAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DAUNIÃO E CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. INTERESSE DA UNIÃO EVI-DENCIADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO PROVIDO.

- As investigações tiveram origem no Ministério Público Federal com atuação em Vargi-nha, visando investigar o suposto desvio de recursos transferidos pelo SEST/SENAT aoMunicípio de Três Pontas/MG, por meio do Convênio 01615/2004. Sob o fundamento deque não houve prejuízo ao SEST/SENAT, os autos foram encaminhados ao MinistérioPúblico Estadual. Com o prosseguir das investigações constatou-se que os valores ressar-cidos haviam sido pagos de forma transversa pela Confederação Nacional do Transporte.Sendo o SEST/SENAT uma entidade paraestatal mantida com repasses advindos da Con-federação Nacional do Transporte, constatou-se que houve uma simulação de ressarci-mento, uma vez que os recursos tinham origem e destino na mesma entidade, razão pelaqual o Promotor de Justiça declinou de suas atribuições. O acórdão recorrido, aplicandoo entendimento da Súmula n. 516/STF, fixou a competência da Justiça Estadual para pro-cessar e julgar o feito.

- É da Justiça Federal a competência para processar e julgar desvios de verbas públicas,transferidas por meio de convênio e sujeitas a fiscalização de órgão federal. Embora apersonalidade jurídica do SEST/SENAT seja de direito privado, a fiscalização da aplica-ção dos recursos recebidos é feita pelo Tribunal de Contas da União (art. 1º da Lei n.8.706/1993), sendo que as irregularidades e o desvio de recursos foram apontados pelaControladoria Geral da União, o que demonstra o interesse da União na causa.

Recurso provido para reconhecer competência da Justiça Federal, determinando a re-messa dos autos à Seção Judiciária de Varginha, em Minas Gerais. (STJ, 6.ª Turma, RHC60.802/MG, Rel. Min. Ericson Maranho, DJ 4/2/2016)

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL.CRIME DE PECULATO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA PRATICADO EM DETRI-MENTO DO SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL - SENAC.ENTIDADE PARAESTATAL SUJEITA AO CONTROLE DO TRIBUNAL DE CON-TAS DA UNIÃO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 208 DESTE SODALÍCIO. COMPE-TÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. O Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - SENAC, por ser entidade paraesta-tal com atuação em todo território nacional, está sujeita ao controle e fiscalização peloTribunal de Contas da União.

2. Aplicação do Verbete Sumular n.º 208 desta Corte, que enuncia ser competência daJustiça Federal a instrução e julgamento de ilícitos praticados por Prefeitos Municipaisem detrimento de verbas sujeitas prestação de contas perante órgão federal.

3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da 3ª Vara Federal Criminal daSubseção Judiciária de Porto Alegre/RS. (STJ, Terceira Seção, CC 66.354/RS, Rel. Min.-Maria Thereza de Assis Moura, DJ 26/3/2007)

Dessa forma, faz-se necessária a revisão da orientação jurisprudencial do Su-

premo Tribunal Federal para fixar a competência da Justiça Federal para processar e julgar

delitos relacionados ao desvio de recursos públicos no âmbito do Sistema S. Considerando

a oscilação da jurisprudência acerca da matéria, deve haver a modulação dos efeitos da de-

cisão, de maneira que esta apenas produza efeitos aos processos em curso que não possuam

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sentença de mérito proferida, até a publicação da ata de julgamento desta arguição de des -

cumprimento de preceito fundamental.

III

Pelas razões acima expostas, o parecer desta Procuradora-Geral da República

é pela procedência do pedido.

Brasília, 07 de agosto de 2019.

Raquel Elias Ferreira DodgeProcuradora-Geral da República

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