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Diagnóstico e localização subjetiva 231 Diagnóstico e localização subjetiva situação, não encontrada somente aqui, mas também em outros lugares, tem a ver com os desvios da psicanálise por parte dos herdeiros freudianos, da Internacional, que mecanizaram o ensino de Freud com a psicologia do eu, e, de maneira coerente com sua prática clínica, estabeleceram grupos e instituições psicanalíticas caracterizadas por uma hierarquia muito rígida. O desvio histórico da psicanálise devido, entre outras razões, ao deslocamento do centro do poder institucional da velha Europa para os Estados Unidos, produziu contra-efeitos muito fortes, como a "an- tipsiquiatria" , um movimento de psiquiatras e psicólogos nas institui- ções, intitulado por Lacan de" movimento de liberação dos psiquiatras" e não dos pacientes. Assim, surgiu ainda uma rejeição à psicanálise da Internacional, que refletiu na disciplina como um todo, na clínica e na prática analíticas. Lacan, tendo sido excluído, atraiu uma multidão que rejeitava tanto a prática clínica como a institucional da IPA. Ao longo dos anos, essas pessoas reuniram-se a seu redor. Em 1964, quando fundou a Escola Freudiana de Paris, éramos não mais do que cem. E isso porque Lacan havia incluído seus alunos como membros dentro do novo conceito de instituição, a Escola. Se não o tivesse feito, não sei quantos seriam, talvez vinte ou vinte e cinco. Quando entrei para a Escola Freudiana de Paris, conhecia Lacan apenas seis meses e fui incluído, ou seja, a seleção não era tão rígida. Lacan, excluído, tinha algo em comum com toda essa gente que rejeitava a clínica e a prática institucionais da IPA. Apesar de ter nascido no início do século, Lacan tinha uma sensibilidade muito moderna, quase pós-moderna. O crescimento extraordinário da Escola Freudiana de Paris ocorreu a partir de maio de 1966. Em contrapartida, houve sempre um mal-entendido: projetavam em Lacan uma posição que não era a sua. Durante toda a sua vida, uma vez por semana e, depois, quinzenalmente, ia ao Hospital Psiquiátrico Central de Paris para apresentar casos de pacientes no enquadre psiquiátrico clássico, ante a indignação dos" antipsiquiátricos" . Fiz, nos anos 60, uma conferência sobre o que foram para mim os ensinamentos da apresentação de casos de Lacan. Isso provocou es- cândalo na querida Maud Mannoni, de sensibilidade antipsiquiátrica. Lacan estava presente e disse que, apesar das queixas de Maud Man- noni, continuaria sua apresentação de casos, considerando exata aquela "fotografia de Jacques-Alain" . 1I Continuaremos o já iniciado no primeiro seminário, a estrutura das entrevistas preliminares. Serão bem-vindas perguntas, observações, notas e contribuições, reservar um tempo para conversar com a máxima liberdade. O tema passa-se no limiar da análise, no limite, na fronteira a partir da qual estamos no discurso analítico. Venho considerando a questão da entrada em análise do ponto de vista do analista já há algum tempo, e o retorno para responder ao interesse assinalado em diversos trabalhos brasileiros sobre a retificação subjetiva, termo usado por Lacan em " A direção do tratamento" . Também para começar a desenvolver as linhas de um tratado do método analítico. A análise não é apenas um método. Mas, considerada do ponto de vista do supervisor, há um aspecto de método em jogo. A tentativa é verificar a prática comum, na França, e formalizá-Ia com elementos familiares tomados de outro enfoque. II O DIAGNÓSTICO EM PSICANÁLISE I) A ênfase dada ao diagnóstico pode contrariar, até mesmo chocar, sensibilidades ideológicas. Temos, contudo, algo a aprender desse choque. Em nosso meio, quando se fala de diagnóstico pensa-se logo no psiquiátrico, caracterizado, quase sempre, por sua suposta objetivi- dade, e, por isso, pode parecer" mecanístico" . Nós, no campo analítico, estamos contrariamente do lado do sujeito. Há ou não um diagnóstico constituído não apenas na pura objetividade, mas ao nível do sujeito? É compreensível que o primeiro movimento de um "Iacaniano" possa ser o de rejeitar a idéia de diagnóstico. Tal II 230 - ,- --- - --

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  • Diagnstico e localizao subjetiva 231

    Diagnstico e localizao subjetiva situao, no encontrada somente aqui, mas tambm em outros lugares,tem a ver com os desvios da psicanlise por parte dos herdeirosfreudianos, da Internacional, que mecanizaram o ensino de Freud coma psicologia do eu, e, de maneira coerente com sua prtica clnica,estabeleceram grupos e instituies psicanalticas caracterizadas poruma hierarquia muito rgida.

    O desvio histrico da psicanlise devido, entre outras razes, aodeslocamento do centro do poder institucional da velha Europa paraos Estados Unidos, produziu contra-efeitos muito fortes, como a "an-tipsiquiatria" , um movimento de psiquiatras e psiclogos nas institui-es, intitulado por Lacan de" movimento de liberao dos psiquiatras"e no dos pacientes. Assim, surgiu ainda uma rejeio psicanlise daInternacional, que refletiu na disciplina como um todo, na clnica e naprtica analticas.

    Lacan, tendo sido excludo, atraiu uma multido que rejeitava tantoa prtica clnica como a institucional da IPA. Ao longo dos anos, essaspessoas reuniram-se a seu redor.

