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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Maceió - Ano II - Nº 6 - JUN 2010 um mergulho no :: RIO sãO fRANCIsCO ::: ISSN 1984-3453

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Graciliano é uma revista da Cepal/Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Nesta edição um mergulho no rio São Francisco.

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um mergulho no

:: RIO sãO fRANCIsCO :::

ISSN

1984-3

453

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:: ReportagemMarcas do tempo | 4Milena Andrade

Tolda, um símbolo resgatado | 12Mário Lima

Terra sonâmbula | 50Milena Andrade

sabores do são francisco | 58Nide Lins

O adivinhador de árvores | 68Guilherme Lamenha

O naufrágio do Comendador Peixoto | 80Mário Lima

:: ArtigoRio são francisco: um manancial de riquezas | 20Pedro Flores e Alejandro Muñoz

são francisco: o rio da resistência | 22Eduardo Jorge de Oliveira Motta

Apelo em favor de um velho amigo | 24Anivaldo Miranda

Os tesouros do Chico que Pedro viu | 40Sérgio Moreira

Por que te chamam Pão de Açúcar? | 62Álvaro Antônio Machado

Moisés de AguiarDiretor-presidente da CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Governo do estAdo de AlAGoAs

teotonio vilela FilhoGovernador de Alagoas

José Wanderley netoVice-governador de Alagoas

Álvaro MachadoSecretário-chefe do Gabinete Civil

Júlio sérgio de Maya Pedrosa MoreiraSecretário de Estado do Planejamentoe do Orçamento

Fernando rizzottoDireção de arte / Projeto gráfico

Milena AndradeCoordenadora editorial

José roberto PedrosaDiretor administrativo-financeiro

Hermann de Almeida MeloDiretor comercial

Conselho editorial:Moisés AguiarMilena AndradeSérgio MoreiraGuilherme LamenhaSimone Cavalcante

estagiários:André Santos, Arthur de Almeida, Mariana Belo e Vanessa Mota

revisão:Marli Josefina

Issn 1984-3453

os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor.Fotos da capa e quarta capa: Celso Brandão

:: EnsaioVerger em Alagoas: uma viagem para não esquecer | 26Douglas Apratto Tenório e Cármen Lúcia Dantas

Tesouros do Chico que Pedro não viu | 36Helena Sampaio

Mergulho são-franciscano | 44Celso Brandão

Estrada de ferro Paulo Afonso - Memória para quê? | 64Evelina Antunes F. de Oliveira

:: PoesiaEspiral | 42Mário Aloísio

:: Trilha sonoraOpara | 48Stanley Carvalho e Gustavo Gomes

:: DepoimentoA experiência de olhar além do rio | 72Maria Amélia Vieira e Dalton Costa

:: EntrevistaConversa de pescador | 74Vanessa Mota

Contatos:(82) [email protected]

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Um mergulho no rio São Francisco. É esse o convite que a sexta edição da revista Gra-ciliano faz aos seus leitores. Extremamente rico, o tema nos permitiu diferentes aborda-gens, que vão da polêmica da transposição aos encantamentos das inúmeras paisagens que marcam o trajeto do rio em solo alago-ano; do rico artesanato popular da região à nostalgia das antigas embarcações e da es-trada de ferro.

Abrimos esta edição propondo uma via-gem no tempo. Um retorno de dez mil anos na região de Xingó, local povoado por tribos nômades que cruzaram continentes para ha-bitar o Baixo São Francisco. Artefatos, es-queletos e pinturas rupestres unem-se nu-ma espécie de livro a céu aberto sobre a pré-história são-franciscana.

As reportagens seguem com duas belas histórias contadas por Mário Lima. A primei-ra narra o apogeu e decadência da canoa de tolda, embarcação-símbolo do rio, e o desa-parecimento dos mestres carpinteiros; a se-gunda descreve o lendário naufrágio do im-ponente Comendador Peixoto, em Penedo. Os depoimentos daqueles que viram e viveram o auge da hidrovia são de emocionar.

Assim como também emociona a vida do artesão seu Fernando, da Ilha do Ferro, teste-munhada pela sua filha, na matéria “O adivi-nhador de árvores”, de Guilherme Lamenha, que nos mostra também a singular beleza do bordado boa-noite.

A reportagem gastronômica de Nide Lins evoca os cheiros, as texturas e os sabores dos peixes, do pirão, do pitu e dos doces típicos da região de Piranhas. Já a matéria “Terra Sonâmbula” propõe um olhar diferente sobre o isolado povoado de Pixaim, um lugar ina-creditavelmente belo e inquietante situado entre o Atlântico e a Foz do São Francisco.

Seu Toinho Pescador, uma das maiores li-deranças na defesa da preservação e recu-peração do rio, fala, em entrevista a Vanessa Mota, sobre sua relação com o São Francis-co e as mudanças que viu ocorrer ao longo dos anos.

Temos ainda artigos que falam do impac-to das barragens, do potencial produtivo do Baixo São Francisco e mais uma incursão histórica sobre uma curiosidade – de onde vem o nome Pão de Açúcar?

A socióloga mineira Evelina Antunes, uma apaixonada pelo rio São Francisco, nos pre-

senteia com uma viagem pela estrada de fer-ro de Paulo Afonso e a antropóloga Helena Sampaio nos conta quais foram os tesouros do rio que o imperador D. Pedro II não viu em sua famosa viagem por essas bandas. Já o artigo de Sergio Moreira nos mostra jus-tamente o que Pedro viu aqui em Alagoas.

Para um deleite ainda maior, esta edição traz belíssimas imagens do Baixo São Fran-cisco pelo olhar do fotógrafo Pierre Verger - sob a análise do historiador Douglas Apratto e da museóloga Cármen Lúcia Dantas – e de Celso Brandão, cujas duas das fotografias de seu ensaio se transformaram na capa e quar-ta capa da revista.

Maria Amélia Viera e Dalton Costa assi-nam depoimento sobre os artistas populares do São Francisco e Alex Barbosa fala de sua especial relação com o mestre seu Fernando, da Ilha do Ferro. E na poesia Espiral, o arqui-teto Mário Aluizio celebra a grandiosidade e beleza do exuberante Opara.

E é isso. Esperamos que gostem desta edi-ção da Graciliano, que é a mais extensa que já preparamos, e que o seu conteúdo esteja à altura do que representa o rio São Francisco para os alagoanos.

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Marcas do tempoAs MARGENs dO sãO fRANCIsCO GUARdAM UMA hIsTóRIA dE 10 MIL ANOs NARRAdA

POR PINTURAs, ARTEfATOs E EsqUELETOs

Esses fascinantes registros, descobertos nos anos oitenta durante a construção da hi-drelétrica de Xingó, estão localizados entre os estados de Sergipe e Alagoas e apontam para um povoamento que teria começado há aproximadamente onze mil anos - a gran-

de bacia do São Francisco foi centro de atração e ca-minho natural de diversos grupos desde o final do pe-ríodo pleistoceno.

Os primeiros pesquisa-dores chegaram à região inicialmente por indicação da própria comunidade. Descobriu-se, então, no mu-nicípio de Canindé do São

Francisco (SE), o sítio de registros gráficos numa fazenda. Eram pinturas em blocos de rocha. Em 1987, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) começou a construir uma nova barragem no local e foi aí que esse longínquo passado se descortinou.

Estava ali, exatamente no lugar que seria inundado pela obra, uma inestimável precio-sidade histórica – 56 sítios foram localizados com esqueletos completos, marcas de ritos fúnebres, restos de cerâmica e artefatos, os-sos de animais e desenhos que nos dão pis-tas sobre o imaginário do homem do Baixo São Francisco naquele tempo.

Os dois sítios mais importantes são o Justino, localizado em Canindé, e São José II, localizado na desembocadura do riacho Talhado, em Olho d’Água do Casado (AL). O salvamento arqueológico durou quatro anos e importantes descobertas já foram feitas, mas ainda há muito sobre o que se debruçar.

Nada menos que 230 esqueletos foram resgatados do local que se tornou o segundo

Milena andrade

Para além de tudo que representa o rio São Francisco, em suas feições míticas, ambientais e econômicas, suas mar-gens também guardam verdadeiros tesouros da pré-histó-ria nordestina. As marcas de um tempo em que as divisas entre os estados inexistiam ainda estão lá submersas em suas águas, inscritas em vermelho ocre nas paredes de suas grutas e cravadas na terra de seu solo.

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Pinturas rupestres no sítio são José, em olho d’Água do Casado

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maior cemitério indígena do País. Além disso, estavam lá nas praias do rio São Francisco artefatos em pedra [material lítico, lascado e polido]; panelas inteiras e fragmentos de cerâmica; ossos de répteis, aves, roedores e peixes, restos de fogueira, além de muitos adornos em osso e pedra. Na fazenda Mundo Novo e no riacho do Talhado estão as pintu-ras rupestres.

Segundo a coordenadora de exposição do Museu de Arqueologia de Xingó, a geógra-fa Railda Nascimento, em diferentes épocas numerosos grupos habitaram as margens do Baixo São Francisco. As pesquisas apontam datações de 1.200 a até 9 mil anos antes do presente. “Os esqueletos são um marco na arqueologia do País. Após vinte anos do salva-mento, o que podemos dizer é que esse traba-lho mostra a importância da região Nordeste inclusive na pré-história”, afirma.

Mas quem eram exatamente esses ho-mens e mulheres? De onde vieram e como chegaram aqui esses nossos antepassados que podem ter sido os primeiros habitantes não só do Baixo São Francisco, como dos es-tados de Alagoas e Sergipe?

Os primeiros homens que chegaram a es-sa região pertenciam a grupos mongolóides e de outras levas arcaicas. Esses grupos de paleoíndios certamente chegaram pelo Alto São Francisco, numa migração encosta-in-terior, e o acesso ao continente deu-se pelo estreito de Bering.

Os esqueletos encontrados em Xingó mos-tram que sua altura média era entre 1,64 e

1,70 e sua vida média era de 45 anos. “Esse homem po-de ter migrado pela região, o rio permitia essa migra-ção e o seu tempo médio de fixação variava de acordo com a disponibilidade de alimento”, observa Railda Nascimento, que é mestre em Geografia.

Esses homens viviam em grupos de, no máximo, cem integrantes que habitavam os terraços e as prainhas do rio. Não há registros dessa ocupação nos platôs. As inúmeras fogueiras para assar os animais capturados e os arte-fatos líticos encontrados mostram que eles eram essencialmente pescadores-caçado-res-coletores.

Em seu livro sobre a cultura Canindé, o arqueólogo Fernando Lins de Carvalho con-ta que esses homens caçavam animais de pequeno porte, como mostram os registros rupestres. Faziam parte da sua alimentação capivaras, veados, tatus, macacos, peixes e um grande número de aves.

“Os grupos de caçadores-coletores que se instalaram no Baixo São Francisco, no holoceno, exploraram as potencialidades do ecossistema da região. A proximidade da água, com a presença da piracema nas cor-redeiras, com a fácil proteína animal obtida do peixe, a fauna disponível e constatada a partir de vestígios arqueológicos em foguei-

ras, a possibilidade de con-tatos interétnicos pelo rio tornaria os terraços do São Francisco, aparentemente, local ideal para a instala-ção de grupos de tecnologia simples e economia extrati-vista”, diz Carvalho.

Mas quem pensa que a vida no Baixo São Francis-co era fácil e farta há dez mil anos está enganado. Ao mesmo tempo, o rio também representava perigos a es-sas comunidades na época

das cheias, que chegavam a atingir até 25 metros do nível normal. Além disso, esses homens precisavam sobreviver numa con-dição climática ainda mais difícil do que a que vemos hoje no Sertão.

Segundo Railda Nascimento, a tempera-tura naquela época era mais alta e o calor da região impunha um contexto de dificuldades que tinha que ser transposto diariamente pe-lo homem pré-histórico que habitava o rio. “O convívio com essas adversidades mostra que não há impedimento à sobrevivência do nor-destino no Semi-Árido. Somos descendentes dessa resistência”, observa.

CERÂMICAOs estudos já realizados sobre os artefatos em cerâmica encontrados nos sítios de Xin-gó mostram uma produção singular que não possui ligação com a tecnologia das tradições aratu ou tupi-guarani. Foram encontrados – e estão expostos no museu – cachimbos, pe-sos de rede, vasos, panelas, prendedores de cabelo, entre outros.

As panelas de cozinha eram utilizadas pa-ra o preparo de carnes, aves e pirões. As tige-las de areia e argila serviam para confeccio-nar beijus e torrar farinha. Os vasos grandes armazenavam água ou aguardente de milho.

A maior incidência de vestígios encontra-dos nos sítios arqueológicos é de artefatos. Há fragmentos, lascas utilizadas para cor-tar e perfurar, raspadores e artefatos poli-dos confeccionados em granito, arenito e amazonita.

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As imagens rupestres compreendem o primeiro livro de história do Baixo São Francisco

Fernando Lins de CarvalhoARquEóLOGO

O salvamento arqueológico mostra a importância da região Nordeste na pré-história

Railda NascimentoCOORDENADORA DE ExPOSIçãO DO MAx

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EsCULPINdO O TEMPOOs sítios Justino e São José II abrigam valio-sos registros do homem pré-histórico. Foram estudados 15 sítios de arte rupestre, entre pinturas e gravuras. Quatorze deles estão lo-calizados ao longo dos afluentes do rio São Francisco, em canhões rochosos cavados nos arenitos e conglomerados entre Sergi-pe e Alagoas.

Segundo a diretora do Museu de Arqueo-logia de Xingó, diferente de outros registros encontrados na região Nordeste, os conjun-

tos apresentam poucas figuras antropomor-fas que não compõem cenas, nem indicam movimento.

Esses registros gráficos podem ser encon-trados em abrigos sob rochas. A cor vermelha é predominante e os temas são geométricos e figurativos. Não há conjuntos, os grafismos são colocados isoladamente. Entre as pintu-ras estão aves, pirogas Lua, Sol, mãos e abs-trações geométricas.

Para o arqueólogo Fernando Lins de Car-valho, esses grafismos são uma espécie de

primeiro livro da região do Baixo São Fran-cisco. “Na medida em que os registros rupes-tres são um testemunho do homem xingoa-no em suas origens, desde sua relação com o ecossistema até suas emoções mais ele-vadas e, na medida, em que a imagem é um signo tão eloquente quanto a escrita, pode-se afirmar que tais registros compreendem o primeiro livro da história da região. Mas trata-se, evidentemente, de um testemunho ambíguo e insondável”, diz em seu livro “A Pré-História Sergipana”.

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| 1: As abstrações geométricas e as gravuras encontradas não formam conjuntos | 2: vaso de cerâmica utilizado para armazenar água ou aguardente de milho | 3: sepultamento de homem adulto junto com esqueleto de animal | 4: reprodução de desenho de animal da região

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Fotos: Fernando Rizzotto

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railda nascimento, coordenadora de exposição do Museu de Xingó

Fernando Rizzotto

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RITUAIs fúNEbREsA maior parte dos esqueletos encontrados na região de Xingó estava em cemitérios no Sítio Justino, em Canindé do São Francisco. Lá estavam 163 ossadas humanas completas com idade entre 1,2 mil e 8,9 mil anos antes do momento presente.

Os indivíduos dessas tribos eram enter-rados em covas rasas e pequenas, em diver-sas posições, inclusive fetal. Faziam parte do mobiliário funerário vasos em cerâmica [por vezes, um vaso cobria o rosto e a pelve], en-feites feitos de ossos ou minerais, como pren-dedores de cabelo, pilões, fogueiras e restos de alimentos. Em alguns casos, há presença

de animais enterrados juntos aos indivíduos. Não se sabe se esses animais eram de “esti-mação” ou se havia algum aspecto religioso ligado à prática.

No Sítio São José, na margem alagoana do rio, foram encontrados 28 esqueletos huma-nos completos com idade entre 4 mil e 5 mil anos atrás. Aqui os homens eram enterrados com flores, conchas, fogueiras e alimentos.

Para alguns estudiosos, a presença de ob-jetos junto aos esqueletos reforça uma possí-vel crença em outra vida. Porém, há estudos etnohistóricos que mostram que os utensí-lios estavam ali por pertencerem ao morto e que dariam má sorte a quem os usasse.

Em relação às principais causas de mor-te ou se há evidências de assassinatos en-tre os grupos, a geógrafa Railda Nascimento conta que há um único esqueleto encontra-do no sítio com uma perfuração no crânio que poderia indicar a ação de outro homem, mas que também pode ter sido resultante de uma queda.

Algumas análises da equipe de arqueólo-gos do salvamento apontaram nos esquele-tos sinais de artroses em algumas vértebras, fraturas de clavícula e doenças dentárias. A cicatrização de fraturas e ferimentos indi-cam que esses grupos de homens cuidavam de seus doentes.

os indivíduos eram enterrados em diversas posições, inclusive a fetal

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Fernando Rizzotto

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Criado há dez anos, o Museu de Arqueolo-gia de Xingó guarda verdadeiros tesouros da pré-história da região. A estrutura foi criada para permitir a continuidade das pesquisas do material descoberto durante o salvamen-to arqueológico.

O museu abriga um acervo de mais de 50 mil peças e vestígios. O espaço tem como objetivo estudar, preservar e divulgar o co-nhecimento sobre a pré-história do Nordeste e os grupos que chegaram aqui muito antes de os portugueses desembarcarem no Brasil.

No local, uma unidade Museológica mos-tra os principais resultados das pesquisas aos visitantes e uma área de exposição per-manente mostra as instigantes pinturas ru-pestres dos grupos indígenas que habitaram o rio São Francisco, o material lítico, o cerâ-mico e o malacológico, que são as conchas e ossos.

Há ainda um setor dedicado aos enterra-mentos que mostra como esses grupos pré-históricos realizavam o sepultamento de seus mortos.

Infelizmente, o museu – apesar de ter uma visitação considerável – ainda é pouco co-nhecido e frequentado pelos alagoanos. Um outro fato a se lamentar é que há um imen-so volume de material a ser estudado por especialistas.

As dificuldades para manter a cara es-trutura do museu funcionando são inúmeras e quando se trata de pesquisa e análise de material os entraves são ainda maiores. A consequência dessa falta de apoio financeiro é o silêncio de boa parte de nossa história.

MEMóRIA PREsERVAdA

o Museu de Arqueologia de Xingó possui mais de 50 mil peças

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Fernando Rizzotto

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ToldasíMbOLO dE UMA ERA dE PROsPERIdAdE NO bAIxO sãO fRANCIsCO, A CANOA dE TOLdA VIROU RA RIdAdE NO RIO

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ToldasíMbOLO dE UMA ERA dE PROsPERIdAdE NO bAIxO sãO fRANCIsCO, A CANOA dE TOLdA VIROU RA RIdAdE NO RIO um símbolo resgatado

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Um das cidades mais atingidas pela deca-dência do transporte fluvial em massa foi a cidade de Piranhas, que ganhou impulso co-mercial com a navegação a vapor pelo Bai-xo São Francisco, e mais a implantação da Estrada de Ferro Paulo Afonso, que fazia a ligação praia-Sertão do lado alagoano e per-nambucano do Baixo.

O início desse ciclo de desenvolvimento se deu ainda com o imperador Dom Pedro II, que também visitou Piranhas, em 1859, e assinou lei imperial que criou a Estrada de Ferro de Paulo Afonso (EFPA), cuja primeira estação fica na cidade, hoje a única conser-vada. A EFPA foi desativada em 1964.

Porém a cidade de Piranhas trouxe à to-na, literalmente, um exemplar reformado de

uma canoa de tolda tirada do fundo do rio, e que ho-je emoldura o porto da ci-dade, com suas velas tra-pezoidais de lonas brancas.

O secretário de Cultura José Cláudio Pereira, o Ca-cau, adianta que o proces-so de tombamento come-çou, mas ainda terá um lon-go caminho, como foi o caso

da Luzitânia, que só foi tombada como Patri-mônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-nal depois de oito anos, em dezembro de 2008.

De acordo com Cacau, a canoa de Piranhas, constru-ída na década de 1930, te-ve um primeiro restauro em 1955, quando foi comprada pela prefeitura, estava pra-ticamente acabada e afun-dada. Em 2006, passou por um novo reparo, que levou um ano e dois meses para ser concluído. A chegada em Piranhas foi uma festa.

O barco foi totalmente reconstituído pelo mestre Natalício, da Ilha do Ferro, que usou madeiras “legalizadas”, de acordo com Ca-cau, de braúnas, pau d’arco, cedro e jaqueira. As velas também são novas, e ganharam nova cor, perderam o ocre amarelado tradicional das toldas, e ganharam o branco alvejado.

Para evitar o desaparecimento da pro-fissão de canoeiro, a Prefeitura de Piranhas tem projeto para a criação de uma escola de aprendiz, para que os velhos mestres pos-sam repassar seus métodos e seus segredos na arte da navegação fluvial.

