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Roberto Miller o átomo brincalhão

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Roberto Millero átomo brincalhão

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 20

Roberto Millero átomo brincalhãopor Roberto Maiai

Crescer em meio a metros de celuloide, umamoviola, mesas de animação, uma câmera Bolex­Paillard H16 Reflex, um projetor Bell & Howell éalgo inesquecível, único; ainda mais se aquele quefaz uso de tudo isso é o seu pai! Imagine nesseambiente qual poderia ser a sua educação? Falarde cinema era brincar de cinema! Portanto,crescer no mundo da animação foi a minha vida, econviver com um artista genial foi a minha sorte.

Este maestro se chamava Roberto Miller, denascença Ignácio Maia, filho de um jornalistaportuguês correspondente da agência Reuters que,na década de 1920, retornou a seu país natallevando junto o pequeno filho. Esse meninocresceu em Portugal em meio ao jornalismo, àboemia, cercado de fotógrafos e aficionados docinema de arte europeu. De repente, cansado dofrio de Portugal e da falta do calor materno e daavó que mimava o neto primogênito com sotaqueportuguês, quis voltar a morar no Brasil e,convenhamos, um pai jornalista e boêmio estavalonge da imagem de um pai chegado aos mimos!A escolha de fazer a vanguarda nos trópicos podenão ter sido certa em matéria de reconhecimento,mas foi plena em termos de realização pessoal.

Ignácio começou a sua carreira como fotógrafoamador em um laboratório caseiro. Colecionouprêmios que o levaram a frequentar e ser um dosativistas do Foto Cine Clube Bandeirantes, umclube de apaixonados e diletantes do cinema.Antes de entrar de cabeça no mundo visual,flertou com o rádio, no qual apresentou umprograma musical sobre jazz e se rebatizou deRoberto Miller, nome que continha a primeiraparte vinda de seu grande amigo e inspirador, o

produtor musical e radialista Roberto Corte Real,e a outra parte, de seu ídolo musical Glenn Miller.Nos anos 50, começou a se interessar em fazercinema e teve duas influências marcantes: odesigner gráfico americano Saul Bass e oanimador escocês Norman McLaren, com o qualestudou, se correspondeu e do qual se tornoudiscípulo. Ainda na década de 50, especializou­secomo técnico em recursos audiovisuais pelaUSAID (United States Agency for InternationalDevelopment) e se tornou membro fundador daASIFA (Association Internationale du Filmd’Animation).

Seu primeiro trabalho comercial foi o filmeRumba, de 1956, um comercial para os discosColumbia, que acabou premiado no festivalinternacional de Lisboa. Depois, no ano seguinte,outro comercial para a Varig, com produção deJosé Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni,também acabou premiado como melhor filmecomercial do ano e o animou a investir no seutrabalho experimental autoproduzido, que foi ofilme Sound abstract, desenhado e sonorizadodiretamente na película virgem. Este filmerecebeu um prêmio no Festival de Cannes em1957 e medalha de ouro num festival em Bruxelasno ano posterior. Nesta mesma época, Millercomeçou a desenvolver trabalhos junto à TVExcelsior e logo a participar dos projetos da TVde Vanguarda e Móbile na TV Tupi.

Nos anos 60, dirigiu o departamento de cinema daDória e Associados, trabalhando em filmescomerciais, quando começou também a realizar asanimações de aberturas de longas­metragens,fortemente influenciado pelo trabalho de Saul

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Bass. Esta curiosa experiência em desenvolveranimações para os títulos de cinema foi única,pioneira e pouco conhecida no Brasil, e pode servista nos filmes: Silêncio branco, A ilha, O beijo,As amorosas, Gimba, O anjo assassino, Gamal, Osanto milagroso, O caso dos irmãos Naves,Madona de cedro, Riacho do sangue, Meu Japãobrasileiro, Palácio dos anjos, Chuva gentil eDivórcio à brasileira.

