michel villey - filosofia do direito - 2º edição - ano 2008

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  • F.s ta obra fo i publicada originalmente em francs com o titulo PHILOSOPHIE DU D ROlTpor ditions Dalloz.

    Copyright ditions Dalloz. 2001.Copyright 0 2003, Livraria Martins Fontes Editora Udo..

    So Paulo, para a presente edio.

    l edio 2003 2 ! edio 2008

    TraduoMRCIA VALRIA MARTINEZ DE AGUIAR

    Reviso tcnica Ari Solon

    Acompanhamento editorialLuzia Aparecida dos Santos

    Revises grficas Maria Luiza Favret Marise Simes Leal

    Dinarte Zorzanelli da Silva Produo grfica

    Geraldo Alves Paginao/Fotolitos

    Studio d Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Ihiblicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

    Villey. MichelFilosofia do direito : definies e fins do direito : os meios do

    direito / Michel Villey ; traduo Mrcia Valeria Martinc/. dc Aguiar; prefcio Franois T errc ; reviso tcnica Ari Solon. - 2T ed.- So Paulo : Martins Fontes. 2008. - (Coleo justia e direito)

    Ttulo original: Philosophie du droit Bibliografia.ISBN 978-85-336-2416-0

    1. Direito - Filosofia 1. Terr. Franois. II. Ttulo. III. Srie.

    08-02424______________________________________________ CPU-34Q.12

    ndices para catlogo sistem tico:I . Direito : Filosofia 3 4 0 .12

    2. Filosofia do direito 340.12 3. Filosofia jurdica 340.12

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rita Conselheiro Ramalho. 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6993

    e-mail: [email protected] http://www.nutrtinsfonteseditora.com.br

  • ndice

    TOMO 1DEFINIES E FINS DO D IREITO

    PROLEGMENOS. RAZES DE SER, NATUREZA E MTODOS DA FILOSOFIA DO DIREITO .... 3

    A expanso da filosofia do direito................ 3Situao da disciplina na Frana................... 4

    Questo primeira. Por que estudar filosofia do direito?.............................................................................. 7

    A rtigo I. Faltade uma definio do direito ... 8Ignorncia acerca do fim do direito.............. 8Conflito das linguagens.................................... 9

    A rtigo II. Metodologia incerta........................... 11Desconhecimento das fontes.......................... 11Conflito dos m todos.......................................... 12

    A rtigo III. Recurso filosofia............................. 14Da incompletude de toda cincia.................. 14Uma distino de K ant..................................... 15

    Questo segunda. O que entendemos por filo sofia?.................................................................................. 19

    A rtigo I. C ampo original da filosofia.............. 21A filosofia, cincia universal........................... 21

  • Artigo II. O campo da filosofia no mundo moderno ............................................................................... 25

    A agresso das cincias..................................... 25Persistncia da filosofia..................................... 26Retomada da filosofia......................................... 28

    A rtigo III. Da filosofia do direito...................... 30A filosofia aplicada ao d ireito ........................ 30A linguagem da filosofia do direito.............. 31

    Questo terceira. Quais sero nossos meios de estudo?................................................................................. 33

    A questo da escolha dos autores.................. 33

    A rtigo I. As autoridades......................................... 35Submisso aos poderes...................................... 35Submisso atualidade..................................... 36

    A rtigo II. Da moda em filosofia........................... 38Io) Do historicismo em filosofia .................................. 38

    Estaria a filosofia na histria?.......................... 382a) Do progresso em filosofia ........................................ 40

    Progresso da filosofia?...................................... 40Regresso da filosofia?....................................... 41Da regresso da filosofia do direito.............. 42

    A rtigo III. Mtodo dialtico................................. 44Uma filosofia ensinvel..................................... 44Dvida m etdica.................................................. 45Da dialtica em filosofia.................................... 45

    T ratado dos fins da arte jurdica

    PRIMEIRA SEODA JUSTIA COMO FINALIDADE DO DIREITO

    INTRODUO. UMA DOUTRINA A SER REAVIVADA......................................................................................... 51

    Justia e direito...................................................... 51Necessidade de um retorno s fontes.......... 53

  • Captulo 1. Uma filosofia da justia (dikaio- s iu i) ...................................................................................... 55

    A rtigo I. Breves indicaes sobre as fontes ... 55Aristteles, filsofo do direito......................... 55Objeto das ticas.................................................. 55O estudo da linguagem ...................................... 56

    A rtigo II. Da justia geral...................................... 58Dois sentidos principais do termo justia... 58

    l e) Definio.................................................................... 58Primeira categoria de exem plos..................... 58

    2S) Relao com o direito............................................... 60Justia geral e leis................................................. 60

    A rtigo III. Da justia particular......................... 631L) Definio.................................................................... 63

    Segundo grupo de exem plos........................... 632) Relao com o direito............................................... 64

    A justia, ofcio dos ju ristas............................. 643) Definio da arte jurdica....................................... 65

    Seu objeto. A d iv iso .......................................... 65A matria: bens externos................................... 66Cam po de aplicao............................................. 67

    Captulo 2. O direito na justia (to dikaion)....... 69

    ARTIGO I. O CONCEITO DO DIREITO............................ 70Um objeto no neutro ........................................... 70Um justo meio-termo nas coisas.................... 71Distino entre o direito e a m oral................. 72Uma proporo...................................................... 73Objeto da justia, mas da justia particular.. 74

    A rtigo II. Setores do direito.................................. 76A igualdade geomtrica em matria de distribuies .................................................................. 76A igualdade aritmtica em matria de com utaes" ................................................................. 78

  • A rtigo III. O lugar do direito............................... 81Amizade e direito................................................. 81Da imperfeio do direito da fam ilia........... 82Deve-se admitir a existencia do direito internacional? ............................................................. 83

    Captulo 3. Notas sobre a sorte desta filosofia...... 87

    Sobre o direito rom an o....................................... 87Aristteles e o direito rom ano......................... 89Un depoimento de C icero................................ 90Uma filosofia da justia entre os jurisconsultos rom anos....................................................... 91Uma idia do direito........................................... 93Pluralidade das concepes romanas de justia e de direito ...................................................... 94

    SEGUNDA SEOOUTROS CONCEITOS DA FINALIDADE DO DIREITO

    Captulo 1. A boa co n d u ta .......................................... 99O direito anexado m o ral................................ 99

    A rtigo I. Sobre a noo judaico-crist de justia..................................................................................... 102

    O objeto da T ora.................................................... 102A justia bblica...................................................... 103

    A rtigo II. A justia bblica na Europa.................. 1071B) Avatares da justia ................................................... 107

    Triunfo da justia bblica................................... 1072Q) Mefamorfoses do direito ......................................... 109

    Um momento da historia da palavra "ju s".. 109O termo francs direito....................................... 109

    3) O direito como criado da moral............................ 110Desenvolvimento da lei natural..................... 111

    4a) Um clericalismo de leigos....................................... 112

  • A rtigo III. Crtica do clericalismo.................... 114Sobre a cultura de So Tom s.......................... 114A jlistia do reino de D eus................................ 116A justia profana.................................................. 118Da arte jurdica na Sum a................................... 119Definio do direito ............................................ 120Seria um retrocesso?........................................... 122

    Captulo 2. O servio dos h om ens........................... 125

    A rtigo I. Gnese do individualismo.................... 1261Q) O cristianismo........................................................... 126

    O indivduo fora da cidade............................... 126Individualismo cristo?...................................... 127

    2) O humanismo............................................................ 128Novas leituras filosficas.................................. 129O que a filosofia moderna emprestou doRenascimento?....................................................... 130

    3fi) O nominalismo......................................................... 131Esboo do nom inalism o.................................... 131Duas palavras sobre a filosofia de Scot....... 132O nominalismo e as cincias............................ 133Pontos fortes e debilidades do nominalismo. 134

    A rtigo II. A servio do indivduo......................... 136Y-) As rupturas............................................................... 137

    Repdio ao sistema de Aristteles................. 137Declnio da tradio cris t ................................ 138

    2'-) A construo de Hobbes......................................... 139O projeto de H obbes........................................... 139Do estado de natureza hobbesiano................ 139O contrato social hobbesiano e a finalidadedo direito.................................................................. 140

    3C) O "direito subjetivo"............................................... 141Surgimento deste novo conceito.................... 141Do direito do sujeito segundo Hobbes........ 143O direito subjetivo, fim do d ireito ................. 144

  • A rtigo III. Os direitos do homem e o sistemaUTILITARISTA..................................................................... 146l s) Nascimento dos direitos do homem ..................... 146

    Sobre a contribuio de Locke........................ 146Os direitos revolucionrios do hom em ....... 148Novos direitos do homem. Doutrina deW olff........................................................................... 148

    2S) O utilitarismo jurdico........................................... 149Bentham sobre o d ireito .................................... 149O direito penal segundo Bentham ................ 151

    ARTIGO IV. CRTICA DOS DIREITOS DO HOMEM....... 153Burke e os direitos do hom em ........................ 153A crtica de M arx.................................................. 155Insuficincias do bentham ism o...................... 155Pseudojustia idealista....................................... 156Destino da justia jurdica................................. 157

    Captulo 3. O servio sociedade............................. 161Permanncia do individualismo.................... 161

    ARTIGO I. A ALTA DOS COLETIVISMOS....................... 163Uma mudana de mtodo cientfico............ 163Rumo ao organicismo rom ntico................... 165

    Ia) Os fins do direito segundo H egel........................ 166Hegel contra as abstraes................................ 166O direito e seus fins em H egel........................ 167Divergncias de interpretao........................ 169

    2-) Fins do direito em Marx......................................... 170A classe acima do indivduo............................ 170O progresso da hum anidade........................... 171

    3

  • A rtigo II. A morte dos fins..................................... 178Filosofia contempornea dos "valores" oufunes do direito................................................. 178

    l s) A ccluso das cansas finais................................. 180Das causas finais................................................... 180O que a cincia moderna delas abstrai........ 180Sacrifcio dos fins objetivos.............................. 181

    22) Lacunas do positivismo.......................................... 182O direito reduzido a uma cincia dos fato s... 182O positivismo cientfico...................................... 183

    Trs estrelas do positivism o ................................... 184De Ihering a F leck ................................................ 184Radbruch - Max W eber..................................... 185Kelsen........................................................................ 185

