miltonmachado cabeça

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Exposição Milton Machado Para se entender melhor a exposição Cabeça, de Milton Machado, é preciso, primeiro, saber um pouco sobre o artista. Arquiteto de formação, Milton tem mestrado em planejamento urbano e regional e doutorado em artes visuais. Ele é também pintor, desenhista, escultor, crítico, fotógrafo e professor. Em sua obra, essa visão arquitetônica está muito presente e, na exposição, que reúne uma seleção de obras produzidas ao longo de quarenta e cinco anos de carreira, essa característica é marcante. Logo no pátio do prédio do Centro Cultural, o visitante se depara com uma obra que é produto de seu doutorado: o artista idealizou um mundo mais que perfeito, em que, fazendo uma alusão ao Pangea (momento em que todos os continentes eram unidos), nossos países voltariam a ser todos conectados por meio de imensas pontes. Existiriam nesse universo três mundos: o imperfeito (os territórios atuais), o mundo perfeito (composto pelas estruturas do mundo mais que perfeito), e por último o mundo mais que perfeito, que seria construído em cima do mundo imperfeito, todo unido por pontes. Porém, esse mundo mais que perfeito inevitavelmente caminharia para a imperfeição e, por isso, precisa ser destruído antes disso. Entra em cena o Módulo de Destruição, responsável por esse processo de destruição e reconstrução do mundo mais que perfeito. Esse Módulo é uma escultura cúbica de ferro, toda cheia de grades, que se encontra no pátio do prédio. Ao tomar conhecimento de toda essa construção teórica, já tive contato com uma reflexão importante do artista: a imperfeição é inevitável, e por mais que planejemos nossas cidades, sempre haverá falhas e erros. Além disso, a obrigatoriedade de destruição do mundo mais que perfeito o torna inabitável para os humanos, e, esse fato me fez fazer uma outra reflexão: a perfeição não é habitável, é uma utopia que não encontra espaço na vida humana. Além disso, essa conexão dos territórios, gerando uma Nova Pangea, é o processo de globalização atual levado ao seu extremo. Depreende-se nessa análise uma crítica a esse processo de união extremo, que caminha para a construção de um mundo inabitável para os humanos. O fato do Módulo de Destruição ter que efetivamente destruir uma cidade, para a partir dos escombros construir uma novamente perfeita faz com que reflitamos sobre o fato de que qualquer construção exige, também, a destruição de algo que já está lá estabelecido. Esse conhecimento é vital para a arquitetura, uma vez que o arquiteto será responsável por uma modificação radical do ambiente no qual a obra está inserida, e, por isso, ele é, além de um construtor, um destruidor. Essa noção de responsabilidade é o que falta em alguns, que destroem certos espaços, e erguem no lugar edificações que pioram o ambiente. Avançando na exposição, o visitante chega na sala onde estão imensas escadas criadas a partir de mapotecas. A maquete dessas escadas, Milton Machado fez questão de informar, foi feita com madeira de balsa. Uma reflexão possível que pode ser feita é que, tanto uma escada como uma balsa são utilizadas para ligar dois pontos, e, portanto, pode-se pensar que o artista está defendendo a reutilização de materiais que teoricamente seriam descartados, para atingir, de outras maneiras, o mesmo objetivo que tais materiais tinham quando ainda eram úteis. O fato das escadas serem feitas de mapotecas reforça a ideia de utilização de novos materiais para a construção de objetos e estruturas e, mais além, a criação de novos usos para os materiais. Além disso, essas mapotecas já estão sendo extintas com a digitalização dos mapas e projetos. Com certeza, a escolha desse objeto foi intencional, talvez para mostrar que objetos que hoje estão se tornando obsoletos podem ser utilizados de novas formas, nesse mundo globalizado que sempre coloca em circulação novas tecnologias que excluem as mais antigas. Para um arquiteto, é imprescindível a criatividade na hora da escolha dos materiais de um edifício, e essa mensagem passada por Milton reforça esse dever do arquiteto de pensar em materiais e na maneira que seu uso pode otimizar a vida humana nos ambientes projetados. Passando para as salas onde estão os quadros desenhados por Milton, o visitante se depara com uma irônica obra, que faz uma brincadeira com o personagem King Kong. Ao invés de um imenso gorila, a cidade do Rio é retratada invadida por um imenso coliforme fecal, que primeiramente é muito admirado pelos habitantes, mas depois se torna uma ameaça. Com esse quadro, Milton faz uma crítica contundente à poluição dos rios e à maneira como o esgoto é tratado nas cidades. Outros quadros, que mostram cidades caóticas, repletas de pontes e prédios,

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Page 1: MiltonMachado Cabeça

