michel paty - a dimensão filosófica do trabalho científico

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A DIMENSÃO FILOSÓFICA DO TRABALHO CIENTÍFICO Michel Paty Tradução: Fernanda Peixoto Massi "A filosofia não é uma das ciências da natureza", não se situa no mesmo plano; está "acima ou abaixo", escreve Wittgenstein 1 , para quem a filosofia não é um corpo de doutrinas, mas uma atividade. Se admitimos também, com o autor do Tractatus, que seu propósito, ou pelo menos um de seus propósitos, é a clarificação lógica dos pensamentos, e o seu resultado a clarificação das proposições 2 , a filosofia diz respeito à ativi- dade científica na medida em que esta última é uma forma de pensamen- to. Precisamente, a clarificação das proposições faz parte em grau elevado do método de Einstein, de seu estilo científico próprio³. Nem que fosse por isso, a filosofia refere-se não apenas à ciência acabada, mas à que está em vias de elaboração. Nesse sentido, não vemos por que conceitos científicos como es- paço, tempo e causalidade seriam mais pertinentes à filosofia que outros aspectos da física e de sua construção. Além disso, privilegiá-los nessa or- dem não significaria conceder-lhes o status de objetos, quando seria pre- ciso considerar ao contrário, com Gilles G. Granger, que a filosofia é uma "disciplina sem objeto" 4 , que não se preocupa tanto com a descrição, mas em destacar ou "interpretar as significações", substituindo os fenô- menos, seus conceitos e esquemas representativos "na perspectiva de uma totalidade", por oposição à ciência no sentido estrito, que "constrói es- truturas de objetos" e, para fazê-lo, fragmenta 5 e simplifica? Podemos nos perguntar, entretanto, se a distinção é tão nítida em todos os casos e se a constituição de objetos de ciência não está, quase sempre, acompanhada de uma elucidação que tem por objeto, precisamen- te, as significações. Não é somente em uma fase ultrapassada da história do pensamento que filosofia e ciência se confundem até determinado pon- to, em um terreno comum 6 . O fato de uma implicar a outra tem a ver tan- to com o momento de surgimento de uma concepção teórica nova (a "des- (1) Wittgenstein, 1921, pp. 4.111 e 4.112. (2). Wittgenstein, 1921, p. 4.112. (3) O tema aqui discutido é estudado em detalhe no livro em preparação, Einstein Filósofo, a ser publicado pelas Presses Universitaires de France, Paris. Daí a ênfase dada ao caso particular deste cientista-filósofo, cuja fi- losofia foi freqüentemente reduzida as novas con- cepções da teoria da rela- tividade sobre o espaço, o tempo e a causalidade. (4) Cf., por exemplo, Granger, 1968. (5) Ver também Granger, 1989. Mas, reconhece Granger, se a ciência não substitui a filosofia e se a filosofia não produz ciên- cia, existe comunicação entre elas: "A análise filo- sófica das significações pode levar à posterior constituição de objetos de conhecimento cientifi- co". De todo modo, a co- municação não pode ser ainda mais intensa e se si- tuar na constituição mes- ma do conhecimento científico? 127

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Michel Paty - A dimensão filosófica do trabalho científico

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  • A DIMENSO FILOSFICA DO TRABALHO CIENTFICO

    Michel Paty Traduo: Fernanda Peixoto Massi

    "A filosofia no uma das cincias da natureza", no se situa no mesmo plano; est "acima ou abaixo", escreve Wittgenstein1, para quem a filosofia no um corpo de doutrinas, mas uma atividade. Se admitimos tambm, com o autor do Tractatus, que seu propsito, ou pelo menos um de seus propsitos, a clarificao lgica dos pensamentos, e o seu resultado a clarificao das proposies2, a filosofia diz respeito ativi-dade cientfica na medida em que esta ltima uma forma de pensamen-to. Precisamente, a clarificao das proposies faz parte em grau elevado do mtodo de Einstein, de seu estilo cientfico prprio. Nem que fosse por isso, a filosofia refere-se no apenas cincia acabada, mas que est em vias de elaborao.

    Nesse sentido, no vemos por que conceitos cientficos como es-pao, tempo e causalidade seriam mais pertinentes filosofia que outros aspectos da fsica e de sua construo. Alm disso, privilegi-los nessa or-dem no significaria conceder-lhes o status de objetos, quando seria pre-ciso considerar ao contrrio, com Gilles G. Granger, que a filosofia uma "disciplina sem objeto"4, que no se preocupa tanto com a descrio, mas em destacar ou "interpretar as significaes", substituindo os fen-menos, seus conceitos e esquemas representativos "na perspectiva de uma totalidade", por oposio cincia no sentido estrito, que "constri es-truturas de objetos" e, para faz-lo, fragmenta5 e simplifica?

    Podemos nos perguntar, entretanto, se a distino to ntida em todos os casos e se a constituio de objetos de cincia no est, quase sempre, acompanhada de uma elucidao que tem por objeto, precisamen-te, as significaes. No somente em uma fase ultrapassada da histria do pensamento que filosofia e cincia se confundem at determinado pon-to, em um terreno comum6. O fato de uma implicar a outra tem a ver tan-to com o momento de surgimento de uma concepo terica nova (a "des-

    (1) Wittgenstein, 1921, pp. 4 .111 e 4.112.