    Vista d'olhos sobre o movimento "realista".... 187Uma definio de H olm es................................ 187Uma frmula de Pound...................................... 188Criminologia e penalogia.................................. 188Tecnocracia.............................................................. 189

    CONCLUSO DO TOMO 1 ............................................. 191

    A rtigo I. Valor comparado destas filosofiasDO DIREITO......................................................................... 193

    O congresso de M adri......................................... 194Escolha de uma filosofia do direito.............. 195Sui cuique tributio.................................................. 195Corolrios................................................................ 196

    A rtigo II. Objees e respostas............................. 1981Q) Arcasmo? .................................................................. 198

    Exigncia atual da justia.................................. 199Prejuzos de uma linguagem ........................... 200Anacronismo........................................................... 200

    2) Esterilidade?............................................................. 202Conflito dos mtodos............................................... 203Que a escolha das fontes e de um mtodo so funo do fim que se busca...................... 203

  • Conflito das linguagens................................................ 206Que no se deve procurar em outra parte a chave da estrutura da linguagem do direito.... 206 Por que estudar filosofia do direito..................... 209

    ndice remissivo........................................................................ 459

    TOMO 2OS MEIOS DO DIREITO

    PREFCIO................................................................................ 213

    PREMBULOUMA ORIENTAO ATRAVS DAS LITERATURAS

    Objeto do livro....................................................... 219

    ARTIGO I. CATLOGOS DE TEXTOS.............................. 221As leis e suas conseqncias............................ 221Hierarquia das norm as....................................... 222Exam e crtico.......................................................... 222Para alm dos texto s........................................... 224

    Artigo II. Teorias sobre as fontes do direito.. 225Das teorias gerais do direito ............................ 225Leque de doutrinas.............................................. 226Ecletism os................................................................ 229Extrinsesmo............................................................ 231Libertar-se das teorias......................................... 232

    Artigo III. Ecloso das lo'gicas do direito..... 233Epistemologia do direito................................... 233Busca de uma lgica especfica do direito.. 234Um plano de estudos.......................................... 235Contradies das lgicas do direito.............. 235Para alm das cincias........................................ 237

    A rtigo IV. F ilosofias................................................. 238

  • Razes esquecidas................................................. 238O jugo da linguagem .......................................... 239Duas teraputicas................................................. 240Fundao do direito............................................. 241

    TTULO PRIMEIROOS MEIOS LGICOS

    Captulo 1. Nota sobre a querela das lgicas do direito.................................................................................... 245

    Artigo I. U ma lgica da demonstrao.......... 246Lgica da cincia................................................... 246Presuno de cientificidade............................. 247

    A rtigo II. O utras formas de discurso............... 252Lgica da inveno.............................................. 252O direito seria uma cincia?............................. 253Novas "lgicas jurdicas". Irracionalism o.. 255Doutrina da Escola de Bruxelas..................... 256Resultantes.............................................................. 258

    Captulo 2. Um quadro da dialtica........................ 261

    Histria de uma p ala v ra ................................... 261

    A rtigo I. Duas lgicas em A ristteles............. 263Lgica da cin cia................................................... 263Segunda parte da lgica..................................... 264

    A rtigo II. Dialtica e filosofia............................ 267Os dilogos dos filsofos.................................. 268Realismo e dialtica .'............................................ 268Ambies m odestas............................................. 269

    A rtigo III. Algumas regras da arte................... 270Um procedimento regulamentado........................ 270Seleo dos jogadores......................................... 271Escolha das opinies................#**.................... 271Posio da cau sa.................................................... 272

  • Da argum entao................................................. 273Mescla de opinies............................................... 274"C oncluses"......................................................... 275Uma arte desaparecida....................................... 277

    Captulo 3. Primeiros elementos de uma lgica do direito ............................................................................. 279

    Artigo I. Dialtica e direito.................................. 2801-) Que a jurisprudncia trabalho terico............. 281

    Do indicativo jurdico......................................... 281Condio de existncia do direito.................. 282Os jurisconsultos sucessores dos filsofos gregos........................................................................ 283

    2e) A jurisprudncia no cientfica......................... 284Dificuldades de uma cincia do direito...... 284Uma quase-dialtica do direito...................... 285

    A rtigo II. O exemplo romano ................................ 286Ponere causam ......................................................... 287Choque de opinies............................................. 288C oncluses.............................................................. 289

    Artigo III. Exlio e retorno da dialtica........ 291O divrcio................................................................ 291Redescoberta.......................................................... 292

    TTULO SEGUNDOAS FONTES NATURAIS

    Captulo 1. A alternativa das teorias contem porneas .................................................................................... 297

    As duas fontes do discurso do direito......... 297

    A rtigo I. Fontes ideais.............................................. 299A Palavra divina................................................... 300A vontade do hom em ......................................... 302A Razo. A lei natural......................................... 305

  • A Escola do direito n atu ral.............................. 306O renascimento do direito natural................. 310Exame crtico.......................................................... 312

    A rtigo II. Fontes fatuais......................................... 315O positivismo cientfico...................................... 315Os prdrom os........................................................ 317A Escola histrica: primeiros avatares dopositivismo jurdico............................................. 322Sociologismo.......................................................... 325Da norma efetividade..................................... 328Exam e crtico........................................................... 328Resultantes.............................................................. 332

    Captulo 2. Uma filosofia da natureza................... 335

    Do problema do direito n atu ral..................... 335Sentido da palavra natureza............................ 336

    RTICO I. SOBRE A EXTENSO DO CONCEITO CLSSICO DE NATUREZA........................................................... 339

    O homem na n atureza........................................ 340Os homens na natureza...................................... 341

    ARTIGO II. COMPREENSO DO CONCEITO CLSSICODE NATUREZA.................................................................... 345

    A mudana na n atu reza.................................... 346O Telos na natureza............................................... 348O bem na natureza............................................... 349

    ARTIGO III. Da CONTINGNCIA DAS LEIS DA NATUREZA ................................................................................... 352

    A natureza rebelde cincia............................ 353A natureza aberta dialtica........................... 355A plicaes............................................................... 355

    Captulo 3. Do direito n atu ral................................... 357

    A rtigo I. O direito natural de A ristteles..... 358Definio.................................................................. 358Dificuldades no conhecimento do direito natural....................................................................... 359

  • Matria para a dialtica..................................... 361Aplicaes na Poltica de A ristteles............ 361

    A rtigo II. O exemplo romano ................................ 366Fonte do direito em Rom a................................. 366O direito nas cau sas............................................. 368O direito na cidade............................................... 369

    A rtigo III. Eclipse e retorno.................................. 373Naturreclitsfobia...................................................... 373Renascimento do direito natural.................... 374

    TTULO TERCEIRO DAS LEIS POSITIVAS

    Captulo 1. Os prs e os contras da lei p ositiva. 379

    Do direito positivo............................................... 379

    A rtigo I. Religio da lei.......................................... 380Razes do legalismo.............................................. 380Esquema do positivismo legalista................ 382Seleo das fontes positivas............................. 383Contradies entre os textos............................ 385Lacunas dos textos............................................... 387A interpretao dos tex to s................................ 389A interpretao criad o ra ................................... 392A utodestruio...................................................... 394

    A rtigo II. A ssassinato da lei.................................. 395N ovos filsofos...................................................... 395Desvalorizao da lei.......................................... 396Do direito livre....................................................... 398O direito instrum ento......................................... 400Resultados............................................................... 403

    Captulo 2. A noo da le i ........................................... 405

    ARTIGO I. A GNESE DAS LEIS ESCRITAS.................... 405

  • A ordem natural antes da frm ula............... 405Lei na n atu reza...................................................... 406Leis escritas............................................................. 407Um produto da dialtica................................... 408Diversificao das le is ........................................ 409

    A rtigo II. L imites da lei escrita............................ 411Um problema de sem ntica............................. 411A funo poltica das le is .................................. 412As leis instrumento da m o ral.......................... 414As regras do direito.............................................. 416E seus auxiliares.................................................... 419O destino das regras do direito...................... 422Resultados............................................................... 427

    Captulo 3. Prim eiros elem entos de uma arte jurdica.................................................................................. 429

    Artigo I. O poder dos textos.................................. 431Necessidade dos textos....................................... 431Da autoridade dos textos.................................. 433Das insuficincias dos texto s........................... 437Inacabamento.......................................................... 440

    A rtigo II. Por uma arte da interpretao...... 441Exegese dos textos................................................ 444Soluo das antinom ias...................................... 446Dos textos ao direito............................................ 448A Epieikein................................................................ 450Um comeo de concluso.................................. 451

    POST-SCRIPTUM. DISCUSSES............................... 453Pro ................................................................................ 453Sed contra................................................................... 455Veredito..................................................................... 456Da utilidade deste com pndio........................ 458

    ndice remissivo................................................................. ^-459

  • rprefcio

    Os dois compndios de Michel Villey foram os primeiros desta coleo consagrados filosofia do direito. O primeiro intitulava-se Definies e fins cio direito (4- edio, 1986), e o segundo Os meios do direito (2a edio, 1984). Hoje um feliz acontecimento v-los, reunidos num mesmo volume, constituir o objeto de uma nova edio. Essas obras foram, inicialmente, um desafio. Expor de modo simples, num estilo lmpido, as linhas de fora de uma filosofia do direito indispensvel compreenso deste ltimo, no era tarefa simples. Exigia grande cultura, sem que se sucumbisse, no entanto, tentao de uma erudio fcil, ou mesmo pedante, para alcanar esse objetivo. Michel Villey superou-se. E as sucessivas vagas de estudantes que tiveram a felicidade de acompanhar seus cursos e de participar de seus seminrios deles ainda conservam o benefcio e a lembrana, tanto no exterior como na Frana.

    No devemos esquecer que, aps um longo eclipse, a filosofia do direito estava renascendo na Frana, tanto no pensamento como no ensino. Durante muito tempo, contudo, laos estreitos haviam existido entre ambos. Pelo menos at o incio do sculo XIX, os filsofos dedicavam- se freqentemente s coisas do direito, mostrando-se conhecedores desta matria: Hobbes e Spinoza, Leibniz, Montesquieu e Rousseau, Bentham e Voltaire. Mas as coi-

  • x x FILOSOFIA DO DIREITO

    sas j comearam a degenerar quando Kant, no Cpnflito das faculdades e tambm em outros textos, quis estabelecer uma diviso de tarefas, deixando aos juristas uma parte menor no pensamento do direito. Desde ento de- senvolveu-se a corrente do idealismo alemo, pela qual Michel Villey no nutria - o mnimo que podemos dizer - grande simpatia.