Mário liMa

Já que não se pode trazer volta os navios a vapor, ultra-passados pelo tempo, cujo combustível foi o desmatamen-to generalizado e criminoso da Mata Atlântica do Vale do São Francisco, o Baixo resgatou as tradicionais e quase extintas canoas de tolda, em tamanho bem menor que as imponentes Alagoana e Marialva, que o baixo calado do rio impediu a navegação.

O rio acabou. A embarcação acabou. Agora o povo só quer lancha de plástico e motor

Pedro de AristidesMEStRE CARPINtEIRO

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Criado em popa de canoa, seu Aurélio de Jan-jão, 68 anos, é pau para toda obra. Ele é reco-nhecido em todo o Baixo São Francisco como o melhor, um dos únicos e derradeiros mes-tres de canoa de tolda.

Ele foi o comandante da Expedição Bar-ra a Barra, com a canoa Luzitânia, de Brejo Seco (SE) a Piranhas, em novembro de 2007, restabelecendo a linha de longo curso no Bai-xo São Francisco, que não acontecia desde a década de 1970. Ele diz com orgulho que foi notícia no Jornal Nacional, da Rede Globo.

Seu Janjão, pai de Aurélio, usou os trilhos da EFPA, em 1959, para embarcar – toda mon-tada – sua canoa de tolda para Juazeiro do Norte, na Bahia. “As coisas ficaram aperta-das tivemos que vender nossa canoa”.

Mas a luta continuava para quem come-çou a navegar aos 14 anos. Fugia das aulas,

não queria estudar. O pai dava bronca, até que decidiu contar os segredos da profissão ao filho. “Já que você quer vou ensinar”.

“O segredo está na posição dos panos (em dois mastros), que dependem do vento. Se tiver no Sul o pano vem para o lado do Nor-te, se tiver no Norte vai para o Sul”, ensina mestre Aurélio.

O mestre diz conhecer o Baixo São Fran-cisco com a palma da mão, sabe os locais de melhor acesso e tráfego, e os perigos das cro-as e das pedras ao longo do corredor.

“O rio aqui embaixo mudou muito. O que era raso é onde está o canal, tem muitos bai-xios, não vá. Tem que procurar as costas dos lados de Sergipe e Alagoas. Pelo meio você vai se enganchar nos baixios”, explica.

Depois do desaparecimento da canoa, a frustração se abateu sobre seu Aurélio. Até

que chegou um dos dias mais felizes de sua vida. O prefeito de Pìranhas, Inácio de Loyola, lhe contrata, em 2006, para buscar a canoa de tolda reformada em um estaleiro em Propriá.

“Eu pensei que nunca mais na vida eu ia ver outra vez a canoa de tolda, e mais ainda navegar a bichinha toda nova, de Propriá a Piranhas”, diz seu Aurélio.

A surpresa ainda foi maior quando chegou ao Porto com a canoa restaurada, e o prefeito lhe deu uma nova missão: cuidar da canoa por toda sua vida, “até quando der”.

É ele quem recebe os turistas, exibe a ca-noa, bordeja de um lado a outro, mostra sua arte e explica os detalhes da centenária ca-noa: as velas, o moitão, a própria tolda (ca-bine), o leme e a taboa de bolina, uma bar-batana de madeira lateral, que dá a orienta-ção do barco.

seu Aurélio:o guardião canoeiro

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Eu pensei que nunca mais ia ver outra vez a canoa de tolda e ainda mais navegar a bichinha

Aurélio de JanjãoMEStRE DE CANOA

O segredo da canoa de tolda está na posição dos panos, que dependem do vento

Aurélio de JanjãoMEStRE DE CANOA

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seu Aurélio de Janjão é um dos derradeiros mestres da canoa

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Um dos últimos exemplares da canoa de tolda está em Piranhas

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Neno Canuto

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“A canoa de tolda é o símbolo da prosperidade no Baixo Chico. Havia cem, duzentas cano-as aqui para cima e para baixo, todas eram de tolda e chatas. A chata era uma canoa menor um pouquinho, sem cabine na proa. A canoa carregava o arroz, o barro, as pes-soas, os recados. Levava dinheiro para cima e para baixo, enfim, ela era a força, o sím-bolo da economia local, e pode vir a ser de novo o grande fator de agregação da comu-nidade ribeirinha”, afirma o presidente da Sociedade Canoa de Tolda, Carlos Eduardo Ribeiro Junior.

O biólogo e administrador do Museu do Mar, Paulo César Werner, é outro fã de car-teirinha da nau. Foi ele que, depois de rodar quase mil quilômetros de automóvel e em-barcações pelo rio e seus afluentes, conse-guiu adquirir um raro exemplar para o mu-seu, hoje uma de suas atrações.

“Fui para o Baixo São Francisco atrás de uma embarcação que era tida como desa-parecida, a canoa de tolda, que é de origem holandesa. Percorri cerca de mil quilômetros no Vale do São Francisco atrás dessa embar-cação e consegui um exemplar para o museu. Contratei um prático do rio e navegamos dois dias com essa canoa até Penedo para facilitar o acesso do caminhão. Foi meu presente de

Natal de 2000. Navegar com uma canoa de tolda pelo rio São Francisco é uma coisa que certamente pouquíssimas pessoas fizeram nesses últimos tempos, foi um momento de verdadeiro deleite”, contou Werner.

Mas foi a Sociedade Canoa de Tolda que marcou ponto na história da região do BSF, ao retomar as navegações entre o Sertão – se-parado por um cinturão de caatingas, estra-das pedregosas e rocha areníticas - e a foz.

A ONG restabeleceu, ainda que de forma parcial, as ligações entre as comunidades sertanejas (é notório o isolamento de comu-nidades em um sobrevoo na região) e a tra-dicional navegação do Baixo Chico.

“Hoje, nós conseguimos fazer toda essa trajetória de 10 anos para botar essa embar-cação de volta na água sem um tostão de di-nheiro público, apenas com mobilização pes-soal, carregando tudo na cabeça, vontade de fazer. E, claro, as pessoas na comunidade que ajudaram”, diz Carlos Eduardo.

Para ele, além da falta dos grandes mes-tres da carpintaria naval do Velho Chico, ou-tro sério problema dificulta ainda mais novas cópias, o desmatamento de espécies nobres de madeira.

“A madeira acabou. As embarcações eram feitas, totalmente, com madeira local, braú-

na, pau d’arco, cedro, e tudo isso se acabou, você não tem mais madeira na beira do rio. A economia mudou, a função da canoa, que era transportar carga, deixou de ter valor, porque não havia mais carga, Dessa forma, a canoa deixou de ter valor, só o valor afeti-vo, que é muito forte”, diz.

Ele lembra outro fato importante na reto-mada da navegação do Baixo São Francisco: a relação feminina com os barcos e canoas do rio. “Não conheço no Brasil um lugar onde as mulheres tenham essa ligação com embar-cação. Aqui as mulheres gostam de andar de barco, sabem pilotar a embarcação, mesmo quem era só passageira se lembra do nome das embarcações”.

A canoa de tolda só existe no Brasil e é um modelo muito particular, na verdade as toldas eram embarcações enormes.

“A nossa é pequena, tem apenas 16 metros de casco, 25 metros com o mastro, e são per-feitamente adaptadas para descer, sobe a fa-vor do vento, com o pano aberto e vem borde-jando de lá cima para cá . Ela tem várias influ-ências, holandesa, portuguesa, oriental, das colônias portuguesas em Macau, ela juntou uma série de experiências que deram certo. É a embarcação perfeita para o Baixo São Francisco”, acredita Carlos Eduardo.

Refazendo a história

Não conheço no Brasil um lugar onde as mulheres tenham essa ligação com a embarcação

Carlos EduardoDIRIGENtE DA ONG CANOA DE tOLDA

Fui para o Baixo São Francisco atrás de uma embarcação tida como desaparecida, era a tolda

Paulo César WernerGEStOR DO MuSEu DO MAR

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Mestres carpinteiros estão perdendo a corrida contra o tempo

Apesar de pontuar pequenos estaleiros arte-sanais ao longo dos 208 quilômetros de costa doce, os mestres carpinteiros navais do Bai-xo São Francisco estão perdendo a corrida contra o tempo.

Não há mais embarcações para se fazer, o PVC substituiu a madeira e o rio perdeu um grande volume de água a partir da constru-ção das barragens e das usinas hidrelétricas nos anos 1960, e os últimos mestres veleiros não são incentivados a repassar seus conhe-cimentos aos aprendizes.

A construção de novos modelos não está tão fácil como parece, pois não se trata de linha de montagem, mas a pura arte de ofí-cio dos velhos construtores de canoas, que já não são mais os mesmos, e hoje alcançam

o peso da idade. Como o mestre carpinteiro e canoeiro Pedro de Aristides, que com 84 anos terminava sua última canoa, como ele ressaltou, numa tarde de fevereiro de 2010, em um estaleiro artesanal do Porto de Pe-nedo. Seu Aristides participou da reforma e da reestruturação de dezenas de canoas de toldas, até o quanto pôde.

Foi ele que levantou dois dos três únicos exemplares da canoa de tolda existentes no mundo: a Luzitânia, recuperada pela ONG Sociedade Socioambiental Canoa de Tolda e a da Prefeitura de Piranhas. A terceira canoa está no Museu Nacional do Mar, em Santa Catarina.

“Hoje não tem nem imitação do passado. O rio acabou. A embarcação acabou. Hoje o

povo só quer lancha de plástico e motor. Mas existem ainda grandes mestres em Pão de Açúcar. Mas a canoas acabaram. O Porto de Penedo não cabia de tanta, eram umas 400 para cima e para baixo”, lembra Aristides.

Ele lembra que foi numa canoa de tolda que transportou do navio para a margem do porto as quatro torres metálicas de energia da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) que chegava a Penedo.

“Antigamente não tinha rodagem, hoje qualquer biboca tem estrada”, desconver-sa seu Aristides. Ele promete, tão logo aca-be sua última canoa, que vai começar a fa-zer miniaturas das famosas embarcações. “Vou começar a procurar os paus”, projeta seu Aristides.

Tradição da carpintaria naval está no fim

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Se antes, desde o império, passou pelo es-plendor dos anos 1920 até 1950, e resistiu até os anos 1960, hoje as navegações de carga e passageiros feitas por navios vapores, barca-ças, lanchas e canoas de todos os tipos, estão em plena e irrefreável decadência.

O Porto de Penedo, por exemplo, irradiava saúde financeira, movimentando um esplen-doroso volume de negócios – existia até mes-mo uma alfândega, agência da Loyd Brasilei-ro e Capitania dos Portos – em mercadorias e matérias-primas como algodão, madeiras de lei, cerâmica, produtos agrícolas, animais e até peles tipo exportação.

E lá estavam os navios da Loyd; da Compa-nhia Penedense de Navegação, do grupo Pei-xoto, os oceânicos Luso Brasil e Brasil Luso; os da Companhia Industrial Penedense CIP-

que incluía as duas maiores canoas de tolda do Baixo, a Alagoana e a penedense Marial-va. As lanchas Tupã, Tupi, Tupigy e Moxo-tó, que ficou famosa pelo seu naufrágio, e os navios a vapor Comendador Peixoto, Penedi-nho e Jiquitaia.

Duas datas históricas marcam a relação entre a navegação no Baixo e a cidade do Penedo. Em 5 de março de 1637, a frota do governador-geral do Brasil Holandês, Mau-rício de Nassau, cerca os portugueses e con-quista Penedo, onde começa a construção do Forte Mauritz, após sucessivas vitórias sobre as forças lusitanas desde Porto Calvo, onde morre o irmão mais moço de Nassau, Car-los von Nassau.

Já em outubro de 1859, passada a domina-ção holandesa, o jovem imperador Dom Pe-

dro II, aos 34 anos, desembarca em Penedo e faz uma viagem antológica pelo Baixo São Francisco, incluindo os municípios ribeiri-nhos alagoanos - de Piaçabuçu até a Cacho-eira de Paulo Afonso, em Delmiro Gouveia. O monarca atravessou parte dessa epopeia muitas vezes montado em lombo de burro ou a bordo da frota de navios a vapor do Império.

Hoje, já não existe mais o glamour das grandes navegações, e Penedo e todas as ci-dades do Baixo, incluindo os dois estados ri-beirinhos – Alagoas e Sergipe – só se enfei-tam de verdade nas comemorações da cente-nária festa do Bom Jesus dos Navegantes, o maior evento religioso e profano do Baixo São Francisco, que acontece todo começo de ja-neiro, com a procissão fluvial conduzida por centenas de embarcações de todos os tipos.

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GLAMOUR E dECAdÊNCIA

As numerosas embarcações eram símbolo de prosperidade econômica

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Rio São Francisco: um manancial de riquezas

O rio São Francisco, com seus aproximada-mente 240 quilômetros de extensão na sua parte alagoana, apresenta uma impressio-nante diversidade ambiental, paisagística e cultural que fazem dele, na visão da Coope-ração Espanhola, uma das regiões com mais encanto do Brasil.

O Velho Chico se apresenta para o trabalho da Agência Espanhola de Cooperação Inter-nacional para o Desenvolvimento como um terreno fértil com enorme potencial para o desenvolvimento sustentável do setor turís-tico em vários de seus segmentos de merca-do, tais como o turismo de aventura, o espor-tivo e o ecoturismo, entre outros.

Apesar do aumento nos últimos anos do turismo em Alagoas, e de ser este Estado, na atualidade, um dos principais destinos turís-ticos de sol e praia no Brasil, o setor não está suficientemente desenvolvido no São Fran-cisco e grande parte do seu potencial ainda não foi aproveitado.

Consequentemente, a expansão do turis-mo dentro de uma estratégia de segmentação de qualidade e de baixo impacto ambiental pode gerar incrementos da renda da popula-ção local a partir da criação de pequenos ne-gócios, representando um grande potencial para a diversificação econômica da região.

Porém, como acabamos de citar, o modelo de turismo do Estado está baseado no tradi-cional produto de sol e praia, apesar de con-tar com inúmeros atrativos turísticos que po-dem ajudar a criar produtos diversificados e segmentados.

Pedro Flores* e alejandro Muñoz**::: A

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Exemplo desta riqueza é o formidável e pitoresco conjunto monumental da cidade de Piranhas, com sua antiga estação de trem que virou Museu do Sertão e a tradicional canoa de tolda, que já foi o principal meio de transporte dos ribeirinhos. No município de Delmiro Gouveia, destaca-se a Usina do Angiquinho, a primeira hidrelétrica do Nor-deste, já na divisa com a Bahia. E não poderí-amos esquecer o Cânion, com a maravilhosa Gruta do Talhado e a imponente Hidrelétrica do Xingó, na divisa com o Estado de Sergipe.

Mas não só existem belezas paisagísticas nesta zona alagoana do Velho Chico, também encontramos artesanato, como os bordados da comunidade de Entremontes, a gastrono-mia, com o delicioso pitu e as manifestações folclóricas referentes ao Cangaço, exemplos da variedade de atrativos turísticos desta re-gião.

Descendo o rio, nos deparamos com a ci-dade de Pão de Açúcar, onde vale a pena ob-servar do seu mirante a região, conhecer as praias fluviais e o artesanato da Ilha do Ferro.

Já próximo da foz, o exuberante patrimô-nio histórico-cultural da cidade de Penedo, que com suas igrejas e palácios nos transpor-tam ao passado do Brasil Colonial. Por último, no município de Piaçabuçu, na mesma foz, as praias, dunas, mangues e coqueiros nos deixam deslumbrados no encontro do rio São Francisco com o Oceano Atlântico.

Por outra parte, o São Francisco repre-senta um potencial enorme no que se refere à pesca sustentável e à aquicultura, espe-cialmente a esta última atividade, já que se estima que no Delta existam mais de 14.000 hectares adequados para o cultivo de peixes.

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É preciso salientar que a piscicultura en-contra-se ainda num estado incipiente na re-gião, se destacando o cultivo da tilápia (Oreo-chromis niloticus), do tambaqui (Colossoma macropomum) e do surubim (Pseudoplastys-toma fasciatum), entre outros, havendo ca-pacidade de ampliar o número de espécies e pesquisar outras, especialmente nativas, susceptíveis de serem cultivadas de forma sustentável.

Apesar destas excelentes oportunidades que oferece o Velho Chico a seu passo por Ala-goas como acabamos de ver, os municípios desta região apresentam um Índice de De-senvolvimento Humano (IDH) relativamente baixo. Como exemplo disto, sobressai o mu-nicípio de Traipu, com um IDH de 0,479 (bai-xo desenvolvimento humano) e outros como Olho d’Água do Casado, Belo Monte, Porto Real do Colégio e Igreja Nova, todos com um IDH inferior a 0,6 (dados ano 2000).

São estes os motivos que fizeram a Agên-cia Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), aceitar, em 2007, colaborar com diversas instituições alagoanas para o desenvolvimento desta re-gião. Desta forma foram iniciados os projetos “Dinamização do Turismo e Sustentabilida-de Ambiental do Rio São Francisco”.

O objetivo é aumentar a renda das comu-nidades com menor poder aquisitivo dedica-das ao setor turístico, fomentando a diver-sificação e fortalecendo seu quadro econô-mico por meio do desenvolvimento do turis-mo sustentável. Pretende-se que o setor do turismo alagoano atue como ferramenta de desenvolvimento socioeconômico, integran-do neste crescimento, de maneira especial, suas populações mais carentes.

O segundo dos projetos pretende melho-rar a qualidade de vida das comunidades dedicadas à pesca, à mariscagem e à aqui-cultura em Alagoas, superando as carências econômicas e sociais que lhes impedem de alcançar um nível de bem-estar adequado.

A finalidade do terceiro é o de contribuir ao desenvolvimento socioeconômico do Estado de Alagoas através da modernização empre-sarial das pequenas e microempresas e da diversificação produtiva. Para conseguir isto já se criou a Agência de Fomento de Alago-as (AFAL), que fomenta o desenvolvimento econômico das micro e pequenas empresas inovadoras e das famílias de baixa renda por meio da inserção produtiva. Desta maneira, este projeto complementa os dois descritos anteriormente.

Com tais ações, a Cooperação Espanhola espera contribuir na melhora das oportuni-dades e das capacidades da população desta região do Velho Chico, por meio do aproveita-mento de forma sustentável dos inumeráveis recursos que possui.

*Pedro Flores é coordenador-geral da Cooperação Es-panhola no Brasil

**Alejandro Muñoz é diretor de Projetos da Coopera-ção Espanhola no Brasil.

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São Francisco:o rio da resistência

Uma época em que a preservação ambien-tal no planeta passa a ser o grande desafio da humanidade - no sentido de garantir a manutenção da biodiversidade e dos recur-sos naturais - exige de forma inadiável a mu-dança de postura na forma de consumo da sociedade, em todos os níveis de governo, e na forma de exploração econômica levada a efeito pela iniciativa privada, como também pelos estados e suas instituições.

Apesar de suas controvérsias e de dife-renças de números, há na comunidade cien-tífica um consenso a respeito das mudan-ças climáticas em curso no nosso planeta. Os efeitos dessas mudanças no clima já são sentidos em todos os continentes e na maio-ria dos países.

No Brasil, a chuva torrencial acima da mé-dia histórica, que tem levado destruição, pre-juízos e mortes ao Sul e Sudeste, a constância de tornados em Santa Catarina e no Rio Gran-de do Sul, o aumento do período de estiagem na Amazônia e no Nordeste, como também o avanço do mar na costa brasileira são al-guns exemplos que podem ser comprovados.

Por outro lado, no quadro da desigualdade regional ainda existente no País, destaca-se o nível de pobreza da população nordestina, cujo índice de carência se acentua onde há menor disponibilidade de recursos hídricos de superfície.

eduardo jorge de oliveira Motta*::: A

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Neste quadro, o Nordeste, com mais de 47 milhões de habitantes, possui cerca de 3% das águas nacionais, representado prin-cipalmente pelo rio São Francisco. Em com-paração, a bacia Amazônica detém aproxi-madamente 70% das águas fluviais brasilei-ras, onde residem menos de 13 milhões de

pessoas, ou seja, cada uma dessas regiões, respectivamente, correspondente a 28,1e 7,6% da população brasileira.

Portanto, diante da importância estraté-gica do rio São Francisco para o Nordeste e para a nação, desde os primórdios da civi-lização brasileira, tanto pela forma de ocu-pação de suas terras quanto pela interliga-ção do Sul/Sudeste com o Nordeste/Norte,

o rio passou a ser conhecido como “rio dos currais, da unidade nacional e da integra-ção nacional”.

No entanto, apesar de seu grau de im-portância para o desenvolvimento regional, a partir do uso de seus recursos hídricos - com destaque para a agricultura irrigada, pe-cuária, indústria, hidroeletricidade, abaste-cimento e turismo -, o modelo de ocupação e de exploração adotado resultou em grandes impactos ambientais e sociais que precisam ser reparados.

Neste contexto, ressalta-se a relevância do Programa de Revitalização da Bacia Hi-drográfica do Rio São Francisco ora em exe-cução pela Companhia de Desenvolvimen-to dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o qual se faz necessário que seja incrementado e dado continuidade, para que o rio receba o tratamento de que vem care-cendo há décadas.

