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1 Entre Homens e Leões: Imagens do herói na Ilíada * MICHAEL CLARKE National University of Ireland Tradução: Leonardo Teixeira de Oliveira, 2006 Se os símiles de animais na Ilíada parecem simples de serem entendidos, isto é porque eles correspondem formalmente a um dos tipos mais simples de comparação encontrados na tradição da poesia européia moderna. Como uma regra geral, nossa própria cultura nos encoraja a contrastar o mundo humano com o mundo dos animais, de tal forma que uma imagem que os coloque lado a lado parece trivial: sabemos que estamos lidando apenas com conotações quando Shakespeare chama o Príncipe Negro de “filhote de leão”, ou quando Byron diz que “o assírio precipitava-se como um lobo a se atirar sobre o rebanho” 1 . À medida que tais coisas são tomadas como expressões de idéias pouco profundas, o hábito da analogia tradicional tornou simples assumirmos que os símiles animais da Ilíada são antes um ornamento externo do que uma parte séria da evocação de Homero da Idade Heróica. No passado, esse preconceito levou mesmo à estranha crença de que os símiles eram encarregados de reavivar a monotonia de batalhas repetitivas 2 ; e, embora em anos mais recentes tenham-se visto muitos estudos produtivos sobre a função dos símiles como ampliadores da narrativa 3 , ainda resta espaço para novas questões sobre seus profundos significados em * CLARKE, Michael. “Between lions and men: Images of the hero in the Iliad”. In: Greek, Roman and Byzantines Studies, No. 36, pp. 137-159 (Summer, 1995). 1 Shakespeare, Henry V i.2.109; Byron, “The Destruction of Sennacherib" (1815) 1. 2 Ver e.g. C. M. Bowra em A. J. B. Wace e F. H. Stubbings, edd., A Companion to Homer (London 1963) 70; G. P. Shipp, “General Remarks on Similes”, em seus Studies in the Language of Homer (Cambridge 1972) 208-22, esp. 212 em “Homer's love of pictorial effect, of the picturesque scene”; cf. W. C. Scott, The Oral Nature of the Homeric Simile (=Mnemosyne Suppl. 28 [Leiden 1974: daqui em diante 'Scott']) 4-7, 31ff. 3 Para estudos mais detidos sobre o símile animal com relação às suas formas e funções decorativas, ver esp. H. Fränkel, Die homerischen Gleichnisse (Gottingen 1921: hereafter 'Frankel') 71-86; C. Moulton, Similes in the Homeric Poems (=Hypomnemata 49 [Gottingen 1979: 'Moulton']) esp. 139ff; Scott 58-62; S. Lonsdale, Lion, Hunting and Herding Similes in the Iliad (Stuttgart 1990: 'Lonsdale') passim.

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  • 1

    Entre Homens e Lees: Imagens do heri na Ilada*

    MICHAEL CLARKE

    National University of Ireland

    Traduo: Leonardo Teixeira de Oliveira, 2006

    Se os smiles de animais na Ilada parecem simples de serem

    entendidos, isto porque eles correspondem formalmente a um dos tipos

    mais simples de comparao encontrados na tradio da poesia europia

    moderna. Como uma regra geral, nossa prpria cultura nos encoraja a

    contrastar o mundo humano com o mundo dos animais, de tal forma que uma

    imagem que os coloque lado a lado parece trivial: sabemos que estamos

    lidando apenas com conotaes quando Shakespeare chama o Prncipe Negro

    de filhote de leo, ou quando Byron diz que o assrio precipitava-se como

    um lobo a se atirar sobre o rebanho1. medida que tais coisas so tomadas

    como expresses de idias pouco profundas, o hbito da analogia tradicional

    tornou simples assumirmos que os smiles animais da Ilada so antes um

    ornamento externo do que uma parte sria da evocao de Homero da Idade

    Herica. No passado, esse preconceito levou mesmo estranha crena de que

    os smiles eram encarregados de reavivar a monotonia de batalhas

    repetitivas2; e, embora em anos mais recentes tenham-se visto muitos estudos

    produtivos sobre a funo dos smiles como ampliadores da narrativa3, ainda

    resta espao para novas questes sobre seus profundos significados em

    * CLARKE, Michael. Between lions and men: Images of the hero in the Iliad. In:

    Greek, Roman and Byzantines Studies, No. 36, pp. 137-159 (Summer, 1995). 1 Shakespeare, Henry V i.2.109; Byron, The Destruction of Sennacherib" (1815) 1. 2 Ver e.g. C. M. Bowra em A. J. B. Wace e F. H. Stubbings, edd., A Companion to

    Homer (London 1963) 70; G. P. Shipp, General Remarks on Similes, em seus Studies in the Language of Homer (Cambridge 1972) 208-22, esp. 212 em Homer's love of pictorial effect, of the picturesque scene; cf. W. C. Scott, The Oral Nature of the Homeric Simile (=Mnemosyne Suppl. 28 [Leiden 1974: daqui em diante 'Scott']) 4-7, 31ff.

    3 Para estudos mais detidos sobre o smile animal com relao s suas formas e funes decorativas, ver esp. H. Frnkel, Die homerischen Gleichnisse (Gottingen 1921: hereafter 'Frankel') 71-86; C. Moulton, Similes in the Homeric Poems (=Hypomnemata 49 [Gottingen 1979: 'Moulton']) esp. 139ff; Scott 58-62; S. Lonsdale, Lion, Hunting and Herding Similes in the Iliad (Stuttgart 1990: 'Lonsdale') passim.

  • 2

    relao aos temas centrais do pico4. Meu objetivo trabalhar a partir de um

    nico exemplo para sugerir que o simbolismo envolvendo animais selvagens

    e agressivos muito maior que uma questo de estilo, e que eles

    desempenham grande papel no retrato de Homero dos problemas ticos e

    psicolgicos do herosmo. A discusso ir se referir majoritariamente a lees,

    tema mais proeminente dos smiles no grupo, mas tambm aos smiles de

    leopardos, lobos e javalis. Embora essas ltimas espcies especialmente os

    lobos denotem diferentes associaes em outras reas do conhecimento

    grego, nos smiles elas so retratadas de maneira to similar que sensato

    tom-las em conjunto com os lees como um nico grupo de funo potica5.

    Smiles em Sistemas Coordenados

    Em geraes passadas dos estudos clssicos, muito esforo foi gasto

    para se entender os smiles atravs do isolamento preciso dos seus pontos de

    comparao (Vergleichspunkt, terium comparationis)6. Ainda muito til a

    classificao de G. P. Shipp (supra n. 2) em trs tipos de smiles: a) imagens

    4 Para a abordagem sobre smiles tomada neste artigo, cf. esp. M. Coffey, The

    Function of the Homeric Smile, AJP 78 (1957) 113-32; M. W. Edwards, Homer, Poet of the Iliad (Baltimore 1977) 102-10; e sobre smiles animais, em nota particular a abordagem estruturalista de A. Schnapp-Gourbeillon, Lions, heros, masques: les representations de l'animal chez Homere (Paris 1981). De grande interesse tambm o estudo de G. P. Rose sobre um tema relacionado, embora distinto, na Odissia: Odysseus' Barking Heart, TAPA 109 (1979) 215-30.