    Em 1964, quando fundou a Escola Freudiana de Paris, ramos nomais do que cem. E isso porque Lacan havia includo seus alunos comomembros dentro do novo conceito de instituio, a Escola. Se no otivesse feito, no sei quantos seriam, talvez vinte ou vinte e cinco.Quando entrei para a Escola Freudiana de Paris, conhecia Lacan hapenas seis meses e fui includo, ou seja, a seleo no era to rgida.

    Lacan, excludo, tinha algo em comum com toda essa gente querejeitava a clnica e a prtica institucionais da IPA. Apesar de ter nascidono incio do sculo, Lacan tinha uma sensibilidade muito moderna,quase ps-moderna. O crescimento extraordinrio da Escola Freudianade Paris ocorreu a partir de maio de 1966.

    Em contrapartida, houve sempre um mal-entendido: projetavam emLacan uma posio que no era a sua. Durante toda a sua vida, umavez por semana e, depois, quinzenalmente, ia ao Hospital PsiquitricoCentral de Paris para apresentar casos de pacientes no enquadrepsiquitrico clssico, ante a indignao dos" antipsiquitricos" .

    Fiz, nos anos 60, uma conferncia sobre o que foram para mim osensinamentos da apresentao de casos de Lacan. Isso provocou es-cndalo na querida Maud Mannoni, de sensibilidade antipsiquitrica.Lacan estava presente e disse que, apesar das queixas de Maud Man-noni, continuaria sua apresentao de casos, considerando exata aquela"fotografia de Jacques-Alain" .

    1I

    Continuaremos o j iniciado no primeiro seminrio, a estrutura dasentrevistas preliminares. Sero bem-vindas perguntas, observaes,notas e contribuies, reservar um tempo para conversar com a mximaliberdade.

    O tema passa-se no limiar da anlise, no limite, na fronteira a partirda qual estamos no discurso analtico. Venho considerando a questoda entrada em anlise do ponto de vista do analista j h algum tempo,e o retorno para responder ao interesse assinalado em diversos trabalhosbrasileiros sobre a retificao subjetiva, termo usado por Lacan em " Adireo do tratamento" . Tambm para comear a desenvolver as linhasde um tratado do mtodo analtico.

    A anlise no apenas um mtodo. Mas, considerada do ponto devista do supervisor, h um aspecto de mtodo em jogo. A tentativa verificar a prtica comum, na Frana, e formaliz-Ia com elementosfamiliares tomados de outro enfoque. II

    O DIAGNSTICO EM PSICANLISEI)

    A nfase dada ao diagnstico pode contrariar, at mesmo chocar,sensibilidades ideolgicas. Temos, contudo, algo a aprender dessechoque. Em nosso meio, quando se fala de diagnstico pensa-se logono psiquitrico, caracterizado, quase sempre, por sua suposta objetivi-dade, e, por isso, pode parecer" mecanstico" .

    Ns, no campo analtico, estamos contrariamente do lado do sujeito.H ou no um diagnstico constitudo no apenas na pura objetividade,mas ao nvel do sujeito? compreensvel que o primeiro movimentode um "Iacaniano" possa ser o de rejeitar a idia de diagnstico. Tal

    II

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  • 232 Lacan elucidado

    III

    Diagnstico e localizao subjetiva

    Ou seja, o mal-entendido, s vezes, era pblico. Motivo por quecomecei minha fala ressaltando a avaliao clnica, visto no estarseguro de que o mal-entendido j tenha desaparecido. Sublinhar aimportncia da avaliao clnica no voltar psiquiatria, assim como,para ser lacaniano, no suficiente rejeitar a IPA, ou ser rejeitado porela; nem ter como palavra de ordem a norma da anarquia: "No tenhomestre, no tenho Deus"; nem, ainda, cultivar a ignorncia pura.

    Para ser lacaniano, preciso estudar o saber clnico e utiliz-Io naexperincia. verdade que temos um certo mal-estar com o saberclnico, em geral de origem psiquitrica, cuja constituio se deu nosanos 30. No h mais elaborao clnica na psiquiatria. Lacan diziaque s a histeria um tipo clnico fundado no discurso analtico; osdemais vm da psiquiatria, e preciso haver um esforo de formalizaode nossa parte. por essa razo que nos Encontros Internacionais, jh alguns anos, retomamos, sistematicamente, as categorias clnicasno apenas para import-Ias para o discurso analtico, mas tambmpara formaliz-Ias.

    Aludir " ignorncia pura" provocou risos. A ignorncia tem funooperativa na experincia analtica e no podemos desfavorec-la. Tra-ta-se, porm, da ignorncia dou ta, de algum que sabe das coisas, masque, voluntariamente, apaga at certo ponto seu saber para dar lugarao novo que ocorrer. Eis uma diferena muito importante para distin-guir a posio do analista antes e depois do limiar da anlise, antes edepois da fronteira do discurso analtico. A funo operativa da igno-rncia a mesma da transferncia, a mesma da constituio do sujei-to-suposto-saber.

    A partir de tal posio, o analista pode fazer entender que no sabecom antecedncia o que o paciente quer dizer e at supe que ele queiradizer outra coisa, pois a suposio do saber no se vincula ao saberconstitudo - mas o vnculo com a suposta ignorncia.