Importantes projetos começam a ser exe-cutados pelo Ministério da Integração Nacio-nal por meio da Codevasf, a exemplo de obras de saneamento e de esgotamento sanitário, elaboração de planos de manejo de unidades de conservação, recuperação de matas cilia-

A resistência possui um símbolo, o farol do Cabe-ço, outrora localizado no povoado que existia no município sergipano de brejo Grande

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res, monitoramento liminológico e da pesca, recomposição da ictiofauna, educação am-biental, dentre outros.

Porém, diante da magnitude da degrada-ção ambiental no Vale, ocasionada pela ação humana desde a época das Capitanias He-reditárias, cabe à sociedade e aos governos federal, estaduais e municipais contribui-rem para a sua conservação e implementa-ção de projetos de desenvolvimento susten-táveis que venham garantir a sobrevivência das futuras gerações e a do próprio rio.

O Vale do São Francisco, atualmente, cons-titui-se em um laboratório a céu aberto que, a partir dos resultados alcançados pelo pro-grama de revitalização, deverá ser estendido para as demais bacias hidrográficas do Bra-sil que, quase na sua totalidade, também ne-cessitam ser recuperadas.

É importante ressaltar que a vegetação natural do cerrado brasileiro, região onde nasce a maior parte dos grandes rios nacio-nais, começou a ser destruída mais inten-samente a partir de meados da década de 1950, quando começou sua transformação em carvão vegetal para o uso doméstico e, principalmente, como fonte de energia para a operação das siderúrgicas.

Essa destruição, que na década de 1970 já atingia patamares da ordem de 300 mil hec-tares por ano, adicionada, posteriormente, à expansão da criação de gado e do cultivo de grãos, chegou a atingir anualmente cerca de um milhão de hectares.

Em decorrência dessa devastação da flo-resta nativa do cerrado, nascentes de vá-rios afluentes que formam as principais ba-cias hidrográficas brasileiras, como a do São Francisco, Araguaia, Tocantins, Xingu, Para-ná, Parnaíba, dentre outras, estão secando, o

que poderá, no futuro, levar essas riquezas naturais ao colapso.

Nessa perspectiva, o rio São Francisco, apesar da degradação, em decorrência da construção de grandes barragens, desma-tamento, assoreamento, poluição, irrigação, pesca predatória, caça clandestina, isola-mento ou ocupação de lagoas marginais etc., continua vivo e perene, podendo assim, ser considerado o rio da resistência.

Essa resistência possui inclusive um sím-bolo, o farol do Cabeço, outrora localizado no povoado que existia no município sergipano de Brejo Grande, na confluência do São Fran-cisco com o oceano Atlântico.

O farol, que se situava em terra firme den-tro do povoado, hoje se encontra a centenas de metros mar a dentro, enquanto o povoado original foi totalmente engolido pelo oceano, a partir de um processo erosivo costeiro ja-mais visto na região.

Esse fenômeno erosivo passou a acon-tecer desde que o rio foi regularizado pela construção de uma série de barragens, per-dendo com isso velocidade, além de reter os nutrientes que eram carreados em grande quantidade para o oceano, levando ao declí-nio um dos maiores bancos de camarão e de peixes existentes no País, o do Peba em Alagoas.

O rio, enfraquecido desde suas nascentes até a foz, agoniza, pela ganância e explora-ção de seu próprio povo.

Exige-se, portanto, da sociedade e do Es-tado mobilizarem-se com o objetivo de adota-rem medidas amplas e eficazes que venham a regenerar e preservar o vale do São Fran-cisco e, por extensão, contribuir com a ma-nutenção do único planeta do universo onde a vida é conhecida, a Terra.

*Engenheiro de Pesca

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Apelo em favor de um velho amigoanivaldo Miranda*::

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Quando o governo federal começou a impor, de forma autoritária como é da nossa cultura política centralista, o projeto da transposição das águas do rio São Francisco, procurou, paralelamente, minimizar as repercussões negativas do fato através de uma sistemáti-ca manipulação do fluxo de informações re-lativas ao assunto.

Para os que acompanharam mais de perto a polêmica suscitada pelo projeto, ainda está bem viva na memória a insistência com que os porta-vozes do Palácio do Planalto asse-guravam que o projeto da transposição em nada iria afetar a geração de energia oriun-da das hidrelétricas que, a partir das águas do Velho Chico, garantem – em sistema na-cional integrado - a oferta de energia para a região Nordeste.

Passados, porém, os momentos mais ten-sos da queda de braço provocada pela trans-posição, o governo sente-se agora mais con-fortável para apresentar uma nova fatura ao já combalido rio São Francisco: quer erguer em seu leito mais três barramentos (um de-les à altura do município de Pão de Açúcar, em Alagoas) e, quem sabe, dependendo de estudos em andamento, conveniências e ar-ticulações políticas, água para viabilizar o funcionamento de uma central nuclear.

Como para bom entendedor duas palavras bastam, não é difícil concluir que os defen-sores oficiais da transposição simplesmente mentiram para o País. O projeto megalôma-

no vai realmente afetar o potencial energé-tico do São Francisco e é por essa razão que as novas barragens e a central nuclear es-tão sendo idealizadas como saída para ree-quilibrar, em futuro próximo, os impactos da transposição, muito embora, em algum mo-mento o incremento do crescimento econô-mico nordestino venha a reclamar maiores investimentos na oferta de energia.

Como se sabe, o rio São Francisco é já um paciente grave. Porém, apesar dessa evidên-cia, os governos e usuários de suas águas tratam de ignorar completamente, digamos assim, esse péssimo estado de “saúde am-biental” que, além do mais, apresenta reais perspectivas de agravamento com o avanço dos processos do aquecimento global. Em no-me da ideologia do crescimento a qualquer custo, as demandas pelo uso econômico da água crescem a um ritmo acelerado, enquan-to as políticas de revitalização do ecossiste-ma que garante a existência do rio caminham a passo de tartaruga.

Um sintoma claro desse descompasso es-tá no aumento da frequência com que o Ope-rador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a

Agência Nacional de Energia Elétrica (ANE-EL) e a Agência Nacional de Águas (ANA) têm se combinado para reduzir constantemente a vazão mínima de restrição na foz do São Francisco como compensação às manobras do sistema nacional integrado de distribui-ção de energia e aos efeitos das estiagens nas barragens do rio (Sobradinho em primei-ro lugar), um claro e preocupante sinal do choque entre oferta e demanda de água no contexto das condições cada vez mais cam-biantes do clima.

O que foi dito acima configura apenas al-guns dos muitos exemplos de conflitos de uso da água já existentes e passíveis de agrava-mento depois que os canais da Transposição estiverem a pleno vapor levando as águas do São Francisco, a um custo absolutamente astronômico, para viabilização dos projetos

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do agronegócio de exportação de frutas tro-picais e criatório de camarões no Nordeste Setentrional, leia-se, viabilização unilateral e privilegiada dos interesses do grande ca-pital agroindustrial e exportador do Ceará e Rio Grande do Norte, principalmente.

Nada está mais longe da verdade do que essa recorrente afirmação oficial que pre-tende apresentar o megaprojeto da Trans-posição como uma suposta redenção para o sertanejo nordestino sedento. Se, de fato, fossem os sertanejos o alvo dos bilhões que serão gastos, o projeto e as obras seriam ou-tros. Que o diga o projeto “Atlas Nordeste” que, usando apenas metade dos recursos da Transposição, estaria apto, com soluções muito mais baratas (adutoras, cisternas, bar-ragens subterrâneas etc.) e mais rápidas, a dar solução imediata à escassez hídrica da miríade de pequenas comunidades abando-nadas no Semiárido brasileiro.

A Transposição é, na prática, um proje-to que dará segurança hídrica, sobretudo no contexto do seu Eixo Norte, às bacias do Nor-deste Setentrional que já têm essa seguran-ça em horizonte razoável. Geopoliticamen-te trata-se de um projeto concentrador de renda, parido de uma concepção equivoca-da de desenvolvimento que prospera desde o tempo da Ditadura Militar. Não é uma coi-sa para pobres.

Poluído, assoreado, obrigado a espremer-se em suas margens crescentemente erodi-das, triste por haver perdido a navegabilida-de em extensos trechos, agredido no regime de suas águas pelos inúmeros barramentos, incomodado pela perda de sua vegetação ci-liar, angustiado pela decadência de muitas de suas cidades ribeirinhas, chacoteado pelo Oceano Atlântico que adentra a cunha sali-na das águas do mar muito além de sua foz, empobrecido em sua biodiversidade, o Ve-lho Chico clama por socorro. Resta saber se seus filhos e filhas vão querer escutar seus lamentos e tomar as dores de sua tragédia.

*Anivaldo Miranda é jornalista e representa o Fórum de Defesa Ambiental (FDA) no Comitê do São Fran-cisco.

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Verger em Alagoas:

douglas aPratto tenório* e CárMen lúCia dantas**

Em 2005, durante o “Ano do Brasil, na Fran-ça”, a programação “Bresil, Bresils” trouxe um grande ganho para a cultura brasileira no exterior, favorecendo a imagem do nosso país na Europa em toda a sua diversidade,

riqueza e criatividade. Em 2009 foi a vez de o Brasil retribuir. A França foi apresentada em nosso território como um país aberto, de grande riqueza cultural, moderno. Do Ama-zonas ao Rio Grande do Sul, houve uma série

de eventos que consolidaram a amizade das duas nações que, embora afastadas geografi-camente, compartilham os mesmos valores democráticos e sociais e a mesma visão da indispensável diversidade cultural.

*Dougras Apratto é historiador

**Cármem Dantas é museóloga

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VerVerger em Alagoas:

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uma viagem para não esquecer

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O projeto Pierre Verger em Alagoas: uma viagem para não esquecer, idealizado por mim e Cármen Lúcia Dantas, colega de ou-tros trabalhos culturais, pretendia inserir Alagoas nesse circuito nacional, ao lado de outras unidades federativas, através de um calendário sobre essa viagem quase desco-nhecida do antropólogo franco-baiano, que foi publicado em outubro de 2009 e esgota-do em menos de um mês - para tristeza dos solicitantes que disputavam a posse daque-le material. O projeto não se encerrava com o calendário, que já é uma tradição anual no mundo cultural e científico de Alagoas. Pro-gramava ainda a publicação de um livro de arte e um álbum ilustrado, que está em fase final de execução, sobre o assunto, valori-zando a passagem por Alagoas, na década de 1950, desse destacado artista e cientista social de renome internacional.

O estudo desse período apresenta fotos e situações inéditas de Alagoas em meados do século XX, uma era de grandes transforma-ções na estrutura social, política e econômica do Estado, revelando cidades e lugares es-quecidos do interior alagoano, ressaltando o importante episódio da construção da Chesf, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, e valorizando, através das lentes mágicas de Pierre Verger, o cotidiano, o homem e a pai-sagem alagoana.

Sem contar algumas poucas cidades do Sertão e do Agreste, Verger retratou basica-mente a peculiar região do Baixo São Fran-cisco, tendo como base a antiga Pedra, hoje Delmiro Gouveia, pois presenciou a odisséia da construção da mega-hidrelétrica no can-

teiro que tinha o lado baiano de Paulo Afonso como polo, mas que mantinha laços estreitos com a margem alagoana, de onde vinha boa parte do abastecimento de gêneros e de pes-soal ávido por ganhar a vida no novo eldora-do em que se tornou a região, semelhante à febre que grassa nas cidades onde são des-cobertos ouro e pedras preciosas.

O território são-franciscano foi por ele percorrido: a lapinha Piranhas, a barroca Penedo, a interessante Traipu, Pão de Açú-car - a bela espelho da lua, como a chamavam os indígenas -, Piaçabuçu e os encantos da foz, com suas imensas dunas, todo um conti-nente mágico que seduz o viajante com seus costumes, tradições, folclore, gastronomia e um patrimônio artístico e histórico tão varia-do quanto a multiplicidade dos povos forma-dores de sua gente.

Todo esse encantamento encontra-se dis-tribuído nos onze municípios de suas mar-gens e barrancas, em um mundo fascinante onde cada paisagem, cada vila, cada lugarejo, cada lenda e cada história, a flora, a fauna, a religião e a arte, os momento da vida de seus moradores se ritualizam e envolvem ondas de encanto e mistério, desde o nascimento até a morte, do nascer ao pôr-do-sol de cada dia, do trabalho agrícola na terra até a pesca em suas águas generosas.

A viagem de Verger é um presente para Alagoas. Ele deu visibilidade ao lugar, não só à natureza exuberante, mas ao homem alagoano do São Francisco, assim como ao do Sertão, na espontaneidade do cotidiano. O francês, que foi fotógrafo, etnólogo e escri-tor, tinha larga experiência de campo desde 1932, pois durante catorze anos viajou pelo mundo, por diversos países e continentes, re-gistrando paisagens e pessoas para jornais e revistas europeias e americanas. Colaborou nesse período com o Museu do Homem e ob-teve o título de doutor em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras e Ciências Huma-nas da Universidade de Paris. Foi membro do Museu Nacional de História Natural e diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica.

Ver um mestiço local sem nenhuma pro-dução preparatória, sem qualquer pose ar-tificial, um jangadeiro arrumando sua em-

barcação para sair rumo à pescaria, um trabalhador em breve descanso de sua lida barrageira, uma cabocla contando pencas de banana em plena feira interiorana, mulheres cachimbando em agradável diálogo, a religio-sidade popular nas procissões e nas cruzes erigidas nas caatingas é uma prova incontes-te de que a técnica fotográfica se integra de-finitivamente como instrumento de preser-vação da história e da identidade dos povos.

Um mestre da fotografia como Verger, que tinha uma visão antropológica do mun-do, pôde tirar de breves instantes, que po-deriam ficar desatualizados alguns anos de-pois, imagens que estão muito à frente de seu tempo. Seu périplo de descobertas pelo território alagoano, do velho Opara indígena à hinterlândia sertaneja, trouxe uma descri-ção densa de uma sociedade extremamente miscigenada. Ele teceu com seu instrumen-to de trabalho uma gama de representações e observações possíveis, com recomposição dos tipos humanos integrados à natureza da região, com toda sorte de significados so-cialmente possíveis que o apreciador de su-as imagens possam obter, ontem, hoje e em qualquer época do futuro. Ali, onde o índio se transformou em vaqueiro, onde o negro sofreu o azedume da escravidão e se trans-formou em canoeiro (e é chamado de boê-mio do Sertão), os curtidores, os tangerinos, os roceiros, as lavadeiras e as artesãs têm um diferencial na vida livre, mais solta, nu-ma sociedade diferente da senhorial e mais hermética do litoral canavieiro, Verger cap-tou as representações históricas, antropoló-gicas, individuais e coletivas que os homens

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Verger captou as repre-sentações históricas, antropológicas, indivi-duais e coletivas que os homens constroem sobre o mundo

A viagem de Verger é um presente para Alagoas. Ele deu visibilidade ao lugar, não só à natureza exuberante, mas ao ho-mem alagoano

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constroem sobre o mundo. Assim como ele se tornou um franco-baiano em toda a pleni-tude, não só morando em Salvador, mas se integrando como um cidadão soteropolitano, no Sertão e nas barrancas são-franciscanas ele pôde atingir a gratificante sensação de se apoderar das sensações, das experiências alheias, individuais ou coletivas, que pode-riam ser dele próprio.

A identidade é um processo de acumula-ção de práticas que afloram frente as mais diversas conjunturas. A identificação social tem sido tratada como um padrão genérico, cultural, nacional, regional, mas o certo é que existem partes da identidade que confor-mam além do cultural, do sociológico, do his-tórico, unidades, traços psicológicos e psíqui-cos da mesma. E isso o mestre francês sabia muito bem e utilizava em suas incursões de trabalho. Em um diálogo mudo entre duas mulheres perto de um poste de luz, na expres-são de admiração de um passante sobre um jovem tropeiro em uma feira, no trabalhador que por um breve momento de cansaço apoia a mão no estrado de madeira, no olhar sobre o infinito do rio do canoeiro de torso desnudo, no grupo que se reúne em torno de uma cruz imensa ou no homem que carrega um balaio de macaxeira para venda na rua da cidadezi-nha, temos a expressão do desejo do homem em se identificar com aquilo que ele não é, como o seu caminho para a plenitude, com a magia humana de tornar-se um com o todo da realidade que o cerca através da arte. Ela que permite essa união do indivíduo com o universo em que está e que expõe, de forma clara, a extraordinária capacidade humana em circular experiências e ideias.

O período que Verger passou por Alago-as é de grandes transformações no Estado e no Brasil. É a era do mundo bipolarizado, de cicatrizes mal curadas, do capitalismo nor-teamericano contra a ameaça soviética e a cortina de ferro, em que os ecos da grande guerra contra o fascismo e o nazismo ainda ressoam em todos os ouvidos. Getúlio Vargas continua um mito, adorado e odiado na mes-ma proporção e a efervescência política da redemocratização de 1945 chega com inten-sidade a todos os estados.

Verger capta a transfor-mação no ar, mas não re-produz apenas o que vê, transmite perfis, valores, ação, preconceitos, me-dos, sonhos, alegrias

A década de 50 começa com a vitória surpreendente do jornalista Arnon de Melo contra os invencíveis irmãos Góis Monteiro. O bloco populista em alta não dá trégua aos novos donos do poder e brilha a figura de um líder novo, oriundo da defesa do movimento sindical, o ex-delegado do Trabalho, Muniz Falcão. Na eleição seguinte à sua escolha como governador do Estado, por diferença mínima, mostra não só a irrupção de um no-va era, mas o confronto político radicalizado que leva a violência para todas as regiões. O que mais sintetiza essa transformação vis-ceral é o crescimento urbano populacional que começa a superar o rural e a elevada taxa das correntes migratórias locais que vão fornecer mão de obra para estados su-linos. A industrialização é tema dominante, a descoberta de petróleo em Alagoas dá ra-zão aos pioneiros que pagaram caro com o descrédito de suas ideias. A influência nor-teamericana suplanta os padrões europeus e Verger assiste, no recôndito do Sertão ala-goano, não só ao projeto de um estado de-senvolvimentista com a construção de Paulo Afonso, mas também o início de uma socie-dade cosmopolita e urbana, que dilui, sem retorno, a velha sociedade patriarcal rural. As ondas concêntricas do american way of life chegam ainda sem a força da capi-tal, mas a Coca-Cola, o cinema, o rádio, as revistas, o jeans e as rodovias de asfalto já chegam como mostra de ruptura com uma sociedade agrária e rústica, onde a presen-ça de um automóvel ou de uma marinete é uma festa; onde o horário é ditado pelo nascer e pôr do sol; onde as pessoas vão buscar água nas margens do rio com po-tes na cabeça.

Verger capta a transformação no ar, mas não reproduz apenas o que vê, transmite perfis, valores, ação, preconceitos, medos, sonhos, alegrias, dúvidas. Como um pintor do Renascimento, época igualmente forte em mudanças, registra o que vê em sinto-nia fina com aquele mundo, captando ima-gens sem retoques de uma região do Brasil onde o homem é o personagem principal no grandioso painel natural do ninho de cultu-ras que é o Baixo São Francisco.

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No início do livro Sobre Fotografia a ameri-cana Susan Sontag (1933-2004) escreve: “Co-lecionar fotografias é colecionar o mundo”. Seguindo o raciocínio de Sontag e de tantos outros teóricos da imagem, podemos dizer que fotografar é, de certa forma, apropriar-se de diferentes mundos.

No caso do Nordeste brasileiro a apropria-ção pela via da fotografia rendeu imagens primorosas que revelam tipos, característi-cas e costumes regionais marcantes. Ren-deu também estereótipos que eternizam aos olhos do mundo a estética da pobreza e do subdesenvolvimento.

A alternância entre realidade e mito, his-tória documental e turismo de ocasião tem sido uma constante na fotografia de temática nordestina ao longo dos últimos dois séculos. No II Império, por determinação pessoal do imperador, a Cachoeira de Paulo Afonso foi

içada à condição de objeto obrigatório de do-cumentação. Dom Pedro II encantou-se pelo espetáculo natural após sua célebre viagem pelo São Francisco. E com o objetivo de co-nhecer um pouco mais sobre o lugar, incum-biu o fotógrafo Augusto Stahl, em 1860, de registrar o fenômeno. Marc Ferrez, no final do século, fez o mesmo.

Já no século XX, inúmeros fotógrafos (bra-sileiros e estrangeiros) interessados e volta-dos para aspectos peculiares da região, per-correram caminhos diferentes. O cenário e a estética tropicais se colocavam como obje-tos imperativos. Dentre os mais conhecidos, podemos citar Marcel Gautherot, Stuckert e Pierre Verger. O legado desses profissionais constitui acervos representativos da história

de Alagoas - da capital às cidades do interior - num determinado espaço de tempo.