    Suas crticas eram tambm dirigidas aos juristas, que considerava responsveis pelo distanciamento entre o direito e a filosofia. Reprovava-lhes a averso pela filosofia do direito. Quanto a isso sempre nos vem ao esprito a seguinte explicao: o voluntarismo e o legalismo glorioso do sculo XIX, pelo menos na sua primeira metade, teriam propiciado o surgimento de um positivismo cmodo, cuja onipresena sentimos ainda hoje e que teria, sob todas as suas formas, mesmo as mais esotricas, recalcado a reflexo fundamental. Explicao primeira vista sedutora, sujeita contudo a crtica, na medida em que o positivismo jurdico, por mais preguioso e decepcionante que seja, deriva de uma certa ou de uma incerta filosofia do direito.

    Michel Villey preferia imputar onda cientificista, "hostil a toda metafsica", o recuo desta ltima na reflexo contempornea. Insurgia-se contra "uma espcie de tecnicismo americana" que levava os juristas franceses a rejeitar a atitude filosfica considerando-a intil, consciente ou inconscientemente. E verdade que na "doutrina" - termo que ele contestava - muitos autores inter- rogam-se at mesmo sobre a existncia da filosofia do direito. Contra o que nosso autor protestava de maneira veemente, s vezes polmica, e sempre premonitria. Desta sua perspectiva derivaram uma srie de caractersticas: hostilidade s divagaes do raciocnio filosfico favorecidas e mesmo provocadas pelo kelsianismo e por todos os seus avatares, crtica das filosofias sobre o direito provenientes de autores que desconheciam os procedimentos, a letra e o esprito desta disciplina, cuidado de

  • PREFCIO XXI

    no confundir, por mais indispensveis que tanto um quanto outro sejam, a filosofia do direito e a histria das ideias.

    A leitura de sua filosofia do direito a melhor maneira de nos apercebermos disso, melhor do que qualquer prefcio que pretendesse apresent-la. A obra de Michel Villey to vasta, to rica, to original, que podemos observar o profundo significado da histria para este historiador de Roma, da Idade Mdia, dos tempos modernos ou contemporneos. Muito mais que para sua prpria filosofia, a histria essencial para a filosofia do direito. Michel Villey mostrou-o vigorosamente, particularmente em suas Lies de histria da filosofia do direito, na sua Formao do pensamento jurdico moderno, e em muitos outros escritos. No apenas com o nico intuito de discorrer sobre o desenrolar dos acontecimentos e dos pensamentos, mas com o desejo de revelar, de uma maneira comparvel de Lo Strauss, as constantes e as variveis da filosofia do direito, para alm das causalidades e dos anacronismos. Mais intelectual do que ningum, universitrio no verdadeiro sentido da palavra, Michel Villey contribuiu vigorosamente para um retorno filosofia do direito que seus Cadernos pstumos ilustram e explicam; uma filosofia em que se conciliam, na coerncia ltima de seu pensamento, seu apego a Aristteles e ao tomismo - no ao neotomismo! - mas tambm a influncia necessria e latente do augustinianismo.

    "E chegado o tempo, escreve ele, de sacudir o jugo das filosofias extrnsecas; de repensar o mtodo do direito extraindo-o da experincia particular dos juristas" (ns 40). E chegado o tempo de voltar ao ensino da filosofia do direito. Foi para isso que Michel Villey escreveu, particularmente para seus estudantes mas no apenas para eles, estes dois livros naturalmente reunidos. E concebeu- os e realizou-os sem se submeter de modo algum aos cnones das obras doutrinais, cujas divagaes to freqentemente denunciou. sobretudo a transmisso de um

  • XXII FILOSOFIA DO DIREITO

    saber, ou mais exatamente de um meio de saber, que o move. Mesmo que ele possa pensar que essencialmente impossvel se fazer compreender, no deixa de ser menos visceralmente apegado ao dilogo e controvrsia. No por acaso que observamos, mesmo numa obra de nosso tempo, a conscincia implcita dos benefcios da disputatio e o desejo de uma discusso constantemente suscitada e que se dirige sem cessar ao essencial. O pensamento de Villey, avesso a todo conformismo, tanto mais filosfico quanto no teme colocar em causa uma certa ordem estabelecida que afirma a prevalncia indiscutvel do progresso. Quem melhor do que Julien Freund expressou a grande contribuio de Michel Villey para a regenerao da filosofia do direito: "Ele a tirou da sombra na qual as mltiplas filosofias do direito a enfurnavam h dois sculos."

    Franois Terr

  • TOMO 1 DEFINIES E FINS

    DO DIREITO

  • PROLEGM ENOS

    Razes de ser, natureza e mtodos da filosofia do direito

    1. A expanso da filosofia do direito. Se, como seria desejvel, os estudantes franceses de direito tivessem a oportunidade de estudar alguns semestres fora do pas, nas grandes universidades europias vizinhas, veriam que uma disciplina pouco conhecida na Frana, a "filosofia do direito", ocupa um espao significativo nos programas.

    Assim na Espanha, na Itlia, onde existe um concurso especial para selecionar professores para esta disciplina; e tambm nas universidades alems, austracas, holandesas e muitas vezes na Inglaterra com o nome mais modesto de jurisprudncia. Na poca em que assistamos aos congressos da associao mundial para a filosofia do direito, ficvamos surpresos com o grande nmero de participantes oriundos de todas as partes do planeta - da Sucia, dos Estados Unidos, da Amrica Latina, do Japo e da Austrlia, dos pases do bloco sovitico. E muitas vezes atnitos com a quantidade de livros, teses e manuais produzidos sob essa rubrica.

    A especialidade cientfica chamada filosofia do direito bastante antiga na Europa. Hegel j o autor de uma obra intitulada "Princpios da filosofia do direito" - Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821); no absolutamente evidente que a referida obra faa jus ao seu ttulo e trate do direito dos juristas. Porm, de vinte e cinco

  • 4 FILOSOFIA DO DIREITO

    anos antes datam os "Princpios metafsicos da cincia do direito" - Metaphysische Anfangsgriinde der Rechtslehre (1776) do ilustre Kant, livro que introduzia uma novidade no mundo acadmico: Kant separava a filosofia jurdica da cincia do "direito natural" (com a qual o jusnatura- lismo moderno a confundia), e da filosofia moral. Pouco depois, o ingls John Austin publicava suas Lectures on ju- risprudence or the philosophy o f positive lazo. Em seguida, eclodiram incontveis "Teorias gerais do direito" ao longo da segunda metade do sculo XIX; as obras de Stammler, de Del Vecchio, do americano Pound, de Radbruch, de Kelsen etc. A literatura vai se acumulando. Nas faculdades de direito estrangeiras, h um incremento aparentemente considervel dos chamados cursos de filosofia do direito desde o final da ltima guerra.

    Entretanto, estaramos talvez dando uma falsa idia desse fenmeno se deixssemos o leitor acreditar que as aes da filosofia do direito esto geralmente em alta. No lhe faltam adversrios em parte alguma. Vivemos hoje, ao que tudo indica, na era da tcnica, e o tecnicismo o inimigo mortal da filosofia. Nada garante que mesmo os cursos e as inmeras obras que se intitulam "filosofia do direito" sejam obras de filosofia. Que dizer da "teoria geral marxista-leninista" ensinada na URSS? Tambm em outros pases, na Inglaterra, nos pases escandinavos ou na Amrica, estuda-se sociologia, psicologia, lgica, "anlise da linguagem" sob o rtulo de filosofia. As cincias humanas tendem hoje a abarcar tudo, mesmo a filosofia.

    2. Situao da disciplina na Frana. No depreciemos nosso pas. No movimento contemporneo da filosofia do direito, a Frana no desempenhou papel insignificante. Nossos grandes juristas filsofos do incio do sculo - principalmente Gny, Hauriou, Duguit - so muitas vezes citados mundo afora. Na poca em que esses autores estavam se formando, fora introduzido nas

  • D EFIN I ES e fins do direito 5

    fa cu ld a d e s de direito francesas um curso de filosofia do direito, que est ressurgindo hoje a ttulo optativo.

    Entretanto, nosso pas um dos que mais hostiliza a filo so fia do direito. Os filsofos a negligenciam. Tm poucas leituras jurdicas. Se conhecem alguma coisa de direito atravs de Kant, Fichte, Hegel e seus epgonos. Como de hbito desde Descartes, toda sua ateno volta-se para as experincias da vida (quer intelectual, quer moral) exclusivamente individual. Ou dedicam-se s cincias sociais hoje em voga: poltica, sociologia, histria cientfica, marxismo, mas no pelo direito. Sem dvida uma reao se est esboando. No foi inutilmente que o filsofo belga Ch. Perelman assinalou-lhes a existncia do direito, assegurando que "o direito pode trazer grande contribuio para a filosofia" (APD, 1962, p. 35).

    Quanto a nossos colegas juristas, a maioria deles no alimenta nenhuma simpatia pela disciplina aqui apresentada. O jurista francs conhecido por ser especialmente avesso filosofia do direito. Li muitas vezes que esse fenmeno se deve ao sucesso que o positivismo jurdico gozou entre ns: Napoleo teria adestrado os juristas obedincia. Estes temiam que a filosofia ressuscitasse os abusos do "direito natural" do Antigo Regime, comprometendo o poder das leis positivas; assim sendo, eles o teriam expulsado de nossos programas de ensino. Mas no creio nisso, pois o legalismo da escola da exegese e a doutrina rousseauniana do Contrato social, que antigamente o sustentava, perderam h muito sua fora.

    Digamos antes que o mundo jurdico francs, debilmente cultivado em filosofia, tenha resistido mal onda cientificista, hostil a qualquer "metafsica", lanando-se numa espcie de tecnicismo moda americana. Quer-se mostrar atividade, eficincia; servir aos "negcios". Reprova- se filosofia sua inutilidade.