    5 H obviamente diferenas importantes na realidade entre essas espcies e seus diferentes tipos de conflito com os homens, mas na prtica homrica no h contraste discernvel na maneira como elas so descritas e as qualidades que elas incorporam. Duas ou mais espcies so freqentemente coordenadas como objetos de um nico smile, de forma que a nfase parece residir na fora, coragem e agresso que todos eles compartilham (leo e javali: 5.782f=7.256f, 11.292-95, 12.41f; leo, javali e leopardo: 17.20-23; lobo, leopardo e chacal: 13.103). Como lobos caam em matilhas, eles inspiram smiles exclusivamente para um grande grupo de guerreiros (4.471f; 13.101-06; 16.156-66, 352-57), da mesma forma que um grupo de chacais () contrastado com um leo solitrio (11.473-84). De outro modo, contudo, os lobos homricos so descritos nos mesmos termos de qualidades que os outros animais predadores. Em outra parte do conhecimento grego, o lobo pode assumir a funo de smbolo para a alienao de um jovem heri perante a sociedade, em algo como um rito de passagem para a idade adulta, mas no pude encontrar nenhum sinal dessa associao nos smiles homricos. Sobre a figura do lobo e os foras-da-lei, ver mais recentemente C. Sourvinou-Inwood, 'Reading' Greek Culture (Oxford 1991) 244-84, na estria de Licofron em Herdoto 3.50-53; tambm J. Bremmer, Heroes, Rituals and the Trojan War, StStorRelig 2 (1978) 5-38.

    6 Entre as abordagens mais antigas, a mais flexvel a de Frnkel 4 e passim, contentando-se com a distino entre Wiestck e Sostck.

  • 3

    simples ou no-desenvolvidas; b) smiles desenvolvidos como um paralelo

    que se estende cena da narrativa; c) e smiles desenvolvidos

    independentemente ou em contraste cena da narrativa. Como fcil

    encontrar diferentes smiles de animais dentro desses trs tipos, iniciaremos

    tratando todo smile, ainda que semelhante a outro, como um ponto de

    origem orgnica, que pode se desenvolver em vrias direes a partir de uma

    associao mais elementar de idias7. Seja o smile uma cena longa e

    detalhada ou uma simples comparao de relance, como (como um

    leo), o tema preliminar deste estudo no deve ser os mecanismos de

    comparao, mas a consonncia simblica ou esttica que faz com que uma

    imagem particular seja atrada, a seu turno, para a trajetria da estria.

    A partir deste ngulo, podemos iniciar por especificar alguns smiles

    animais dentro de uma entre duas variedades distintas encontradas na arte

    homrica dos smiles. Em um extremo, encontram-se smiles que emergem

    de seus contextos de maneira inesperada e nica, conferindo cena da

    narrativa uma relevncia mais pronunciada: como quando um guerreiro que

    pula entre as proas dos navios comparado a um acrobata saltando de um a

    outro cavalo (15.679-86), ou quando o sangue gotejando de um ferimento

    comparado tinta purprea de uma pea de marfim sendo tingida (4.141-47),

    ou ainda quando um deus a demolir uma estocada comparado a uma

    criana derrubando um castelo de areia (15.361-66). Tal efeito ou, como

    poderamos chamar, tal virtuosidade reside na tenuidade da ligao entre a

    imagem do smile e aquilo a que ela est sendo comparada, o que aprofunda

    o contraste entre o mundo da narrativa e o mundo da vida familiar ou no-

    herica da audincia8. Bem diferentes, e exigindo um tipo diferente de

    leitura, so os grupos de smiles que se repetem, distribudos pelo poema,

    evocando imagens semelhantes sob formas diferentes, desempenhando

    mudanas atravs de uma nica e permanente associao de idias. O efeito

    se torna mais bvio quando uma longa parte da narrativa pontuada por uma

    sucesso de smiles tematicamente conectados: neste caso, como C. Moulton

    7 Cf. Frnkel 106; Scott 7. 8 Ver D. H. Porter, Violent Juxtaposition in the Similes of the Iliad, CJ 68 (1972)

    11-21; Moulton esp. 51, 86f; para uma abordagem comparativa sobre esse aspecto na potica da arte do smile, ver S. Wofford, The Choice of Achilles (Palo Alto 1992) Cap. 1.