    Distinguimos trs nveis: o da avaliao clnica, o da localizaosubjetiva e o da introduo ao inconsciente, vinculando os dois pri-meiros subjetivao e os dois ltimos retificao.

    avaliao clnicasubjetivao

    localizao subjetivaretificao

    introduo ao inconsciente :

    233

    DA AVALIAO CLNICA LOCALIZAO SUBJETIVA-SUBJETIVAO

    1/

    O vetor do ato analtico, o "sim" ou "no" do analista, que avalizaou rejeita a demanda de ser paciente, o vetor de responsabilidade -o analista o jurado, e o paciente o candidato - suporta tudo isso.

    certo que a avaliao clnica, na experincia analtica, no estconstituda objetivamente. Em se falando de diagnstico, a perspectiva a seguinte: o sujeito uma referncia que no ilude; isso j foi faladoquando trabalhamos a perverso. Podemos diagnosticar, facilmente, aconduta perversa ou a homossexualidade masculina do mesmo modoque o prprio paciente, seu mdico, seus amigos ou sua famlia, nosendo necessrio ser um analista para tal. Trata-se, porm, de umahomossexualidade de fato, da maneira de gozar, e devemos respeit-Ia.

    O elemento novo, que a experincia analtica deve introduzir, aposio que o paciente assume diante da prpria homossexualidade,nada tendo a ver com conduta. A conduta efetivada, quando algumdiz: "Fao isso e confirmo, fao e repito", ou: " o que eu fao, massou contra isso" . Embora a conduta seja a mesma, para o primeiro essegozo resolve as questes do desejo, para o outro, intensifica.

    Vou tentar explicitar a diferena. A homossexualidade pode ser" defato" e "de direito", confirmada ou no. H um vnculo entre o direitoe a homossexualidade masculina, a qual, na Grcia antiga, tinha umestatuto privilegiado entre os mestres, os que detinham o direito. Havia,a uma homossexualidade vinculada ao direito por ser profundamentevinculada ao falo. A questo do direito est muito prxima da flica.

    Na anlise, a questo do direito muito mais importante do que ados fatos. De maneira geral, as pessoas que demandam a anlise sesentem malfeitas'. Isso verdade, por ser prprio da condio humana.Os neurticos se acham fundamentalmente malfeitos, e, como Lacandestaca, apresentam eminente dignidade em sua condio humana,sofrem por se acharem malfeitos. A frase de Lacan, "no h relaosexual", significa que isso falta, a est por que somos malfeitos.

    A questo fundamental do sujeito em anlise : "tenho direito aqu?". Assim o neurtico pode recusar-se a abandonar o que o impedede gozar, pois, inconscientemente, ele no se sente com esse direito,o qual sempre uma fico simblica, embora operativa no mundo,

    H um jogo de palavras entre hechos, fatos, e mal hechos, malfeito. (N.T.)

  • 234 Lacan elucidado

    porquanto o estrutura. Quando uma pessoa tem direito e outra no, estedireito uma fico, ainda que com resultados efetivos. Nas sociedadesestruturadas como mestre-escravo, o direito uma fico, mas umafico operativa, que estrutura o mundo. Assim, a castrao simblica um problema de direito. Na histria da humanidade, h uma questo,ainda no inteiramente resolvida, a qual Freud chamou Penisneid: "aque uma mulher tem direito?" .

    Esta pergunta retomada pelos homens, no intuito de diminuir osdireitos do lado feminino e aument-los com privilgios do ladomasculino na experincia analtica, porm, a mulher quem retomaessa questo ainda no resolvida. O Penisneid e a castrao fazemsentir a diferena entre fato e direito, por causa do fator biolgico dareproduo sexual, que requer a existncia dos dois sexos.

    No se trata de fato, mas de smbolo, ou seja, de direito. Assimcomo h, em torno do falo, a radincia do privilgio, h, tambm, aquesto da ausncia de direito, do lado feminino. Mas Lacan dizia queesse privilgio , sobretudo, um peso. No t-lo parece conferir scoisas da vida, e ao prprio desejo, uma perspectiva mais adequada.As mulheres podem emborazarse", mas o homem j est embarazadopor seu privilgio.

    Vamos retomar o conceito de sujeito, a fim de impedir que fiqueentre ns, a palavra velha e comum, pois a considerao metdica dosujeito o que h de novo em Lacan. Ele dizia que, realmente, comeouseu ensino em 1953, com o artigo" Funo e campo da palavra e dalinguagem em psicanlise", visto que reconsiderou esse texto parareedit-lo em seus crits e confirmou-o atravs de uma pequenaintroduo sob o ttulo" Do sujeito, enfim, em questo". Com isso,marcou o comeo de seu ensino, no com a lingstica, nem com oestruturalismo, mas com a considerao do sujeito.

    Est a o sentido do sujeito na clnica, um sujeito que se estabelecequanto ao direito e no quanto ao fato, por isso "observar" o sujeito,busc-lo na objetividade, no querer encontr-lo. H estudos paraestabelecer percentuais estatsticos na Alemanha, nos Estados Unidos,uma tentativa de quantificar a experincia analtica com questionriosendereados aos analistas, em que se pergunta, "Quantos tratamentoscom xito, quantos sem sucesso, quantos mal sucedidos, e assim pordiante". A dificuldade, porm, que as opinies diferem: um trata-

    * Embarazar, em espanhol, significa "engravidar". (N.T.)