    Em que, alis, ela consistiria? Raros so aqueles que tm mesmo uma vaga idia. E se acaba de ser reintrodu- zido, nos programas de nossas faculdades, um curso de

  • 6 FILOSOFIA DO DIREITO

    filosofia do direito, para seguir o exemplo dos outros pases, que contribuio poder trazer? Um verniz de cultura geral til nas conversas? Que se espera deste livro? Provavelmente um panorama do desenvolvimento das "cincias humanas", a psicologia, a sociologia, a antropologia, a nova lgica "dentica"? Poderia haver um malentendido...

    Portanto, a filosofia do direito ter inicialmente que ser justificada, e se possvel definida.

  • QUESTO PRIMEIRA

    por que estudar filosofia do direito?

    Provavelmente nem todos sero sensveis s observaes que se seguem. A necessidade da filosofia no existe em todos.

    Falta a nosso ensino algo de fundamental. N o sabemos muito bem o que nele buscamos, nem em que se fundam nossos conhecimentos; para onde vam os e de onde partimos. Faltam os fins e os princpios. De que me serve conhecer os horrios dos trens se no tenho a menor idia do destino da viagem e da estao em que devo embarcar?

  • Artigo IFalta de uma definio do direito

    3. Ignorncia acerca do fim do direito. Presumo que aps "x " anos de estudo na Faculdade de Direito, voc seja incapaz de dar uma definio do direito. Com isso quero dizer que, o direito assemelhando-se categoria das artes (existe um ofcio jurdico, ou um grupo de ofcios jurdicos), voc no saberia definir para onde tende a obra do jurista relativamente s outras artes, poltica, moral, economia.

    Faa o seguinte teste. Rena um grupo de juristas. Pergunte-lhes: para que serve o direito? No absolutamente evidente que lhes estejamos fazendo uma pergunta ociosa: seria til sabermos definir nosso campo de estudo. Quanto mais no seja para elaborarmos um programa escolar coerente. Voc no obter resposta. Se desejarem ter uma idia do objeto especfico do direito a partir das disciplinas que so obrigados a cursar, os estudantes tero bastante dificuldade para chegar a uma concluso. -lhes proposto um coquetel de cursos dspares: Instituies polticas - Relaes internacionais - Problemas da informao - Sociologia e psicologia social - Instituies judicirias - Contabilidade e gesto - Direito dos

  • DEFINIES E FINS DO DIREITO 9

    negcios etc., alm de "optativas", que podem ser colhidas aqui e ali. Esse o fruto de uma srie de reformas, realizadas principalmente com base no poder de barganha de cada disciplina, cada professor defendendo sua especialidade. duvidoso que nossos programas obedeam a um plano global.

    verdade que no existe mais hoje, em princpio, uma faculdade de direito, mas apenas universidades com nomes complicados para o estudo de um aglomerado de cincias sociais. Talvez a ausncia de reflexo sobre o objeto especfico do direito leve o prprio termo direito a cair em desuso. Talvez no exista mais direito. O que no me parece um progresso.

    4. Conflito das linguagens. Que ns todos nos encontremos na mais absoluta escurido a respeito do objeto do direito (supondo-se que exista uma arte jurdica), esta lacuna traz conseqncias. O erro relativo ao fim o pior, dizia Aristteles. Vejamos um de seus efeitos:

    Nesta obra abordaremos muitas vezes a questo da linguagem. Constataremos que o sentido das palavras mais freqentemente empregadas pelos juristas, e em primeiro lugar as mais gerais, muito mvel e incerto. Tivemos inmeras oportunidades de testar esse fato no Centro de filosofia do direito: em quase todas as sesses no podamos deixar de constatar que termos tais como direito natural, positivo, positivismo, norma, justia, evocam de fato na cabea de cada participante as mais diversas noes. O sentido dessas palavras ao mesmo tempo vago, difcil de definir, e um dos mais diversos conforme os locutores.

    Se ao menos esta incerteza s atingisse noes to tericas! Mas ela afeta a linguagem tcnica e as palavras mais necessrias cincia do direito no sentido restrito, tais como: "obrigao" ou "contrato, propriedade, posse, interpretao" etc.1 verdade que poderamos encontrar

    1. Cf. Archives de philosophie du droit, 1964,1968,1970,1972,1979, etc.

  • 10 FILOSOFIA DO DIREITO

    no Cdigo civil e em nossos manuais definies de alguns desses termos. Mas no definies concordantes. Elas divergem, no apenas de um pas a outro (as palavras propriedade, contrato, revestem-se de sentidos diferentes na Inglaterra, na Unio Sovitica e na tradio francesa), mas tambm no mesmo pas, de uma escola de pensamento a outra. Josserand ou Duguit no concebem a propriedade como Georges Ripert. Pode-se acaso duvidar que as frmulas pelas quais o Cdigo define, por exemplo, a propriedade (art. 544) ou o contrato (art. 1101) estejam hoje ultrapassadas?

    No h nenhum acordo sobre o sentido de termos to fundamentais. O que provavelmente inevitvel: a polissemia a regra de nossa linguagem comum, sendo a causa de muitas das obscuridades que teremos que discutir.

    Mas o rigor de uma cincia (inclusive o de uma cincia do direito) consiste precisamente em escapar a esta flutuao da linguagem e assegurar a cada termo um significado constante e relativamente preciso. Apesar de no faltarem monografias sobre tal ou qual dessas grandes noes, nosso sistema lingstico continua, em seu conjunto, inexplorado. Seria preciso estud-lo globalmente, porque uma linguagem constitui um todo estruturado; cada palavra s ganha sentido relativamente s outras e no interior de um todo ordenado. O que se verifica principalmente nas linguagens cientficas cuja arquitetura consciente e artificial, orientada por uma idia clara do objeto da cincia considerada.

    Veremos mais adiante que s ser possvel esclarecer a linguagem do direito, restituir-lhe a coerncia, tirar da presente confuso os grandes instrumentos conceituais da cincia jurdica, apenas quando o fim do direito for conhecido.

  • Artigo IIMetodologia incerta

    5. Desconhecimento das fontes. Se perguntarmos, em primeiro lugar, de que fontes depende nossa cincia do direito, quem saber responder?

    Desde o incio do sculo XX os modos de abordar o direito esto em incessante mutao. Os cursos de direito ministrados na faculdade foram inicialmente cursos de "cdigos''; ensinavam-se os cdigos e as leis; os estudantes eram adestrados para "subsumir" ao texto das leis solues particulares.

    Depois, as decises de jurisprudncia foram consideradas como fontes de direito; com base numa mistura de sentenas e leis, construram-se grossos tratados de "dogmtica jurdica".

    Atualmente a sociologia entrou em cena. Mais uma vez tomarei alguns exemplos dos programas da Universidade de Paris II. Os cursos se intitulam: Direito penal e sociologia criminal - Direito constitucional e instituies polticas - Cincia poltica - Relaes internacionais... Aprende-se a regular o direito com base nas instituies de fato, os hbitos, os costumes existentes...

    Mas, qualquer que seja o procedimento seguido para a inveno do direito, sempre constataremos a mesma

  • 12 FILOSOFIA DO DIREITO

    lacuna: o jurista furta-se a explicar por que esta autoridade soberana reconhecida lei. Ou, numa outra escola, por que seguir os precedentes da jurisprudncia? Abrir as portas da cincia do direito para a vaga sociolgica?

    A este respeito o ensino cala-se quase completamente ou, se nossos manuais explicam-se nos captulos preliminares (ou "Introdues gerais ao estudo do direito"), o fazem de uma maneira to simplista que melhor seria permanecerem em silncio. Assim como um operrio trabalha com uma mquina sem se preocupar em saber como foi construda, ensinamos segundo as rotinas de um dos diferentes tipos existentes de positivismo jurdico, sem nos darmos ao trabalho de verificar quanto valem essas rotinas. Assim, nossos enormes tratados de "dogmtica jurdica", nossos cursos magistrais, nossos sistemas, so colossos com ps de barro, belas construes que ningum garante no estarem fundadas na areia...

    Uma categoria de fontes autenticamente fundamentada para constituir uma fonte de direito est ainda por ser fundada. E no o ser na faculdade. E, se o leitor no sentiu que existe em nossos estudos uma deficincia quanto a esse ponto, ns o perdoaremos, mas este compndio no feito para ele.

    6. Conflito dos mtodos. Paralelamente multiplicidade das opinies contraditrias relativas s fontes do direito encontra-se a diversidade dos mtodos. Esta acarretou particularmente na Alemanha o famoso Conflito dos Mtodos (Methodenstreit), em que se discutia o que significa "a interpretao", "a subsuno" dos fatos lei, "a livre pesquisa cientfica", "a jurisprudncia teleolgica" etc. Os procedimentos que os juizes seguem para chegar sentena so muito diferentes conforme o pas, como mostram os comparatistas, ou de um setor do direito a outro.

    Mesma variedade nos procedimentos de ensino: a exegese do Cdigo civil, o curso magistral dogmtico ten-

  • DEFINIES E FINS DO DIREITO 13

    dem a ser atualmente substitudos, sob a influncia americana, pelo mtodo dos casos. As escolhas operam-se empiricamente.

    Incerteza no campo da "lgica jurdica". Uma disciplina que vem ganhando espao em certas faculdades de direito a "lgica deontolgica". Nela se ensinam as leis lgicas que ajudam a tirar concluses das proposies deontolgicas que constituiriam o direito. Grande voga tambm do computador e da informtica, teis para reunir os textos, combin-los, adicion-los, calcular o resultado global. Mas, e se a sentena no for uma deduo da lei? Ou se o direito no for feito apenas de regras de conduta? Se houver outras fontes do direito alm da massa combinada dos textos? Se o caminho mais adequado for uma certa tcnica de considerao do caso? ao acaso que se adotam esses novos mtodos. Afirmo que a nossos estudos de direito faltam as fundaes.

  • Artigo IIIRecurso filosofia

    7. Da incompletude de toda cincia. No que precede no h, com relao Faculdade, a menor inteno crtica. Nada mais natural que suas insuficincias.

    Toda cincia, pelo menos as modernas (hoje no existem seno cincias particulares), constitui-se a partir de certos axiomas, princpios, noes fundamentais. Ela mesma no os "tem atiza", o que significa que no os toma como objetos de estudo; condicionada por eles, devendo-lhes a prpria consistncia, a coerncia e o rigor; aceita-os como dados cuja constituio est a cargo de uma outra disciplina.