    (2). Wittgenstein, 1921, p. 4.112.

    (3) O tema aqui discutido estudado em detalhe no livro em preparao, Einstein Filsofo, a ser publicado pelas Presses Universitaires de France, Paris. Da a nfase dada ao caso particular deste cientista-filsofo, cuja fi-losofia foi freqentemente reduzida as novas con-cepes da teoria da rela-tividade sobre o espao, o tempo e a causalidade.

    (4) Cf., por exemplo, Granger, 1968.

    (5) Ver tambm Granger, 1989. Mas, reconhece Granger, se a cincia no substitui a filosofia e se a filosofia no produz cin-cia, existe comunicao entre elas: "A anlise filo-sfica das significaes pode levar posterior constituio de objetos de conhecimento cientifi-co". De todo modo, a co-municao no pode ser ainda mais intensa e se si-tuar na constituio mes-ma do conhecimento cientfico?

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    coberta"), como com o de reorganizao do esquema terico, onde nos esforamos para exprimir a significao das proposies.

    aqui que a relao entre cincia, como descrio, e filosofia, co-mo expresso e ordenamento das significaes, aparece em toda a sua com-plexidade, j que a cincia (por exemplo, uma dada teoria) traz em si mes-ma a necessidade de sua prpria interpretao. Todos os debates sobre a fsica contempornea tratam da natureza dessa interpretao e da ins-tncia qual as significaes das proposies devem estar relacionadas. A contribuio do prprio Einstein nesses debates se destaca por sua preo-cupao em distinguir o mais nitidamente possvel o que, na interpreta-o, provm estritamente da fsica (quer dizer, da cincia como descrio e interpretao) e o que depende de uma posio filosfica (mais geral e totalizante). Esclarecendo a significao das proposies, no caso, as da teoria fsica segundo a misso conferida por Wittgenstein atividade filosfica , Einstein distingue cincia e filosofia ao invs de mescl-las indevidamente. Com esse procedimento, ele demonstra, ainda melhor, a verdadeira natureza de sua implicao comum.

    A fsica, como toda cincia particular, toma emprestado da filoso-fia elementos de significao. Este , principalmente, o caso das catego-rias gerais como as de ordem, lei, causalidade e determinismo, mas tam-bm as de teoria e princpio, sem as quais esta cincia no poderia definir seus objetos e procedimentos, nem mesmo ser pensada7. Os conceitos que so aparentemente os mais ligados experincia so entidades abs-tratas que possuem uma funo no conjunto onde recebem sua definio operatria e adquirem sentido (fsico, no caso desta cincia); so, por is-so, devedores das categorias gerais mencionadas. Mesmo a reflexo mais precisa e "tcnica" sobre eles, que diz respeito sua ligao com a expe-rincia e sua significao terica, faz parte do trabalho cientfico pro-priamente dito, ao mesmo tempo que possui uma parte ligada atividade filosfica.

    Afinal de contas, os papis do fsico e do filsofo no so to dis-tintos, e possvel afirmar que tarefa inerente ao fsico enunciar a signi-ficao dos conceitos, estabelecendo sua identificao lgico-matemtica, e relacion-los com a experincia.

    Poderamos dizer que os conceitos em questo os da fsica no so realmente de natureza filosfica, que sua significao dada no prprio sistema terico, isto , pela fsica. Mas, de uma maneira geral, as cincias, mesmo consideradas em seu aspecto mais formal, puramente lgico-terico, no podem ser concebidas como fechadas nelas mesmas (veja a importncia, desse ponto de vista, do teorema da incompletude de Godel), e a significao de seus conceitos e de suas proposies ultra-passa a ordem lgico-terica: ela requer os "metaconceitos" da filosofia8. De modo que a afirmao de uma ligao entre cincia e filosofia ainda vlida, mesmo que deslocada devido atribuio diferente do papel da definio terica em relao ao trabalho do fsico. Por outro lado, a ques-to da significao dos conceitos e das proposies de uma teoria de

    (6) Como escreveu G. Gusdorf: "Inmeros acontecimentos intelec-tuais, dentre os mais de-cisivos, encontram seu domnio de eleio no territrio de passagem, onde a cincia se quer fi-losofia e a filosofia se pre-tende cincia. As inspira-es mestras, em estado embrionrio, se situam nos limites onde os mo-dos de afirmao da ver-dade implicam-se mutua-mente, antes de qualquer especializao e dissocia-o" (Gusdorf, 1966, p. 158).

    (7) Essas "noes de du-pla entrada" (cientfica e filosfica), como lembra G. Gusdorf, "parecem ter sido constitudas entre a meditao filosfica e a pesquisa cientfica" (Gus-dorf, 1966, p. 153), e pos-suem origens diversas.

    (8) Cf. Granger, 1988.

    (9) Wartofsky, 1968, pp. 16-19. A ontologia ou a lgica considerada em si mesma so, por exemplo, aspectos filosficos exte-riores cincia.

    (10) Einstein, 1949.

    (11) Sobre a noo de programa epistemolgi-co, ver Paty, 1988a, cap-tulo 1.