    II

    ~I

    Diagnstico e localizao subjetiva 235

    mento bem-sucedido para um analista, no necessariamente o paraoutro. Alm disso, deve-se verificar a opinio do paciente, que bastante mutvel durante o perodo e depois da experincia analtica.Dessa maneira, justamente o sujeito que impede a experinciaanaltica de ser quantificada. Dizer que o sujeito na clnica no sujeitode fato, mas de direito, equivale a afirmar que no se pode separar aclnica analtica da tica da psicanlise, que constitui, na experincia,o sujeito. Este foi o tema escolhido para o II Encontro Brasileiro doCampo Freudiano, em abril de 1989: "A tica da psicanlise, suasincidncias clnicas" . A primeira incidncia clnica da tica da psica-nlise o prprio sujeito.

    LOCALIZAO SUBJETIVA

    Como vemos, o nvel descritivo no de muita valia na experinciaanaltica. Houve um tempo em que Freud tratava de verificar os fatosrelatados pelo paciente, mas depois eliminou essa prtica, pois no setrata de verificar fatos para certificar-se deles. H analistas que pensamser de suma importncia observar o paciente: como se movimenta,como se veste, como se deita no div, o que faz com o corpo durantea sesso, como entra, como sai. O eminente analista Wilhelm Reich,quando ainda era freudiano, em seu tratado do mtodo analtico,ressaltou a importncia da observao da conduta de maneira um tantoquanto zoolgica. O analista no deve ser cego. bom ter uma idiase o paciente mulher ou homem, mesmo que no seja fcil diferenciar;deve levar em considerao a mudana no modo de vestir, na medidaem que esta possa corresponder troca da posio subjetiva e/ouresponder a uma interpretao. O essencial, contudo, o que o pacientediz. Esta frase "O essencial o que o paciente diz" significa precisar-mos nos separar da dimenso do fato, para entrarmos na dimenso dodito, que no est muito longe da do direito.

    No mtodo lacaniano, porm, no basta passar da dimenso do fatopara a do dito. Apresentar como anlise o mecanismo dos ditos falso,pois este no vale mais do que o mecanismo da psicologia do eu. EmLacan existem coisas que, se retomadas de outra maneira, poderiamse voltar a um mecanismo. Por exemplo, a diferena entre metfora emetonmia que ele estabeleceu tomando por base a lingustica. Essebinarismo fantstico e cmodo que nos permite perguntar a cada frasese uma ou outra pode constituir um mecanismo pseudolacaniano.Alguns alunos de Lacan separaram-se dele pensando que, j tendo

  • 236 Lacan elucidado

    entendido tudo com respeito metfora e metonmia, poderiamvalorizar-se, entrando na IPA.

    Por essa razo, hoje encontramos em Nova York analistas da IPAque dizem: "Tambm lidamos com metfora e metonmia. Comomecanismo compatvel com tudo o que se pensa. Foi Lacan queminventou isso?"

    Desta maneira, ir dos fatos aos ditos no suficiente, um segundopasso ~cial questionar a posio tomada por quem fala quantoaos prprios ditos; e a partir dos ditos localizar o dizer do sujeito,retomar a enunciao - categoria buscada em Jakobson por Lacan-lugar em que est o enunciante frente ao enunciado.

    H a muitas questes. O paciente diz algo, quer seja metfora oumetonmia, este algo , para ele, verdade ou mentira? No mesmo dito,h uma distncia entre ele e o dizer. Algum fala algo em que noacredita, completamente. A questo est entre o dito e o dizer. Emlgica matemtica podemos colocar numa proposio a letra V, para"verdadeiro" , ou F, para" falso" .

    I I V = verdadeiro ApofnticoF = falso

    A proposio a mesma, com um valor ou outro, indicando a posiocom respeito ao dito. Esse tipo de marca, verdadeiro ou falso, classicamente chamada de nvel apofntico, embora haja sentidos maisprofundos.

    A MODALlZAO DO DITO

    H outra maneira de marcar o valor do dito, que permite ver melhora posio subjetiva. No exemplo: "Venho amanh" pode estar indicado,por um adendo, muitos valores diferentes. Assim pode-se dizer, "Venhoamanh mentira"; ou "venho amanh, tal vez" ; ou "venho amanh,com certeza"; ou "venho amanh, se no for para outro lugar"; ou"venho amanh, acho que sim"; ou "venho amanh, acho que no";ou "venho amanh, dependendo do que voc me disser". Estas dife-rentes maneiras recebem, classicamente, o nome de modalizao, poismodulam o dito, indicam a posio que o sujeito assume perante ele,'contrariando a lgica matemtica clssica, que lida somente com dois

    ~I

    Diagnstico e localizao subjetiva 237

    valores, podendo eventualmente acrescentar um terceiro ou um quarto.Na lngua, porm, a modalizao quase infinita, muito sutil. E tambmo tom da voz pode modalizar.

    So questes que o analista constantemente deve se colocar, e quetm como referncia o prprio sujeito. Algum pode dizer algumacoisa, sem acreditar no que disse, e, por que no diz-Io? Esta a regra.s vezes, na anlise, o sujeito diz algo para verificar se o analistaacredita nele e" em caso afirmativo, ele prprio passa a acreditar, ouacha que acabou de se certificar de que o analista um tonto.

