miguel pereira lúcia - a leitora e seus personagens [textos sobre graciliano ramos]

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  • 7/30/2019 MIGUEL PEREIRA Lcia - A leitora e seus personagens [textos sobre Graciliano Ramos]

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    fazia o sacrifcio de afivelar uma mscara. Se as almas pudessem ser vis-tas, certamente no reconheceria as dos seus, to diversas eram do quesupusera. A Vert igem - em que tambm a si mesmo desconhecera -veio e passou. Mas o que no passar mais, o que sem dvida lhe ficarcomo umtravo escondido e amargo, o que lhe influir na vida de depoisdos acontecimentos narrados pelo autor, essa sensao de isolamentodentro do lar. A irremedivel solido do homem.Os franceses gostam de repetir que o homem morre s, como snascera. Isso ter assim to grande importncia? Viver s que triste.E a sorte de quase todos os homens. Quem definiu o amor como a pro-jeo do eu sobre o objeto amado conhecia bem a triste ausncia de cor-respondncia entre as almas, e a terrvel condenao do homem ao cr-cere da sua personalidade. Quando julga ver os outros, e senti-Ios emcomunho consigo, est vendo um reflexo de si mesmo. Desaparecidoeste, o vazio se instala. Por isso que, embora enganoso, s mesmo osentimento nos salva. A paixo do Dr. Marcondes por D. Cllia, apesarda sua origem puramente sensual, apesar de no correspondida e nemsequer suspeitada, ainda lhe foi um bem: impediu-o de sentir mais fun-damente o seu isolamento, tendo como teve, a ocasio de sair de si, dese dedicar inteiramente a algum.

    So Bernardo e o mundo secode Graciliano Ramos* difcil imaginar-se alguma coisa mais seca do que os livros de Gra-ciliano Ramos. O estilo seco, secq o ambiente, secos de fazer sede,

    secos corno uma rajada desse vento quente que sopra emdias de vero,levantando uma poeira ressequida e como que queimada. * * .Pois, parece incrvel, mas neste seu ltimo e notvel romance o nicodefeito ser bem escrito demais. Entendamo-nos: bem escrito demaispara ser narrado por esse .spero Paulo Honrio que aprendeu a ler napriso, e tinha tal dificuldade em entender a literatura de normalista da Originalmente, antecede o texto a indicao bibliogrfica: "Gracifiano Ramos-So Bernardo". In:Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 23/12/1934, p. 5, coluna "Livros". . Vidas Secas, quarto romnce de Graci/iano, aparece quatro anos depois, em 1938. Cf. crticana pgina 121.

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    mulher que nada percebeu da carta emque ela lhe comunicava que seia matar. A narrativa muito simples, mas ele no a poderia ter escrito.Usa e abusa de expresses regionais e de termos crus, suas zangas ex-plodem sempre em palavres grosseiros, mas l vem um momento emque se sente a mo do autor conduzindo a sua.Alis, por mais que se procure escrever como se fala, esse uminconveniente difcil de evitar-se em livros escritos na primeira pessoa,mormente quando o narrador ummatuto bronco e rude como Paulo Ho-nrio. O artifcio literrio fica muito evidente. E a nica falha sria de S.Bernardo. Os primeiros captulos sotateantes: os ltimos, caem umpouco;mas so defeitos ligeiros. O resto muito bom, e revela a quem, comoeu, no gostou dos Caets, a admirvel fora de romancista que h emGraciliano Ramos.Creio que s se poder explicar a narrativa pessoal interpretandoo livro como uma confisso. Uma confisso implcita, gaguejante, por ve-zes cnica mas uma confisso. Era uma alma rude, fechada, a de PauloHonrio, ~as no uma alma rida. Na impossibilidade das evocaes vis-lumbra-se de longe em longe como que uma escapada, uma abertura,uma rstia de luz. E para que, seno para se livrar de uma obsesso do-lorosa, haveria ele de escrever a sua vida? L est, logo no incio, ao fin-dar o captulo IV, uma prova disso. Depois de contar, friament~ a velha-caria de usurrio que lhe permitiu apoderar-se das terras cobiadas deS. Bernardo (muito humano esse desejo de ser proprietrio perto do lugaronde trabalhara como alugado), depois de mostrar como explorara o po-br e Padilha, acrescenta: "No tive remorsos". Noteve no momento, masse no os houvesse sentido mais tarde, quando a dramtica passagemde Madalena por sua existncia lhe alargara a viso, no diria essa frase.Alma paraltica, mas no vazia. Havia at muito movimento, muita fer-mentao dentro dela. Foi por isso que, depois da inquietao co~uni-cada pela mulher, a lembrana dos seus crimes lhe deu uma espcl~ desenso moral. Foi ela que o educou, que revelou a esse caboclo criadoaos trambolhes, ocupado s em subir, em ser rico fosse como fosse,uma vaga noo do bem e do mal. Noo que sentia mais do que enten-dia. O que lhe devia, ao raciocnio, parecer justo, era a sua conduta, eralograr e matar para ter o seu lugar ao sol. Formou-se na mai~dura daslutas pela vida, vendo sempre a vitria do mais forte ou do mais esperto.Foi preciso conhecer Madalena, e irritar-se com o que chamava_oseu sentimentalismo, foi preciso sentir que a mulher, declasse e educaaosuperiores a sua, tratava todavia como seres humanos ~s s~us empre-gados para perceber que a vida no se resume emganhar dinheiro ..Mes~osem entend-Ia inteiramente, modificou-se como seu contato. Havia mutoda revolta de quem v, de repente, que no tem razo, no dio que porvezes ela lhe inspirava. Trabalhara muito para obter o que tinha, e vinhauma moa cheia de idias complicadas a querer que desse aos outrosuma proteo que nunca tinha recebido. Exasperou-se contra ela, maltra-