    Isso vale para a cincia do direito ou, antes, para as diversas espcies de cincias jurdicas. Considerando que ao longo do sculo XIX tenham florescido imponentes tratados de dogmtica jurdica, elaborados sobre o princpio da soberania da lei (e particularmente do Cdigo civil), fcil reconhecer de onde procede esse postulado. No foram certamente os juristas, habituados sob o Antigo Regime "eqidade dos Parlamentos" ou arbitrariedade do rei, os inventores do dogma do positivismo legalista. As origens deste ltimo encontram-se em Kant,

  • DEFINIES E FINS DO DIREITO 15

    Rousseau, Locke ou Hobbes, no mbito das chamadas doutrinas do "Contrato Social", que acabaram por prevalecer na cultura geral do sculo XVIU. Da mesma fonte procedem as noes individualistas de propriedade, de contrato, introduzidas na cincia jurdica da mesma poca, portanto toda uma parte da linguagem tcnica de nosso Cdigo civil.

    E se agora a sociologia irrompe no direito, se no curso de direito constitucional vem se imiscuir o ensino das instituies polticas, no curso de cdigo penal estudos de criminologia, de penalogia, de antropologia criminal, poderamos seriamente pretender que os primeiros responsveis por isso tenham sido os juristas? No, isso se deve a Auguste Comte, a Durkheim, que foi o mestre de Duguit, e, em geral, aos filsofos de tendncia sociologis- ta. Eles conseguiram impor, por sua vez, sua maneira de ver. Da os professores de direito tiraram novos caminhos e descaminhos.

    Percorrendo toda a histria do direito seria fcil fornecer uma multiplicidade de exemplos de injeo nas cincias do direito de princpios vindos de fora delas. No, evidentemente, que os juristas aceitem curvar-se servilmente a essas influncias: eles poro prova os axiomas e a linguagem que a cultura ambiente sugere e tende a impor; rejeitaro alguns deles, reformando-os empiricamente. No realizam, porm, um estudo racional desses axiomas. Esse estudo ser realizado alhures. A cincia do direito no uma cincia inteiramente autnoma, inteiramente autrquica; ela depende, quanto a seus princpios, de uma outra disciplina que antigamente se chamava "arquitetnica". E disto que precisamos convencer os juristas: toda cincia do direito est suspensa a um sistema geral de filosofia.

    8. Uma distino de Kant. Em seus "Princpios metafsicos da doutrina do direito", Kant prope uma distino que ser posteriormente retomada por Hegel. H

  • 16 FILOSOFIA DO DIREITO

    duas espcies de perguntas a serem colocadas no que concerne ao direito. Primeiro a questo: quid juris? Qual , em tal ou qual processo, ou tal espcie de processo, a soluo de direito? Por outro lado a questo: quid jus, o que o direito em si mesmo?

    Ora, segundo Kant, que se explica no "Conflito das faculdades", a funo da cincia jurdica responder ao primeiro problema, qual a soluo de direito? (o que significa em seu sistema: qual a soluo de acordo com o texto das leis positivas). Enquanto cabe "Faculdade de Filosofia" o segundo problema: o que o direito? Quer dizer, para Kant, o que significa primeiramente o termo direito, como defini-lo? Mas tambm o que a justia, a idia do direito, a soluo que deveria ser idealmente e em direo qual deveria tender o legislador?

    No nosso modo de ver Kant atribui uma parte demasiadamente grande aos filsofos. Por que os juristas no deveriam se preocupar pessoalmente com a justia de suas solues? Estamos muito longe de aceitar este tipo de diviso traada por Kant entre faculdades de "direito" e de "filosofia"; mas podemos aproveitar a distino que ele nos prope, contanto que a interpretemos de um modo mais flexvel do que permite seu positivismo. E verdade que o jurista absorve-se na busca de solues. Para explicar "o que " o direito, definir o objeto de sua cincia relativamente moral, poltica, economia, s diversas cincias sociais, discutir seu mtodo, as fontes do conhecimento do direito, ele no teria nem tempo nem competncia. Trata-se de um homem demasiadamente ocupado em resolver casos e dar consultas para se prestar a este tipo de especulaes; e sem dvida a tcnica que lhe prpria e a estreiteza de seus horizontes dificilmente permitiriam que lidasse bem com esses problemas.

    Entretanto, nenhuma resposta rigorosa seria possvel questo: o que de direito, quid juris? se no dispusssemos de alguma idia do que o direito, quid jus. Toda cincia do direito supe uma certa concepo do di-

  • D EFIN I ES e f i n s d o d i r e i t o 17

    reito, de seu objeto e de suas fontes; e cada cincia do direito s valer na exata medida do valor de seus princpios. Tambm estes devem ser examinados de tempos em tempos. Se, portanto, identificando as lacunas do ensino jurdico, sentimos a necessidade de preench-las, de no mais ignorar o objetivo e os fundamentos da cincia do direito, deveremos introduzir uma outra disciplina: a filosofia do direito. Por que justamente a filosofia?

  • QUESTO SEGUNDA

    O que entendemos por filosofia?

    Antes de poder afirmar que a filosofia do direito est apta a cumprir este papel, deparamo-nos com uma questo difcil: pouco acordo existe sobre o que a filosofia. O que o leitor constatar rapidamente se consultar sobre to discutido problema os manuais de histria da filosofia ou as crnicas filosficas do jornal Le Monde. Parece que cada grande filsofo - Descartes, Kant, Marx, Hei- degger, Gabriel Mareei - secreta sua prpria concepo de filosofia.

    A filosofia parece ser de difcil definio. O que no ocorre com as cincias. De cada cincia conhecemos aproximadamente (da fsica, da qumica, ou da prpria cincia jurdica) seu objeto especfico. Porque as cincias tm, acima delas, uma disciplina que chamamos de "arquitetnica" (precisamente a filosofia - ou a "filosofia das cincias"), cuja tarefa defini-las, resolver seus freqentes conflitos de competncia. A filosofia, entretanto, nada tem acima de si, ela mesma se define; do que resulta que cada filosofia pode considerar-se livre para forjar, segundo seu ponto de vista pessoal, uma nova idia da filosofia. No seria difcil citarmos cem definies disparatadas.

    No faremos isso. Mas, como o gnero filosfico uma inveno dos gregos, que o emprestaram Euro-

  • 20 FILOSOFIA DO DIREITO

    pa, remontaremos s suas origens para conhecer-lhe a natureza. Sem esquecer, contudo, que ocorreram mudanas em nosso regime intelectual e que o campo da filosofia no corresponde mais ao que era no tempo de Aristteles.

  • Artigo ICampo original da filosofia

    Na concepo da Antiguidade, a filosofia aparece como um esforo de conhecimento cujo objeto parece ilimitado, uma espcie de cincia universal.

    O que exige um comentrio.

    9. A filosofia, cincia universal. Que uma nica disciplina pretenda, sozinha, abarcar todo o campo do conhecimento, para ns inimaginvel, dada a presente organizao de nossos estudos. Mas manifestamente verdadeiro relativamente filosofia dos gregos. Tales era ao mesmo tempo filsofo, fsico, matemtico, e Pitgoras no tinha menos cordas em seu arco. Quanto a Aristteles, durante muito tempo considerado como o modelo do "filsofo", sua obra trata de tudo: da moral, da poltica e das leis, da retrica, da lgica, da psicologia, da matemtica, da cosmologia, da fsica e, enfim, da "metafsica". Tambm na Idade Mdia (se bem que nessa poca a filosofia j sofresse a oposio da teologia), no menos universais se pretendem o mestre de So Toms, Alberto Magno, que muito se dedicou s cincias naturais - ou

  • 22 FILOSOFIA DO DIREITO

    Buridan, clebre sobretudo por seu asno (e sua anlise da vontade) mas que no cultivava menos a fsica.

    Sabemos que esta acepo muitssimo ampla do termo "filosofia" ainda vigorava no sculo XVII e mesmo depois. A primeira grande obra do Descartes "filsofo" continha tica, fsica, matemtica, alm do Discurso do Mtodo.

    Incluso do Bem. O mais notvel, contudo, que nesse campo universal a filosofia antiga inclua o Bem, o belo e o justo - o que no a impedia de ser uma espcie de cincia objetiva.

    Nada com efeito mais estranho ao esprito dos filsofos gregos do que pretender construir, sob o nome de filosofia, um conhecimento a priori. Nem sequer imaginavam tirar seus conhecimentos de uma pretensa "razo pura", subjetiva ao esprito do homem, da qual se extrairiam axiomas de moralidade ("o imperativo categrico") ou as formas racionais atravs das quais nosso esprito conceberia o mundo. Devemos aqui fazer um esforo para esquecer Kant e a postura do idealismo moderno; e quem sabe no acabaremos por preferir a atitude dos filsofos gregos. Com efeito, s existe conhecimento no sentido prprio da palavra de alguma coisa exterior nossa conscincia, nossa "razo". E a filosofia antiga pretende ser autenticamente conhecimento - "teoria" (do verbo theorein, que significa ver) - olhar sobre o mundo exterior. Porm, naquele mundo que eles contemplavam - objeto exterior conscincia e para o qual esta tende - , os gregos fundadores da filosofia no duvidavam que estivessem includos o que a cultura contempornea chama de "valores".

    E nesse ponto que o modo de ver dos filsofos da Antiguidade contrasta mais com nossos hbitos. Fomos formados no esprito das cincias modernas. Ora, as cincias modernas fazem justamente abstrao das qualidades que esto nas coisas; despojam o mundo de seu valor, restringem-se a olhar os "fatos", ou as relaes entre os fatos, e, alm de tudo, no qualquer fato, mas somen-

  • d e F I n i e s e fins do DIREITO 23

    te a espcie de fatos abordada por cada especialidadecientfica.

    O gelogo s considera, numa paisagem, a composio material, as camadas de que se constitui; no v sua beleza. No corpo humano que disseca, o anatomista contar os ossos e os msculos; o bilogo considerar as operaes qumicas que se efetuam em cada tecido. Num discurso o lingista considerar somente os fonemas, os morfemas, a sintaxe, ou as relaes do discurso com os sentimentos do locutor, com suas emoes, sua idade, condio psicolgica ou sociolgica, suas intenes, o objetivo que almeja...