  • 4

    mostrou9, o efeito cumulativo pode estar no ajuntamento das descries da

    narrativa com seus smiles, de um modo que, ao ligarmos o conjunto, suas

    imagens individuais acabem por transcender seus pontos formais de

    comparao10. Quando adentramos em um nvel de anlise mais amplo,

    vlido perguntarmos se uma associao de idias mais profunda e mais

    tradicional no poderia estar sendo expressa quando um sistema de smiles

    anlogos est espalhado por todo o pico. Neste nvel, o que vemos no

    simplesmente um exemplo da arte de Homero, mas parte de uma viso total

    do homem e do mundo que informa sua narrativa. Baseando-se apenas nos

    nmeros, os smiles animais so um excelente candidato para gerar tal tipo de

    sistema: eles so tantos, e to variados nas conexes que forjam, que seu

    efeito combinado pode no apenas ampliar a narrativa, mas, de fato,

    assimilar aspectos da aparncia e da personalidade do guerreiro ao animal11.

    Deixe-me citar um exemplo para ilustrar as implicaes dessa

    distino entre um smile isolado e um smile que pertence a um sistema.

    Trs vezes durante a batalha pelo corpo de Ptroclo um guerreiro aqueu

    comparado a um animal: primeiro Menelau pra sobre Ptroclo como uma

    vaca a proteger seu bezerro (17.3-6), depois, o mesmo heri como um leo

    inclinado sobre uma vaca que acabou de matar (17.61-69), e, mais uma vez,

    jax defende o corpo de Ptroclo como uma leoa a guardar seus filhotes

    (17.132-37). O primeiro exemplo est entre aqueles que funcionam por um

    esquema de hbil comparao e contraste geral: existe um paralelo exato

    entre os dois exemplos de proteo do frgil pelo forte, mas Menelau

    diametralmente diferente de uma vaca, em qualquer outro sentido. Nos dois

    ltimos exemplos, contudo, o potencial para significados procede bem mais

    profundamente, porque a imagem do leo pode ressonar com incontveis

    outros smiles animais articulados em outros contextos. Pode ser til

    expressar o contraste de vocabulrio que Silk tem aplicado em seu estudo

    9 Ver esp. 18-49, apontando que o prprio smile assume a funo de auxese" (32,

    of 2.479). 10 Para seqncias de smiles de lees estudadas sob esse prisma, ver Moulton 76-86,

    9699; Lonsdale 49-70; Schnapp-Gourbeillon (supra n.4) 95-131; cf. Scott 56f. 11 Cf. W. Schadewaldt, Von Homers Welt und Werk2 (Stuttgart 1951) 14451; B.

    Snell, The Discovery of the Mind (Oxford 1948) 202: Os animais em Homero no so somente smbolos, mas incorporaes vitais das foras universais. Para um exerccio de mesma relevncia (como parece ser) em termos estruturalistas, ver Schnapp-Gourbeillon (supra n. 4) 1-27.

  • 5

    sobre o imaginrio associativo12. Silk distingue a imagem da narrativa (o

    contedo) da imagem externa do smile (o veculo), relacionando ambos a

    um plano neutro de significados compartilhados que os une. Quando Homero

    compara notvel e inesperadamente Menelau a uma vaca, o plano neutro

    restringido s idias de impotncia e proteo, e o efeito talvez nada mais

    que um momento surpreendente de vvida focalizao; mas a imagem de um

    leo desdobrada na Ilada a todo o momento, o plano neutro no

    meramente o ponto ostensivo de uma comparao, mas a escala completa de

    pontos de contato em potencial entre as imagens do animal e o guerreiro.

    Com efeito, o contexto de onde o smile toma seus significados no resume

    um envolvimento imediato no poema, mas o campo inteiro de associao

    entre lees e homens atravs da Ilada ou, de fato, na tradio mais ampla

    do pico militar que reside atrs dela.