    (12) "Em momentos des-te gnero", escreve M. Wartofsky a esse respeito, "o cientista pode muito bem tornar-se, em seu tra-balho, filsofo das cin-cias. Pode faz-lo mal, se ele filosoficamente ing-nuo ou pouco crtico. Ou pode fazer uma obra filo-sfica do nvel da de Des-cartes, Newton, Leibniz, Planck ou Einstein, que ajudaram, todos eles, a re-desenhar no somente os quadros do pensamento da cincia mas tambm os conceitos fundamentais da filosofia" (Wartofsky, 1968, p. 19).

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    natureza complexa: exige uma clarificao e uma distino entre o que pertence, respectivamente, fsica e filosofia. Ora, tal clarificao e dis-tino supem uma ateno aos "metaconceitos" e evidenciam a sensibi-lidade filosfica do fsico que os utiliza, do mesmo modo que destaca o lado filosfico desse trabalho terico.

    O enunciado das significaes inclusive seu ordenamento segun-do uma perspectiva que as relaciona unidade do conhecimento faz parte da atividade do fsico, que recebe da uma dimenso diretamente filosfica. O que, preciso frisar, no substitui o trabalho posterior do filsofo no sentido de desvendar os significados num desenho mais am-plo. Mas a clivagem no to ntida e vemos que a fsica tambm filosofia.

    Alm dessa atividade com os conceitos, existem outros aspectos filosficos consubstanciais cincia nem exteriores a ela, nem poste-riores que participam igualmente do pensamento e do trabalho cient-ficos, que se incarnam neles, e que constituem, por assim dizer, o estofo do questionamento cientfico de todos os dias9. So estas, principalmen-te, as questes referentes natureza e validade do conhecimento cient-fico, estrutura formal ou lgica das teorias, determinao de sua rela-o com a experincia. So estas, da mesma forma, as disposies que Eins-tein atribui ao pesquisador, cujo conjunto pareceria ecltico aos olhos do "filsofo sistemtico", mas que no so menos filosficas pelo fato de ca-da uma delas no constituir um sistema: o projeto de representar uma rea-lidade independente, a parte de conveno nesta construo, sua justifi-cao pelo elo que possuem com as experincias dos sentidos, a escolha do critrio de simplicidade lgica...10 A filosofia do conhecimento pode, certamente, considerar essas questes abstraindo a prtica particular de cada pesquisador relativamente a um problema dado, para alcanar ou, pelo menos, para colocar em questo as caractersticas gerais dessa for-ma de pensamento que a cincia. Mas, de outro lado, essas concepes, sejam crticas, mal formuladas ou simplesmente herdadas, fazem parte do material a partir do qual trabalha o pesquisador: incorporadas s suas "fer-ramentas intelectuais", elas influem sobre a investigao, representando, segundo o caso, um papel heurstico ou de bloqueio... Constituem ele-mentos de seu "programa"11, e quase sempre com referncia a elas que um cientista julga o xito, ou no, do que conseguiu (ele mesmo ou a cin-cia qual est ligado).

    Como tal, a filosofia se encontra na cincia, no seu movimento e textura e no somente na avaliao posterior de seus resultados. Compreen-demos, ento, como a atividade filosfica mesmo considerada como simples atitude, predisposio ou sensibilidade particular a estes aspectos pode estar presente no seio do trabalho cientfico. Esta atividade filo-sfica pode ser bastante explcita e adquirir uma importncia decisiva na investigao cientfica, atravs da reflexo crtica do cientista sobre ques-tes epistemolgicas de natureza conceitual ou metodolgica12. Uma tal reflexo acompanhando o trabalho cientfico e seus efeitos sobre o pro-cedimento e o resultado rica em ensinamentos e pertence ao dom-

    (13) Koyr, 1961, em sua conferncia sobre "Filo-sofia e Teorias Cientifi-cas" (cf. pp. 268-269).

    (14) Porque, nos debates sobre a interpretao fsi-ca, "so os filsofos que se opem" (Koyr, ibid), o que exato no caso mencionado da fsica quntica, mas que pode dar a idia de que a ativi-dade cientfica estaria submetida ao pensamen-to filosfico. Einstein mesmo indicar como a atividade cientfica no pode se submeter a uma filosofia sistemtica: cf. o captulo 11. Por outro la-do, no posso deixar de ser sensvel opinio de Koyr, para quem con-tra tantas autoridades contrrias "a interpre-tao corrente positi-vista de sua obra no adequada". Isto aparece-r claramente em todos os nveis de nosso estudo.

    (15) Ver os discursos rela-tados por Nathan, Nor-den, 1960, p. 613, assim como em Cranberg, 1979, pp. 9-11. Cf. Paty, 1986a, p. 276.

    (16) A distino entre "contexto da descober-ta" e "contexto de justi-ficao" foi proposta em Reichenbach, 1938, e, em seguida, amplamente aceita. "A epistemologia trata unicamente de cons-truir o contexto de justi-ficao", reafirma Rei-chenbach em L'Avene-ment de Ia Phiosophie Scientifique (Reichen-bach, 1951, pp. 6-7).

    (17) Thomas Kuhn (Kuhn, 1962), por exem-plo, considera o contex-to da descoberta e remete-o a um relativis-mo sociolgico.