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    tou-a, atormentou-a com cimes mrbidos, provenientes talvez da impos-sibilidade de entender-lhe a conduta, levou-a at aosuicdio, mas nofundono lhe queria mal, nem se pde fechar sua influncia.Quefigura bemconstruda, bem lanada, cruelmente verdica e muitohumana mesmo emseus excessos, esse Paulo Honrio, com as suas mosenormes, calosas, a sua face vultuosa, a sua maldade indiferente, a suaprofunda incompreenso detudo o que no fosse umnegcio e, sob tudoisso, um ou outro movimento bom.Depois de liquidar, ou mandar liquidar, numa tocaia o velho Men-dona, um vizinho com quem tinha questes de terra, arvora-se em pro-tetor de duas solteironas, filhas da vtima. Nas terras de So Bernardo,extorquidas ao Padilha, a quem depois vale com um lugar de professorna escola da fazenda, faz questo de oferecer um abrigo confortvel Margarida, a preta dceira que o recolhera, quando menino.E no s ele, mas todas as personagens vivem. D. Glria, seu Ri-beiro, o Padilha ... tudo gente de verdade. Madalena, sem dvida por noa ter nunca chegado a entender inteiramente o narrador, uma figurameio esbatida e enigmtica. realmente o centro do livro, irradia a suainfluncia sobre todos os outros, mas fica na sombra. Sabe-se o que elafaz, mas no o que , intimamente. H um qu de misterioso nessa mu-lher que se casa por dinheiro e tem idias socialistas, que se descuidado filho e vive preocupada em suavizar a misria dos moradores de S.Bernardo. Parece haver muito de intelectual nas suas teorias e na suabondade, mas no se sabe ao certo.H vrias cenas muito boas no livro, algumas muito naturais apesarde umcerto tom caricatural, como o pedido de casamento; outras de in-tensa dramaticidade, como todo o episdio dos cimes e a entrevista dePaulo Honrio com a mulher, na Igreja vazia, na noite que precedeu amorte desta. Mas, entre todos, existe umcaptulo de estranha beleza, re-velando no autor uma grande maestria e um raro poder de sugesto. aquele onde, procurando recordar-se da mulher, o narrador, na meia-luz do crepsculo, vai insensivelmente confundindo o presente e o pas-sado.

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    "O tic-tac do relgio diminuiu, os grilos comearam a cantar.E Madalena surge do lado de l da mesa. Digo baixinho:- Madalena!A voz dela me chega aos ouvidos. No, no aos ouvidos.Tambm j no a vejo com os olhos."A meia alucinao vai crescendo, empolgante. Lembra Green, masumGreen humanizado, onde houvesse, soando em surdina, a doura deuma nota de ternura.