    Alm disso, tal smile deve ser lido de uma maneira diferente

    daquela que aparece em uma estria onde os temas de campo de batalha

    esto ausentes como na Odissia, por exemplo, quando Odisseu

    surpreendentemente comparado a um leo faminto quando emerge nu para

    confrontar Nauscaa (Od. 6.130-36). L a justaposio de homem e animal

    parece ter um efeito deslocador ou mesmo cmico13. Na Ilada, pelo

    contrrio, conforme diferentes realizaes da mesma comparao podem ser

    vistas como sendo assimiladas por um nico sistema, elas podem ser tomadas

    juntas como expressando uma correspondncia fundamental entre as

    identidades dos guerreiros e as dos animais. Isso significa que deveramos

    nos perguntar no somente como elas surgem na narrativa, mas tambm

    como elas se refletem por trs dela, e aprofundam sua significncia de um

    modo que no poderia ser feito por outra linguagem mais plana e

    descritivamente mais direta. Nossa abordagem, portanto, pretender

    considerar esses smiles no como criaes isoladas, mas como instncias de

    12 M. Silk, Interaction in Poetic Imagery (Cambridge 1974) 3-26, adotando os

    termos de I. A. Richards, The Philosophy of Rhetoric (Oxford 1936). 13 Comparar com um smile ainda mais impressionante, onde Penlope, entregando-

    se a pensamentos de um prospecto cada vez mais desesperado, comparada a um leo a procurar uma sada para escapar de um grupo reunido de caadores (Od. 4.787-94); ver ainda W. T. Magrath, The Progression of the Lion-Simile in the Odyssey, CJ 77 (1981-82) 205-12.

  • 6

    um nico elemento, ou grupo de elementos, no repertrio simblico de

    Homero.

    Antes de prosseguir, contudo, deve-se dizer que h um risco ao se

    tratar um jogo de imagens relacionadas como um todo coordenado. Para

    tomar um exemplo famoso, Whitman14 argumentou que atravs da Ilada a

    guerra e o guerreiro so associados com fogo em (muitos) diferentes nveis

    de linguagem figurada e narrativa, de que os smiles seriam apenas a mais

    explcita. Guerreiros lutam como fogo chamejante,

    (11.596 = 13.673 = 18.1; semelhantemente 17.366); um heri em campanha

    comparado a um incndio de floresta (11.155-59); Heitor surge em meio

    batalha como uma flama, (17.88); uma lingeta de

    flama surge da cabea de Aquiles quando ele se dirige trincheira opondo-se

    aos troianos (18.205-14); um sinal de fria ameaadora manifesta quando

    olhos ou mesmo armaduras reluzem como fogo (e.g. 1.104, 19.16f); e, em

    um extenso smile descrevendo Heitor em batalha, o alastrar do fogo e a

    presena de Ares so ainda mais intimamente vinculados (15.605-08):

    ,

    ...15

    de evidente bom senso enfatizar a associao de idias que

    submete esses exemplos dispersos, e us-los como parte de uma anlise do

    que a guerra e o fogo significam no cenrio potico16; mas ao mesmo tempo

    a anlise pode se tornar vaga ou extravagante se for conduzida para muito

    longe17. No difcil encontrar imagens relacionadas ao fogo que no

    14 C. Whitman, Homer and the Heroic Tradition (Cambridge [Mass.] 1958: daqui

    em diante 'Whitman') 128-53. 15 Enfurecia-se Heitor tal como Ares lanceiro ou daninha / chama alastrada em

    floresta viosa no cimo de um monte. / Cheios os lbios de espuma, brilhavam-lhe os olhos debaixo / das sobrancelhas escuras. (...) (tr. Carlos Alberto Nunes) (N. do T.).

    16 Cf. a teoria altamente abstrata de M. N. Nagler da Forma pr-verbal em seu Spontaneity and Tradition: A Study in the Oral Art of Homer (Berkeley 1974) 64-130; W. G. Thalmann, Conventions of Form and Thought in Early Greek Epic Poetry (Baltimore 1984) esp. 75ff, 113-56.