No caso específico de Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo habituado a documentar di-ferentes culturas ao redor do mundo, o con-tato com a região situada às margens do rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, nos revela aspectos diferenciados de sua obra. Aqui, Verger, de certa forma, passou ao largo da religiosidade, característica de seu traba-lho, para se fixar na estética e nos costumes diários daquela região.

Não se sabe ao certo se Verger chegou ao Estado por Delmiro Gouveia ou por Piaçabu-çu. O certo é que percorreu toda a área são-franciscana, da Cachoeira de Paulo Afonso até a foz, registrando o que lhe parecia in-teressante.

Tomei conhecimento dessa viagem em 2005, quando fui convidada pela Fundação Pierre Verger (ver box), detentora do acervo de seu patrono, para escrever um texto sobre a passagem do fotógrafo pelo Baixo São Fran-cisco, e que seria um dos capítulos do livro O Brasil de Pierre Verger, publicado em 2006.

Até então a viagem e o material fotográfi-co proveniente dos registros feitos por Ver-ger eram desconhecidos do grande públi-co, pois estavam circunscritos ao acervo da Fundação. Diante do conhecimento acerca da importância e da representatividade des-se material, inédito em Alagoas, dividi a in-formação com o professor e historiador Dou-glas Apratto Tenório. Inicialmente, o tema foi abordado por sugestão do próprio historia-dor na edição 2009 do Calendário Cultural Fapeal, projeto que realizamos em parceria anualmente sobre diferentes temas.

Numa pesquisa mais apurada do segmen-to relativo a Alagoas encontramos fotografias feitas em Palmeira dos Índios, União dos Pal-mares e outros municípios, mas é na viagem pelo São Francisco que Verger nos revela o apuro de sua sensibilidade no enfoque socio-cultural em cenas que constituem um precio-so documentário sobre a região, em meados do século passado. E, como costumava dizer: “Sou francês, em parte, porque fui formado à francesa, como uma espécie de lógica, tal-vez verdadeira, talvez falsa, mas com uma

necessidade de explicar as coisas em vez de se deixar levar por elas”.

Assim o fez durante a viagem por Alago-as. Adepto da estética espontânea, flagrou e explicou por meio de suas imagens a na-turalidade dos tipos regionais, pescadores, canoeiros, tropeiros, lavadeiras, artesãs, va-queiros e sertanejos, tostados pelo sol caus-ticante, entregues distraidamente aos seus afazeres cotidianos.

O conjunto dessa obra nos mostra a au-tossuficiência dos moradores das margens na troca de mercadorias e na prática do ar-tesanato para a confecção de objetos de uso doméstico e do trabalho na roça e no rio. Pa-ra além da fotografia em si, o sentido docu-mental do trabalho é reiterado pelo fato de que boa parte dos costumes registrados por Verger sofreu mudanças significativas nas últimas décadas. No campo do artesanato, por exemplo, as matérias-primas utilizadas pelos ribeirinhos, como o barro, a palha, a taboca, as redes e rendas não são mais os mesmos. Muitas dessas peças mudaram de função, saindo do uso comunitário para a pro-dução em maior escala. Poucas continuam sendo usadas pela própria comunidade que as produzem.

As canoas utilizadas naquela época exer-ceram um fascínio especial sobre o fotógra-fo que dedicou a elas parte de sua atenção. Verger mapeou diferentes tipos de embarca-ção com ênfase para as de velas abertas. E nesse quesito temos novamente elementos para fazer um comparativo entre o ontem e o hoje. Basta observarmos as canoas de tol-da, as maiores e mais confortáveis do Baixo

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Aqui, Verger, de certa forma, passou ao largo da religiosidade, carac-terística de seu trabalho, para se fixar na estética e nos costumes

As canoas utilizadas naquela época exerce-ram um fascínio especial sobre o fotógrafo que dedicou a elas parte de sua atenção

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São Francisco, hoje raras, com apenas duas remanescentes: uma no Porto de Piranhas e outra no de Piaçabuçu.

Os registros, no entanto, não se limitam às embarcações em si. Vão até o movimento dos passageiros no transporte de mercadorias entre uma margem e outra. O mapeamen-to feito por Verger identifica ainda a relação entre as cidades, vilas e povoados. Temos imagens representativas da época, como as fotos que mostram o vapor Penedinho che-gando ao Porto de Penedo com as novidades vindas da Bahia, o que reforça o intercâmbio interestadual.

A estética e o movimento corporal dos ri-beirinhos também constituem um rico ca-pítulo do material deixado por Verger sobre Alagoas. Um dos exemplos que ilustram es-se aspecto do trabalho pode ser confirmado na série de imagens que mostram homens e mulheres sobre uma prancha estreita de madeira que se estende da canoa à margem durante o embarque/desembarque.

Atento a detalhes, chegou às minúcias da natureza no jeito de ser são-franciscano. A religiosidade, a estética, a força física e o mo-do de vida compõem o acervo que represen-ta importante fonte de pesquisa para aque-les que se dedicam ao estudo dos aspectos sociológicos da região. Nessa perspectiva, Penedo foi um campo fértil para o francês.

Verger evidencia a cidade com seu campus arquitetônico secular, suas igrejas e casa-rio. Misturou-se com os feirantes na Rua da Praia, por entre vasos de cerâmica, esteiras de piri-piri, covos de tabocas, cestos de cipó e tudo mais que chegava dos povoados pró-ximos para o grande acontecimento público que é, ainda hoje, a feira dos sábados.

E se por um lado deparou-se com a impo-nência barroca e neoclássica do centro his-tórico e com uma cultura farta de costumes tradicionais, por outro percebeu a simplici-dade da gente que circulava nesse cenário. Com a agudeza de sua percepção, tirou par-tido desse contraponto reiteradas vezes em suas fotografias.

Em resumo, podemos dizer que o trabalho realizado pelo fotógrafo é inequivocamente um documento dos costumes, paisagem e ti-pos humanos e a partir dele temos como estabelecer parâmetros entre um tempo e outro. Novamente recorro a Susan Sontag para reiterar que “...uma foto não é apenas o resultado de um encontro entre um evento e um fotógrafo...Após o fim do evento a foto ain-da existirá conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância)...que de outro modo ele jamais desfrutaria...”. Sendo assim, não temos como negar que Pierre Fa-tumbi Verger eternizou aspectos importan-tíssimos da cultura alagoana.

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A fUNdAçãO PIERRE VERGER

Instalada desde 1988 na casa onde o fotógrafo morou, na Ladeira da Vi-la América, nº 6, na capital baiana, preserva o legado cultural de Verger. O acervo está disponível aos pesquisadores para consultas, assim como também as publicações e informações sobre exposições realizadas. O es-paço e os projetos sociais oferecidos pela Fundação à comunidade são mantidos pelo recolhimento dos direitos autorais referentes às fotos e li-vros publicados mundialmente.

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A estética e o movimento corporal dos ribeirinhos também constituem um rico capítulo do material deixado por Verger sobre Alagoas

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Helena saMPaio*

Tesouros do Chico que Pedro não viu

Ganhar a corrente do rio sem tocar nas pe-dras ou sem ter a âncora nelas agarrada co-mo a teve o Pirajá, que a abandonou depois de aproar com a corrente trazida para bordo por gente de um barco do rio que a desprendeu a força de braços, foi a aventura do imperador Pedro II[1], em meados do século XIX, quan-do partiu de Piranhas rumo a Entremontes. Deste povoado o imperador zarpou para Pão de Açúcar, levando pouco mais de duas ho-

ras na viagem que, ainda de acordo com o seu relato, teve bastante vento, “que tornou o rio um mar buliçoso, mostrando o Pirajá desejos de dançar”[2].

Na falta do Pirajá, embarcação imperial, você pode contratar os serviços do barquei-ro de Angico – lá mesmo, onde Lampião e seu bando caíram na emboscada – famoso na região por conhecer cada pedra do rio. Ele deslizará pelo São Francisco num rafting

rústico e improvisado. O trajeto até Entre-montes, saindo de Piranhas, leva cerca de meia hora. Para continuar no itinerário de D. Pedro II, siga para Pão de Açúcar e in-clua em seu roteiro uma visita à localidade de Ilha do Ferro, pertencente àquele muni-cípio, feito que o imperador não fez. O per-curso de Pão de Açúcar até Ilha do Ferro, que contrariando o nome não é ilha, dura em média 20 minutos.

Ao chegar a Entremontes - ou Armazém, como também já foi chamado este distrito de Piranhas - talvez nenhum descendente do comerciante Anacleto de Jesus Maria Bran-dão, dono da casa onde o imperador jantou na noite de 22 de outubro de 1859, esteja lá para recebê-lo; para compensar, uma deze-na de crianças o cercarão curiosas tentando adivinhar o motivo da visita.

Os motivos para conhecer Entremontes são vários, mas não constam do diário do im-perador. Nas 25 linhas dedicadas à sua pas-sagem pela localidade, D. Pedro II limitou-se a dois registros: que a população será de 300 habitantes (estimativa de seu anfitrião para um futuro breve) e que o comércio do povoado era menor que o de Piranhas; e uma breve no-

ta sobre a visita que fez à capela recém-cons-truída por um morador “como cumprimento de voto pelo seu restabelecimento de cólera-morbo”[3], como era costume na época.

Se também esperamos encontrar no diá-rio de D. Pedro II algum comentário acerca de manifestações de cultura material, que pudessem distinguir os moradores do Bai-xo São Francisco, ficaremos frustrados. Mas não é caso de censurá-lo por eventual indi-ferença aos saberes do povo.

O bordado rendendê - hoje patrimônio cul-tural de Entremontes - só teria chegado à re-gião na primeira metade do século XX pelas

mãos de freiras ou de familiares de padres de origem européia, em particular belgas, que lá atuavam[4]. Desde então, o bordado foi disseminado por muitas cidades alagonas e sergipanas[5], distribuídas ao longo de uma linha que corre paralela ao rio São Francisco e que se adentra um pouco o interior.

Nessa região, é comum o rendendê e o ponto de cruz aparecerem associados nu-ma mesma peça. Isso acontece porque am-

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Tesouros do Chico que Pedro não viu

1. Pedro II, imperador do Brasil. Via-gens pelo Brasil. Bahia, Sergipe e Ala-goas – 1859. Rio de Janeiro: Letras e expressões; Bom texto, 2003.

2. Idem, pág. 142.

3. Idem, pág. 141.

4. Essa informação sobre a origem do rendendê na região remete à tradição oral de bordadeiras sergipanas da dé-cada de 1970. Góez, Beatriz. “Rendei-ras de Poço Redondo – Vida e arte de mulheres que batem bilros no sertão do São Francisco”.(Cadernos do Cen-dop 3, Sergipe, 2002).

5. A incidência da prática do renden-dê, segundo Góez, foi constatada em 48 dentre 59 localidades visitadas no final do século xx por uma equipe de pesquisadores. Góez, Beatriz. “Alinha-vos de histórias, debruxos de formas.” In Rendas e Bordados no Brasil. São Paulo: Artesanato Solidário, 2004.

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bos têm um elemento comum em sua técnica de execução: a contagem de fios de tecido. É por isso também que eles costumam ser feitos em tecidos que mostram os fios, uma vez que a técnica utilizada acompanha sua direção[6]. Espécie de limiar entre o bordado e a renda, o rendendê é cortado com motivos e cortes sempre geométricos (quadrados, re-tângulos, triângulos e figuras derivadas),

Em Entremontes, floresceram o rendendê e o ponto de cruz. Em Ilha do Ferro, na mes-ma época, surgiu o bordado boa-noite, nome de uma singela flor da região. Sua técnica consiste em desfiar o tecido e reconstituí-lo em faixas com motivos florais[7]. Reunindo pontos do rendendê e princípios da técnica

do labirinto, o bordado boa-noite revela um hibridismo bastante comum em se tratando de cultura material,

Esses tesouros que o imperador compre-ensivelmente não viu (somente cerca de meio século depois de sua viagem de 1859 seriam disseminados pelas margens do rio tornan-do-se parte do saber fazer das mulheres ri-beirinhas) foram resgatados, em 1999, pelo Programa Artesanato Solidário[8] no âmbi-to de suas ações de ampliar as alternativas de geração de trabalho e renda em regiões pobres do País por meio da valorização do artesanato de tradição.

Ao refazer o percurso do imperador pelo rio São Francisco, a equipe do Artesanato Solidário conversou com muitas mestras e bordadeiras de rendendê e de ponto de cruz, em Entremontes, e do bordado boa-noite, em Ilha do Ferro. O fato de as mulheres serem a quinta ou sexta geração a preservar com seu

trabalho essa tradição pouco repercutia em suas vidas em termos materiais: desvalori-zadas, ganhavam pouco e muito esporadica-mente com a venda dos trabalhos no decorrer dessas décadas e gerações.

Observamos também nessa viagem de diagnóstico que os bordados eram bastan-te desiguais em termos de qualidade, reve-lando diferenças entre as mulheres no que diz respeito ao domínio da técnica tradicio-nal e ao capricho na execução dos pontos. Além disso, as peças ressentiam de serem executadas em tecidos de pouca qualidade e, algumas vezes, até de não prezarem pelo acabamento.

Apesar disso, não havia dúvidas para a equipe do Artesanato Solidário de que a prá-tica disseminada dos bordados, e todos os aspectos simbólicos que envolvem esse sa-ber fazer, representava a riqueza local capaz de fazer frente à situação de pobreza dessas localidades, onde, além da pesca, restavam bem poucas alternativas de trabalho e de ob-tenção de renda aos seus moradores. Toma-do como um ativo local - e com incentivos adequados - os bordados já enraizados em Entremontes e em Ilha do Ferro promoveriam não só oportunidades imediatas de geração de renda para os ribeirinhos, como desen-cadeariam experiências associativas e so-lidárias, tornando as artesãs protagonistas de seu próprio desenvolvimento. Numa tra-dução livre das recomendações da Unesco, o Artesanato Solidário apostava nos bordados, como expressões da cultura, como um recur-so para promover o desenvolvimento local.

Os projetos do Artesanato Solidário em Entremontes e em Ilha do Ferro foram de-senvolvidos ao longo de mais de dois anos e envolveram diversos parceiros nacionais, regionais e locais[9].

De acordo com a tecnologia social do Arte-sanato Solidário[10], o primeiro passo nes-sas localidades foi incentivar as mestras a repartir com as mais jovens o seu saber, o que aprenderam com suas mães e avós ao longo das gerações. Passo solidário e necessário em direção à formação do grupo de produção. A segunda providência foi o fornecimento, pelo Artesanato Solidário, de matéria-prima.

Isto foi importante porque permitiu a forma-ção de um estoque inicial de produção cuja venda se reverteu em capital de giro para os grupos de artesãs, assegurando-lhe futuras compras de tecidos e linhas e, claro, a regu-laridade da produção. Essa também foi uma forma de introduzir em Entremontes e em Ilha do Ferro matérias-primas de qualidade superior, visando à inserção das peças em mercados consumidores mais amplos e exi-gentes. Mas para chegar aí, as artesãs par-ticiparam de uma série de oficinas de capa-citação, com novos aprendizados. Nas ofici-nas para a melhoria do produto, por exem-plo, instrutores contratados pelo Artesanato Solidário e artesãs cuidaram do acabamento,

das bainhas delicadas, das medidas-padrão, alertando-as sobre a importância de terem uma qualidade que lhes garanta vender seus produtos em qualquer lugar do mundo, ten-do com referência a qualidade. Realizamos também com as bordadeiras de Ilha do Fer-ro e de Entremontes oficinas para a criação de novos produtos, buscando sempre a atu-alização das peças para atender ao mercado consumidor – para toalhas de banquete há menos clientes que para jogos americanos, por exemplo. Paradoxalmente, perpetuar bordados significa tê-los permanentemente em uso. Oficinas voltadas para a formação de preço e para a embalagem dos produtos completaram a capacitação das bordadeiras de Ilha do Ferro e de Entremontes e foram decisivas para a sua qualificação.

Outro conjunto de ações empreendidas pelo Programa Artesanato Solidário em En-tremontes e na Ilha do Ferro envolveu o tema

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Esses tesouros que o imperador compreensi-velmente não viu foram resgatados, em 1999, pe-lo Programa Artesanato solidário

A prática disseminada dos bordados repre-sentava a riqueza local capaz de fazer fente à condição de pobreza des-sas localidades

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6. Góez, Beatriz (2004).

7. trata-se de um figurativismo rigo-rosamente geométrico, o qual acompa-nha a trama dos tecidos. Apresenta-se em quatro composições: boa-noite simples, boa-noite cheio, boa-noite de flor e ainda uma variação do boa-noi-te cheio. Bordados da Ilha do Ferro. Brasília: Programa Artesanato Solidá-rio/Conselho da Comunidade Solidá-ria, 2001.

8. O Programa Artesanato Solidário à época era uma iniciativa do Conselho da Comunidade Solidária em parceria com Sebrae, Sudene, Caixa Econômica Federal e Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

9. Os projetos desenvolvidos em En-tremontes e na Ilha do Ferro contaram com a parceria local da Prefeitura Mu-nicipal de Piranhas, do Programa xingó e o apoio do Sebrae/AL e do Pronager/Sepre/FAO.

10. Sampaio, Helena. “Herança re-novada” In Rendas e Bordados no Brasil. São Paulo: Artesanato Solidá-rio, 2004.

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do associativismo e o do empreendedorismo, no âmbito do que reconhecemos hoje como economia solidária e economia criativa.

Mais de dez anos se passaram do encontro entre o Programa Artesanato Solidário com as bordadeiras alagoanas que vivem às mar-gens do rio São Francisco. Desde então, vi-mos constatando com muita alegria que além de saber bordar, as mulheres têm muitos ou-tros talentos: iniciaram solidariamente re-passando seus saberes, em seguida repar-tem lucros e compartilham a cidadania.

Duas organizações de artesãs, estimu-ladas pelo Artesanato Solidário, estão con-solidadas: a associação Cia de Bordados de Entremontes e a Cooperativa dos artesãos da Ilha do Ferro - Art-Ilha.

A primeira reúne hoje cerca de 60 mu-lheres e funciona em uma centenária casa localizada na praça principal; é para lá que as crianças certamente levam os viajantes que aportam no povoado. Logo na entrada da sede da associação uma “bordadoteca” abriga a memória de ofício das artesãs lo-cais. Abrindo suas gavetinhas, dificilmente o visitante não se encanta com os amarela-dos paninhos bordados desde a época da in-trodução do rendendê na região. Na parede, um quadro lembra a escala de trabalho das mulheres no mês, revelando organização e observância do trabalho coletivo. Com técni-cas cada vez mais aprimoradas sobre tecidos nobres, essas artesãs executam o bordado rendendê com uma delicadeza sem igual no País. Os produtos - lençóis, toalhas de mesa, jogos americanos, toalhas de mão e de lava-bo etc. - já conquistaram lojas sofisticadas dos grandes centros urbanos e recebem com frequência a atenção da mídia, de designers nacionais e internacionais e até de “celebri-dades” que ao comprá-los contribuem para a sua divulgação.

A Cooperativa Art-Ilha, em Ilha do Ferro, congrega pouco mais de 30 mulheres; de sua sede, erguida pouco acima do nível da água, avistam-se as duas margens do rio com uma ilhota plantada ao meio. Na cheia, o rio rouba a varanda e parte da sede, onde três gerações de mulheres costumam se reunir diariamen-te para organizar a produção, distribuir entre

si a matéria-prima e as encomendas. Além do aprimoramento técnico, do conhecimento das medidas padronizadas das peças, do de-senvolvimento de novas, as artesãs estão ca-da vez mais exigentes com o ofício, valorizan-do ainda mais o bordar que só é bordado lá.

Como vê, são muitos os motivos para que você, ao ganhar a corrente do rio São Fran-cisco sem tocar nas pedras, visite as artesãs de Entremontes e de Ilha do Ferro e descubra por si o tesouro que hoje repartem.

*Helena Sampaio é antropóloga. Foi coordenadora-executiva da organização da sociedade civil Artesana-to Solidário de abril de 2002 a abril de 2009.

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Os tesouros do Chico que Pedro viu

A República é um considerável avanço sobre as formas iniciais de governo criadas pela humanidade. Ainda que imperfeita, tal co-mo idealizada por Platão e experimentada já em Roma antes de Cristo, é um legado da evolução civilizatória e significou um triun-fo da razão sobre o absolutismo e o familia-rismo. Portanto, longe aqui de se defender a monarquia muito menos expressar saudo-sismo a ela.

Para se falar do São Francisco, resgate-mos o olhar privilegiado de um chefe de Es-tado que exerceu o Poder Moderador no Bra-sil por quase seis décadas, Dom Pedro II, a quem o historiador Renato Lemos chamou de rei filósofo e cientista. Para outros, rei sábio. O príncipe teve a sorte de ser encaminhado nos seus primeiros estudos tendo como tu-tor um dos maiores homens de seu tempo, José Bonifácio de Andrada e Silva, estadis-ta e cientista.