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    IIJ os Amrico de Almeida:romance em mutao*

    Reinava uma grande grande curiosidade emtorno dos novos livros,h muito anunciados, de J os Amrico de Almeida. Curiosidade mais doque justa. Em primeiro lugar, havia o desejo de verificar se confirmaria,com as outras obras, o merecidssimo renome que granjeara com a Ba-gaceira, livro que j ficou clssico na nossa literatura, livro onde a terrado nordeste e o homem - no somente o homem do nordeste, mas tam-bm o homem que detoda a parte, a natureza humana mais profundado que as caractersticas locais - vivem com uma cor, uma vibrao,uma intensidade dramticas.Em segundo lugar, estava o interesse de saber quais as mudanassofridas pelo escritor nesses quatro anos de vida pblica, de mudanaforada de ambiente.Realmente, parece ter havido mudana, e grande. Mudana que fezos novos livros muito diferentes da Bagaceira. Mas mudana paradoxal,que os tornou mais nitidamente regionalistas. So mais restritos, tm umambiente mais fechado, mais tipicamente nordestino. Foi como se, delonge, o escritor tivesse tido uma viso mais simplificada de sua terra ede sua gente, sentindo-lhe sobretudo a feio peculiar. Na Bagacera, anatureza nem sempre crestada de sol, como ns outros imaginamoso nordeste; ao contrrio, tem uma languidez capitosa e mida, enfeita-se,graciosa e faceira, voluptuosa e alcoviteira, como a querer tomar parteno idlio de Lucia e Soledade, idlio que poderia existir entre adolescentesde qualquer parte do mundo; e, pelo menos aquele, no ape.na~umhomem do nordeste. As personagens so mais complexas, mais ricas,mais nuanadas. Existemtanto como pessoas humanas como nordestinas.J Coiteiros um magnfico, um esplndido poema em prosa, masumpoema absolutamente condicionado pelo sol alucinante, pelocanqao,pelo cdigo de honra sertanejo.No um romance, ser antes uma novela, se quisermos classifi-c-Ia pela forma em que foi escrito; mas, na sua essncia, um poemaemprosa. O entrecho dos mais simples, de uma simplicidade primitiva., como diz J oseph Bedier no incio da histria de Tristo e Isolda, "umbeau conte d'amour et de rnort". Roberto dos Anjos noivo de Dorita,mas no se pode casar antes de vingar-se de Sexta-feira, um chefe can-gaceiro que lhe assassinara o pai. O futuro sogro, tentando livrar o genroda ira do bandido, torna-se "coiteiro", faz um pacto de amizade com oscangaceiros. Sabedor disso, depois de muitas peripcias, e apesar dos Origina lmente: sem titulo. In: Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 17/2/35, p. 6, coluna "Li~ros".Antecede o texto, a indicao bibliogrfica: "Jos Amrico de Almeida - coerros - Boquelro".

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    Pureza:um novo Jos Uns do' Rego *J estamos habituados ao romance anual de.J os Uns do Rego;uma escapada ao nordeste em sua companhia faz parte do nosso ritmode vida. Durante cinco anos, em livros ora mais plenamente realizados,como Menino de Engenho e Bangu, ora mais fracos. como Doidinho, mas.sempre vivos e verdadeiros. o romancista nos trazia mais um caso da fa-mlia de J os Paulino, mais uma vicissitude do Santa Rosa. mais um as-

    pecto da existncia nas lavouras de cana do nordeste. e da. indstria doacar. Com Usina esgotou o assunto. Sem se repetir. no poderia con-tinuar a estudar omesmo tema. ,Que daria J os Uns do Rego sem o acar. sem as recordaesde infncia? Essa pergunta era formulada por todos quantos admiramoso seu talento e seguimos com interesse a expanso da sua fora cria-dora. Pureza foi a resposta do romancista. ea pedra de toque que nQSpermitiu aquilatar com segurana dasua capacidade de criar livremente.sem o ponto de partida das evocaes de gente e coisas familiares.Talvez considerado emsi mesma.Pureza no seja superior aos ro-mances anteriores - pelo menos a alguns deles. Mas visto em funodo romancista representa um caminho novo, mais uma abertura sobrea vida-.J os Uns do Rego mostrou que tem muitas cordas no seu arco. Eisso. para umromancista. uma grande coisa. Mostrou no.precisar daspersonalidades reais para povoar os seus livros. possuir realmente o so- .proanimador. aquilo que faz do romancista. nodizer de Mauriac, "Iesingede Die'". Mostrou poder prescindir da terra para formar o ambiente. doscanaviais que assobiam ao vento, das pastagens sonoras de mugidos.dos rios de cheias aterradoras. das matas floridas. de tudo aquilo queconstitui. sobretudo em Menino de Engenho, um fundo de beleza e depoesia. E sobretudo provou que. embora as razes da sua vocao deromancista se alimentem do seu provincianismo. 'no est escravizadoliteratura regionalista, no apenas o cronista do nordeste. Pureza, quedeve o seu nome a uma estao da Great-Western. poderia se passaremqualquer outro lugar, numa estao da Central ou da Sul Mineira. aopassoque os livros anteriores esto indissoluvelmente ligados scondiesde vida do nordeste. Conheci no estado do Rio a famlia de um agentede estao parecidssima com a de Antnio Cavalcantl.Essa supremacia. nas personagens. do humano sobre o regional,me parece ser umdos aspectos novos e importantes deJ os Uns do Regoem Pureza..Outro a apario da mulher; da mulher moa .e amorosa, Or iginalmente: "Pureza". 'In: Boletim de Ariel. Rio de Janei ro , n.8, p. 228, ano VI, maio de 1937.