    (18) O ttulo em alemo da primeira edio de 1935 na realidade Lgi- ca da Pesquisa (Fors-chung), que virou, na tra-duo inglesa, Lgica da , Descoberta (discovery) Cientfica (Popper, 1935, trad. inglesa aumentada 1959. Trad. francesa, 1973).

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    nio da filosofia propriamente dita: o filsofo e o cientista, neste caso, cons-tituem um s. No pela ocasio, mas pela natureza do conhecimento cientfico.

    Se preciso distinguir cincia e filosofia distino necessria mes-mo aps o que foi dito , no porque elas tm muito a ver uma com a outra e porque possuem implicaes mtuas? Quando Alexandre Koyr declara que "est fora de dvida que foi uma meditao filosfica que ins-pirou a obra de Einstein" e que, portanto, "poderamos dizer que, co-mo Newton, ele foi filsofo tanto quanto fsico" , a esta ligao estru-tural que ele faz referncia. Tal ligao leva-o afirmao de um "princ-pio metafsico"13, que fez com que Einstein escolhesse alguns absolutos e rejeitasse outros. Absolutos esses (invarincia e certos tipos de leis), fun-dados na "natureza que a medida das coisas tal como elas so", e no mais em Deus (Newton) ou no sujeito cognoscente (Kant). Se possvel discutir, no detalhe, a argumentao de Koyr e encontrar alguma ambi-gidade em sua afirmao segundo a qual "hoje como no tempo de Des-cartes um livro de fsica comea por um tratado filosfico"14, no me-nos verdadeiro que pensamento fsico e pensamento filosfico mantm estreita relao, da atividade criadora aos debates sobre interpretao. Mas as consideraes gerais sobre a natureza exata desta relao so ainda im-precisas e somente o exame das situaes efetivas e das idias dos cientis-tas, em sua diversidade, podem nos instruir.

    No existem objetos especficos da filosofia como existem objetos de cincia. Na verdade, todo objeto pode ser uma fonte para a filosofia, um foco de ateno filosfica, notavelmente, os objetos de cincia e o procedimento cientfico em si mesmo: este admite, como acabamos de ver, em parte importante, o questionamento filosfico. A filosofia dos fi-lsofos de profisso se alimenta de contribuies exteriores e, particular-mente, dos subsdios da cincia. Tais contribuies lhe so transmitidas j pela mediao das interpretaes que so, por vezes, de natureza filo-sfica. O mais comum principalmente atravs da anlise e crtica destas interpretaes que, ao retornar proposio cientfica nua, munido das ferramentas crticas mais sistemticas, o filsofo profissional integre-as reflexo e esclarea sua significao seu alcance e riscos, comparando-as a outras implicaes constitutivas e profundas (da ordem, por exem-plo, das condies de possibilidade e, mais geralmente, metatericas). Mas se os problemas filosficos do conhecimento so melhor e mais profun-damente esclarecidos, j que a filosofia possui rigor e conceitos que lhe so prprios, o filsofo sistemtico ou profissional coexiste, a despeito de tudo isso, com outros tipos de filsofos, que podem pertencer, de fato, aos campos mais diversos da atividade humana.

    A distino necessria entre cincia e filosofia se faz acompa-nhar pela distino entre o cientista especializado e o filsofo profissio-nal. Por inevitvel que seja esta ltima, ela no poderia ser absoluta. Se a filosofia alguma coisa a mais que um corpo de doutrinas antes de tudo, uma atitude e uma atividade, com o que isso supe de pesquisa pes-

    (19) Popper, 1935, ed ingl. 1968, pp. 31-32, 40.

    (20) esta ateno exclu-siva lgica, e no a uma racionalidade mais ampla, que caracteriza a estreite- za do critrio de demarca- o popperiana da cienti-ficidade pela refutabilida-de ou falseabilidade.

    (21) Alm do mais, esse carter confirma-se ime-diatamente na medida em que a fase mesma de ela-borao comporta a cada passo, da parte do pesqui-sador, reorganizaes ra-cionais (ou "reconstru-es") como ordenaes dos elementos que ele es-tuda, para compreend-los. Em certo sentido, a tentativa de Imre Lakatos (Lakatos, 1970a, 1978) de dar conta do desenvolvi-mento da cincia e de seu progresso propondo sua "metodologia dos progra-mas cientficos de pesqui-sa", mantm uma "lgica da descoberta" (ao me-nos para os perodos "de crise") que equivalente a estas reorganizaes, comandadas por um pro-grama. Mas a "reconstru-o" de Lakatos toma li-berdades em relao exatido histrica, e a questo da racionalidade do processo efetivo de descoberta fica em aber-to. Elie Zahar props re-centemente (Zahar, 1989; ver tambm Zahar, 1983), na mesma linha de pensa-mento, uma metodologia mais precisa da heurstica dos programas de pesqui-sa que, fazendo mais jus preciso histrica, se pro-pe a reduzir, no trabalho relativo descoberta, a parte deixada ao irracio-nal. Ele mostra, assim, co-mo, a partir de metaprin-cpios universalmente aceitos, esse trabalho , em boa parte, de nature- za dedutiva. Sua aborda-gem, diferente da minha (ele quer ilustrar uma me-todologia, enquanto eu adoto um ponto de vista histrico; ele privilegia o aspecto lgico-dedutivo, enquanto eu tenho uma concepo mais fluida de racionalidade), converge entretanto com esta pela afirmao da importncia da racionalidade na des-coberta. Mas os pontos de partida e os "estilos" de nossas anlises da teoria da relatividade so muito diferentes.