Contam que estudou história, geografia, filosofia, desenho, aritmética, geometria, trigonometria, pecuária e técnicas agríco-las, mineralogia, ornitologia, retórica, direi-to canônico, teologia, artes plásticas e can-to e que aprendeu inúmeros idiomas: portu-guês, latim, francês, alemão, inglês, italiano, espanhol, grego, árabe, hebraico, sânscrito, chinês, provençal e tupi-guarani. Em 1891, quando de seu falecimento, foi chamado pelo The New York Times como o mais preparado monarca do século.

Sábio ou não, Dom Pedro II era um monar-ca diferenciado, porquanto eterno aprendiz e estudioso. Para estudar o rio São Francis-co, contratou o engenheiro alemão Henrique Halfeld para realizar exaustivo levantamen-to do rio que depois foi editado magnifica-mente como “Atlas e Relatório concernente à

sergio Moreira*

exploração do rio de São Francisco, desde a Cachoeira da Pirapora ao Oceano Atlântico”.

De posse desse minucioso estudo e vasto material, em 1859, Pedro II empreende uma missão de investigação do rio. Por mais de duas semanas, a bordo de um vapor oceâni-co que o conduziu até Penedo, em embarca-ções menores até Piranhas e cavalgando até as cachoeiras de Paulo Afonso, o imperador descobriu e cascavilhou o Baixo São Francis-co. O resultado mais visível desta expedição foi a estrada de ferro que ligava Jatobá (hoje Petrolândia) a Piranhas, intervenção logísti-ca que visava um intermodal que levasse o passageiro ou a carga transportada do inte-rior de Minas Gerais ao Oceano Atlântico.

Pedro II enxergou à frente e foi capaz de plantar uma semente para o futuro. Acentue-se que o que ele fez – uma ferrovia em pleno Sertão – é obra de um visionário.

Contudo, há um tesouro igualmente va-lioso e quase desconhecido resultado dessa viagem: um diário, de próprio punho - deta-lhado e detalhista - no qual o imperador usa o seu apurado olhar investigativo para tradu-zir as impressões sobre a paisagem humana e da natureza.

Foi munido dessa incansável curiosidade e de um apurado senso científico que o im-perador percorreu os caminhos que o rio São Francisco desenha em Alagoas. Ao seu estilo austero, crítico e comedido com os elogios, mesmo quando fica patente seu deslumbra-mento perante uma paisagem, Pedro II cons-trói o que pode ser chamado de primeiro ro-teiro turístico do Baixo São Francisco.

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Há forma mais persuasiva de se vender um destino do que em testemunhos como o que o imperador faz sobre a cachoeira de Paulo Afonso? “É belíssimo o ponto que se descobrem sete cachoeiras que se reúnem na grande, que não se pode descobrir daí, e algumas grandes fervendo água em caixão de encontro à montanha, que parece querer su-bir por ela acima; o arco-íris produzido pela poeira de água completava esta cena majes-tosa. Tentar descrever a cachoeira em pou-cas páginas, e cabalmente, seria impossível, e sinto que só me permitisse tirar esboços muito imperfeitos”, escreveu em seu diário.

A singularidade do Baixo São Francisco em termos de recursos naturais, humanos e culturais chama a atenção do imperador em toda a sua viagem. Não é à toa que ele pas-sa os dias anotando, observando e retratan-do em desenhos a exuberância das cidades ribeirinhas, do povo simples e acolhedor, da fauna e da flora do rio.

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Vale lembrar que nessa época, quando su-as águas ainda não eram alvo de disputa, o rio São Francisco se constituía na principal via de comunicação do País, no início da co-lonização. Era por aqui que se chegava aos sertões de Minas Gerais porque os portugue-ses não conseguiam transpor a Serra do Mar.

D. Pedro II viu que mais do que um rio que transportava pessoas e mercadorias o São Francisco fixou comunidades que geraram culturas, economias, modos de vida, formas de expressão e um povo único, fruto da troca das culturas exógenas, como a afro, a portu-guesa e a indígena.

Ao descortinar o Baixo São Francisco o imperador se deslumbrou e, por vezes, cri-ticou a arquitetura de cidades, a intervenção do homem na paisagem local. Pedro também se apaixonou por Penedo e deixa isso claro ao dizer em seu diário que ali poderia muito bem ser a capital de Alagoas, antecedendo, assim, em um século, Alceu Amoroso de Li-ma [Tristão de Athaíde], que dizia que Pe-nedo era a mais bela cidade brasileira e que deveria ser a capital do País.

Nos dias de hoje, a viagem do imperador continua a ser fonte de inspiração. Quantos de nós, alagoanos, descortinamos - como Pe-dro II fez há mais de 150 anos - o véu de tesouros que o Baixo São Francisco abriga?

E esses tesouros não são poucos: o encon-tro grandioso do rio com o Oceano Atlântico em Piaçabuçu, a pequena e calma Entremon-tes no fim de tarde, com suas rendeiras sen-tadas à sombra das árvores, os povos indí-genas, as ilhas e os canyons, a arte popular ribeirinha e a gastronomia de peixes, pitus e frutas exóticas.

Refazer os Caminhos do Imperador pode e deve tornar-se uma via de (re)descobrimento do Baixo São Francisco por meio de um turis-mo sustentável, de baixo impacto e requinta-do. Quem sabe, no futuro, o nosso rio e suas riquezas não possam ser descortinados por todo o mundo, como acontece com o Nilo?

Não falamos aqui de uma exploração ób-via, mas, sim, de um descobrir/fruir sofisti-cado que seja capaz de conduzir o visitante a um mergulho na nossa cultura e história. Exatamente como fez Pedro II.

*Sergio Moreira é formado em Direito e entusiasta do roteiro “Caminhos do Imperador”

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Água e vida Círculo vicioso de transformação.Círculo, curva,Onde acaba a curva?Na borda do rio, do mar?

Espiral de Água

Um rio não nasce na foz como um dia marcou Vespúciodia de São Francisco.Um rio não nasce no borbotão de águado ventre da terra como disse o povo.Nasce do círculo vicioso.Água sobe, cai, mergulha, renasce rio.

Espiral de Vida

Afluentes, quantos?Vinte ou mais.Contribuintes caudalosos ou mesquinhosvarando sertões.Solenes cursos da seiva da vidaque saem da terra como raios de luz.Traipu, Ipanema, Moxotó, Pajeú, Curaçá, Macururi, Pontal Salitre, Jacaré, Preto Grande, Paramirim, Corrente, Carinhanha, Verde Grande, Urucuia, Paracatu, Pacuaí, Jequitaí, Rio das velhas, Paraopeba.Conjunto majestoso.Registro de gente, culturas e bichos.Registro de uma nação generosa, caudalosa, solene, bela.

Rio São Francisco

Infinito espiral

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MERGULhO sãO-fRANCIsCANOPOR CELsO bRANdãO

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oparaStanley Carvalho e Gustavo Gomes

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Desce a CanastraSe arrastaa caminho do mar,

Luta se exausta,Por pedras e lentas cascatas,Rogando pra desaguar.

Por Januária,Juazeiro, Orocó,Sinimbu,Carrapicho e Piaçabuçu...São Francisco,Velho Opara.

Curimatá,Bagre, chira,Acará, surubimSarapó, pacamã e mandimAgonizam,- quanta mágoa! -Pedem vida,Pedem água... Deus, é o fim!

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Volte à CanastraE peçaQue os Xupunhuns Fechem as matas,Pois brancoA tudo devastaNão tem sentimento algum

Vem TuxásJaconãs, Tupimbás, Guarapós,Kiriris, Kimbiwas, Caripós,Traz Tupã, Chama Iara.

Paraopeba,Pardo, Bode,Aboré, Pajuí,Garangá, Moxotó, Piauí,

Salvem Chico,Tragam água,Dêem-lhe vidaVelho Opara...Dá dó em mim!

Desce a CanastraProcura o caminho do mar...

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Terra sonâmbulaENTRE O ATLÂNTICO E O sãO fRANCIsCO, As dUNAs dE PIxAIM dEsCORTINAM UM CENáRIO dE

sONhO E hIsTóRIAs dE REsIsTÊNCIA

Milena andrade

“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquan-to os homens dormiam, a terra se movia espaços e tem-pos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. A antiga crença dos habitantes de Matimati contada por Mia Couto em seu livro “Terra Sonâmbula” é a mais perfeita alegoria da onírica Pixaim, comunidade isolada pelas douradas e inquietas dunas onde um lamacento rio São Francisco en-contra um Atlântico verde e bravio.

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Só pode ser sonho! É esse o primeiro pen-samento que vem à mente de quem aporta na falsa ilha que abriga Pixaim e logo se depara com uma fila de imensos coqueiros, anteci-pados por uma várzea e tendo logo atrás um paredão de areia que irá descortinar um be-líssimo cenário de deserto. Como o universo que se descortina para os andantes perdidos Tuahir e Muidinga no romance de Mia Cou-to, a estrada que leva ao povoado alagoano não se entrecruza com outra nenhuma. “Es-tá mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância”.

Para quem ouve falar na comunidade de Pixaim sem nunca ter ido lá o lugar soa co-mo algo longínquo, perdido no meio de qual-quer coisa, em que para chegar é preciso ter conhecimento de algum atalho misterioso. Na verdade, a famosa comunidade nômade que se desloca ao bel prazer dos ventos e das areias está bem mais próxima e aces-sível do que se pensa. Do pequeno povoado de Pontegy é possível seguir a pé, cruzando algumas várzeas e mangues. Saindo de Pia-çabuçu, basta entrar num barco que qual-quer pescador sabe de cor o curto caminho.

Porém, quando se chega lá a sensação é de estar mesmo num “meio de mundo”, de ter entrado numa espécie de portal e ter chega-do num lugar onde o tempo parou ou onde a noção de passagem de tempo inexiste. Pas-sado, presente e futuro fundidos. A própria eternidade de Jorge Luís Borges.

Paraíso perdido, refúgio perfeito onde um grupo de pessoas vive feliz em comunhão com a natureza. São essas as definições que muitos dão ao lugar. Porém, essa história po-de ser contada de outra forma. Pixaim é um lugar dominado pela nostalgia de uma época que nunca mais se repetirá. É também um lu-gar de poucos jovens conformados e anciãos tristes que não conseguiram se desprender de um passado afortunado.

O líder comunitário, Seu Aladim Calixto dos Santos, de 76 anos, é exemplo vivo e cla-ro desse espírito. No jardim de sua pobre ca-sa feita de palha e barro, ele se deita numa velha esteira para descansar da “quentura” do sol de final de manhã e fala como chegou ao povoado e do tempo de fartura quando as plantações de arroz dominavam a paisagem do rio São Francisco.

Ele não sabe o que levou os seus pais a se mudarem para as dunas da Foz do rio São Francisco quando tinha apenas um mês de idade, nem quando ou como surgiu o isolado povoado que há muito pouco tempo abrigava cerca de 300 pessoas e hoje conta com pou-co mais de 60 moradores. “Vim pra cá logo que nasci. Isso aqui era bem diferente, era tanta gente, tantas famílias. Agora só tem a minha aqui, quase todo mundo que mora aqui é minha família, ou é filho, ou sobrinho, ou irmão, ou neto. O resto foi tudo indo em-bora. Todo mundo vivia bem do arroz, mas depois que o mar entrou acabou com tudo”, conta seu Aladim.

As poucas casas espalhadas pelo ardente areal de Pixaim nunca tiveram energia elétri-ca, nem água encanada, esgotamento sani-tário. Tudo parece se ausentar no lugar. Os moradores dizem não sentir falta e o rádio que os mantêm informados “das coisas do mundo” só reforça que esse desprendimen-to é bom. “Não sinto falta de geladeira, nem de nada das cidades. Aqui a gente liga o can-deeiro de noite e fica conversando. Ninguém vê novela. Lá fora só tem violência e aqui to-

Não sinto falta de geladeira, nem de nada da cidade. Lá fora só tem violência

Seu AladimMORADOR MAIS ANtIGO DE PIxAIM

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Manoel Calixto criou nove filhos com o plantio de arroz nas várzeas de Pixaim

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Fernando Rizzotto

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do mundo se entende”, diz seu Aladim que ressalta o fato de nunca ter havido qualquer tipo de conflito pesado entre os moradores.

Herdeiros do apogeu e decadência da rizi-cultura no Baixo São Francisco, os morado-res de Pixaim sempre trabalharam e se sus-tentaram no plantio de arroz nas fazendas da região. Diariamente, eles seguiam para as ilhas da Batinga, das Cobras e do Boi. A pes-ca permanece uma atividade presente, mas nunca a principal. A antropóloga Madalena Zambi, autora de uma dissertação sobre o povoado, conta em seu trabalho que o declí-nio da cultura nas várzeas do rio São Fran-cisco fez a população diminuir. “Desde en-tão, entre os poucos que restaram, instalou-se um sentimento de vazio identitário”, diz.

Seu Manoel Calixto, irmão de Seu Aladim, lembra bem do trabalho nas várzeas e de co-mo o rio São Francisco era diferente naquela época. “Alcancei navio grande vindo do Rio de Janeiro pra cá. A gente plantava e colhia o arroz e tinha dinheiro de inverno a verão. Já naquele tempo, o povo falava que as bar-rage (sic) iam sargar (sic) o rio. Hoje, nem caranguejo tem mais”, conta.

O ex-plantador de arroz está hoje com 75 anos. Com o arroz que plantou criou nove fi-lhos. Manoel Calixto é aposentado, quase não sai de Pixaim e lembra que esteve em Maceió apenas uma vez, “há uns 50 anos”. Apesar de, com o passar dos anos, ter ficado ainda mais pobre como os outros integrantes da comunidade, ele não se arrepende de resis-tir a viver isolado nas dunas. “Eu tinha muita vontade de viajar quando tinha um 18 anos, mas não sei o que me dava que eu ficava ali, parado, no brejo. Queria ir pra os Estados Unidos. Lá é que o dinheiro corre”, divaga.

Dona Maria Calixto, irmã de Manoel e Ala-dim, diz sentir muitas saudades do passa-do. Ela conta que na época do apogeu da ri-zicultura muitas pessoas de outras cidades se mudaram para Pixaim e que o primeiro golpe sentido pelos moradores de Pixaim foi quando “extinguiram” o povoado de Pontal do Peba, outra comunidade das dunas. “O po-vo de lá era como o daqui. A gente vivia lá e eles aqui, mas agora não tem mais ninguém, só a gente mesmo”, lamenta.

Paisagem idílica onde a sensação de passagem do tempo inexiste

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A velha moradora fala sobre o conflito que envolveu a comunidade do Pontal da Barra quando tanto lá quanto Pixaim foram trans-formadas em Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e passaram a estar sob a gestão do Ibama. Nos anos noventa, começou a ocorrer uma migração compulsória de seus morado-res por não conseguirem cumprir os novos “princípios” de conservação e de relação com o meio ambiente propostos pelo instituto. O povoado simplesmente desapareceu e isso deixou marcas também em Pixaim.

A antropóloga Maria Madalena Zambi res-salta que tanto os moradores de Pixaim quan-to os do Pontal da Barra aceitaram o desafio de viver sobre as dunas de areia que inte-gram o ecossistema da foz do São Francis-co e que esse traço em comum somado à proximidade física serviram para estreitar e fortalecer os laços entre essas duas comu-nidades isoladas.

“Várias gerações nasceram no Pontal da Barra. Entre os membros da comunidade, havia os que reconheciam o território co-

mo o mesmo de seus antepassados. Havia também moradores que tinham se desloca-do para o Pontal da Barra na expectativa de exercer certas atividades econômicas como a pesca e sua comercialização, ou então, pe-la possibilidade de associar a atividade da pesca com o cultivo do arroz, realizado nas proximidades de Pixaim, nas lagoas fertiliza-das pelas enchentes do São Francisco e que também propiciavam boa pescaria”, narra a antropóloga no trabalho intitulado “As areias vivas de Pixaim”.

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As casas de palha facilitam o nomandismo imposto pelas dunas

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Igreja de nossa senhora da Conceição: a única construção durável do lugar

Fernando Rizzotto

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os cajueiros são uma das poucas fontes de alimento e sombra em Pixaim

A AUsÊNCIA, A NOsTALGIA E O sONhO“Aqui é o melhor lugar do mundo. Só saio pra o cemitério. [...] Antes aqui era uma alegria só, tinha muita gente, corria dinheiro, a gen-te fazia festa, hoje só tem celebração uma vez por ano na festa de Nossa Senhora da Conceição. [...] Os mais jovens não querem mais ficar aqui.”.

As falas de Seu Aladim revelam muitos sentimentos: idealização do lugar onde mo-ra; frustração; tristeza; vazio; saudade; con-formação e pouca esperança. As lembranças parecem ser o combustível da resistência e da benevolência do olhar perante o escasso presente. A bela e quase surreal paisagem que cerca os moradores de Pixaim também lhes alimenta o espírito, mas a verdade é que muita coisa lhes foi tomada com o passar dos anos e a diminuição da sua população é o maior indicativo de que as feridas foram profundas.

Maria Madalena Zambi chama a atenção para o que denomina vazio identitário e res-salta que essa comunidade continua profun-damente ligada a uma atividade agrícola que não mais existe. Os moradores de Pixaim ain-da se definem e se veem como plantadores de arroz apesar da decadência da rizicultu-ra. “Nesse diálogo diário com o ausente, ins-crito na paisagem que se vê, as pessoas da comunidade lamentam que o território per-ceptivo silencie uma parte importante de sua história. Hoje, as pessoas que vivem em Pi-xaim expressam um sentimento de dor dian-te do reconhecimento de que o quadro dos arrozais, que oferecia um certo sentimento de durabilidade, seja uma história passada, com possibilidades remotas de continuida-de. Apesar disso, esse horizonte da memória, no presente, ainda é objeto de desejo”, diz.

Hoje, o povo de Pixaim se alimenta da pes-ca, da cata de caranguejos, dos abundantes cajus que nascem do solo arenoso. Enquanto os mais velhos sofrem com o vazio e se re-gojizam nas lembranças da era da fartura, as crianças seguem de barco para as esco- Fe

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o nostálgico seu Aladim é o líder da comunidade e o morador mais antigo

las de Piaçabuçu numa espécie de preparo para deixar a antiga comunidade.

Seu Aladim lamenta os que estão deixan-do a vida nas dunas para trás, mas sua no-ra, de vinte e poucos anos, faz coro com ele e diz que nunca sairá dali, pois o lugar lhe

dá tudo o que precisa. Os pequenos ao redor do velho morador parecem bastante felizes com as intermináveis brincadeiras entre os cajueiros e carapaças de moluscos espalha-das pelas areias douradas de Pixaim. Como o velho Tuahir de Terra Sonâmbula eles pa-

recem provar que a estrada e o sonho estão dentro de cada um deles: “O que faz estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”.

Fernando Rizzotto

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o cozido de pitu continua sendo um dos pratos típicos da região

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Mesmo sem fartura de pitu e muito menos do peixe surubim, que sumiu do rio, dona Gil-da ainda faz pituzada na sua casa, no povo-ado de Entremontes. Contudo, a sua receita de pitu no leite de coco com pirão extrapolou sua cozinha e há 15 anos é um dos quitutes mais requisitados pelos turistas no restau-rante Angicos - localizado no lado sergipa-no do rio -, num sítio de árvores frondosas, uma das mais belas visões do Velho Chico.

Quando o turista chega ao restaurante e pede pitu na casca, dona Gilda não esconde a felicidade e exclama: “Esse sim sabe apre-ciar e comer pitu!” Afinal, a tradição é sa-borear o crustáceo de água doce no casco e sem cerimônias, ou melhor, deixe a etiqueta de lado - pegue o bichinho com a mão para sugar o caldo temperado com tomate, cebola, coentro, pimentão, pimenta e sal. Como diz dona Gilda, comer pitu na casca é a melhor coisa do mundo.

“Hoje os clientes pedem o pitu sem cas-ca porque não querem ter muito trabalho; é uma pena, não sabem o que estão perdendo. Sem casca, frito no alho e óleo ou no leite de coco também é bom, a carne de pitu é sabo-

nide lins

Com o olhar atento no rio São Francisco, dona Maria Gilda Correia Nunes, 65 anos, cabelos grisalhos e voz pausada, lembra com saudade do tempo em que se comia pitu fri-to com cuscuz de milho no café da manhã. “Há 30 anos, só existiam três pescadores: meu marido e mais dois. Era tanto pitu que a gente comia até no café da manhã. O rio São Francisco alimentou meus 12 filhos com muito suru-bim e pitu. A gente vendia e fazia a festa em casa. Depois da hidrelétrica não tem mais fartura”, conta.

Sabores do São FranciscoEM PIRANhAs, O RIO TEM GOsTO dE PITU COzIdO NA CAsCA, sURUbIM fRITO E dO

TRAdICIONAL dOCE dE COROA-dE-fRAdE

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rosa só no sal”, reforça dona Gilda, que aprendeu desde menina como fazer uma pi-tuzada e passou a tradição para suas filhas.