    Nem sempre um convite para que o analista seja inteligente, podeser que o sujeito necessite de que o outro seja um tonto, pois com issoganha segurana. Assim, no temos de parecer demasiado inteligentes,um certo ar de estupidez, pode, por vezes, fazer maravilhas. Estoufalando em tom de brincadeira, mas o problema srio: o pacientepensar que o outro percebe tudo e o v com transparncia. Para permitirque o prprio desejo se desenvolva, necessrio um lugar obscuro, edeixar-se pensar que h algo que o outro no pode perceber. Temosde permitir ao sujeito algumas trapaas, e no ir buscar, imediatamente,o sujeito no fundo, dizendo logo que no verdade, que h umacontradio. Ao contrrio, preciso permitir, sobretudo nas entrevistaspreliminares, que ele minta, para perceber alguma antinomia na lgicaprpria de seus ditos. E isso, de fato, j comea a introduzir o sujeitono inconsciente atravs da localizao subjetiva.

    A verdade tambm uma modalizao. No sentido clssico, o ditopode ser matematizado em dois nveis, o verdadeiro e o falso. H poucotempo, surgiram algumas tentativas de matematizar a lgica modal, oque a faz perder todos os seus matizes, todas as suas nuanas.

    simples dizer a verdade, quando se confunde verdadeiro comexato; no so a mesma coisa. Exata a verdade que se conhece. Mas,em anlise com a regra de tudo dizer, a verdade mais aguda que aparece a que no podemos conhecer. O primeiro resultado que a verdadeno pode ser dita desde que no a conhecemos; entretanto, a nicacoisa que se pode fazer diz-Ia. H sujeitos para os quais o esforoem dizer a verdade leva impossibilidade de diz-Ia, o que constituigrande sofrimento: so os histricos. A psiquiatria trata os histricosa partir de conceitos como o teatro, a mitomania, o que um escndalo. mais acertado cuidar-se de sujeitos que sofrem em seu prprio serdo impossvel da autenticidade - segundo Freud "proton pseudos",mentira original (da histeria) - como algo que indique a possibilidadesubjetiva.

  • 238 Lacan elucidado Diagnstico e localizao subjetiva

    A CAIXA VAZIA DO SUJEITO

    Vou tentar formalizar isso de maneira muito simples, para introduziressa considerao no prprio mtodo analtico. Trata-se de distinguirentre o dito e a p~o frente a ele, 9..ue o prprio sujeito. necessriosempre inscrever algo, em segundo lugar, como um ndice subjetivodo dito. H para isso o smbolo de uma caixa vazia, onde podemosescrever as variaes da posio subjetiva.

    I I D

    239

    Um neurtico obsessi vo, por exemplo, no pode desejar uma mulher,se ela no tiver um defeito. No primeiro momento, tenta valoriz-Ia,mas a condio para implementar seu desejo est focalizada, numpequeno defeito, no visvel primeira vista na neurose obsessiva,depreciar o objeto de amor condio prpria do desejo. Isso faz partedo desejo neurtico. s vezes, vemos casais, talvez os mais slidos,fundados sobre o fato de ser depreciada a esposa pelo homem, porqueencarna a marca negativa de seu desejo. Essa mulher criticada diaria-mente, na experincia analtica, revela-se objeto de amor intenso.

    Desse modo, como princpio do mtodo, imperativo para o analistadistinguir sempre entre o enunciado e a enunciao, e paralelamenteentre o dito e o dizer. Uma coisa o dito como fato, e outra o queo sujeito faz do que disse. s vezes, h uma relao de instrumentoentre o sujeito e suas palavras, bem evidente quando algum se servede palavras para enganar o outro. O que muda, na perspectiva analtica, que o sujeito se utiliza da palavra para enganar-se a si mesmo.

    Um dito nada garante. Muitas vezes, um sujeito diz algo, repetindoo que outros disseram; refiro-me ao uso cotidiano da palavra. togrande o tempo que passamos falando! Agora minhas palavras estosendo gravadas, mas no nos intervalos, e estes tambm fazem partede meu discurso. Assim seria mais interessante estudar o que digo nosintervalos, no apenas para minha informao. No h uma s frase,um s discurso, uma nica conversa, que no traga a marca da posiodo sujeito quanto ao que ele diz. Uma frase proferida e logo depoisvem a posio do falante com respeito a ela. Por exemplo, se algumpergunta, "Voc acredita nisso?" "acredito sim"; ou "estou certodisso"; ou "fulano me disse". Todos esses fenmenos se inscrevemna estrutura da posio subjetiva com respeito ao dito. Na lngua, isto,est presente, e objeto de certas disciplinas lingsticas, como foiobservado por Lacan, num texto muito preciso, com fundamentalimportncia clnica.

    O que o outro diz produz efeitos se tomado ao p da letra. Se algumdiz "Eu no te quero mais", e o outro responde "Voc quem o diz",o primeiro pode recuar, "Eu disse no te quero mais, quando voc ... ".Assim, o simples fato de dizer "Voc quem o diz" introduz apossibilidade "Eu disse isso, mas no o que eu quereria ter dito".Dizendo" no te quero mais" , eu queria dizer" que te adoro" .

    Estes fenmenos entre enunciado e enunciao so decisivos paraa interpretao analtica. o mesmo exemplo da Verneinung, "no minha me", a que Freud responde: " a prova de que ". O prprio

    O exemplo freudiano a Verneinung, anlise da estrutura do ditoem relao ao dizer. O paciente diz, a propsito da personagem de seusonho, "no minha me" e Freud diz, com segurana, que o fato dedizer" no minha me" confirma ser a prpria me. difcil entenderesse exemplo em termos de objetividade: a psicanlise no tem sentidoao nvel da objetividade pura. Se o sujeito diz" minha me" ,o analistaaceita, "sim, sua me"; se o sujeito nega, "no minha me", oanalista desdiz" sim, sua me" . Assim, o analista sempre tem razo:quando diz" sim" ou quando diz" no" .