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    soal e de busca , a idia de profissionalizao como especializao (ain-da que necessria socialmente em todos os domnios porque os saberes tornaram-se complexos e os tempos de cada um, limitados) no pode lhe ser identificada. A filosofia, mais que uma cincia cuja prtica tornou-se bastante tcnica e normatizada, permanece intrinsecamente atada a esta modalidade (a no ser que a transformemos em uma cincia entre as de-mais). Era desse modo, como pesquisa pessoal e como busca, sem nenhu-ma garantia de chegar a um resultado visvel, que Einstein concebia sua prpria atividade cientfica. O que, diga-se de passagem, aproxima sua mo-tivao de uma atitude filosfica e no a torna, por isso, ultrapassada. A este propsito, Einstein fez consideraes sobre a oposio entre a busca desinteressada e o trabalho de subsistncia, evocando Spinoza que vivia do ofcio de arteso polidor de lentes15. Sem querer desenvolver aqui a anlise dessa comparao, apenas a lembramos para relativizar a noo de "profissionalizao" (no sentido de especializao restritiva) quando se trata de pesquisa sobre os problemas fundamentais.

    Isto posto, tambm na acepo relativamente tcnica do termo filosofia como questionamento racional desenvolvendo conceitos pre-cisos e propondo-se a descobrir e ordenar significaes que ns pode-mos considerar o pensamento de Einstein como um pensamento filosfi-co. De um lado, pelo objeto (de cincia) ao qual ele aplica seu pensamen-to e pelo procedimento que caracteriza sua abordagem particular do ob-jeto; de outro lado, por sua reflexo epistemolgica e filosfica a respeito da atividade do conhecimento cientfico.

    Racionalidade da descoberta

    Trata-se de saber se a filosofia como pensamento crtico deve dar ateno apenas s proposies finais de uma cincia (finais no sentido pro-visrio, quer dizer pelo que as reformulaes lhes tenham deixado momen-taneamente estabilizadas), e de se perguntar se a legitimidade da filosofia no se adequaria igualmente bem ao exame desses momentos eminente-mente transitrios da formulao de problemas cientficos, que so cons-titutivos de sua prpria elaborao (momentos transitrios, e igualmente singulares, j que esta elaborao fruto de reflexes individuais).

    Admitiremos que sim, contra a opinio daqueles que, com Reichen-bach, remetem esta considerao a uma psicologia da descoberta, elegen-do por princpio um determinado objeto aproximao crtica da filosofia16. Renunciar ao exame dos problemas da descoberta seria, para a filosofia, abandonar um imenso campo de problemas que dizem respei- to ao conhecimento racional, ocultando a fase de elaborao de uma cin-cia entre seus primeiros tateios e sua formalizao. Alm disso, esta fase recobre, algumas vezes, um amplo espectro temporal (como, por exem-plo, no caso da teoria quntica). Na verdade, poucos trabalhos filosficos

    (22) conveniente men-cionar aqui um estudo re-cente de Angelo Maria Pe-troni (Petroni, 1988) dedi-cado ao exame de diver-sos trabalhos sobre a questo da descoberta. Alm da obra de Popper da qual ele observa que suas posies lti- mas, por exemplo, em Objective Knowledge (Popper, 1972), do mais conta da complexidade dos dados do problema so as pesquisas de Norwood R. Hanson e de Herbert Simon que tra- tam da possibilidade, ou no, de uma lgica desse processo. A.M. Petroni diagnostica e critica tam- bm a reduo do proble- ma a uma nica lgica e invoca o campo mais am- plo da racionalidade. So- bre este ltimo e a ques- to dos "estilos" discuti- da acima, cf. nosso estu- do "Sur l'Histoire de la Philosophie de la Dcou- verte Scientifique: Champs de Racionalit, Styles Scientifiques, Tra- ditions et Influences" (Paty, 1989).

    (23) Por exemplo, no ca-so da termodinmica ou da teoria qumica. A pro-psito da elaborao e da reorganizao desta lti-ma e da significao atri-buda a suas proposies e a seus conceitos, referi- me (Paty, 1982, igualmen-te in Bouveresse, 1989, 1988a) a uma "problem-tica com dois focos", um cientfico, outro filo-sfico.

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    tratam realmente da descoberta: socilogos e historiadores ("relativistas") das cincias contemporneas tm todas as condies para apropriarem-se disso, no terreno que lhes foi concedido, longe da racionalidade17.

    Karl Popper, em Lgica da Pesquisa, ou da Descoberta Cientfica, considera somente os desenvolvimentos da cincia e no a descoberta em si mesma18. Ele descarta esta ltima da "anlise lgica" da cincia, como fazem os positivistas e empiristas lgicos, e remete-a, do mesmo modo, "psicologia emprica". Popper rejeita tambm todo esforo de recons-truir o processo de "inspirao", invocando o que ele possui de "elemento irracional"19. Esta rejeio liga-se sua epistemologia: no existe lgica da descoberta, j que no existe induo, ou seja, inferncia lgica de uma proposio geral a partir de asseres singulares.