    17 Esse risco sugerido por Whitman 153; ver tambm Silk (supra n.12) 63-70.

  • 7

    parecem, com efeito, tomar parte dessa conexo como, por exemplo,

    quando a personificao da Fama descrita a queimar ( ,

    2.93)18; e, pelo mesmo indcio, no possvel garantir que todas as

    associaes guerreiras de fogo devem estar presentes da mesma maneira em

    todo o tempo em que os dois estiverem explicitamente associados.

    Em resumo, no existe nenhum significado universal no smbolo,

    nenhuma equao simples entre a guerra homrica e o fogo homrico, e ns

    nos desviaramos se lssemos uma ou outra meno de fogo luz de outras

    passagens com que ela no tenha real ligao. No entanto, permanece claro

    que, sim, alguma unidade simblica de fato submete-se ao primeiro conjunto

    de passagens relacionando guerra e fogo por ns citado, e que podemos obter

    uma real reflexo nesta unidade comparando suas manifestaes dispersas. O

    que deve ser destacado como lio que o que vimos no parte de um

    vocabulrio fixo de sinais com valores aceitos e inambguos: trata-se, ao

    invs disso, de uma associao potencial cuja manifestao pode fazer

    sentido apenas em seus prprios termos, por sugesto e no por afirmao. O

    smbolo no pode ser definido em termos lineares, e em nossa prpria anlise

    um significado que discernvel em uma passagem no deve ser forado por

    bem ou por mal ao mesmo significado em outras: de modo que, na presente

    discusso, o efeito cumulativo do sistema de smiles animais deve ser

    balanceado com a independncia orgnica de cada um de seus membros. Isso

    significa que a melhor maneira de proceder ser focalizar nossa investigao

    em um nico smile, tentando evocar sua completa profundidade de

    significado luz de outros smiles no sistema. Aps isso, finalmente

    estaremos hbeis a explorar como o simbolismo desdobrado naquele smile

    toma uma parte vital no retrato de Homero de uma nica personagem,

    nominalmente Aquiles.

    O Smile Retrico de Aquiles: Entre Homens e Lees

    O smile em que iremos aplicar nosso argumento aquele que o

    prprio Aquiles expressa em um ponto alto do episdio de seu duelo final

    com Heitor. A narrativa at este ponto tem sido especialmente rica em

    18 Citado por Whitman (336 n. 4) como uma exceo problemtica.

  • 8

    smiles de aves e animais, cristalizando imagens tanto do brilho de Aquiles

    quanto de seu desejo ardente de vingana, mas, neste ponto, no na

    narrativa propriamente, mas nas palavras do heri que os animais aparecem.

    Heitor, virando-se finalmente para ver seu adversrio, pede por um acordo

    em que o vencedor do combate devolva o corpo do vencido para a sua

    famlia e suas devidas exquias. Tal acordo , em outra passagem (7.76-91),

    tratado como habitual antes de combates individuais, mas aqui Aquiles

    recusa (22.261-66):

    ,

    ,

    ,

    ,

    ...19

    Aquiles ilustra sua hostilidade implacvel a Heitor atravs de dois

    paradigmas de inimizade que imediatamente relembram um tipo de smile

    animal visto por toda a Ilada. Aqui, na alta retrica do heri, o paralelo

    estendido quase ao nvel de uma parbola, e sua estrutura enftica e negativa

    peculiar: onde uma comparao semelhante na narrativa poderia servir

    apenas para justapor as imagens de animais e homens uns com os outros,

    aqui v Aquiles a pressionar tal associao para designar trs exemplos do

    absurdo ou do impossvel. A anfora com (como) sugere que o

    antagonismo dos animais est sendo trazido sob um paralelo especialmente

    ligado sua situao com Heitor, em uma correspondncia exata entre os trs

    pares de oponentes: lees e homens, lobos e ovelhas, Aquiles e Heitor. Isso

    nos encoraja a ler o smile sob a viso de que o leo e o lobo correspondem a

    Aquiles e o homem e a ovelha a Heitor20. Crucialmente, isso significa que o

    19 Odiosssimo Heitor, no me fales em pactos solenes. / Como impossvel entre

    homens e lees haver paz e confiana, / ou que carneiros e lobos revelem iguais sentimentos, / pois nutrem dio implacvel e danos meditam recprocos, / no pode haver entre ns amizade nenhuma, nem pactos / ou juramentos solenes, [at que um de ns caia morto].