    Quando, ao contrrio, um Aristteles estuda as constelaes ou os rgos dos animais, encanta-se com sua disposio, procura reconhecer sua beleza, relaciona-os com uma "causa final". Discerne nessa ordem a mo de uma natureza artista, e a observao da natureza leva-o existncia de Deus. - Se estuda o discurso humano, os argumentos dos sofistas ou dos dialticos, a arenga dos oradores, neles discerne o verdadeiro e o falso. - Caracte- rologista, observando as diferentes espcies de homens, seu estudo visa definir o que a prudncia, a temperana, a fora, a sabedoria, e os vcios correspondentes.

    Ultimo exemplo: quando um Plato na Repblica considera as instituies, seu nico objetivo o de conseguir apreender o justo e o injusto. Pode-se adivinhar como este tipo de cincia dir respeito ao direito.

    Busca da sabedoria. Assim, entenderemos melhor o carter universal da antiga filosofia e que a palavra filosofia tenha significado na origem a busca da sabedoria. A sabedoria (sophia-sapientia) ao mesmo tempo cincia, conhecimento da realidade, e, como resultado dessa cincia, capacidade de bem se conduzir, moral tirada de um conhecimento. A aposta do filsofo grego (que hoje poderia ser tachada de intelectualismo) parece ser que da viso mais integral que possa ter da natureza ou do cosmos, o sbio extrair seu modo de viver. A o menos a

  • 24 FILOSOFIA DO DIREITO

    funo da filosofia ser de fornecer para a conduta uma orientao geral. No pode ser til nas circunstncias contingentes da ao cotidiana.

    Os esticos reconheciam-lhe comumente trs partes: primeiro a "dialtica", que serve de barreira contra o erro, como os muros de um jardim o protegem dos ladres. Em seguida a fsica, estudo da natureza, semelhante s rvores ali plantadas. Finalmente a moral, produto da fsica; a moral corresponde aos frutos que do as rvores, e em vista dos quais todo o jardim foi plantado. Tambm esta imagem d uma idia da amplitude do antigo conceito de filosofia.

  • Artigo IIO campo da filosofia no mundo moderno

    Mas uma noo to abrangente certamente no poderia mais vigorar hoje.

    10. A agresso das cincias. Pois a partir do incio do sculo XVII nasceram, autnomas, e logo depois separadas da filosofia, mas ameaando tomar seu lugar, as cincias no sentido moderno do termo. Conhecemos seu triunfo e como proliferaram: matemticas, astronomia - qumica e fsica (que, contrariamente fsica da Antiguidade, no sentido moderno se limita ao estudo da matria inerte) etc. E como o modelo da cincia moderna devia conquistar novos terrenos, e constituir a biologia (as "cincias naturais"), depois as "cincias humanas" e "sociais": psicologia, economia, histria cientfica - todos os ramos da sociologia, a lingstica etc. Sem falar das cincias "normativas", como a lgica e a esttica. Ainda vivemos sob o efeito desta expanso das cincias.

    Recuo da filosofia. Desde ento as cincias avanaram sobre o campo da filosofia. Desde o incio dos tempos modernos, vemos a filosofia se retrair como uma pele de onagro. Fora-lhe reservado, num primeiro momento, o

  • 26 FILOSOFIA DO DIREITO

    que concernia ao "esprito", "alm a" humana, porque no estariam sujeitos ao determinismo. O dever-ser, a moral ficariam a cargo dos filsofos, e a cincia se ocuparia dos fatos tais como so. A filosofia conservava a Lgica, a Moral e a Poltica. Para trat-las, o idealismo forjar um mtodo prprio, apriorstico, que se gabar de nada dever experincia, "metafsica" no sentido moderno: essa foi a fonte de uma noo nova de filosofia, pela qual muitos filsofos ainda se orientam.

    Depois disso, porm, com a expanso das cincias humanas, a filosofia no cessou de perder terreno. A psicologia, a lgica so hoje cincias. Tambm a poltica tende a tornar-se cincia, e no faltam indcios de que certa sociologia esteja em vias de tornar-se moral. As cincias esto a ponto de abarcar tudo.

    Aquilo de que no se pode falar, dizia Wittgenstein, deve-se calar. Que resta ao filsofo? Para os cientistas, no lhe caberia mais do que a ''epistemologa", teoria das cincias construda, alm do mais, a partir das prprias cincias: anexo, apndice das cincias. Atualmente na Frana nas cadeiras de filosofia (nas que ainda conservam esse nome) faz-se histria das doutrinas, da sociologia (a filosofia seria uma tomada de conscincia da ideologia de cada poca), da psicologia, da psicanlise, da lingstica. Ou da praxis revolucionria. Falsas aparncias de filosofia, traio filosofia, abandono da filosofia. Ficaramos tentados a subscrever a definio proposta (em substncia) por Chtelet: "Filosofia: gnero literrio nascido na Grcia cerca de V a.C. - morto na Europa com Hegel (1831)."

    11. Persistncia da filosofia. Mas as cincias nos moldes modernos, mesmo que fosse possvel adicion- las e operar sua sntese, no bastam. A essncia da cincia de tipo moderno consiste com efeito em ser especializada, restrita a um domnio particular. E o sucesso da cincia deve-se a esta restrio consciente de seu campo

  • rDEFINIES E FINS DO DIREITO 27

    de estudo. , por exemplo, pulverizando-se em inmeras especialidades que a medicina progride: existem especialistas dos ossos, do sangue, dos tecidos, do psiquismo. Mas a vtima, como todos sabem, desse processo de disperso, muitas vezes o prprio doente, pelo qual o especialista no se interessa e o qual conhece cada vez menos. Mesmo se reunssimos o estado-maior dos especialistas, estaramos longe de obter uma totalidade. Junte todos estes objetos das especialidades mdicas, espalhados sobre a mesa de disseco. Voc no obter o ser vivo que, mais que a soma dessas partes, a combinao dinmica destes elementos.

    Nenhum cientista conhece o homem, nem o cosmos, nem coisa alguma em sua concretude. S apreende aspectos unilaterais das coisas, s manipula abstraes. Da o enorme perigo do cientificismo, e o fiasco de nossos Prmios Nobei quando insistimos que falem do todo; quando um Jacques Monod, que passou a vida pesquisando os processos mecnicos da gentica, se pe a falar da existncia de Deus. Sua competncia de outra ordem; substancialmente de ordem tcnica. No! A Verdade no o fim de nossas pretensas "cincias", a no ser que elas venham a se transformar, que voltem a ser filosofia. Como Hegel to bem percebeu, a verdade consiste no conhecimento do todo; e a falsidade a apreenso unilateral, prpria precisamente do cientista moderno, que se pe como uma apreenso do todo. Hegel um verdadeiro filsofo pela nostalgia desse conhecimento universal que o atravessa.

    Ora, cada um de ns pode encontrar em si a necessidade de filosofia. Todos ns somos chamados a ser filsofos. Sei que mais comum nos trancarmos na parcela que nos coube cultivar; vivermos com o esprito obnubilado pela nossa profisso ou especialidade, este osso que nos do para roer a fim de nos distrair. Mas imaginemos um esprito mais livre. Algumas vezes toma-o a angstia de desconhecer tudo do resto do mundo, e do sentido de

  • 28 FILOSOFIA DO DIREITO

    sua prpria vida; de estar nas trevas quanto ao essencial. O presente regime dos estudos deixou de satisfaz-lo; est em busca de outra coisa.

    12. Retomada da filosofia. No pretendo definir a filosofia. Existem para ela outros caminhos pelos quais j se enveredou. H a via do idealismo e do subjetivismo modernos, totalmente concentrada no sujeito e nas relaes deste com os objetos de conhecimento, que reduz o ser ao pensamento. Mas, em oposio a essa corrente, e sempre atual, ressurgindo a cada momento, uma filosofia realista1 voltada para o ser, cuja realidade postula e do qual procura ter uma viso de conjunto. Como saber tudo pedir muito, tentaremos ao menos conhecer a maneira como esto ordenados os objetos fragmentrios das cincias, denunciando seus limites. Sublinharemos a necessidade, para alm das cincias, de uma tentativa de conhecimento da estrutura geral do mundo, da organizao do todo. E a julgar pela nsia que no cessou de estimular os autnticos filsofos de Plato a Hegel e bem para alm de Hegel, este esforo de viso global continua sendo uma vocao da filosofia.

    Seu objeto permanecer o mesmo da poca em que os gregos o inventaram, exceto por ter-se adelgaado, purificado com o concurso das cincias. O filsofo permanece voltado para o universal. assim que a filosofia se ope s cincias particulares, inclusive s cincias do direito.

    Do carter inslito da filosofia. Um parntese: exatamente por isso que a filosofia pouco cultivada. Acabamos de defini-la como um esforo de conhecimento. Desde sua origem, entre os antigos, o contrrio da filosofia era o negocium, a ao, a prtica. Poderamos retomar a

    1. Dita pr-crtica, porque respeita os limites comuns do esprito humano, pois o olho, no podendo normalmente olhar para si mesmo, volta- se para um mundo de seres exteriores. Outros procuraram ultrapassar essas fronteiras, mas temo que nessa aventura o direito no tenha ido alm de seu horizonte.

  • DEFINIES e fins do direito 29

    frase de Marx: o papel da filosofia no o de transformar o mundo, mas de tentar compreend-lo.

    Nosso mundo prefere a praxis, e diramos mesmo que preciso ir at pases subnutridos - ndia, ao Tibete - para encontrar pessoas que no estejam preocupadas em ganhar dinheiro ou comida. A vida especulativa nos parece condenada, antinatural, primum vivere, deinde philo- sophari, principalmente hoje no mundo dos intelectuais.

    Hoje a filosofia constitui a maior lacuna. Nossos intelectuais se contentam com informaes particulares, teis s necessidades da vida prtica, informaes fornecidas pelas cincias. As cincias modernas so as auxiliares da tcnica, enquanto a filosofia essencialmente intil. A no ser pelo fato de nos orientar para o bem, o verdadeiro e o justo.

    natural que a cincia do direito seja bastante difundida, e a filosofia, rara. O que no impede que seja necessria.