    Mas se possvel aceitar por esta razo que no existe uma lgica da descoberta propriamente dita, o problema de uma racionalidade da des-coberta, logo da pertinncia desta ltima para a filosofia das cincias, per-manece de p. O termo lgica implica uma viso estreita, no deixando outra escolha seno entre um esquema obrigatrio fixo, rgido, de mo nica e um fator, ou elemento irracional, sobre o qual no podemos dizer nada20. Colocar, ao invs da lgica, a questo da racionalidade da qual a lgica apenas o esqueleto da descoberta, permite levar em conside-rao um objeto de determinaes mais complexas e, relacionando sua parte aos elementos contingentes ou irracionais, fazer jus ao carter fun-damentalmente racional do trabalho de criao cientfica21.

    De fato, enquanto os filsofos das cincias ditavam interdies ou debatiam em torno de princpios22, a histria das cincias, assim como a observao direta dos trabalhos cientficos contemporneos, mostraram a racionalidade dentro do campo dos problemas e do trabalho de elabo-rao, sem que fosse necessrio esperar o momento das reorganizaes ou das "reconstrues racionais".

    Quando examinamos a fase de elaborao, no encontramos um nmero menor de questes pertinentes do ponto de vista da epistemolo-gia e da filosofia do conhecimento, do que quando nos interrogamos so-bre proposies fixadas, com a vantagem suplementar de poder, even-tualmente, apreender algo da dinmica dos problemas responsvel pelo movimento da cincia e da realidade do pensamento cientfico em traba-lho. As relaes entre os conceitos no estabilizados no so, por isso, menos estruturadas racionalmente, seja do ponto de vista da lgica de suas conexes, ou por sua relao com os dados de experincia. Esta estrutu-rao provisria, ainda que diferente da forma final, se esclarece na anli-se dos elementos de significao, que permitem melhor discernir o car-ter racional do pensamento cientfico. Os debates sobre interpretao, que acompanham freqentemente a apario de uma nova concepo, ou teo-ria, sem esperar a formulao final, so, sob este aspecto, reveladores23.

    Conclumos, ento, que a racionalidade jamais deixa de impregnar a atividade intelectual do pesquisador mesmo se, em seu movimento efe-tivo, esta seja tributria de outros fatores. No se trata de explicar ou de

    (24) Por exemplo, a ma-neira de Popper (op. cit.) ou a maneira de Lakatos (Lakatos, 1970, 1978). (25) Ver, por exemplo, Paty, 1986e.

    (26) Cf. Paty, 1989.

    (27) Granger, 1968, ed. 1988. G. Granger definiu a noo de estilo como "modalidade de integra-o do individual no pro-cesso concreto que tra-balho" (este ltimo con-cebido como "dialtica efetiva e eficaz de formas e contedos", p. 8). O es-tilo pode ser percebido, nas obras, pelos elemen-tos redundantes (de mo-do anlogo ao que ocor- re na linguagem de um in-divduo), pelo "resduo no explorado", cuja de-terminao no depende univocamente da estrutu-ra (objeto do olhar cien-tfico); em relao a ela, "o efeito do estilo no seno a conseqncia se-gunda de um constrangi-mento de individuao" (p- 299).

    (28) Entendo-a no sentido que ela imobiliza e reduz os elementos que consi-dera: sejam proposies acabadas, seja um "pensa-mento criador" concebi-do como puramente sub-jetivo e irracional. (29) Nesse sentido, Gran-ger fala do cientista como "ator que se apropria pra-ticamente de uma con-juntura" (Granger, 1968, p. 15). (30) O estilo pode ser vis-to "como um certo modo de introduzir os concei-tos de uma teoria, de encade-los, unific-los" e "como uma certa ma- neira de delimitar a parti-cipao intuitiva na deter-minao desses concei-tos" (Granger, 1968, p. 20). (31) Granger nota que "as variaes estilsticas cor-respondem muito geral-mente a diferenas de sig-nificao" (Granger, 1968. Cf. pp. 301-302).

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  • NOVOS ESTUDOS N 28 - OUTUBRO DE 1990

    dar conta da totalidade do processo de descoberta, mas de esclarecer a racionalidade (sem, por isso, "reconstitu-la racionalmente"24).

    Por outro lado, o estabelecimento das condies de possibilidade de uma cincia, ou de uma teoria, que uma das tarefas da filosofia do conhecimento, no pode economizar a considerao das circunstncias mesmas que a fundaram. Isto mais verdadeiro na medida em que esta filosofia, tal como requisitada em nossos dias, e diferentemente da filo-sofia transcendental, no se prope a fundar uma cincia totalmente cons-tituda (de proposies imutveis), mas se interroga sobre a sua significa-o e seu contedo de verdade, considerando a cincia da maneira como est dada, quer dizer, como contedo (provisrio) e como processo, sa-bendo que ela no esttica mas que evolui, que est sempre em gnese. Faz parte da legitimidade mesma da filosofia do conhecimento que ela pos-sa se interrogar sobre a gnese da cincia e que esta seja, em certo grau, racional.