Mesmo com a pesca de pitu reduzida, a tradição permanece presente na me-sa dos bares e restaurantes do município de Piranhas. A pesca do crustáceo no rio São Francisco é artesanal, com a utilização do covo (ar-

madilha colocada nas pedras na qual a isca é feita de pedaços de polpa de coco). Na época de dona Gilda, se pescava 10 quilos de pitus por dia no rio. “Hoje um quilo por semana é considerada pesca boa. Pitu grande e com fartura só na nossa lembrança”,diz a alago-ana, casada com o pescador Pedro de Oséias.

Pedro de Oséias é um dos pescadores mais antigos da região. Aposentado da labuta do Velho Chico, em sua cadeira de balanço, conta que seu peixe predileto é o mandim, embora as pessoas não deem muito valor. Já o surubim sempre foi considerado peixe no-bre e era encontrado em fartura no rio. “Hoje em dia se um pescador pegar um surubim no rio é motivo de muita festa - com o progresso ele desapareceu. Antigamente, numa pesca dava pra pegar de 80 a 100 quilos”, conta.

Tomar um caldinho de pitu do Velho Chico é uma delícia rara. O surubim que comemos hoje no restaurante Angicos vem de criadou-ros de Minas Gerais. Pescado no Velho Chico só com milagre.

O desmatamento da mata ciliar do rio São Francisco, a pesca predatória e a constru-ção das barragens da hidrelétrica fizeram

InGredIentes• Meio quilo de pitu• 2 tomates maduros• 1 cebola média em tiras• 1 cenoura média cortada em fatias• 1 batata inglesa média cortada em

fatias• 1 colher de sopa de óleo de soja ou

azeite extra virgem• 2 xícaras de leite de coco natural• 1 ovo• Coentro e cebolinha a gosto• Sal e colorau a gosto

Modo de PrePAroColocar todos os ingredientes em uma panela e deixar cozinhar por 20 minu-tos exceto o ovo, que deverá ser cozido separadamente. quando estiver quase cozido acrescenta o leite de coco por mais 3 minutos e desliga. Retire o pi-tu da panela e deixe esfriar por alguns minutos, acrescente o ovo cozido. Sirva com arroz branco e pirão feito do caldo do próprio pitu.

PITUzAdA

as águas doces do Velho Chico perderem a força, o que contribuiu para o pitu entrar na lista de extinção e surubim e piranhas serem uma saborosa memória.

O surubim é carnudo e com pouca espinha, um peixe nobre. Diz a lenda que há mais de 300 anos o bicho era surubim-rei do rio, man-dando e desmandando em tudo, na vontade dos peixes e das águas. O surubim, de tão

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velho, perdeu as barbatanas, ficou roliço e, enfurecido por isso, vive fazendo mal, viran-do embarcações, comendo os outros peixes.

Se a lenda do surubim se tornasse reali-dade os pescadores do Velho Chico enfren-tariam sua fúria somente para ter na mesa o

peixe nobre, carnudo, com sua textura macia e com poucas espinhas alimentando a ale-gria e os sonhos dos ribeirinhos da nascen-te à foz do rio.

Mesmo que agora venha lá de Minas Ge-rais, o peixe nobre do Velho Chico mostra

que quem é rei não perde a majestade. Bas-ta coroar com um pouco de sal e limão, ou então incrementar com molho especial de macaxeira, uma receita criada pelas filhas de Gilda. O resultado é um só: a felicidade no céu da boca.

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| 1: surubim frito com limão | 2: Pitu cozido na casca com legumes | 3: dona Gilda é a dona dos sabores tradicionais do rio em Angicos

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COROA-dE-fRAdE, dOCE dO CANGAçO

No Sertão é muito comum o coroa-de-fra-de em cima do muro para decorar e afastar mau-olhado, olho-grande. O cacto pequeno e arredondado tem na parte de cima uma es-pécie de chapéu avermelhado e na panela, com açúcar e cravo, transforma-se em doce de coroa-de-frade, muito apreciado no Ser-tão, principalmente na cidade de Piranhas, no restaurante Angicos, do lado sergipano do rio São Francisco.

O doce da coroa-de-frade é tão antigo co-mo a história do cangaço. Segundo o turis-mólogo Jairo de Oliveira, mesmo antes do bando de Lampião e Maria Bonita, os canga-ceiros, nas suas paradas para descansar e comer na caatinga, já utilizavam o miolo do cacto em pedaços para fazer o doce, usando em vez de açúcar a rapadura.

Dona Gilda não aprendeu a fazer o doce de coroa-de-frade com os cangaceiros, mas com uma vizinha chamada dona “Tudinha”. No restaurante Angicos, o doce do cacto ga-nhou uma nova leitura do chef de cozinha Eduardo Lopes. Em vez dos pedaços, o mio-lo da coroa-de-frade é ralado e misturado com açúcar, cravo, erva-doce e um segredo de família, que dona Gilda não revelaria nem para Lampião, se vivo estivesse.

Na coroa do cacto nascem flores e frutos. Os frutos são pequenos, de cor rosa e den-tro possuem um líquido que lembra a vis-cosidade do quiabo, porém de gosto total-mente diferente. O corpo é coberto por espi-nhos e armazena no seu interior certa quan-tidade de água para os meses de estiagem. O doce de coroa-de-frade é o arremate final de uma viagem pelo rio São Francisco. Par-tindo do porto da cidade de Piranhas, o bar-co desliza pelas águas doces do Velho Chico, entre redemoinhos, até Angicos.

Quando o barco lança âncora no restau-rante Angicos as horas perdem o sentido, é um convite para mergulhar nas águas verdes, refrescantes e doces do Velho Chico, driblan-do o sol do Sertão. As sombras das manguei-ras são um chamado para comer surubim, pitu e adoçar a vida com a sobremesa coroa-de-frade, afastando qualquer mau-olhado no rio São Francisco. No pensamento fica ape-nas o desejo de retornar o mais breve possí-vel aos braços do saboroso rio São Francisco.

o pequeno cacto, utilizado para afastar mau- olhado das casas, vira um delicioso doce

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Por que te chamam Pão de Açúcar?álvaro antônio MaCHado*

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Um luar no Sertão. Um rio majestoso, sere-no, com a Lua flutuando sobre suas águas. Uma gleba que se encanta pela formosura desse espetáculo.

Esse quadro não figura apenas no imagi-nário romancista ou na doce inspiração lí-rica dos poetas sertanejos. Esse quadro se repete, a cada lua cheia, na Pão de Açúcar circundada por mandacarus e xiquexiques, de clima quente e seco do autêntico Sertão nordestino, às margens do rio São Francisco.

E a beleza desse espetáculo enseja um interesse peculiar pela história da terra de Bráulio Cavalcante, poeta que se irmanou a várias outras notáveis figuras que questio-naram a razão dessa denominação que, se nada tem a ver com esse magnífico presen-te da natureza, muito pior foi ter substituí-do o nome “Jaciobá”, assim denominado pe-los primeiros indígenas que habitaram essa terra ribeirinha.

Sim, foram eles – os urumarys – que ha-bitando o generoso pedaço de terra que lhes fora doado por D. João IV, em princípios do século XVII, deram-lhe o nome de “Jaciobá”, que em guarani significa “espelho da Lua”, retratando assim toda a sensibilidade poé-tica dos primeiros moradores desse torrão.

E como os urumarys, de fato, tinham ver-dadeira adoração por esse presente dos deu-ses! A generosa doação de D. João IV provo-cou a ira dos índios chocós, que residiam na pequena Ilha de São Pedro, daí desenca-

deando violenta guerra entre eles, sendo os urumarys expulsos e indo morar noutro lugar ribeirinho e próximo, no Estado de Sergipe, ao qual deram o mesmo nome da antiga pá-tria: o mesmo Jaciobá!

Durante cerca de quarenta anos os chocós habitaram a antiga Jaciobá, vivendo da pes-ca e da caça. Depois chegaram os primeiros colonos portugueses, os índios começaram a trabalhar nos campos e, com o domínio im-posto pelos lusitanos, vieram as mudanças de hábitos, costumes... e até do próprio no-me do lugar.

A Enciclopédia dos Municípios Brasilei-ros, publicada pelo IBGE em 1959, registra que, longe de qualquer conotação com o ho-mônimo morro carioca, foi o português Lou-renço José de Brito Correia que, tendo rece-bido essas terras por doação em 1660, “com o fim de explorar a pecuária e o comércio do pau-brasil, pelo Porto de Penedo, criou uma fazenda de gado entre os morros Cava-lete e Farias, com o nome de Pão de Açúcar. Deve-se a denominação ao fato de achar-se a casa-grande muito próxima do Cavalete, cujo aspecto e configuração assemelham-se, perfeitamente, a uma forma das que, ordina-riamente, se empregavam para purgar e cla-rificar o açúcar”.

Esta dedução é confirmada no livro “Pão de Açúcar” (1953), de Olavo de Freitas Ma-chado, que registra que o nome “originou-se do morro alcantilado (morro do Cavalete) próximo à cidade, o qual o fidalgo português achou parecido com um pão de açúcar”.

Além disso, escritos do século antepas-sado, do professor Branner e do engenhei-ro Teodoro Sampaio, fazem o mesmo regis-tro, também ratificado pelo escritor Etevaldo Amorim, no seu livro “Terra do Sol, Espelho da Lua” (2004): “a denominação Pão de Açú-car deve-se aos primeiros colonizadores que fizeram comparação do formato do Morro do Cavalete com as formas, de feitio cônico, on-de se punha o mel de cana-de-açúcar para cristalizar e formar o pão de açúcar”.

O Morro do Cavalete é onde, desde 1951, se encontra edificada a majestosa estátua do Cristo Redentor, principal atração turística da bela cidade interiorana.

*É médico, membro da Academia Alagoana de Medici-na e pão-de-açucarense.

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Em que pese o respeito pelo nome arraiga-do há mais de 300 anos, nome que os “pão-de-açucarenses” já se acostumaram a honrar e a difundir, é impossível não lamentar esse típi-co gesto colonialista e dominador dos portu-gueses que, desprezando as mais legítimas raízes do lugar, buscaram num simbolismo distante a denominação que o oficializou.

Denominação, aliás, cuja origem teve uma repreensão de peso. Quando de sua estada em Pão de Açúcar, durante a célebre viagem para visitar a cachoeira de Paulo Afonso, em 1859, o imperador Pedro II registrou em seu diário, relativo ao dia 18 de outubro daquele ano: “O nome da vila não é bem cabido, pois que o morro é antes um mamilo pedregoso do que um pão de açúcar”.

“À noite os vaga-lumes acendem luzes no mato,vagam fogos corredores,

e nas noites de luara Lua boia nas águas...

Jaciobá – espelho da Lua,por que te chamam Pão de Açúcar?”

Independentemente de ser ou não devido, os colonos lusitanos desprezaram a sensi-bilidade poética dos urumarys. A qualquer época, toca fundo no coração de todos o “gi-gantesco fio de cristal” que flutua nas noites de luar nas águas do Velho Chico, enterne-cendo mentes e corações.

Jorge de Lima, nosso poeta soberano, no seu belo “Rio de São Francisco”, pergunta, sensibilizado:

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evelina antunes F. de oliveira*

estrada de Ferro Paulo Afonso memória para quê?Acompanhando o curso do rio São Francisco em Alagoas, a Estrada de Ferro Paulo Afon-so-EFPA- começou a funcionar parcialmente em 1880, após dois anos em obras, a partir de Piranhas, e teve seu trecho final conclu-ído em 1883, em Jatobá de Tacaratu, depois chamada Petrolândia, em Pernambuco. Pa-ra de circular em 1964 e o último trilho foi retirado sete anos depois. De suas janelas avistava-se o rio nos primeiros e nos últi-mos quilômetros.

O trem partia de Piranhas e ali chegava às terças, quartas e sábados, num comboio até Delmiro Gouveia e noutro até Jatobá. Depen-dendo do movimento, que variava conforme as cheias do rio, as épocas de colheita ou a intensidade das chuvas, cada comboio podia chegar a ter até oito vagões: um de primeira classe, um ou dois de segunda, um para ani-mais, um para correio e bagagem, e de um a três para transporte de mercadorias.

Não somente as passagens eram baratas (variando, num valor aproximado, de setenta centavos a um real e oitenta centavos) como havia passagens gratuitas, fornecidas pelos governos estadual e federal ou mesmo pela administração da ferrovia.

Foi idealizada para ligar a navegação do Baixo ao Médio São Francisco. Isso ela não fez. Não foi capaz de fazer por duas prin-cipais razões. A primeira, porque transpor-tou relativamente poucas pessoas e merca-dorias de um pequeno vilarejo, depois cida-de, para outra vilazinha perdida no Sertão do Baixo São Francisco. A distância entre a última estação e o núcleo urbano mais pró-ximo, hoje Santa Maria da Boa Vista, PE, é de 260 km e de Piranhas até a foz 238 km. A segunda, mas não menos importante, é que o trecho de pequenas cachoeiras entre Boa Vista e Sobradinho, na Bahia, só era nave-gável em canoas e ajoujos, enquanto os va-pores, introduzidos a partir de 1871, iam da Barra do Guaicuí, MG, a Juazeiro, BA. Entre Boa Vista e Piranhas o transporte era feito a cavalo. A EFPA deveria agilizar exatamente este percurso. Impossível.

Então, por que foi feita esta aventura fer-roviária? Foi no campo da política que esta urdidura aconteceu. No decreto imperial de sua criação (01/01/1978), o alagoano viscon-de de Sinimbu, presidente do Conselho de Ministros e Secretário de Estado dos Negó-cios da Agricultura, Comércio e Obras Públi-

cas, se fez presente, numa disputa com os in-teresses baianos e pernambucanos no Sena-do Imperial. Talvez, num médio prazo, seus negócios familiares na região de São Miguel fossem favorecidos. Mas o centro do conflito, ao que tudo indica, eram interesses estadu-ais ou provinciais, dentro do plano de apro-veitamento econômico da bacia do rio São Francisco, sem esquecermos o grande apelo midiático do combate aos flagelos da seca.

O começo de sua história reúne interes-ses imperiais e republicanos, que ao final do século dezenove pretendiam interiorizar o crescimento econômico em todo o País e que tinham na bacia do rio São Francisco, um dos possíveis cenários. A EfPA reunia disposições de incrementar a navegação e o transporte ferroviário. Esta conexão hidro-ferroviária seria o mote da construção de ou-tras ferrovias ao longo da bacia, como em Pi-rapora, MG. Nas décadas do século vinte em que trilha 116 km do Sertão nordestino, sua história nos revela sutilezas de nossa mo-dernização. A principal delas podemos en-tender como sendo o descompasso entre os planos e projetos únicos para situações so-ciais tão diferentes.

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*Evelina Antunes é socióloga e cientista política

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Esta disposição planejadora de vários go-vernos brasileiros, em relação à Bacia do rio São Francisco, carrega um eterno problema político: seus 521 municípios, distribuídos entre sete estados e o Distrito Federal, são parte de unidades federativas que não fazem parte da Bacia integralmente. Os governos estaduais, imprescindíveis nas articulações no âmbito federal para as questões munici-pais, tradicionalmente disputam entre si re-cursos ou meios de desenvolvimento. Além disso, existem os interesses regionais, como os do Nordeste e do Sudeste, e os micror-regionais, como os do Baixo São Francisco.

Nesta trama, a questão dos transportes, e das ferrovias de modo especial, não cons-ta como prioridade, embora tenha sido im-portante, de certa forma, até os anos 50, e no atual Programa de Aceleração do Cresci-mento, o PAC do governo federal, reapareça como um ponto relevante.

Deste modo, entendemos que a EfPA irá circular cheia de intenções desenvolvimen-tistas, justificada pelos interesses das elites estaduais e suas conexões no plano federal, mas também queremos reconhecê-la do pon-to de vista da história de suas populações.

Durante todo o tempo foi um empreen-dimento deficitário, servindo a locais pouco habitados e pobres e que nunca chegaram a ser expoentes em qualquer ramo de pro-dução. Entretanto, histórica e socialmente, esta ferrovia tem um papel bastante impor-tante no Baixo São Francisco.

Inicialmente oferece emprego temporá-rio, comida, escola e fomenta alguma ação de proteção social, durante sua construção. Como exemplos, podemos citar que , além de desencadear a formação de pequenos núcle-os urbanos em volta de suas estações(como o

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::: povoado Piranhas que se torna Vila em 1887), entre março e dezembro de 1879, a EfPA chegou a alimentar mais de 66 mil pessoas; e o engenheiro em chefe Dr. Reinaldo Von Krüger, no mesmo ano, criou quatro escolas noturnas com cursos de alfabetização, em Pi-ranhas e Olho D’Água do Casado, cujos pro-fessores eram funcionários da ferrovia e os alunos foram os ferroviários, seus familiares e moradores (mensagem do presidente da Província das Alagoas, 1880, p.60).

As grandes secas nordestinas sempre fo-ram moedas políticas valiosas nas articula-ções inter-regionais no País, e no período da construção estavam em pauta nas preocu-pações imperiais. No decorrer do tempo, a EfPA foi sem dúvida, uma opção mais con-fortável aos habitantes das cidades e vilas por onde passou. Até então, os deslocamen-tos eram feitos a pé, à cavalo ou em carros de boi. As estradas e os caminhões eram ra-ros. Também facilitou a importação de sal e querosene e a exportação de peles, farinha de mandioca, milho e madeiras. O transporte de açúcar, álcool e algodão, os carros-chefe da economia nordestina no período, foi mais significativo em outras ferrovias, como a Re-cife-São Francisco.

O que a EfPA fez com maestria foi mo-vimentar a vida das pessoas. O impacto ar-quitetônico e tecnológico que tiveram suas edificações, seus trilhos e suas máquinas em cada um dos lugares por onde passou assi-nalou ou demarcou identidades e memórias. E nesse sentido, ela acompanha a histórias das ferrovias pelo mundo. Das mais de vin-te horas de entrevistas com ex-ferroviários e usuários que fizemos em 2000-01, uma cons-tante são as memórias de rotinas familiares marcadas pelos apitos da Maria Fumaça.

Suas estações estimularam a formação de grupos musicais, festas, comemorações, pontos de encontro, além de sediarem os te-légrafos (a partir de 1895 o Telégrafo Nacio-nal passa a usar os postes da Estrada). Entre as feiras mais importantes do BSF, estavam as de Piranhas e Petrolândia. E a ligação ao rio em Piranhas (a estação ficava ao lado do porto) intensificou o contato entre os serta-nejos da caatinga com aqueles da beirada

do rio, apoiando a circulação entre cidades como Água Branca, Pão de Açúcar, Penedo, Traipu, Porto da Folha, Poço Redondo, Gara-ru, etc. O Porto de Penedo, que entre o final do dezenove até a primeira metade do sé-culo passado, ancorava vapores com movi-mento regular e não só com bandeiras na-cionais, tinha duas rotas semanais até Pi-ranhas. Era comum, por exemplo, durante o funcionamento da ferrovia, um doente em Água Branca ir se tratar Penedo, ou famílias de Entremontes irem visitar parentes em Ne-ópolis. Claro que a eficiência da navegação nesse trecho do rio também contava com a preservação de seu leito.

Não há morador no Baixo São Francisco com mais de 50 anos e de família local que não se lembre com saudades desta ferrovia.

A pesquisa bibliográfica e documental e as entrevistas que fizemos em 2000-2001, pa-ra o Centro de Documentação e Pesquisa do Baixo São Francisco/Instituto Xingó, como a primeira pesquisa social sobre esta Estrada de Ferro, antecedida pelo farto levantamen-to documental de Luiz Rubem Bonfim(2001), elencou uma série de fontes que nos indi-cam possibilidades analíticas sobre as rela-ções sociais que engendraram a história da EfPA. Elaboramos assim registros de sua memória.

Vagarosamente a Maria Fumaça fazia, em média, 22 km/hora e era alimentada por mãos negras, de madeiras como angico ou craibeira. Ela percorria os trilhos sobre dor-mentes de baraúna e aroeira, e foi adminis-trada e conduzida por funcionários brancos da malha ferroviária nordestina. Esta, que

até a República funcionava por concessões provinciais, vai gradativamente sendo arren-dada ao capital privado, e a EFPA se incorpo-ra à empresa inglesa Great Western of Brazil Railway Company, até 1950, quando se torna patrimônio da RFFSA.

Eram cinco estações alagoanas e três pernambucanas. Além de Piranhas, ficavam em Olho d’Água do Casado (Estação Olhos d’Água), em Delmiro Gouveia (Estação da Pe-dra), em Talhado (Estação do Talhado), Si-nimbu ( Estação Sinimbu). Em Pernambuco, ficavam em Volta, Quixaba e Jatobá/Petrolân-dia, com as estações com os mesmos nomes. O prédio da estação de Piranhas virou Mu-seu do Sertão, o de Delmiro Gouveia foi res-taurado como Museu da Pedra, para cuidar da memória da Fábrica da Pedra. Os demais praticamente deixaram de existir. As edifica-ções do que um dia foi a estação de Jatobá en-contram-se afogadas no lago da Usina Hidre-létrica de Itaparica ou Usina Luiz Gonzaga.