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    de que a Maria Alice do Bangu uma tentativa frustra. At aqui. J osUns do Rego criara bons tipos de mes - lembro-me de D. Dondon deUsina - de negras. de mulatinhas dengosas. mas no soubera fazer amoa. a mulher valendo sobretudo pela sua feminilidade. Conseguiu-oagora. Aquela passividade indolente. quase animal de Maria PauIa. a suasubmisso ao destino. o imediatismo das 'duas irms so traos profun-damente femininos .-Oque no quer dizer que as mulheres sejam sempreassim. nem s isso...Tambm a anlise psicolgica mais desenvolvida. a sondagem davida interior do a Pureza um cunho diverso dos outros romances do au-tor. Embora tambm dominado pelo sexo - Pureza gira afinal todo emtorno desse problema - o Lula mais sensvel. mais completamente hu-mano do que Carlos de Mello. Sem se elevar muito. ele menos preso terra do que o outro. com quem entretanto tem muitos pontos de se-melhana.Dos grandes quadros murais. brilhantes. coloridos. cheios de sole de movimento. J os Uns do Rego passou a uma pintura mais minuciosa.mais rica em entretons. Da talvez lhe venha alguma monotonia mas emcompensao fez trabalho muito melhor acabado doque das outras vezes.Aparece-nos agora muito mais controlado. muito mais comedido.at na linguagem - com o que' s tem a lucrar. Os outros livros do svezes a impresso de umtransbordamento magnfico e desordenado. emque o assunto dominava o romancista. EmPureza sente-se. ao contrrio.que ele quem possui o assunto. uma posse que no significa em ab-soluto a interveno sempre indesejvel do romancista. a perda da suapoderosa objetividade. mas patenteia o amadurecimento completo. har-monioso. do seu talento. Essa harmonia. esse equilbrio novo so as qua-lidades mestras de Pureza e mostram que J os Uns do Rego no se es-gotou com o ciclo da cana do acar. e que est ainda em ascenso.

    ..Um romance mudocomo um. filme-de Carlitos:Vidas Secas*Vidas Secas, o ltimo romance de Graciliano Ramos. s tem um fa-

    Originalmente: Vidas Secas. In: Boletim de Ariel. Ri o de Janeiro, n. 8, p. 221. ano V II, abr il d e 38.