    No exemplo acima, Freud distingue o dito do modalizar da negao,a denegao. H primeiro um " minha me", seguido da posio queo sujeito neurtico assume com respeito ao prprio dito, pondo-lhe amarca da negao. O fato que h um personagem no sonho que osujeito no sabe quem . Para diz-lo, no entanto, seleciona dentretodos os seres humanos sua me e fala: "no ela". Dessa forma, osignificante "me" est presente no dito e, como tal, distinto dondice negativo que modifica a relao do sujeito com ele. Como disseFreud, a negao um ndice do inconsciente, um "made in Germany"ou um "Indstria Brasileira" , a marca da fbrica. Lacan o chama decolofo, no Seminrio 11, de ndice subjetivo" a marca negativa. Nessepequeno exemplo, podemos ver a atividade fundamental da neurose,a relao do neurtico com o desejo: no pode aceit-lo sem marca denegao.

    I I B

  • 240 Lacan elucidado

    fato de dizer "no" a prova do "sim", conquanto isso no tenhasentido no registro da objetividade. Por exemplo, quando um episte-mlogo como Karl Popper toma a psicanlise e diz, "os analistas notm provas cientficas, 'sim' ou 'no', a verdade est sempre comeles" . Popper est certo, pois, no registro da objetividade, isto no temsentido, se no for a introduzida a funo do sujeito. Ao introduzir afuno do sujeito para dar conta do que falamos agora, a interpretaoilaltica mnima : " ISSO" ou, como CelntiTIom formula: "Vo

  • 242 Lacan elucidadoDiagnstico e localizao subjetiva 243

    No raro encontrar um obsessivo com o sintoma evidente emisterioso de no poder assinar seu nome, seja num cheque ou numaficha de hotel. Encontrei um que no podia assinar em presena deoutros. A assinatura ou a repetio so atos simblicos. No a mesmacoisa dizer" No gosto mais de voc" e, diante da resposta do outro,ajuntar" Digo e repito", ou "Digo, mas nego". O que Freud chamade Vemeinung justamente dizer e negar, dizer e repetir, ou dizer econfirmar.

    Isso nos leva, imediatamente, questo de saber at que ponto osujeito fala em seu prprio nome, pois no comum uma pessoa vir anlise falando em seu prprio nome. Pode falar em nome do casal,em nome de sua famlia, atribuindo a outros o dito de que seus sintomasno so mais suportveis. Um paciente veio com a esposa a meuconsultrio para solicitar uma anlise. Somente a mulher falava, en-quanto ele permanecia mudo. Tratava-se de um histrico masculinoque precisara, de fato, se fazer representar por uma mulher, em suademanda, que, estranho em seu explicitar-se, conduziu, posteriormente,a esposa a tambm solicitar uma anlise. A me pode conduzir seufilho anlise e requerer para ele um contato com o analista, e, depoisde alguns momentos, revelar que a demanda realmente sua e a crianaali est como substituto porque o sujeito no pode assumi-Ia.

    ATRIBUIO SUBJETIVA

    !

    IIL

    Um analista jamais sabe o que o outro lhe demanda; um pedido deanlise pode vir atravs do pedido de superviso, ou, ainda, pelaproposta para uma conferncia. Fatos bastante conhecidos. Se, entre-tanto, pautar sua vida por a, no poder fazer muita coisa.

    Vou formular isso nos termos precisos de Lacan, a partir de umpargrafo essencial do texto sobre as psicoses, ainda no bem traba-lhado, em "Uma questo preliminar": "Para cada cadeia significantequestiona-se a atribuio subjetiva." @.a-se de gue ~~a s2cadeia significante para a qual no se pergunte do sujeito, de quem--=- o _ - - ~fala, e de que posio fala. Sempre uma atribuio ao sujeito do dito.Venho discutindo emmetlSeminrio deste ano, com pessoas as maisbem informadas da obra de Lacan, e tendo sentido que aquilo que elaaposta difcil de explicitar. Lacan diz: " A estrutura prpria da cadeiasignificante determinante na atribuio subjetiva, que, em geral,

    distributiva, ou seja, com vrias vozes.'" Esta frase um axioma, queno vale somente para as psicoses, mas para toda cadeia significante,e para cada qual colocar a questo em termos de citaes.

    Em geral, no h unidade da cadeia significante, do ponto de vistada enunciao. Uma palavra a repetio do discurso do outro. avoz do pai que fala quando o sujeito diz, "Eu no sou nada". Por a,seria uma outra voz que implicaria anlise.

    A cadeia significante polifnica, falamos a vrias vozes, modifi-cando continuamente a posio do sujeito. Muitas vezes estamos srios,pouco depois, brincando, ameaando: eis o teatro, um fato humanofundamental, porque, nele, as diferentes vozes so encarnadas.

    Este um ponto chave tanto para a doutrina das neuroses, comopara as psicoses. Est a tambm, como mtodo analtico, a importnciada pontuao, a qual, para ser justa, depende da maneira como o analistafixa a ~o subjetiva. No h palavra mais especial do que a doanalista para fixar a posio subjetiva. Pode-se, nesse ponto, reconheceruma palavra de verdade.