Memória é ação, portanto, vidas em mo-vimento- é o que nos ensinam os estudio-sos dela, como Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Jacques Le Goff, Alessandro Portelli, Ecleia Bosi, Homi Bhabha, Fernando Sá, en-tre outros. A rica, imprescindível e, de certa maneira, misteriosa relação entre lembrar e esquecer que mapeia o território da memó-ria, nos fala de como certas pessoas vivem, viveram ou podem e puderam viver.

Lembrar a Estrada de Ferro Paulo Afon-so- EFPA- é buscar entender a vida de quem trabalhou e se transportou nela. Esquecê-la é deixar perdido no tempo tudo que ela sig-nificou como transporte público, história e memória.

Quando os seus trilhos passaram em lo-cais praticamente abandonados pelo poder público, a Estrada de Ferro fez conexões e prestou serviço. Quando deixou de funcio-nar, as vidas envolvidas foram esquecidas por quem poderia ter cuidado delas, não co-mo generosidade, mas como procedimento republicano. Mas não só do ponto de vista das instituições as coisas importantes cos-tumam ser “esquecidas”. Entre nós, também temos o hábito de não lembrar ou ignorar o fato de que podemos nos apropriar de nos-

suas estações estimu-laram a formação de grupos musicais, festas, comemorações, pontos de encontro, além de se-diarem os telégrafos

quixaba

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sas histórias, podemos ter vontade de pen-sar nelas e, portanto, nos importarmos com nossas identidades. Este não cuidado nega a possibilidade de efetivar a coisa pública, esvazia o Estado como Nação, usurpa as re-lações que poderiam lhe dar substancialida-de. Impossibilita a cidadania como condição de participar da construção do espaço públi-co. Por isso, a memória pode elaborar prin-cípios e elementos constituintes da cultura democrática.

Olharmos para a história da EfPA é rea-firmarmos que uma Nação se faz de diversas identidades ou histórias particulares. Pos-sibilita rompermos uma tradição perversa

de reconhecer uma Nação como uma só his-tória, como território único, numa ilusória identidade nacional definida apenas a par-tir do Estado e como um todo homogêneo, onde sertanejos pobres apenas compõem a paisagem. É podermos dar visibilidade a di-ferentes identidades que disputam entre si o direito a pertencerem a alguma coisa. E o Baixo São Francisco tem a singularidade de ser mais do que pedaços de quatro esta-dos, mas um espaço que encontra no rio São Francisco aquilo que de fato compartilham. E numa de suas margens, por um bom tempo, suas vidas andaram nos trilhos da Estrada de Ferro Paulo Afonso.

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A Ilha do Ferro é, na verdade, um povo-ado do município de Pão de Açúcar, igual a tantos outros nas margens alagoanas do São Francisco. O artesanato de tais localidades inclui esculturas em madeira, bar-ro, bordados e cestaria. Os traba-lhos de seu Fernando, no entanto, passaram a ter um status diferen-te, depois que ele recebeu o título de designer da arte popular.

Suas obras foram expostas em museus e espaços de arte mun-do afora. O ponto alto foi durante a mostra A História do Sentar, no Museu Oscar Niemeyer, de Curi-tiba, quando a então diretora do Museu da Casa Brasileira, Adélia Borges, perfilou as cadeiras e ban-cos esculpidos por seu Fernando ao lado de artistas consagrados in-ternacionalmente, como os irmãos Campana.

A trajetória do alagoano no mundo do de-sign começou no final da década de 1990, quando o arquiteto Arthur de Mattos Casas utilizou suas peças em um premiado proje-to da Casa Cor, em São Paulo. A partir daí,

sob as mais diversas cura-dorias e pelas mãos de no-mes como Alberto Nemer e Janete Costa, seu trabalho ficou conhecido em todo o mundo. Suas obras foram expostas em bienais, tive-ram lugar assegurado em acervos permanentes e seu nome passou a ser citado em importantes publica-ções especializadas.

POEsIAEssa introdução é apenas um resumo da fa-ma que o artista conquistou com mais de 70

anos. Dá conta de uma consagração que pou-co tinha a ver com o cotidiano simples do ar-tesão Fernando Rodrigues dos Santos. Filho de sapateiro, ele costumava dizer que seu trabalho tinha uma “inteligência” que só os artistas “da natureza” podiam compreender.

“Ele enxergava poesia em paus e pedras que ia encontrando pelo caminho. Mandava as pessoas dizerem o que estavam vendo, apontando uma pedrinha na palma da mão e, diante do espanto de quem só via a pedra, ele sorria e dizia: é um passarinho”, conta Rejane Souza Rodrigues, filha do escultor.

O mesmo acontecia com a madeira retor-cida que descia pelas águas do rio São Fran-cisco. “Meu pai era contra destruir a natu-reza. Ele usava jaqueira, imburana, pereira, mas tudo que tirava da mata plantava de no-vo. Era tudo galho seco e muitos eram peda-ços de pau trazidos pela correnteza”, diz.

A madeira ganhava formas inusitadas, se transformava em animais, em bancos, cadei-

ras, mas também servia como ba-se para Seu Fernando esculpir sua poesia. Segundo sua filha e genro (que também tornou-se um escul-tor), ele não sabia ler ou escrever, mas ditava para os jovens do povo-ado seus versos e trovas, que tam-bém estampavam suas obras.

“Ele deixou um livro com quase 200 páginas, com poesias que ele foi criando ao longo da vida, tudo escrito por outras pessoas”, rela-ta a filha. Além de artesão e poeta, Seu Fernando era uma espécie de líder comunitário, muito respeita-do pela população da Ilha do Ferro.

Antes de garantir a sobrevivên-cia com seu trabalho artesanal, foi agricultor e caçador. Mas no fim da vida se transformou no maior divulgador do lugarejo, também fa-moso pelas peças do famoso bordado boa-noite, executadas pelas mulheres da Ilha há várias gerações.

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Quando se fala na Ilha do Ferro, localizada às margens do rio São Francisco, as primeiras imagens que surgem à mente são as peças feitas pelo Seu Fernando, a partir de galhos de madeira retorcidos. A “ilha” que não é ilha e o escultor, que na verdade era um poeta, ganharam fa-ma dentro e fora do País a partir da arte que brotava das mãos e do imaginário deste homem simples, falecido em janeiro de 2009.

O adivinhador de árvores

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sEU fERNANdO, dEsIGNER dE ARTE POPULAR dA ILhA dO fERRO, TRANsfORMAVA

GALhOs E TRONCOs EM POEsIA

Meu pai usava jaqueira, imburana, pereira, mas tudo que tirava da mata plantava de novo

RejaniaFILHA DE SEu FERNANDO

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Rejane Rodrigues, apesar de não entalhar a madeira como o pai, é uma exímia artesã de um dos principais bordados praticado nas margens do São Francisco. A partir de teci-dos como o linho, a cambraia e o percal de algodão, o artesanato é executado com a aju-da de agulha, bastidor e trena utilizados pa-ra desfiar a peça em alguns pontos. Depois é unir os fios e assim construir o desenho característico que lembra uma pequena flor nativa, que dá nome ao trabalho: boa-noite.

“É aquela florzinha que nasce em todo canto, branca e roxa, também conhecida co-mo maria-sem-vergonha, com poucas péta-

las, todas do mesmo tamanho”, explica Re-jane. Ela faz parte de uma cooperativa for-mada por 38 artesãs, criada com o objetivo de profissionalizar a produção, capacitando as bordadeiras e garantindo mais valor agre-gado aos produtos.

Seu Fernando gostava de contar as histó-rias do lugar, assim como dona Ernestina, antiga moradora que detinha a técnica do ponto boa-noite.

Eram personagens de uma comunidade que vivia isolada da zona urbana de Pão de Açúcar e, por isso mesmo, teve preservada sua memória cultural e artística.

“Aqui todo mundo sabe fazer alguma coi-sa: borda, planta, entalha a madeira, pinta e sabe contar histórias”, gostava de dizer Seu Fernando, nas inúmeras entrevistas que con-cedeu. “Guardamos os instrumentos que ele usava no trabalho, tentamos manter as coi-sas, mas ele faz falta não apenas à família. A Ilha do Ferro inteira ficou mais triste depois que ele morreu”, diz Rejane.

Ele, que nos últimos anos sentia dormên-cia nas mãos e fadiga ao falar, que conversa-va com a natureza e cultivava a alma simples dos verdadeiros sábios, morreu sem grandes dores, como um passarinho.

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Fernando Rizzotto

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alex BarBosa*

Refiro-me ao mestre seu Fernando da Ilha do Ferro com muita emoção.

Conheci-o há algum tempo e à primeira vista nos demos muito bem. Como ele, eu também gosto de falar sobre coisas que nem todo mundo quer ouvir ou entender. Ser ilu-minado, intimidade com palavras soltas ao vento, que as interpretava como poemas ou premonições. Apesar dos anos, sua joviali-dade o permitia se referir à vida dando-nos a certeza de que os mistérios da vida são fá-ceis de lidar. Eu vibrava com suas palavras! Impressionado com sua maneira de ser e de viver, virei seu fã. Quando podia não perdia oportunidade de ir até a Ilha do Ferro ver su-as mais novas criações, fazendo questão de adquirir/possuir arte sua. Quando indagava a respeito do material usado em seus traba-lhos respondia: tudo já estava ali presente-ado por Deus... Somente cabeças ilumina-das as transformariam em esculturas. Seu Fernando dava um toque de magia na peça e ela só faltava falar. Seus gestos elegantes, seu cavanhaque quixotesco, suas mãos de príncipe, fascinavam. Todos a sua volta pa-ravam para escutá-lo. Sua sala de estar er-guida com bancos de troncos no meio de ve-getação cactácea/bromélias e pedras de to-do tamanho - verdadeiro mirante ao rio São

o artista registrava tudo o que pensava num diário e em quase tudo ao se redor

Francisco, seu companheiro de meditação. Depois de um bom papo nos convidava a sua cozinha onde degustávamos saborosa comi-da preparada com carinho por sua filha Djâ-nia (exemplo de filha). O olhar de satisfação do Seu Fernando nos dava a certeza do seu contentamento com a nossa presença naque-la mesa comprida e farta.

Outro detalhe, segundo ele, é que o vento encanado impregnava sua imaginação tendo como resultado aquela arte reconhecida por críticos e admiradores. Acabamento que o tempo e o vento o faziam ver, colher, e criar.

Por isso, na hora em que pude dar a ele a certeza da minha reconhecida amizade, o presenteei com o projeto arquitetônico do Museu Boca do Vento. Arquitetura simples, utilizando materiais da região, mas que aco-lherão sua história e suas obras ali expos-tas. No seu interior haverá espaço para ou-tros artesãos que na ilha trabalham. Grandes

profissionais e seguidores da sua arte, cada um no seu estilo. Seu Fernando criou um mo-vimento artístico na cidade que inclui Abe-raldo, José de Tertuliana (Zé Crente), Valmir (seu genro, atualmente criando bancos mag-níficos), Vandinho, Valci, e seus netos Neto e Bebeu, entre outros.

Ele me agradeceu emocionado e pediu que eu não medisse esforços para a sua execu-ção. São tantos os amigos e fãs que com cer-teza o Museu Boca do Vento será uma rea-lidade.

*Alex Barbosa é arquiteto.

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obras de arte às margens da fonte de inspiração, o rio são Francisco

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A experiência de olhar além do rioMaria aMélia vieira* e dalton Costa**

Como artistas, gostamos de mergulhar em assuntos variados, gostamos de pesquisar e, principalmente, de viajar para experimen-tar, conhecer e vivenciar a riqueza da arte popular do interior do Nordeste do Brasil.

Um dia, descobrimos o rio e suas águas nos levaram aos abrigos de uma arte fértil, vigorosa e estimulante. Esses abrigos têm rostos tostados pelo sol de um Sertão im-piedoso e lindo e mãos criativas que falam linguagens que conhecemos bem.

Inúmeras foram as vezes em que viajamos por terra e água com espírito de descobrido-res. Somos literalmente apaixonados por lu-gares remotos, que causam estranheza e nos remetem a silêncios essenciais.

Numa dessas viagens, saboreando postas de piau com farofa, numa velha embarcação de passageiros do Baixo São Francisco, entre Pão de Açúcar e Ilha do Ferro, nosso olhar se perdeu em algo muito maior do que as nossas necessidades de artistas e colecionadores.

Tivemos a grata experiência de olhar além do rio. Comunidades ribeirinhas, afastadas dos grandes centros, algumas sem nenhuma comunicação, crianças brincando em suas margens, o canto das lavadeiras com suas roupas coloridas, o batuque dos lençóis en-saboados nas pedras, os solitários pescado-res em seus pequenos barcos, a paisagem mágica e desoladora, enfim, estávamos den-tro de um Brasil que não conhecíamos com profundidade. Conhecer é, principalmente, conviver.

Nossos corações inquietos buscavam muito mais do que os estímulos para nossa arte. Ali nascia a ideia de troca, de intercâm-bio, de comunicação entre dois mundos. O mundo das grandes cidades e dos povoados de um Brasil esquecido.

Nascia ali um barco-museu, batizado pe-lo talentoso estudioso de literatura Roberto Sarmento de Museu no Balanço das Águas.

O primeiro projeto com o título Museu no Balanço das Águas- Uma exposição itineran-te pelo Rio São Francisco, foi contemplado em 2008 no Programa BNB de Cultura.

Alugamos o barco Santa Rita no porto de Pão de Açúcar, AL, adaptamos um museu com obras dos artistas ribeirinhos do acer-vo da galeria Karandash e visitamos quatro lugares em dois municípios alagoanos.

Pão de Açúcar, Ilha do Ferro, Entremontes e Piranhas. Foram dias inesquecíveis de arte e troca de experiências. Visitas guiadas ao barco-museu, oficinas de arte para crianças, mostra de videodocumentários sobre a vida e obra dos artistas, convívio com os artistas e, principalmente, estimular os habitantes daqueles lugares a olhar o rio.

Nosso projeto atual traz o barco-museu em caráter permanente. Mais uma vez con-templados pelo BNB de Cultura com parce-ria BNDS, edição 2010, O Museu no Balanço das Águas/Coleção Karandash, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de Ala-

Barco leva o museu no Balanço das Águas

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goas, sobre a proteção de Santa Maria (nome da embarcação), iniciará uma trajetória que certamente mudará a realidade das crian-ças e dos jovens das comunidades visitadas.

Em outubro o museu será apresentado ao mundo, com uma poética exposição do artis-ta e designer Fernando Rodrigues, filho do rio, morador da Ilha do Ferro, falecido em janeiro de 2009. Oficinas de arte educação, mostra de vídeos, palestras, encontros de ar-tistas, colecionadores, produtores culturais e turistas .

As localidades contempladas serão Belo Monte e Traipu em Alagoas , Niterói e Gara-rú em Sergipe.

Acreditamos que esse novo projeto abrirá espaço para ações importantes e essenciais no âmbito das artes para os estados de Ala-goas e Sergipe em toda a extensão do Baixo São Francisco.

*Maria Amélia é artista plástica

**Dalton Costa é artista plástico

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Mas seu Toinho não é apenas um pescador. Ao longo de sua vida de ribeirinho ele apren-deu a zelar e cuidar do rio. Há 40 anos milita em defesa do São Francisco. Junto com frei Alfredo fundou a Pastoral dos Pescadores, no ano de 1970. Participante ativo da Fede-ração dos Pescadores, foi o primeiro a pre-sidir a instituição.

Inspirado pelo rio escreve poemas - já está escrevendo seu segundo livro, que se chama-rá Pescando Cidadania - e foi um deles que o levou a conhecer a realidade dos rios fora do País e constatar que não é apenas o São Fran-cisco que vem sofrendo impactos ambientais ao longo da história. Com saudosismo e uma certa melancolia seu Toinho relata o que via em sua infância e o que acontece agora no Baixo São Francisco, mas tudo isso não dimi-nui a vontade de mudança do pescador, que, aos 78 anos, luta como um filho apaixonado para manter vivo o seu pai.

Como é a sua relação com o rio são francisco?

Minha relação com o São Francisco come-çou desde criança. Nasci aqui, na beira do rio. Estou com 78 anos, nasci em 12 de de-zembro de 1931, no baixo Santo Antônio, no bairro de Barro Vermelho. O engajamento co-

meçou quando eu tinha dez anos e meu pai me levava para pescar. Quando eu ti-nha 12 anos, ele morreu e me deixou com quatro ir-mãos. Minha mãe também estava doente. Aí eu come-cei a pescar. Aos 17 anos já era um pescador profis-

sional. Casei, criei nove filhos e ainda ado-tamos dois, pescando no rio São Francisco.

O que mudou no rio?

Antigamente, a gente sentia que nunca ia faltar peixe no rio. Mas com a chegada dos grandes projetos, o projeto do Sobradinho, da Codevasf, começaram a explorar o rio de um jeito que o São Francisco foi perdendo a po-tencialidade como criadouro de peixes. Não só de peixes, como também de vegetais, como arroz, milho, feijão, inhame, frutas em gran-de quantidade, animais, passarinhos, aves, isso tinha em grandeza e hoje não tem mais. Isso tudo a partir de 1979, quando fecharam o Sobradinho.

desde então, o senhor está engajado na luta pelo Velho Chico?

Sim. Começamos na Fede-ração dos Pescadores. Ho-je sou o presidente da fede-ração. Fui o primeiro presi-dente pescador, já que a fe-deração sempre esteve nas mãos dos militares porque naquela época, antes da

Constituição Nacional, as colônias eram to-talmente administradas pela Marinha e pelo Ministério da Agricultura.

O senhor ainda tira seu sustento do rio?

Eu sou aposentado, mas ainda tiro porque a aposentadoria não dá pra nada. Com um salá-rio mínimo ninguém vive. As pessoas vivem a pulso. Aí eu completo com o pescado. Só que ultimamente não está se pegando nada. Tá no defeso, a pesca de anzol não é proibida, mas não tem peixe, porque o rio começa a encher no mês de outubro, mas até hoje não encheu um palmo d’água, que também nem mudou, ela continua azul. O rio tem duas águas. No começo de outubro, quando ele começava a encher, vinham as águas barrentas, que são as águas produtivas, tanto para o peixe quan-to para a vegetação, porque elas vêm barren-tas da chuva que cai e aí, quando tinha mata, a água batia nas árvores, amortecia e batia no chão e só carregava barro. Hoje não tem mais mata, a chuva bate com toda força na terra e carrega areia pra dentro rio.

vanessa Mota

Antônio Gomes dos Santos, ou simplesmente Toinho Pes-cador, como gosta de ser chamado, nasceu em Penedo, às margens do São Francisco. Aos dez anos de idade aprendeu o ofício da pesca com o pai e nunca mais saiu das águas do “Velho Chico”.

Conversa de pescadorUMA dAs MAIOREs LIdERANçAs dO bAIxO sãO fRANCIsCO, sEU TOINhO, dE PENEdO,

dEdICA sUA VIdA À dEfEsA dO RIO

O rio foi criado por Deus, pela natureza, e tudo que foi criado por Deus merece respeito

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Como o senhor passou de pescador a defensor do são francisco?

Antes eu só pescava, talvez eu nem respeitas-se tanto. Mas depois que eu comecei a ver os problemas, me engajei na luta pela preserva-ção e consegui um prêmio para ir para a Áus-tria e Alemanha. Passamos 30 dias conhecen-do todo o programa de irrigação nas margens do rio Mur e do rio Danúbio. Aí eu vi que a gente estava correndo perigo. Quando eu vi o proje-to de irrigação trazendo a pêra, a uva, a maçã aqui para o nosso país e a maneira que eles eram tratados, com agrotóxico e com quími-ca, fui entender que o que estava acontecen-do com o rio Danúbio ia acontecer com nós. O rio que era o Danúbio, reconhecido como o rio azul, o rio mais lindo do mundo e mais progressista, estava passando a ser um rio morto. E quando eu cheguei lá, em 1994, fiquei assombrado porque não tinha mais pescador.

Como o senhor recebeu esse prêmio?

Eu recebi o prêmio por estar engajado na luta em defesa do rio São Francisco. Criei um po-ema. Eu não sou poeta não, mas terminaram dizendo que eu estava sendo. Recitei aqui per-tinho, numa igreja chamada Correntes, onde houve uma confraternização, tinha numa fai-xa de 3.000 pessoas, num dia quatro de outu-bro, que é o dia do aniversário do São Fran-cisco. O frei Luis Cappio, aquele frade que fez o jejum, antes ele fez uma peregrinação que saiu da Serra da Canastra até a foz do rio e me convidou, mas eu não pude ir porque eu tenho nove filhos e não podia passar um ano fora. Naquela época eu não era aposentado, vivia pescando. Aí eu não pude ir. Eles então vieram aqui em Penedo e a peregrinação ter-minou aqui. No último dia, eu recitei o poema.