  • Artigo IIIDa filosofia do direito

    Se, pois, acabamos de nos arriscar fazendo insistentes reflexes sobre a palavra filosofia, pedimos ao leitor que no se ponha a julg-las apressadamente, sem relacion-las com nosso propsito.

    13. A filosofia aplicada ao direito. Uma filosofia que se dedica a discernir as estruturas gerais do mundo est em condies de fornecer ao direito sua definio.

    Disciplina "arquitetnica" , ela desempenha o papel de pastora da multiplicidade das cincias; apta a definir o lugar de cada uma delas, a resolver seus conflitos de fronteiras; a distinguir suas respectivas fontes de conhecimento; a determinar-lhes os limites.

    A filosofia exerce esta funo tanto em relao cincia do direito como em relao s outras cincias. Cabe-lhe determinar o domnio do direito relativamente moral, poltica e economia; definir o direito (quid jus), o fim da atividade jurdica. Deve tambm discernir as fontes especficas do direito, e a especificidade do mtodo da cincia jurdica com relao a outras fontes e mtodos.

  • DEFINIES e fins do direito 31

    Filosofia e teoria geral do direito. Ela constitui pois um trabalho inabitual. E, repetimos, muito raro que os juristas se arrisquem a sair de sua especialidade para enfrentar a filosofia. Desconfiam dela; toleram apenas as chamadas "teorias gerais do direito", que se pretendem a-filo- sficas, quase "cientficas": seu nico objeto seria a "anlise" e a ordenao das idias aceitas no mundo atual. Esposam deliberadamente os preconceitos corporativos e evitam coloc-los em questo.

    Ns, ao contrrio, fizemos questo de conservar, em nossa obra, o ttulo filosofia do direito, para sublinhar que esta disciplina no um olhar narcseo da arte jurdica sobre ela mesma; um palrear de velho jurista discorrendo sobre seu passado; e que ela no apenas induzida da experincia do direito, mas filosofia, entendendo por isso que ela busca esta viso total, ou ao menos da estrutura do todo, que afirmamos ser da alada da filosofia. Como o jurista poderia diferenciar o direito da moral ou os mtodos da cincia do direito dos da sociologia, se nada soubesse a respeito da moral e dos mtodos das cincias sociais? Se dispusesse apenas de uma experincia limitada sua profisso, como poderia julg-la ou julgar conceitos e mtodos admitidos por rotina, ousar um julgamento crtico?

    14. A linguagem da filosofia do direito. Uma outra definio possvel da filosofia lhe atribui como principal objeto o estudo da linguagem. conhecido o sucesso desta frmula em certas regies: Inglaterra, Amrica, Escandinvia. Aceitaremos essa definio a ttulo acessrio, recusando, porm, reduzir a filosofia (o que constituiu o erro da maior parte desses neopositivismos) a uma "anlise da linguagem" de tipo descritivo, estritamente cientifico. A filosofia (como esforo de apreenso integral) deve ser crtica, permitir-se juzos de valor.

    Mas verdade que as linguagens das quais nos servimos e das quais somos prisioneiros (sistemas dos con-

  • 32 FILOSOFIA DO DIREITO

    ceitos e dos termos mais gerais) constituem por si mesmas esboos de conhecimento universal; de estruturao do inundo; esforo de diviso do mundo em seus principais elementos. Tal vocabulrio distinguir a "alm a" do "corpo", o que no faz o hebreu antigo. Tal sintaxe ope fortemente o ser e o dever ser, o que , de fato, e aquilo que devemos fazer, enquanto em outras lnguas esta distino se acha menos marcada; nosso lxico nos compromete filosoficamente. J se disse que cada linguagem contm em si uma filosofia, espontnea, porm, inconsciente. De modo que pretender abordar problemas filosficos, como muitos fazem, na linguagem de seu prprio grupo social, sem ousar coloc-la em questo, no de fato filosofar. E girar em falso. A filosofia deve apoiar-se no estudo da linguagem, na comparao das linguagens.

    Somos cativos, estamos enredados nas malhas de uma linguagem que nos impe a viso de mundo de nosso meio, uma certa filosofia cujos efeitos so desastrosos. Mas, atravs de um esforo crtico, conseguiremos nos libertar desta servido.

    Esta nova forma de apresentar o objeto da filosofia do direito engloba de fato a precedente.

  • QUESTO TERCEIRA

    Quais sero nossos meios de estudo?

    A resposta parece evidente, mas nos lanar de novo na incerteza. J que autores eminentes consagraram seu tempo e no raro seu gnio ao estudo da filosofia, iremos consultar seus livros. Seria totalmente insano, quando se dispe de tais riquezas, pr-se a construir uma filosofia pessoal. Aqui comea nossa dificuldade.

    15. A questo da escolha dos autores. Como j assinalamos, para a filosofia do direito a literatura superabundante, inesgotvel, desanimadora. No na Frana, mas em pases como a Espanha, tem-se a impresso de que cada professor publica seu prprio manual (a clientela estudantil suficientemente numerosa para convencer os editores, enquanto o professor permanecer em exerccio).

    Alm disso, preciso desconfiar de alguns desses manuais de juristas, cuja competncia parece incerta, j que a filosofia do direito filosofia. Melhor seria recorrer aos grandes filsofos. Articulando a estrutura geral do mundo, todos eles falam em maior ou menor medida do direito.

    Mais uma vez, porm, sentimo-nos soterrados sob a enorme quantidade de doutrinas. Se este compndio pretendesse abordar a histria da filosofia do direito, ns as passaramos eni revista. No o caso. Nosso progra-

  • 34 FILOSOFIA DO DIREITO

    ma no consiste em dizer o que pensavam Hobbes, Kant, Hegel, Marx. Existem bons manuais de histria da filosofia do direito, aos quais remetemos o leitor. Nosso problema bem diferente. No so as opinies de tal ou qual personagem, mas a melhor resposta que nos interessa. A filosofia no neutra, seu objetivo escolher em favor da verdade. Impe-se o problema da escolha dos autores.

  • Artigo IAs autoridades

    16. Subm isso aos poderes. Em certos pases a escolha procede do governo. Assim, a teoria do direito e do Estado marxista-leninista no ensino dos pases do bloco sovitico: encontramo-la em todos os manuais, como fonte de inspirao primria e obrigatria. O que muito cmodo e confere uma certa ordem ao ensino.

    Com exceo de um certo nmero de novas universidades, esta opresso em matria de filosofia no ocorre em princpio na Frana. Se se quisesse impor, no mundo ocidental, o que alis teria que ser feito por outros meios, uma teoria oficial dos princpios do direito, esta s poderia ser a ortodoxia do corpo de elite dos juristas, da qual os marxistas diriam que representa uma potncia ideolgica a servio da classe burguesa.

    Mas tal conformismo avesso ao esprito da filosofia, que exigncia de liberdade, frmito crtico e, desde Plato, resistncia ao poder da opinio. No deveria existir autoridade oficial nesse domnio. Assim, sentimos que um desafio escrever um compndio de filosofia. Aos compndios cabe expor (como diz a coleo "Q ue sais-

  • 36 FILOSOFIA DO DIREITO

    Je?"* a "situao atual do conhecimento"; uma doutrina comum. Os compndios de direito copiam-se mutuamente quanto ao essencial, apiam-se numa doutrina aceita. Quem procura filosofar no dispe deste apoio corporativo. A nica concordncia reside no modo de trabalhar.

    17. Submisso atualidade. uma outra imposio. O que tem que ser lido? Os autores do sculo XX. O estudante francs de hoje formado na servido literatura recente, e mantido cuidadosamente afastado daquilo que poderia introduzir nesse concerto uma nota discordante.

    Aos melhores aconselhado esforar-se para seguir o movimento. A maioria dos livros sobre a filosofia do direito se prope ajustar os princpios da cincia do direito s modas filosficas do tempo, beneficiar os juristas com os ltimos avanos da filosofia geral. Pode-se fazer isso de modo flexvel, mas em linhas gerais assim que nossa disciplina opera suas escolhas desde o sculo XIX.

    Intermitencias universitrias. Grosso modo vimos suceder na teoria geral do direito, segundo a curva da opinio mdia do mundo filosfico, primeiro sistemas kantianos ou positivistas; no incio do sculo XX sistemas neokantianos (Stammler, Del Vecchio, em parte Radbruch e Kelsen). Houve em seguida uma ecloso de hegelianismo e ondas de existencialismo, de fenomenologa e, hoje, de estruturalismo. Existem principalmente coquetis feitos da mistura ecltica desses diversos sistemas. Atualmente, excetuando-se a corrente marxista (bastante importante), a preocupao dos autores principalmente acompanhar as correntes de pensamento dos pases de ponta, Estados Unidos, Inglaterra ou Escandinvia. Em

    * Coleo de livros editada pela PUF (Presses Universitaires de France), que expe em pequenos livros o essencial de cada tema proposto. (N. da T.)

  • DEFINIES E FINS DO DIREITO 37

    alta "a anlise da linguagem", a psicanlise, a lgica formal- A antropologia cultural, o computador e sua ling u ag em so bastante prestigiados.

    H vantagens evidentes neste modo de conceber um manual de filosofia. Ele encontra (o que conta muito) o assentimento dos editores porque satisfaz tambm a demanda dos leitores. Pois os leitores aspiram acima de tudo a serem informados sobre os movimentos do pensamento contemporneo, a fim de ajustar-se ao diapaso, incor- oorar-se ao peloto de frente, participar com brilho de "encontros" ou "simpsios" (gneros muito praticados nas cincias polticas). Alm disso, dedicar-se explorao dos desenvolvimentos mais recentes do pensamento filosfico a nica chance que se tem de oferecer uma doutrina nova, o que justifica a edio de um novo manual.

    Assinalemos, entretanto, que no fcil seguir este caminho. Seguir a corrente est cada vez mais se tornando uma empresa aleatria, pois a atualidade inapreen- svel, dado que se move em velocidade acelerada. Assistimos ao sucesso do neokantismo, vimos o sociologis- mo no poder, depois a moda de Sartre que no durou.

    "E rosa ela viveu o que vivem as rosasO espao de uma manh..."

    ...Por mais que o filsofo do direito se precipite na explorao das ltimas revistas, se esfalfe e corra com todas as foras, sempre perder o trem; alm disso, como o movimento do trem muitas vezes circular, e a edio lenta, seu manual pode sair no momento mais inoportuno.