    O sujeito histrico tem direito a ter alucinaes, mas de modo algumso da mesma natureza que as psicticas. A posio subjetiva de umhistrico frente s alucinaes muito diferente da de um psictico,para quem, mesmo no lhe conhecendo todos os detalhes, a alucinao um ponto de certeza. Tudo ao seu redor pode ser confuso, menos oalucinar, no tem dvida de que ouve uma voz em sua cabea.

    O sujeito histrico pode esforar-se para no duvidar, mas se ofizermos falar, poderemos escutar que no h para ele sequer um pontode certeza. importante que o analista desde o primeiro momento, aotratar de um sujeito histrico, no alimente o discurso sobre as aluci-naes. Certa moa histrica, atravessando os Jardins de Luxemburgopara vir a meu consultrio, queixou-se de que lhe parecia que todosao seu redor falavam em sua cabea e de que houve transmisso depensamento com uma determinada pessoa no jardim. Depois de algunsminutos desse relato, em que queria se passar por louca, foi necessriocortar-lhe a fala, dizendo: "y~ g~apresentar c~mo louca." Euontuava, justamente, a posio subjetiva quanto ao dito, indicando-lhe-- --------que no pensasse que tudo o que dizia era levado a srio.

    Cf. J. Lacan, in crits, Seuil, Paris, 1966, p.533. Na edio espanhola tomo11, p.2l9. (N.T.)

  • 244 Lacan elucidado Diagnstico e localizao subjetiva

    Nada, na anlise, mais importante que isso. Eis a direo dotratamento: saber o que deve e o que no deve ser considerado. possvel que o analista se interesse por uma alucinao histrica, mas,dependendo de como manifesta esse interesse, ela pode durar meses,porque, para satisfazer ou frustrar o desejo apresentado, o sujeitohistrico pode produzi-Ia por longo tempo. No teatro, trata-se deresponder ao desejo do outro. H casos relatados, em que o analistaproduziu todos os efeitos que depois descreveu.

    Uma depresso psictica deve ser considerada seriamente, ou a queconstituir os prembulos de uma bem-sucedida passagem ao ato - osuicdio. A um depressivo devemos questionar com surpresa, noparticipando emocionalmente da sua depresso. H bem pouco tempo,atendi primeira entrevista de uma pessoa sofrendo de ansiedadeterrvel. Sabia que eu estava prestes a viajar e, apesar disso ou talvezpor isso, foi me ver chorando muito, com a queixa de que seus filhosiriam para um fim de semana sem ela, razo por que estava tendo idiasde morte. A quem se apresentava em prantos, questionei com um visvelsorriso, que, espero, no tenha sido de ironia, mas de gentileza. Nasegunda entrevista, ela havia esquecido sua depresso que, dois diasantes, parecia testemunhar o fim do mundo. Assim, a deciso do analistapartir um ato simblico. Ao analista, no lhe cabe participar emo-cionalmente das situaes afetivas do paciente, demonstrando sempreque compreende e sente ternura. Demonstrar incompreenso frente aosafetos do outro por parte de um analista uma posio sumamenteimportante, e, demonstrao de incompreenso em geral, provocareproches de desumanidade. Pode acontecer de no analisarmos umestado e, de repente, no dia seguinte, o paciente se suicidar. Quandofalamos da responsabilidade do analista, no proferimos palavra vazia.Todos os analistas sabem que uma palavra infeliz pode matar algumna experincia conduzida com intensidade. Se, por outro lado, conduzida como um tipo de assistncia social personalizada, os riscosso menores. Antes de introduzir algum na experincia analtica, comtodo rigor, devemos verificar se, eventualmente, no h outros meios.

    EVOLUO DA MODALIZAO DO DITO

    o dito pode modalizar-se de tal modo que a demanda de mudana,"quero mudar", pode revelar-se de no mudar. Exemplificando, numrecente pedido de anlise, em Paris, um homem chega, como" marido" ,

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    embora no traga a mulher consigo. Apresenta-se, como algum que,tendo a esposa iniciado uma anlise, no pode mais reconhec-Ia comotal, depois de alguns meses. A anlise transformou-a. Ora, ele mesmono novo no campo analtico, pois j fez uma anlise por longo tempo.Supe que sua mulher esteja em vias de separar-se, e ele pede da anliseque o prepare para a separao. Essa uma forma de demanda deanlise. Esse marido manteve, durante anos, a mulher bastante presa,considerando a si prprio como referncia fixa da esposa como seunico ponto de referncia. Na medida em que ela precisava de tal, elese constituiu na funo. Parece que foi tambm a posio de seu paipara com a mulher, sua me que era louca mas no propriamentepsictica. Seu pai considerava-se o chefe absoluto da casa e o pacienteachava que isso era exatamente de que sua mulher precisava. Com aanlise, ela se distanciava, passando a queixar-se das observaesdepreciativas que ele lhe dirige. Agora ela chamava: "Voc sempreme faz sentir inferior diante dos outros." Quando pergunto se averdade, ele me responde: "Sim, ela no sabe o que fazer e precisa dealgum que a conduza." claro que sua demanda de anlise era deno mudar, preferiria aceitar perd-Ia do que mudar qualquer coisa emsi prprio. Seu pedido era: "Ajude-me a perd-Ia" , como se ela nadafosse e pudesse assim confirmar sua posio inicial de sujeito.