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    tor contra si: ter aparecido umpouco tarde. Se tivesse sido escrito h al-guns anos, se fosse do tempo do Quinze e da Bagaceira, terialevanta~ouma celeuma. Mas veio quando j o pblico est meio cansado de his-trias do nordeste, quando se criou essa absurda e ridcula querela lite-rria entre romancistas do norte e romancistas do sul, entre brbaros epsiclogos. Isso no lhe altera naturalmente o valor intrnseco, mas lhediminuir a repercusso.Mais uma histria de retirantes, de seca, dir enfastiado o possvelleitor que, antigamente, se teria extasiado ante o valor desse "documentohumano". Agora j a moda no favorvel aos' 'documentos humanos",nose usa mais a misria eml iteratura. E o possvel leitor preferir pagarum pouco mais e ter um tpico romance francs, com um bom adultriomundano.E perder muito com a troca.Vidas Secas um livro de boa humanidade e boa literatura, limpode inteno e de linguagem. Ser um romance? antes uma srie dequadros, de gravuras em madeira, talhadas com preciso e firmeza. Ne-nhuma preocupao fotogrfica, mas a fixao de sentimentos de cria-turas humildes, sentimentos tambm humildes e trgicos justamente porno se poderem alar mais alto e nem ao menos expressar. Romancemudo como um.filme de Carlitos.Almas par.alticas,sem meios de comunicao, almas elementares,mas almas - semelhantes s dos civilizados. No o ambiente, no o meio que do o tom a um romance, e sim a vid que nele se manifesta.As Vidas Secas do livro de Graciliano Ramos so secas s por fora, por-que as estorricou a misria. Um pouco de alegria, um pouco de bem es-tar e elas reverdecero e desabrocharo, como reverdece e desabrochaa c'atinga primeira chuva. E se podero at tornar complexas, afinar-se.A grande fora do autor a sua capacidade de fazer se.ntira vida ~m po-tencial a condio humana intangvel e presente na cnatura a mais em-bruteci'da. Saber descobrir essa riqueza escondida, pr a nu esse filo, afinal a grande tarefa do romancista. Dostoievski n~fez outra coisa,Mauriac o tenta todos os dias.Procurando heris entre a gente que no sabe analisar os prpriossentimentos, Graciliano Ramos ao mesmo tempo se impe uma limitaoe pe prova a sua tcnica. Ser-lhe-ia infinitamente mais ~Cildesc?brira complexidade em criaturas proustianas do que nos rnerunos de SinhVitria, a que nem nome d. 'Escolheu o caminho mais difcil - e saiuvitorioso, porque viu criaturas humanas nesses retirantes. E as viu tohumanas, que at acachorra Baleia foi humanizada com uma ternura novano autor, uma ternura que pe uns longes de poesia no livro.Vidas Secas no deve ser julgado como "romance nordestino" ou"romance proletrio" expresses que no tm sentido, mas como umro-mance onde palpita a vida - a vida que a mesma em todas as classese todos os climas.

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    A literatura de tese e a vida *Destinado a provar o erro que h em preferir a cidade ao campo,a vida agitada pela ambio ao pacato bucolismo campestre, este romance

    mais de tese do que de costumes, embora descreva a existncia numaaldeia portuguesa.. Gnero difcil, dificlimo, o que escolheu o autor. Poucos romancesde tese tm logrado existir como obras de arte, e isso pela boa razo deque o romance est profundamente; essencialmente arraigado vida, ea vida, esta grande inconseqente, no prova coisa alguma.Para conseguir o seu intento, lanou o autor mo de um estrata-gema artificial: fez ruim, absolutamente ruim, o homem ambicioso atradopela cidade, e boas, incrivelmente boas, todas as outras personagens.No fundo, um livro de propsitos edificantes, moralistas, que vemtornar mais uma vez bem patente que os bons sentimentos e as boas in-tenes no bastam para fazer boa literatura.Se bastassem, poderla talvez pretender ao prmio Nobel este ro-mance, no qual o nico sujeito mau - mau a valer, verdade, integral-mente mau - recebe o merecido castigo, e todas as outras criaturas vi-vem quase em odor de santidade, e acabam, afinal, felizes, como nasfitas de cinema americano.O enredo dos mais simples: uma viva com dois filhos, o mau eo bom, vivem numa aldeia buclica. O bom se sacrlftca.iabandonandoos estudos para gerir as propriedades agrcolas da famlia e permitir aooutro formar-se em medicina, no Porto. Voltando, mdico, aldeia, o mau,Eduardo, era "um cego com estes dois incndios divididos pela mo: vai-dade e ambo", na figura enftica do autor. No o enterneciam a bon-dade da me, a dedicao do irmo, a vida risonha dos campos, nemo prendiam os amores ancilares com Carminda, a criada da casa, quepusera a perder. Queria irpara a cidade, brilhar, tornar-se clebre. Exigea sua parte da herana paterna, semcuidar dos prejuzos que assim causaaos seus,.e l se vai para o Porto, onde, nos primeiros tempos, leva vidade grande senhor. Mas a clnica no vem, e o dinheiro logo se escoa.Endividado, ameaado pelos agiotas, s se salva exigindo do irmo maisum sacrifcio, um emprstimo que representa a totalidade dos bens dooutro. Vo sacrifcio, pois nada o detm na sua queda. Acusado de havermorto uma doente, preso, e volta aldeia como um farrapo humano,trocando o vcio do jogo pelo da embriaguez, acabando por assassinaro pai da antiga amante. Volta ao crcere, enquanto o bom irmo, traba- Originalmente: sem ttulo. Antecede o texto a indicao bibliogrfica: "Aldeia das guias, por Gue-des de Amorim - Editorial Minerva, Usboa, 1939". In: Revista do Brasil. Rio de Janei ro, n.O 16,pp. 80-81, ano 11,ou tubro de 1939, seo "Letras Portuguesas".

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