    Alm disso, a filosofia (como filosofia da cincia ou epistemolo-gia) no se restringe pelo olhar que lana do exterior sobre as cincias, que ela considera seja em suas proposies estticas ou no movimento que estabelece e transforma essas proposies. Ela existe tambm embora no sempre nem de modo sistemtico, pelo menos em numerosos e sig-nificativos casos como atitude e como atividade, no movimento do co-nhecimento cientfico e, particularmente, no momento onde aparece um elemento "de novidade", que vai se mostrar decisivo.

    Semelhante proposio est relacionada s precedentes: se existe uma "racionalidade da descoberta" e se a clarificao dos problemas sub-metidos a exame, a atualizao e ordenamento das significaes dela par-ticipam, no possvel dizer que o trabalho correspondente a todo esse processo tambm de natureza filosfica? Neste caso, a filosofia, como acima sugerido, no se resumiria ao exame posterior e distanciado das pro-posies da cincia, mas compreenderia tambm o movimento que as es-tabelece. Observemos, como um dos efeitos desta hiptese, que poss-vel entender como em alguns casos, por raros que sejam, a "lgica" da compreenso da "descoberta" corresponde da "justificao", como no-tava Reichenbach a respeito da relatividade, estranhando o fato.

    O alcance da questo colocada estende-se alm do caso particular de Einstein, atingindo a natureza mesma da fsica e, mais geralmente, da cincia. Ela indaga, a partir da obra dos pesquisadores, sobre a natureza profunda do conhecimento cientfico. Qual a forma de pensamento da fsica? Que tipo de trabalho o do fsico? O que , exatamente, um objeto de cincia? Que espcie de questes o pesquisador coloca sobre o obje-to? Qual , em profundidade, sua natureza? No casual que este mesmo objeto suscite, alm de sua elucidao por uma cincia, o interesse da fi-losofia que se interroga sobre o conhecimento deste objeto de cincia. A filosofia se interessaria pelo objeto, da maneira como faz, se este no estivesse impregnado por essas questes desde o seu nascimento e constituio?

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  • A DIMENSO FILOSFICA DO TRABALHO CIENTFICO

    Talvez seja a conscincia da dupla implicao de seu objeto de es-tudo que d ao pensamento dos "cientistas-filsofos" seu interesse parti-cular. No uma coincidncia que os torna cientistas e filsofos ao mes-mo tempo; talvez no tenhamos prestado suficiente ateno relao en-tre o seu trabalho cientfico e suas contribuies filosficas25. Estudando diversos casos, vemos que a dependncia dos dois no unvoca: no uma filosofia inicial que determina o trabalho cientfico, nem este ltimo que engendra, pela via da conseqncia, as concepes filosficas. Dei-xando de lado as concepes herdadas (e, em particular, as pressuposi-es de natureza filosfica na formao cientfica), parece que a atividade cientfica e a interrogao filosfica que a acompanha nesses pensadores se manifestam juntas, sem uma defasagem importante entre elas, como se surgissem de uma s fonte de problemas, cuja natureza seria inicialmente indistinta, filosfica e cientfica de uma s vez, ainda que a ateno se en-contre dirigida a um objeto de cincia circunscrito e preciso. Este objeto excede a simples positividade do resultado, do qual ele a ocasio, ou de sua descrio mesma.

    Isto no quer dizer que no exista distino a ser feita, posterior-mente, entre o carter cientfico e o filosfico, e compete epistemologia assinalar o que, no estudo de um problema ou conceito, pertence estrita-mente disciplina cientfica considerada e o que aparece como sua dimen-so, ou suas implicaes filosficas. A clarificao necessria se quere-mos assegurar a autonomia da teoria cientfica em seu campo prprio. Sem autonomia, a cincia estaria em um estado de dependncia arbitrria em relao filosofia. Mas em um contexto onde se desenha uma situao indita para os elementos tericos e principalmente quando aparecem novos, irredutveis aos antigos , a distino no sempre possvel ime-diatamente, e s o aps uma decantao, que corresponde assimilao da novidade ou da diferena. Apesar da diferena de natureza, cincia e filosofia acompanham-se de perto, a ponto de parecerem produzidas uma com a outra, se no uma pela outra, indissociavelmente: um mesmo mo-vimento as envolve em seu surgimento. Este parece ser o caso ao menos nos momentos profundamente criadores das cincias particulares.

    preciso deixar claro que os problemas cientficos no so homo-gneos e uns so mais predispostos que outros ateno filosfica. Nota-mos tambm semelhante diversidade entre os cientistas, sobretudo na po-ca das especializaes, onde o tecnicismo pode mascarar um alcance mais amplo. Mas, na verdade, nem especializao nem tecnicismo se opem ao alcance geral (no sentido de significao em uma totalidade) ou filos-fico, como os problemas tratados por Einstein fazem ver admiravelmen-te. Se existe uma oposio entre uma atividade cientfica correspondente a uma "prtica filosfica" e uma outra que lhe corresponderia menos, ou lhe seria estranha, no nesses termos que a exprimiremos.