    Minha primeira frase foi: "Voc no quer mudar." Evidentementeessa lhe parecia a melhor posio do mundo, por ter sido a paterna.Demonstra ser um decidido neurtico obsessivo, cuja suposta inferio-ridade da esposa era a condio de seu desejo. Depois de algunsminutos, minha segunda frase: "Para voc as mulheres so seresinferiores." Isso me levaria a no aceitar a demanda de anlise assimformulada, que impediria, desde o primeiro momento, a localizaosubjetiva. Como ltimas palavras, eu disse parecer-me que ele neces-sitasse de um aggiornamento, em italiano, "atualizao", em portu-gus, e que poderia rev-Io na semana seguinte.

    Sua posio neurtica foi possvel anteriormente anlise da esposa,porque a posio do homem como chefe da casa era ainda praticadaem muitos pases de diversas maneiras, tendo sido a nica possibilidadede elaborar a relao sexual, numa poca em que as mulheres nopodiam fazer anlise. Hoje, a esposa vai ao analista e semanas depoisum senhor se encontra sem sua serva. A problemtica na localizaosubjetiva, neste caso, era como inverter a demanda de no mudar. Seupedido era: "Permita-me perder essa mulher de quem gosto, como seela fosse uma merda." Foi essa a ajuda que me pediu, teria sido esse

  • 246 Lacan elucidado Diagnstico e localizao subjetiva 247

    o sentido se eu avalizasse a primeira demanda, e por isso, rejeitei aformulao inicial, sem rejeitar o sujeito. Quando apareceu pela se-gunda vez, podia-se perceber que era a pessoa que havia dito" Ou tudose conserta como antes ou nada feito" , e que sua mulher queria somentetomar uma certa distncia com relao rotina habitual. O que elequeria, dizendo" Ou tudo ou nada" , era conservar sua posio de senhordo jogo, estabelecendo as regras para uma mulher sem ponto dereferncia. possvel que ela no o tivesse sem ele - h muitos casaisformados da aliana entre uma histrica, sem ponto de referncia, eum neurtico obsessivo, que se sacrifica para constituir-se como tal.Mas, no caso, pode-se observar que o fator que estabiliza a valorizaoda esposa, de suma importncia. Toda a posio subjetiva do maridofoi desestabilizada pelo fato de a mulher ter mudado um pouco a dela,por ter passado a no mais avalizar os ditos derrogatrios a ela dirigidospelo marido.

    O sentido de realidade desse sujeito est vinculado a que sua mulherse mantenha na mesma posio assinalada. Na segunda entrevista -s houve duas at o momento -, seu mundo demonstrava ser o mesmoque seu sintoma. J nas entrevistas preliminares h uma funo essen-cial para o analista, a de mal-entendido. s vezes, um paciente procuraum analista para verificar se algum pode entender o que ele diz.Contudo, no possvel convencer o paciente de nossa capacidade deentender, seno introduzindo sistematicamente o mal-entendido. Porexemplo, com a pergunta: "Que voc quer dizer com isso?" . Esta anica pergunta que dimensiona o sujeito-suposto-saber, pois mostra aopaciente que no o entendemos apenas por simpatia, e que ele mesmono se entende. O que pode ser apresentado por" ningum me entende"est na realidade, fundado sobre "quem no se entende o prpriosujeito". o que significa a associao livre, o auto mal-entendido, e o motivo da paixo analtica ser a da ignorncia. A simpatia e aempatia, to importantes para a escolha inglesa de psicanlise, no tmlugar na anlise propriamente dita, porque o alvio vem justamente domal-entendido. Foi Lacan quem o ressaltou.

    Quando psiquiatra, ele foi um partidrio de Jaspers, que consideravao princpio de compreenso como um critrio especial nas psicoses.No Seminrio 3, As psicoses, Lacan diz que o mais importante noentender o paciente. preciso, contudo, tomar muito cuidado com acompreenso imediata, e no esquecer que em sua tese de psiquiatriaa referncia fundamental o princpio de compreenso.

    - Y.- - - - - -

    Fazendo a leitura de Lacan, segundo esse princpio, percebemos queele sempre muda sua posio subjetiva para com o dito anterior. Muitasvezes, quando debocha de algum analista, na realidade est falando desi mesmo, no se trata de um discurso inspirado, mas de uma correometdica do dito anterior.

    Desta maneira, o conselho de "no compreender" conseqncia,unicamente, do fato de no haver metalinguagem, isto , de no sepoder explicar uma frase a partir de outra definitiva, sem que sereproduza e se continue a possibilidade de nova posio subjetiva.

    Assim, localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a caixa vaziaonde se inscrevem as variaes da posio subJetIva. comQ...prentreparnteses o que o sujeito diz, e fazer com que ele perceba que tomadiferentes posies modalizadas pracom seu dito. s vezes, um sujeitopoder dizer: "No me importa o que diga." caso de ver se estsendo verdadeiro ou no. Um sujeito para quem as palavras noimportam no nos d certeza de que possa fazer anlise, mas se issosignifica "o que me importa o que voc vai dizer", ento muda tudo.

    Que o sujeito? essa caixa vazia, o lugar vazio onde se inscrevemas modalizaes, que encarna o lugar de sua prpria ignorncia, etambm o fato de que a modalidade fundamental que deve surgir,atravs de todas as variaes, a seguinte: "Eu (o paciente) no sei oque digo." E, nesse sentido, o lugar da enunciao o prprio lugardo inconsciente.

    Curitiba27.07.87