    20 Cf. Eust. II. 1269a: (com soberba, Aquiles se compara a um leo diante de homens e a um lobo diante de ovelhas).

  • 9

    ponto de comparao estabelecido tanto na psicologia e nos costumes

    sociais quanto nas aes: lobos e lees no sentem afeio ou fazem

    contratos no sentido comum que as pessoas o fazem, e este o

    relacionamento em que Aquiles se v com o homem sua frente.

    A fala pode ser comparada com outras, onde um guerreiro se

    antecipa e corta um dilogo inativo antes de uma luta, e usa um smile para

    expressar sua impacincia. No calor da batalha, Merones quer pedir uma

    lana a Idomeneu, e, quando os dois comeam a protelar e a se vangloriar,

    Idomeneu interrompe impacientemente, Mas, por que causa aqui estamos,

    desta arte, a falar como crianas? ( , 13.292); similarmente,

    durante a aristia de Enias, ele e Aquiles orgulham-se de seus ancestrais e

    suas proezas, e Enias termina da mesma maneira, Mas por que causa aqui

    estamos, desta arte, a falar como crianas? (novamente , 20.244),

    comparando suas trocas de provocaes a um intil bate-boca de mulheres

    (20.251-55) e incitando que a luta se inicie; e Heitor se enderea a Aquiles no

    mesmo tom quando eles se gabavam um para o outro antes de seu primeiro

    duelo abortado (20.431-37). Mas a imagem de Aquiles de homens e animais

    corta mais fundo que qualquer uma dessas outras. Se ele apenas tivesse dito

    (por exemplo) que Heitor estava to amedrontado diante dele como uma

    corsa estaria de um leo, ento as implicaes do smile seriam menos

    notveis: o contraste entre predador e caa um padro nas falas, onde um

    guerreiro compara aqueles com quem ele luta, ou aqueles que ele v, a

    bravos ou covardes animais (e.g. 11.383, 13.101-06, 17.2-23). No caso de

    Aquiles, contudo, a recusa feita nos termos de sua prpria personalidade ao

    invs de nos cdigos fixados da sociedade guerreira. Suas palavras no

    caracterizam meramente a situao imediata ou o destinatrio: ao invs, elas

    apresentam o discursador em um aspecto surpreendentemente novo.

    O smile, assim, particularmente caracterstico de Aquiles que,

    entre todas as personagens da Ilada, a que emprega a linguagem no sentido

    mais figurado e criativo. Ele o orador por excelncia, assim como o grande

    lutador ( ... (bons discursos e grandes

    aes ... pr em prtica), 9.443). Aqui, estendendo uma imagem tradicional

    para revelar algo sobre sua prpria personalidade e atitude em considerao

    aos relacionamentos dos homens, ele usa a retrica em sua forma

  • 10

    caracterstica, construindo uma linguagem elevada a servio de uma elevada

    autoconscincia e auto-exposio21. Como uma regra, outras personagens no

    usam smiles sobre seus prprios sentimentos, mas Aquiles o faz

    repetidamente. Em sua grande fala de autopiedade Embaixada, Aquiles

    compara-se lutando e sofrendo por Agammnon a uma ave me sofrendo na

    busca por petisco para seus passarinhos (9.323-27; ver Moulton 100f).