    No prejulgaremos aqui a natureza de uma tal oposio, e o que faz a diferena entre as diversas atitudes, ou estilos cientficos. Sem iden-tificar cincia e filosofia, ser suficiente investigar o que as aproxima, no

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  • NOVOS ESTUDOS N 28 - OUTUBRO DE 1990

    caso de um pensamento criador particular, tentando ver como um pro-blema considerado cientfico revela algo que tem a natureza de um pro-blema filosfico e vice-versa. E, talvez, contribuir para esclarecer com is-so a natureza da cincia como pensamento.

    a busca desta origem comum de qualificao que nos interessa aqui, em primeiro plano: origem comum no objeto de investigao, as-sim como na motivao e no "estilo" de procedimento do pesquisador.

    O estilo o que constitui a marca prpria da individualidade de um pesquisador na sua abordagem do problema cientfico. Esta aborda-gem tende objetividade, mas seu trabalho no apenas de natureza lgi-ca e dedutiva. O objeto de investigao no se deixa descrever de modo unvoco, mesmo quando ele est suficientemente circunscrito: a diversi-dade de suas possveis determinaes define um "campo de racionalida-de" no qual o trabalho cientfico individual se efetua26.

    O exame comparativo dos trabalhos de diferentes pesquisadores sobre um mesmo problema, ou objeto, em uma mesma poca, permite caracterizar as diferenas de abordagens entre os pesquisadores, a parti-cularidade de cada um de seus "estilos". Semelhante estudo pode eviden-ciar a "racionalidade" da "descoberta": ele indica como escolhas distin-tas foram feitas na diversidade das que eram possveis entre os elementos suscetveis de conduzir determinao do objeto, e que devem pouco ao acaso e ao irracional. Tais escolhas no existem num espao ideal abs-trato, ao contrrio, adaptam-se a pensamentos individuais, e a cada um deles, sob diferentes modalidades: cada um desses pensamentos l dife-rentemente o problema estudado. O procedimento de cada pesquisador deliberadamente racional, orientado para um objeto que lhe exterior e, ao mesmo tempo, marcado por caractersticas que definem sua indivi-dualidade: o "estilo" corresponde, precisamente, a esta integrao do in-dividual em um trabalho do pensamento que visa a objetividade.

    Esta noo, tal como desenvolvida por G. Granger em sua Philo-sophie du Sryle27, permite visualizar a dialtica do individual e do objeti- vo no processo de trabalho intelectual, preservando assim a racionalida-de, ao invs de dissolv-la como faz a concepo "objetivante"28, que prende-se a uma dualidade esttica e fechada entre a lgica e o irracional. Os nveis de individuao da prtica cientfica onde os efeitos de estilo aparecem, ligam-se, de um lado, multiplicidade de "estruturas" (ou re-presentaes tericas) possveis, de outro, "caracterologia" das aborda-gens cientficas (diferenas dos perfis intelectuais, escolhas metatericas etc.); enfim, relacionam-se contingncia das situaes29.

    Podemos considerar que o estilo do pesquisador a carne mesma da racionalizao30, que contribui para cristalizar uma estrutura, uma teo-ria constituda, capaz de redesenhar o objeto inicialmente escolhido. O estilo tem a ver, de maneira evidente, com as significaes31, principal-mente quanto interpretao das proposies tericas. No caso das cin-cias de contedo emprico, como a fsica, as estruturas ou representaes tericas possveis diante de um problema dado so mltiplas, e particu-

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  • A DIMENSO FILOSFICA DO TRABALHO CIENTFICO

    larmente interessante relacionar o estilo prprio do pesquisador, e o tipo de teoria por ele obtido, com o significado correspondente teoria em questo. Se a anlise do estilo, que diz respeito a significaes, pertence filosofia, no menos verdadeiro que o estilo, com as significaes que comporta, compreende a filosofia prtica do pesquisador. Reencontramos com ele a impregnao filosfica conscientemente marcada, em maior ou menor grau, da atividade cientfica.

    No caso de um fsico-filsofo como Einstein onde o carter "fi-losfico" da sua investigao em boa medida responsvel pela originali-dade de seu estilo , podemos nos perguntar sobre o seu efeito na natu-reza dos resultados que ele obtm: a relao entre a perspectiva adotada (que determina uma maneira prpria de colocar o problema) e o resulta-do (levado a uma dimenso universal) no implica, para alm da contin-gncia do percurso individual, que a filosofia seja suscitada pela prpria natureza do objeto (cientfico) da investigao? O que caracteriza o cientista-filsofo no justamente esta perspiccia particular em relao aos objetos de cincia? Tal perspiccia no lhe daria uma espcie de "fa-ro" (que Einstein chamava de sua "intuio" ou "instinto") que lhe per-mite destacar objetos de efeitos desencadeadores (para o pensamento) con-siderveis (os da relatividade restrita e geral, da cosmologia e, em fsica quntica, a introduo da anlise estatstica), e, se no, ao menos, pres-sentir com acuidade o que ainda falta para ir em frente, com maior pro-fundidade (nesta mesma fsica quntica)? Sobre isto, somente a anlise dos trabalhos relativos ao tema poder nos instruir.

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    Michel Paty professor do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP.

    Novos Estudos CEBRAP

    N 28, outubro 1990 pp. 127-136

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