Entre 1961 e 1964, desenvolveu o filme queconsideraba sua obra mais representativa: Oátomo brincalhão, um filme abstrato eexperimental, realizado sem o uso de câmera ouqualquer outro aparelho cinematográfico. O filmefoi pintado e desenhado diretamente sobre apelícula virgem de 35 mm, com tintas plásticas enanquim. Para sua confecção foram necessários10 vidros de tinta plástica especial, 150 vidros denanquim colorido e 500 metros de películavirgem, que teve um tratamento especial nolaboratorio da Rex Filme, pelo técnico OswaldoCruz Kemeny. O filme levou três anos para serfinalizado e foi composto por 2.200 desenhos comum fundo de combinações abstratas. Tinha cercade cinco minutos e contava a fábula surreal de umátomo que ganhava vida e se lançava no espaço.

Depois de brincar, se desintegrava com oprocesso infinito de vida e morte. O filme chegoua ser exibido como curta antes de filmes docircuito comercial, mas a maioria dosespectadores leigos em animação experimentalachava que estava ocorrendo algum erro nacabine de projeção. Depois dos anos 60, utilizoutodas as suas técnicas e expertise em animação natelevisão brasileira. Chefiou os departamentos deanimação da TV Bandeirantes e da TV Cultura,foi produtor e diretor de TV e participou deprogramas de vanguarda como Quadrado eredondo (1968), Espaço 2 (1969), Sucata (1972) ,Charada (1973), Musikroma (1974), Relatório 2(1975) e criou aqueles por que teve a maior

paixão: História do desenho animado (1977) e oconsagrado Lanterna mágica, de 1985 a 1991.

Roberto Miller foi um cineasta e pesquisadordedicado ao cinema de animação, mas quedesenvolveu sua obra de maneira solitária numestúdio que ficava (e ainda fica, praticamenteinalterado) no porão de sua casa, no bairropaulistano da Aclimação (bairro comcaracterísticas únicas em São Paulo), a mesmacasa que ganhou de sua avó logo após se casarnos anos 50 e local de onde nunca quisse mudar.Gostava de fazer o cinema sem câmera, masadorava experimentar com tecnologia e criou suamesa de animação para stop motion comcaracterísticas e técnicas de iluminação únicas.Desenvolvia e mandava fabricar suas própriaslentes e prismas; comprava de laboratorios deótica e física vários canhões de laser para fazer obacklight de suas animações, e muitos das suasdezenas de filmes de animação nunca foramexibidos de forma comercial. Achava que suaobra devia ser vista em pequeñas telas, antevendoo que seria o futuro dos smartphones e tablets.Considerava que seus filmes “não eram para servistos, mas sim para serem experimentados”.Depois de sair da TV, no meio dos anos 90, ficouapaixonado por computadores. Primeiro, comprouum Amiga, producido pela empresa canadenseCommodore International. Este era umcomputador popular na década 90 por sua aptidãoà multimídia. Depois de esgotar seus recursos,passou para um Mac, no qual se apaixonou pordesenvolver gifs animados; fez centenas queainda estão no hard disk de seu velho Apple.

No meio dos anos 2000, uma queda no quintal desua tão querida casa o fez desenvolver uma dorcrônica que o afastou do computador e de seumundo­laboratório. Passou de décadas de umainteratividade participativa a um períodocontemplativo, no qual recordava seus feitos ehistória. Sua missão se encerrou em março deste

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ano após uma pneumonia que se tornou incurável,aos 89 anos plenos e animados.

Como citei no começo, se sua escolha pelostrópicos o levou a um perfil discreto, esta foi umaopção consciente. Nunca gostou de festas, nembadalações. Suas conquistas o satisfizeram.Nunca confundiu arte com promoção. Seu grandelazer era o trabalho e não precisava viajar, poissuas animações o levaram para todo o universo.Como pai, nunca podou nem reprimiu a vontadede seus filhos: uma advogada realista e estejornalista também sonhador. Sua última alegriafoi ver suas duas netas crescerem ao seu lado,

brincando em seu laboratório – a menor, Cecilia,herdou a seriedade da pesquisa na sua busca pornúmeros e pela administração, e a mais velha,Julia, ficou com sua viagem criativa, pois estáconcluindo sua pós­graduação em cinema naUniversidade de Londres. Com certeza, um belolegado para uma vida de tantas cores e sons!

iPublicado originalmente em: Filmecultura 60 | julho • agosto •setembro 2013

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Publicado originalmente em: Filmecultura 54 | 2011

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“I would wish you luck and happiness,but you yourself are luck and happiness.”

Truffaut to McLaren

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