Exposição Milton Machado

Para se entender melhor a exposição “Cabeça”, de Milton Machado, é preciso, primeiro, saber um pouco sobre o artista. Arquiteto de formação, Milton tem mestrado em planejamento urbano e regional e doutorado em artes visuais. Ele é também pintor, desenhista, escultor, crítico, fotógrafo e professor. Em sua obra, essa visão arquitetônica está muito presente e, na exposição, que reúne uma seleção de obras produzidas ao longo de quarenta e cinco anos de carreira, essa característica é marcante. Logo no pátio do prédio do Centro Cultural, o visitante se depara com uma obra que é produto de seu doutorado: o artista idealizou um mundo “mais que perfeito”, em que, fazendo uma alusão ao Pangea (momento em que todos os continentes eram unidos), nossos países voltariam a ser todos conectados por meio de imensas pontes. Existiriam nesse universo três mundos: o imperfeito (os territórios atuais), o mundo perfeito (composto pelas estruturas do mundo mais que perfeito), e por último o mundo mais que perfeito, que seria construído em cima do mundo imperfeito, todo unido por pontes. Porém, esse mundo mais que perfeito inevitavelmente caminharia para a imperfeição e, por isso, precisa ser destruído antes disso. Entra em cena o Módulo de Destruição, responsável por esse processo de destruição e reconstrução do mundo mais que perfeito. Esse Módulo é uma escultura cúbica de ferro, toda cheia de grades, que se encontra no pátio do prédio. Ao tomar conhecimento de toda essa construção teórica, já tive contato com uma reflexão importante do artista: a imperfeição é inevitável, e por mais que planejemos nossas cidades, sempre haverá falhas e erros. Além disso, a obrigatoriedade de destruição do mundo mais que perfeito o torna inabitável para os humanos, e, esse fato me fez fazer uma outra reflexão: a perfeição não é habitável, é uma utopia que não encontra espaço na vida humana. Além disso, essa conexão dos territórios, gerando uma Nova Pangea, é o processo de globalização atual levado ao seu extremo. Depreende-se nessa análise uma crítica a esse processo de união extremo, que caminha para a construção de um mundo inabitável para os humanos. O fato do Módulo de Destruição ter que efetivamente destruir uma cidade, para a partir dos escombros construir uma novamente perfeita faz com que reflitamos sobre o fato de que qualquer construção exige, também, a destruição de algo que já está lá estabelecido. Esse conhecimento é vital para a arquitetura, uma vez que o arquiteto será responsável por uma modificação radical do ambiente no qual a obra está inserida, e, por isso, ele é, além de um construtor, um destruidor. Essa noção de responsabilidade é o que falta em alguns, que destroem certos espaços, e erguem no lugar edificações que pioram o ambiente. Avançando na exposição, o visitante chega na sala onde estão imensas escadas criadas a partir de mapotecas. A maquete dessas escadas, Milton Machado fez questão de informar, foi feita com madeira de balsa. Uma reflexão possível que pode ser feita é que, tanto uma escada como uma balsa são utilizadas para ligar dois pontos, e, portanto, pode-se pensar que o artista está defendendo a reutilização de materiais que teoricamente seriam descartados, para atingir, de outras maneiras, o mesmo objetivo que tais materiais tinham quando ainda eram úteis. O fato das escadas serem feitas de mapotecas reforça a ideia de utilização de novos materiais para a construção de objetos e estruturas e, mais além, a criação de novos usos para os materiais. Além disso, essas mapotecas já estão sendo extintas com a digitalização dos mapas e projetos. Com certeza, a escolha desse objeto foi intencional, talvez para mostrar que objetos que hoje estão se tornando obsoletos podem ser utilizados de novas formas, nesse mundo globalizado que sempre coloca em circulação novas tecnologias que excluem as mais antigas. Para um arquiteto, é imprescindível a criatividade na hora da escolha dos materiais de um edifício, e essa mensagem passada por Milton reforça esse dever do arquiteto de pensar em materiais e na maneira que seu uso pode otimizar a vida humana nos ambientes projetados. Passando para as salas onde estão os quadros desenhados por Milton, o visitante se depara com uma irônica obra, que faz uma brincadeira com o personagem King Kong. Ao invés de um imenso gorila, a cidade do Rio é retratada invadida por um imenso coliforme fecal, que primeiramente é muito admirado pelos habitantes, mas depois se torna uma ameaça. Com esse quadro, Milton faz uma crítica contundente à poluição dos rios e à maneira como o esgoto é tratado nas cidades. Outros quadros, que mostram cidades caóticas, repletas de pontes e prédios,

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constroem críticas a esse ambiente urbano desordenadamente ocupado. Outro quadro que chama a atenção é o que associa cores às notas musicais, e que o visitante, ao mesmo tempo que está de frente para um quadro muito colorido, ouve sons por meio de um fone de ouvido. Essa associação de cor e som é uma mistura de sentidos que se combinam e passam uma mensagem mais ampla. Em um edifício, o usuário também está imerso em um ambiente que desperta nele diversas sensações, e um arquiteto que sabe trabalhar com essa composição sensitiva amplia as possibilidades de utilização de seus projetos. Um outro quadro que mostra uma bolinha colorida destruindo toda uma cidade padronizada (e monótona), passa a ideia de que a criação espontânea rompe com essa monotonia e destrói padrões, colocando no lugar novos conceitos. O quadro “Come Closer” (Chegue mais perto) em que tal mensagem só pode ser vista quando observada de mais longe evoca a ideia de que um outro ponto de vista pode mudar radicalmente a visão da cena, e que uma nova maneira de olhar, que teoricamente pode ser pior, na realidade amplia o que de fato podemos ver, aumentando a percepção. Já a extensa obra “21 formas de amnésia”, que mostra diversas maneiras como o mesmo material foi disposto, constrói a ideia de multiplicidade de funções e de formas que um mesmo material pode criar. No geral, a obra de Milton Campos evoca diversas sensações, pensamentos e reflexões. O artista brinca com diversas texturas, formas e maneiras de se transmitir mensagens. Porém, com a exposição, pude aprender muito sobre como o papel do arquiteto é amplo e exigente. Temos que sempre buscar novos pontos de vista e novas maneiras de se construir, fugindo do comum, do padrão e da ordem pré-estabelecida. Só assim seremos capazes de criar obras que de fato sejam úteis para as pessoas e que realmente as motivem a viver uma vida melhor.

Natália Dários Mendes Barros