    Mas tais so as normas do trabalho universitrio. No tenho a pretenso de arrancar, com o primeiro golpe, as razes dos preconceitos nos quais se fundam.

  • Artigo IIDa moda em filosofia

    I a) Do historicismo em filosofia

    Vaga de atualidade. Uma das razes de nossa obsesso de atualidade o preconceito historicista no qual estamos mergulhados, e que surgiu com os admirveis avanos da cincia histrica (e geogrfica). Finalmente teramos tomado conscincia de que todas as coisas so histricas e que deveriam ser vistas historicamente. Tambm a filosofia deve ser inserida em sua evoluo: cada poca secreta seus problemas, sua problemtica, sua linguagem. A filosofia se define como a conscincia de cada tempo. No deveramos, portanto, dedicar mais do que uma curiosidade distrada s doutrinas da Antiguidade (do perodo escravagista) ou dos primrdios do capitalismo. Nossa verdadeira filosofia no pode ser seno a de hoje. Tal a principal lio do marxismo.

    18. Estaria a filosofia na histria? No poderamos neg-lo: nossos conhecimentos em matria de filosofia tm uma origem histrica e para capt-los preciso servir-se da histria, remontar s fontes. Mas integralmen-

  • DEFINIES E FINS DO DIREITO 39

    te falso que tudo muda no decorrer da histria: este dogma, tipicamente cientificista, provm do abuso de uma cincia histrica que s v na histria as mudanas, porque nela s procura e dela s extrai as mudanas. A iluso cientificista que nada existe de permanente.

    Que o historicismo contemporneo constitua um enorme erro, perceptvel para a filosofia; pois cabe filosofia determinar o domnio particular de cada cincia. A cincia histrica est sujeita ao controle da filosofia. , ao contrrio, colocar as coisas de ponta-cabea querer submeter a filosofia histria, transform-la num objeto da cincia histrica.

    Nada prova que os verdadeiros problemas da filosofia tenham mudado com a histria. Isso pode ser verdade no que se refere aos "problemas" de ao que respondem a situaes contingentes e particulares. Mas os problemas filosficos (que so problemas no mais autntico sentido da palavra) so de essncia especulativa. E justamente aquilo sobre o que a filosofia especula, aquilo que encontramos de mais estvel na realidade: o universal - a estrutura permanente das coisas. O marxismo de que estamos imbudos comete o erro capital de confundir a filosofia com uma tcnica de ao.

    Se tivssemos que resolver uma questo prtica, ligada s condies de nosso tempo, por exemplo uma questo de direito, no nos fiaramos em velhas obras. Meu Cdigo civil de trinta anos atrs seria provavelmente intil. Quando se trata de filosofia, a experincia mostra o inverso: um filsofo nutre-se mais lendo Plato do que a crnica filosfica do jornal Le Monde; quando Plato fala do Ser, do Uno, da existncia de Deus ou da justia, uma parcela nfima de suas proposies nos causa estranhamento ou nos parece intil - e todas as grandes filosofias (simplesmente traduzidas, interpretadas nos idiomas de cada poca) e suas grandes querelas atravessaram tal e qual a histria, sendo no essencial contemporneas, nossas contemporneas.

  • 40 FILOSOFIA DO DIREITO

    2a) Do progresso em filosofia

    Mas, mesmo que houvssemos entendido que a filosofia no o jornalismo, pelo qual as faculdades de direito tm uma crescente inclinao, no estaramos livres do preconceito cronoltrico. Testemunhas do desenvolvimento das tcnicas, nossos contemporneos no podem deixar de ser progressistas. No nos poderamos furtar aqui a um triplo esclarecimento.

    19. Progresso da filosofia? Aparentemente no existe nenhum autntico filsofo que ainda acredite que haja progresso em filosofia. Naturalmente cada sistema pensa a si mesmo como um progresso com relao a seus concorrentes: Descartes se v como um progresso ante a escolstica, Leibniz ante Descartes, Kant ante Leibniz, Hegel ante Kant, finalmente Kierkegaard ante Hegel; estes pontos de vista opostos, porm, anulam-se.

    Paul Ricoeur destaca a esse respeito uma diferena radical entre filosofia e cincias. As cincias, escreve, se capitalizam: uma vez adquiridos seus resultados, solidamente estabelecidos em princpios convencionais, resultados seguros (contanto que os princpios no sejam errneos), elas os conservam e continuam avanando. H um progresso das matemticas ou da fsica nuclear. As verdades filosficas, as que alguns filosfos de gnio conseguiram apreender, no tm essa chance. So precrias. E longe de serem conservadas, caem facilmente no esquecimento. No poderamos dizer que se reproduzem, e se "capitalizam". E no poderia ser diferente, a menos que efetivamente consegussemos (como tentou Husserl) fazer da filosofia uma "cincia rigorosa".

    Se nos dispusssemos a tratar da matemtica, da histria cientfica, da lgica, deixaramos de lado os antigos manuais. Costume no partilhado pelos filsofos, Husserl inclusive. E Heidegger no enrubesce por alimentar-se de Aristteles, Plato, Parmnides, Herclito. E parece

  • d e f i n i e s e f i n s d o d i r e i t o 41

    mesmo ter mostrado que a filosofia, produto grego, no avanou desde os gregos.

    Quanto aos meios que ainda se atm ao dogma primrio do progresso, eles nos provam principalmente que h um progresso, e considervel, na ignorncia do passado da filosofia.

    20. Regresso da filosofia? Teramos mais argumentos em favor da hiptese contrria, a de uma regresso dn filosofia. - Nem a constituio social, nem o regime dos estudos a partir do incio da poca moderna, e ainda mais no sculo XX, oferecem um terreno favorvel para uma boa cultura da filosofia. O Otium (estatuto das classes ociosas) deixa de ser um valor no mundo, apenas o trabalho honrado, a especulao desconsiderada. O triunfo das cincias e a diviso do trabalho levaram a es- pecializar, quer dizer, a enfurnar cada um numa experincia cada vez mais estreita, desaparecendo o olhar sobre o universal.

    Conseqncia: a filosofia se ps a degenerar, copiando as cincias; sistemas construdos com base numa experincia fragmentria, sem um olhar de conjunto sobre o mundo. Nada mais pueril do que imaginar que o progresso da filosofia acompanha o desenvolvimento das cincias. erupo das tcnicas e das cincias modernas corresponde a derrocada da filosofia, febre de agir corresponde a desacelerao do pensamento. Assim nossas cincias e tcnicas ficam deriva, sem amarras, sem que saibamos controlar seus princpios e sua direo.

    Persistncia das contradies. Se o leitor no aceitar esse veredito, pronunciado contudo por grandes pensadores de nosso tempo, pelo menos constatar este fato: que sobre nenhum dos pontos fundamentais da filosofia (a existncia de Deus, a natureza, a anlise da vontade, os fundamentos da moral etc.) o mundo atual chegou a um consensus. As mesmas controvrsias que agitavam os filsofos gregos ressurgem e no se mostram absoluta-

  • 42 FILOSOFIA DO DIREITO

    mente resolvidas. A cincia histrica nos ilude com sua mania de construir evolues. Algum poderia afirmar categoricamente que a elite dos intelectuais tenha definitivamente concludo acerca da inexistncia de Deus? Isso poderia comprovar-se em alguns setores, mas no no mundo dos filsofos, a menos que se exclua Gilson, Ma- ritain, Gabriel Mareei, Ricoeur e muitos outros. No h nada, mesmo a prpria noo de filosofia, que no seja hoje objeto do mais completo desacordo.

    21. Da regresso da filosofia do direito. E precisamente a mais doente das filosofias parece ser a filosofia do direito. Foi principalmente neste campo que o mundo moderno deixou de oferecer as condies indispensveis. Enquanto os filsofos antigos, assim como os da Idade Mdia, tinham da vida judiciria uma viso quase quotidiana, j que para eles o direito fazia parte da cultura geral, essa circunstncia favorvel desaparece a partir do sculo XVII.

    Os filsofos da Europa moderna e contempornea s tm contato com as atividades cientficas, morais, polticas. No que se tenham calado a respeito do direito. Toda tentativa de estruturao geral do mundo obrigada a conceder-lhe um lugar, e encontramos doutrinas do direito em Spinoza, Locke, Kant, Hegel e Auguste Comte... Mas eles as abordam sem terem tido a menor oportunidade de observ-las. No h em Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Comte, Nietzsche, Kierkegaard, Freud, assim como num Sartre ou num Heidegger, ou na Sorbonne de hoje, nenhuma experincia do direito.

    A torre de Babel. Resultado? Em matria de filosofia jurdica, na Doutrina contempornea, no final das contas ningum concorda a respeito de nada. A velha discusso entre Scrates e o sofista Clicles, se haveria uma justia que no fosse simplesmente convencional, est to pouco resolvida hoje quanto no sculo V antes de nossa era, e to discutida quanto. Parece que nos falta uma filosofia

  • DEFINIES e f i n s d o d i r e i t o 43

    jurdica, porque temos pelo menos uma dezena delas... Ensina-se na Escandinvia uma concepo de direito completamente diferente da ensinada, em geral, no Chile. No conheo maior torre de Babel do que os congressos da Associao Mundial de Filosofia do Direito: neles se afrontam jusnaturalistas, positivistas, kelsianos, socio- logistas e lgicos de todas as espcies...

    Freqentemente a estreiteza de sua informao, o acaso de suas leituras faz com que o jurista se obnubile num s sistema; se lhe aconteceu freqentar no colgio os cursos de um professor kantiano, se leu Kelsen, se caiu de amores pelo existencialismo, se filiou-se a uma das igrejas do marxismo, a partir da constri seu sistema. Se lanasse um olhar de conjunto ao pensamento contemporneo, perceberia que este no passa de um feixe de contradies.

  • Artigo IIIMtodo dialtico

    22. Uma filosofia ensinvel. Essas observaes so de natureza a engendrar o ceticismo com relao filosofia do direito, e teremos com isso fortalecido o campo de seus adversrios. Engano deles: a pluralidade das filosofias bem poderia ser o resultado da presente enfermidade desta disciplina, e do sistematismo moderno, que incita cada um a produzir sistemas unilaterais sob o nome de filosofias.

    Eis nossa opinio: no apena