E o que aconteceu depois?

Os austríacos que estavam aqui ofereceram um prêmio. Passamos 25 dias na Áustria e cin-co na Alemanha. Tenho certeza que o maior impulso de eu ir foi quando eu recitei esse po-ema, chamado São Francisco, nosso pai (Leia ao lado).

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São Francisco, nosso paiToinho Pescador

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Há 25 anos atrás,O nosso rio era assim.Passarinhos cantavam alegres,Não tinha veneno aqui,Também não tinha barragem e era bom viver assim,O rio era festejado com bandos de Paturis.Tem um ditado antigo do poeta, o pescador,Quando o Canafisteiro floresce, É sinal que o rio replantou,Por isso nascia alegria para todos os morador.Em começo de outubro, o rio começa a altear,Com as suas águas barrentas, que é o adubo natural,Produzindo camarões e peixes para os pescador pescar,Enchendo as grandes várzeas, era lindo se apreciarCupim, formiga, grilos e ratos nas águas começam a boiarTornando-se alimentos para o peixe engordar.Nesse grande equilíbrio, quem ganhava era a população, Tanto dos peixe, das aves, como de nós, cidadão,Porque não precisava adubo para fazer plantação.Corre pra pegar peixe, também para pegar camarão,Outros já faziam redes com grande satisfação, Porque eles tinham certeza de ir buscar o pão.E hoje, a coisa mudou do melhor para o ruimQuem são os culpados disso já deu para refletir,Quando, por causa do medo, deixaram acontecer assim.Fecharam quase todas as várzeas, Barragem foi por demais,Acabou-se a produção de peixes e já se foram os animais,Agrotóxico mata os passarinhos, saúde não existe mais.E o rio, que era rico, hoje está para morrer,Clamando pelo nosso amor,Pedindo para viver,Depois desse nosso encontro, o que nós vamos fazer?Lutar para por em prática essa grande peregrinaçãoDesses valorosos amigos que nos deu essa lição.Quem zela do Velho Chico, tem Jesus no coração.

São Francisco, nosso paiToinho Pescador

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Algum dos seus filhos trabalha com pescaria?

Não, nenhum. Só um ainda pescava, mas ago-ra deixou, está trabalhando como seguran-ça em um banco. Imagine que situação, um pescador profissional do São Francisco está empregado como vigilante porque não tem mais como se sustentar com o que tira do rio. Ele tem dois filhinhos e quando só pes-cava era preciso que a gente ajudasse. Os ir-mãos ajudassem. Aí todos saíram da pesca e foram trabalhar. Tenho serralheiro, tenho mecânico, tenho funcionário estadual. Pes-cador mesmo só tem eu agora pescando. À tarde, se você andar por aí, é capaz de me ver pescando para poder completar o salário da aposentadoria.

Então, a juventude de hoje não conhe-ce o “verdadeiro” rio são francisco?

Eu estou com 53 anos de casado com a do-na Luzinete, achei bom o casamento, mas achei bom porque o meu rio me sustentava, era um patrão muito rico. Além de ser um patrão, ele era um pai. Quando eu ia aper-reado dizia ‘Pai, como é?’, ele dizia ‘Venha meu filho’. Pior que ele tinha umas concubi-nas. Ele é como o rei Davi, diz que ele tinha muitas mulheres. O rio São Francisco é as-sim. São 49 lagoas marginais só no lado de Alagoas e outras tantas no lado de Sergipe. Essas lagoas é como se fossem as mulheres do rio. Quando o rio começava a encher, ele cheio de ousadia, entrava nas lagoas e quan-do ele entrava nas lagoas, fazia a gestação. Aí elas todas ficavam enxertadas e aí tinha que parir, produzir. Era peixe, camarão, tudo com a força do rio. Então, castraram o rio. O que estão fazendo hoje com a juventude. A juventude, comendo galinha de granja está ficando castrada. Até a gente cantando hino nacional hoje fica meio inibido.

O senhor sente saudades da época da fartura?

Muita. Na Várzea da Marituba, hoje, eu du-vido alguém dizer que encontra um casal de

canário ou um curió cantando na beira do rio. Um azulão, xexéu, patativa, caboclinho... A gente fazia algazarra com os pássaros. O chofreu cantava o hino nacional, a gente en-sinava e ele cantava. Hoje você não encon-tra mais a rolinha fogo-pagou. O bem-te-vi é o único que está vivo porque só come mos-quito, mas não come capim e o milho verde que enchiam nossas beiras de várzea. Me lembro que a gente chegava nas lagoas e via tudo cheio de mulher trabalhando, plantan-do o arroz e aquelas mulheres que estavam ali tinham a ousadia de junto com os pas-sarinhos, cantar: “Paturi, que andas fazen-do ao redor destas lagoas? Quem tem paturi tem pato, quem tem asa cai do laço, quanto mais quem não agoa”. Estas mulheres can-tavam alegres porque tinham trabalho, hoje não tem mais. Pegava peixe de mão, hoje não pega mais. E nas beiras das lagoas tinham os canais. Tinha camarões da água do rio, e os pescadores de jereré enchiam as canoas. Coisa linda! Ao invés da televisão perder tan-to tempo entrevistando artista devia entre-vistar os pescadores do rio São Francisco pra gente contar essas conversas lá pra o Brasil inteiro ver os prejuízos que os pescadores e os trabalhadores rurais tomaram com o de-saparecimento das roças e das lagoas mar-ginais na plantação de arroz.

qual a importância que o rio tem na sua vida?

Ele é um pai, um patrão. Ele foi criado por Deus, pela natureza e tudo que foi criado por Deus, merece respeito. Nós, hoje, estamos sendo prejudicados por isso. Aquele desas-tre ecológico que teve, aquele ‘chuveiro’ que

Me lembro que a gente chegava nas lagoas e via tudo cheio de mulher plantando arroz

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nhoca dessa eu vou pegar um surubimzão”. Eu ia com uma enxada para a beira do bre-jo e lá cavava a minhoca, enrolava no anzol aquela minhoca preta enorme e deixava fora do anzol, aí o peixe vinha e pegava. No verão ela se escondia na terra e no inverno, quando voltava ia fazendo irrigação, afofando a terra. Então não precisava de fazer essa irrigação, porque ela é diabólica. O homem pega uma máquina, que vai arrancando as raízes de todas as árvores e a terra fica fraca, acaba com o solo. As minhocas acabaram por cau-sa do veneno. Ora, se a gente não suporta o veneno, a minhoca então... A água vai enve-nenada, as coitadinhas bebem e morrem. É o homem acabando com a natureza.

O senhor acha que o rio vai chegar a se acabar algum dia?

Se não tiver cuidado vai, porque o rio Danú-bio está morto. Não tem mais pescador, nin-guém bebe a água do rio Danúbio e olhe que ele desafiava o São Francisco. Ele é maior que o nosso rio uns cem quilômetros, com volume de água igual. Se eles não tiveram pena do Danúbio, como vão ter do São Fran-cisco Está aí a invasão de gringo plantando, fazendo a irrigação dentro do rio e aguando e pulverizando as canas com adubo químico. Essa beira de rio era a coisa mais linda, hoje você não se vê mais. Essa cidade era festeja-da, hoje você não vê mais. As crianças de hoje só vão dizer que viram o bem-te-vi, mas não vão dizer nunca que viram um canário, uma fogo-pagou. É triste essa situação, nós gosta-ríamos que houvesse uma mudança. Nós não queremos frango de granja, queremos peixes nativos do rio para nos alimentar.

teve demais lá no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, é um sinal da falsa menti-ra da transposição. Eles estão fazendo trans-posição dizendo que lá no Ceará e no Rio Grande do Norte não tem água. Tem. Tem o rio Jaguaribe, que nasce na serra da Joani-nha e despeja no oceano, do mesmo jeito do São Francisco. Nasce na serra da Canastra e despeja lá na Foz. Todos os rios vão se inte-grar com o mar, porque o mar é o pai.

Como era o rio da sua infância e co-mo você poderia descrever ele hoje?

Tenho saudade das canoadas de praia, que saía aqui do Barro Vermelho, uma sanfona

tocando e a gente saía dan-çando até a Foz para se ba-nhar lá. E hoje não tem mais as canoas de tolda, elas se acabaram, são canoas de 1.200 sacos, porque o rio não tem condição de na-vegar. Nem navegar dessa forma, nem carregando o arroz, algodão que o povo plantava nas margens. Vo-cê já ouviu falar no Surubim? É um peixe que cresce até 120 quilos. Aqui, nessa época, eu pegava ali na frente da minha casa, com mi-nhoca, que não existe mais também. “Ô lapa de minhoca, eita que minhocão, com uma mi-

Nós não queremos frango de granja, queremos peixes nativos do rio para nos alimentar

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O naufrágio do Comendador PeixotoA TRAJETóRIA dA EMbARCAçãO qUE VIROU

síMbOLO dO APOGEU E dECLíNIO dE UMA ERA

Barco penedense faz homenagem à famosa embarcação naufragada

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Mário liMa

A carcaça de ferro do vapor Comendador Peixoto, que foi a pique nos primeiros anos do período militar, no Porto de Penedo, de forma misteriosa e até hoje não esclarecida, fez submergir com ela o apogeu e o declínio de uma era de transporte coletivo de massa, com passageiros e car-gas, no Baixo São Francisco (BSF), dos anos 1920 até 1964.

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Hoje, a história é contada pelas testemu-nhas oculares dessa época. Os ribeirinhos, trabalhadores do Baixo, canoeiros, carpin-teiros navais e tripulantes de embarcações que formaram a base de sustentação e ope-ração desse vigoroso sistema de transporte de cargas e passageiros no BSF. Na era dos grandes navios e vapores, das lanchas e de naus extraordinárias, como a canoa de tol-da, que carregava toneladas de madeira para abastecer o forno dos navios.

José Augusto Xavier, 78 anos, o Flecha Ne-gra do futebol alagoano, antes de ganhar os campos Brasil afora foi ajudante de maqui-nista do Comendador Peixoto, de 1954 a 1960.

Ele lembra rapidamente o roteiro da viagem. Partia de Penedo, na manhã da segunda-fei-ra, e chegava em Piranhas na quarta, com volta prevista para quinta no circuito de volta.

O pernoite era em Pão de Açúcar, e para atender comerciantes e feirantes a tripula-ção parava em todos os portos, na ida e na vol-ta. Xavier não esquece um: Penedo, Propriá, Guararu, Ilha do Ouro, Traipu, Belo Monte, Limoeiro, São Braz, Porto Real e Piranhas.

O futuro Flecha Negra chegou a alcançar boas e más fases do navio. A pior foi quando já estava de saída.

“Foi uma década de vazante no rio, de-pois que fizeram esse trabalho na Paulo Afon-

so (ampliação da usina) e o navio deixou de navegar. As croas flutuavam e o navio não passava com a hélice. Encalhamos na Ilha do Ouro, precisamos chamar mergulhado-res e o guincho”, relembra, com detalhes, seu Xavier.

Xavier soube do naufrágio lá fora, depois de rodar pelo Nordeste como centroavante goleador do CRB, Bahia, Botafogo (PB), Flumi-nense (BA), encerrando sua carreira aos 42 anos, em sua terra, no alvirubro Penedense. “O naufrágio foi a maior infelicidade para a pobreza, porque nesse navio cabia todos e era uma riqueza como transporte coletivo”, lamentou Xavier.

José Augusto Xavier, o Flecha negra do futebol, foi maquinista do vapor

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sONhOs fRUsTRAdOsDesde a chegada do navio a vapor Coman-dante Peixoto, vindo da Inglaterra para o Rio Amazonas, e depois para Penedo, até a desa-tivação da Estrada de Ferro Paulo Afonso, em 1964, o Baixo São Francisco perdeu a chan-ce – talvez única - de formar um sistema de transporte modal hidroferroviário na parte baixa do rio, de grande impacto social, eco-nômico e cultural para a população da região.

“Era uma ferrovia maravilhosa, que ca-sava bem com a rota dos navios a vapor. Foi uma decisão muito impensada do Movimento de 1964, que não merece maiores conside-rações, em desmanchar uma coisa daque-las. Foi uma ordem do governo federal que extinguiu tanto a navegação a vapor como a ferrovia”, assinala o engenheiro e, na épo-ca, durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), diretor da Comissão do Vale São Francisco (hoje Codevasf), Olavo de Freitas Machado, 83 anos.

Cinco anos antes, em 13 de dezembro de 1960, Penedo fazia festa para a volta do Co-mendador Peixoto totalmente restaurado no estaleiro da Fábrica da Passagem, em Ser-gipe, pela Companhia de Navegação Peixoto, primeiros donos do navio, mas que agora fora encampado pelo governo federal.

“Em 1960 o navio foi totalmente recupera-do, dentro de um projeto do Plano de Recu-peração do São Francisco, e lançado ao rio,

de volta ao trecho entre Piranhas e Penedo”, lembra Olavo Machado, principal responsá-vel pela restauração do navio. Ele conta ain-

da que os jornais deram boa repercussão sobre o retor-no no navio.

E que tal uma viagem de Penedo à Cachoeira de Pau-lo Afonso, para admirar as quedas d’água, no trajeto de navio Penedo-Piranhas e, na sequência, de trem Pira-nhas-Delmiro Gouveia, com direito a janelas abertas pa-ra o Vale do São Francisco? Essa viagem já foi feita por muita gente, até o fim dos navios e da ferrovia.

Quem viveu uma dessas inesquecíveis viagens foi a empresária penedense Maria Lucinda Peixoto, do grupo que controla o Ho-tel São Francisco, e parente do comendador que deu nome ao navio.

“Organizamos uma viagem pelo Penedo Tênis Clube. Logo após os torneios levamos os tenistas do então campeão carioca Flumi-nense, a bordo do Comendador. Nos vagões da ferrovia podíamos observar a linda pai-sagem do rio São Francisco”.

Ela lembra que no final da era dos navios a vapor, Penedo também recebia aviões da Varig e hidroaviões da Catalina. Maria Lucin-da conta ainda que o Porto de Penedo vivia uma boa fase. Sua família tinha dois navios cargueiros, que levavam a produção do BSF para o porto de Santos (SP).

Foi uma ordem do governo federal que extinguiu a navegação a vapor e a ferrovia

Olavo de Freitas MachadoENGENHEIRO

Maria lucinda conta que viveu uma viagem inesquecível no navio

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NA bOCA dA CALdEIRAAo contrário de quem viajava na primeira classe, que tinha café da manhã, almoço e jantar, não era nada fácil a vida de Seu Luiz de Santana, o Lulu, 76 anos, que durante mais de 10 anos trabalhou no Comendador com carvoeiro e foguista, o que organiza lenha no porão e joga na frente da caldeira.

“Meu trabalho era diferente e se chamava ‘acaba home’. São 35 toneladas (sic) de lenha na subida e na descida para queimar. Era bo-nito ver aquelas canoas de tolda amarradas ao navio, subindo até descarregar a lenha no Comendador”, diz.

luiz santana se orgulha de ter trabalhado como foguista no navio

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Ele mantém na parede da sala um quadro com uma foto desbotada do navio, que guar-da como relíquia. Foi ele mesmo que disse que a primeira classe tinha fartura para os passageiros.

“Na primeira classe tinha todas as refei-ções. Já na segunda classe, os mais neces-sitados viviam com uma mochilinha, uma rede, uma esteira, e para comer uma rapa-dura, um pedaço de queijo, ou um pezinho de bode assado. E no porão iam, amarrados, bois, porcos, galinhas, bodes e muitos ba-laios de frutas”.

Lulu acompanhou tudo que aconteceu até um pouco antes de seu afundamento no cais de Penedo. Foi ele o encarregado pela em-presa de tomar conta do Comendador, após ele ser desativado pelo governo federal. Ele morava no próprio navio, que permaneceu ancorado no Porto de Penedo.

“Depois que o navio parou, fui contratado pela empresa para vigiar. Fiquei dois anos morando no navio, sem direito a ir nem em casa, pois tinha que jogar o pranchão para um gerente da empresa que veio do Rio e tam-bém morava no navio, com sua mulher”, lembra Lula.

“Um navio daquele, que tinha passado por uma re-forma completa, não deve-ria acabar ali. Foi penoso. Tinha que virar história. Se não dava mais para viajar, ele ficaria ali no meio do rio para visitação ou fazer um bar flutuante, como tenta-ram. A empresa ainda ten-tou rebocá-lo, foram buscar cabo de aço na Bahia, os tra-tores puxaram, mas ele dei-

tou em cima das pedras que caiam das cano-as para fazer as obras de contenção do porto por causa das enchentes. Ele está lá, enter-rado entre pedras e areia”, completa Lulu, o guardião do Comendador Peixoto.

Um navio daquele não deveria acabar ali. Foi penoso. Tinha que virar história

Luiz SantanaEx-FOGuIStA DO COMENDADOR

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o movimento era intenso no Porto de Penedo no início do século XX

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o pescador rosevaldo Jordão no lugar onde o Comendador naufragou

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TRIsTE fIMAlguns anos depois da volta, o Comendador teve um triste fim: adornou numa madruga-da fria, quando estava ancorado, na frente do Porto de Penedo. A desativação do Comenda-dor Peixoto foi ordenada pelo governo mili-tar, que entre as mudanças promovidas ex-tinguiu o transporte a vapor, alegando que a lenha provocava desmatamento.

O guardião Lulu revela que, ao deixar o na-vio por um emprego melhor, ainda deu uma olhada na sala de máquina, onde trabalhava, e nos equipamentos do porão, mas tudo esta-va normal. “Ninguém sabe se foi uma chapa que rompeu e ele tombou, mas o serviço es-tava todo em ordem antes de minha saída”.

“Não foi atentado. Foi desprezo. Sem con-dições de viajar, com a diminuição do volu-me de água do rio São Francisco os navios foram desativados. Mesma coisa aconteceu com o desaparecimento das canoas de tolda. Com a construção da ponte de Propriá, ca-

noas como a Igarité e a Ca-nindé, com capacidade para 1.200 sacos de 60 quilos, não passavam na ponte”, assi-nala o líder pescador Antô-nio Gomes dos Santos, o Toi-nho Pescador.

O líder lembra que o Co-mendador deveria ser res-gatado para o turismo como símbolo do Porto de Penedo, “que era a coisa mais linda do mundo”, com grandes navios ancorados, barca-ças e toldas. Ele dá exem-plos de outras cidades que recuperaram suas embar-cações históricas.

“Em Juazeiro (BA) e Mon-tes Claros (MG), se você qui-ser tomar um cafezinho ou uma cerveja dentro de um antigo navio está lá, um res-taurante para todo mundo curtir. É lamentável, por-que a história tinha que ser completa, e a população ti-

A população tinha que ter acesso a essas grandes navegações que favoreceram o Baixo São Francisco

Antônio Gomes do SantosPESCADOR

O naufrágio não foi atentado. Foi desprezo. O mesmo aconteceu com as canoas de tolda.

nha que ter acesso a estas grandes navega-ções que favoreceram bastante o Baixo São Francisco”, diz Antonio Gomes dos Santos.

Já o aposentado Rosevaldo Jordão, um penedense convicto e profundo conhecedor da cidade, e com muitas viagens “no cos-tado” do Comendador Peixoto, revelou um destino muito pior para outro famoso vapor, o Penedinho.

“Foi destruído e desmontado aqui em Pe-nedo e vendido a um ferro-velho de Recife”, conta Jordão. O pai dele foi uma das cen-tenas de canoeiros que levavam lenha para os navios a vapor. “Hoje Penedo ainda chora e sente saudades do Comendador Peixoto, principalmente na procissão de Bom Jesus dos Navegantes. Era ele que rebocava a ima-gem”, lembra.

Recentemente, em 2008, uma equipe de mergulhadores da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a pedido do gover-no de Alagoas, fez um mergulho de observa-ção para um possível resgate do Comenda-dor, que está a cinco metros da linha d’água.

Os mergulhadores constataram que ele está bastante aterrado, com quatro a cinco buracos grandes no casco de ferro, mas ain-da é possível ver duas escotilhas e as héli-ces, cobertas por crostas. Não existem, no momento, projetos prontos para a tentativa de resgatar o Comendador Peixoto e trans-formá-lo em um bem público,

Mas enquanto o navio a vapor Comenda-dor Peixoto permanecer afundado, com sua coleção de ruínas, as lembranças ainda con-tinuam a povoar os sonhos da juventude de muita gente, com os da radialista e direto-ra da Penedo FM, a sergipana Martha Már-tyres, neta do escultor penedense Cesário Procópio.

“Penedo do navio Comendador Peixoto, com seu apito que nos fazia tremer, mas que exercia sobre mim um enorme fascínio. Fa-zendo-me sonhar com viagens rio acima. O esplendor de suas luzes, a roupa engomada dos tripulantes cheias de botões dourados. O tubo preto de sua chaminé, parecia ace-nar e seduzir”.

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