    Conforme ele se junta ao lamento de sua me na conscincia de que sua

    prpria morte est prxima, ele chora ardentemente tanto pela contenda

    quanto pela raiva amarga () que se eleva nos peitos dos homens como

    fumo, mais doce que o mel gotejante (18.107-11). Combatendo o rio

    Escamandro, ele teme ser morto no por Heitor uma morte digna de si

    nem por Pris, como sua me lhe falara, mas afogado como um porqueiro

    miservel varrido por um rio inundado (21.273-83). Se o smile animal do

    leo e os homens e do lobo e as ovelhas pertence a este grupo introspectivo,

    somos acrescidos de razo para esperar que ele pode ser marcadamente

    significativo como uma indicao do estado mental de Aquiles, de tal forma,

    alis, que pode estar trazendo o mais profundo significado associado ao

    imaginrio dos animais. Para entend-lo completamente, portanto, devemos

    primeiro ajustar suas palavras de encontro escala completa de associaes

    possveis exibidas em smiles animais atravs de toda a Ilada, retornando

    finalmente para considerar o lugar dessa imagem em seu progresso desde o

    incio da Ira at a morte de Heitor e sua conseqncia.

    A Vida de Guerreiros e de Animais

    Primeiro, devemos nos livrar de qualquer suposio de que homens e

    animais pertenam a diferentes departamentos de criao, ou que uma

    semelhana entre os dois deva ser vaga e superficial. A associao entre eles

    comea com a aparncia fsica: em particular, o porte do guerreiro recobra o

    do animal, como, por exemplo, jax a fitar como uma fera ( ...

    , 11.546-57), conforme se retira soberbamente da batalha, e seus

    21 R. P. Martin, The Language of Heroes (Ithaca 1989) 146-230, esp. 225ff; J.

    Griffin, Homeric Words and Speakers, JHS 106 (1986) 50-57; P. Friedrich e J. Redfield, Speech as a Personality Simbol: The Case of Achilles, Language 54 (1978) 263-88, esp. 277ff.

  • 11

    olhos de leo esto chamejando (, 20.172), como os de um

    guerreiro cruel. Menelau olha e se vira para direes diferentes como um

    leo ( 17.109). Contudo, para os nossos

    objetivos, mais significativo reconhecer que os animais de Homero tm

    igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homens22. Os

    animais tm , , e , e conduzem suas vidas

    psicolgicas bem como os homens o fazem. O corao ou a mente do leo

    porta-se com fora ( , 17.22)23 e

    um leo pode ser comandado a um ato de bravura por seu corao (

    , 12.300). A gama de emoes dadas a eles e aos animais

    em geral grande, contudo insofisticada: coragem, jbilo, desejo, medo24. O

    animal tem uma mente preenchida por foras dominadoras (,

    10.184); ele vai a combate sob pensamentos confiantes ( ,

    11.325, 16.824), ou sob pensamentos terrveis e destrutivos (,

    15.630, 17.21); como o guerreiro, ele orgulhoso ou viril em esprito

    ( , 24.42)25; e, inversamente, um heri especialmente

    formidvel como Hracles ou Aquiles tem um corao de leo (,

    5.639, 7.228).

    A implicao que, para Homero, o estado mental e emocional do

    animal agressivo pode se assimilar quele do homem em combate mais

    intimamente do que jamais seria possvel em uma cultura como a nossa. Um

    smile particularmente revelador descreve o desejo ardente de Menelau pela

    batalha antes de seu duelo com Pris (3.23-28):

    22 Para listas completas ver Lonsdale 33-38, 42-46, e as tabelas em 133ff; tambm

    H. Rahn, Das Tier in der homerischen Dichtung, Studium Generale 20 (1967) 97-105. 23 deve ser traduzido vagamente, como aqui, porque nem o contexto nem

    a etimologia nos permitem apontar seu significado. O que importa na presente discusso que o verbo usado exclusivamente para animais (ver tambm 12.42, 17.135) e para guerreiros em batalha (8.337, 9.237; estendido a Hefesto engajando-se na batalha, 20.36).

    24 Para emoes negativas despontadas com smiles animais, notar esp. jax retirando-se da batalha, afligindo o corao" ( ) como um leo com (o peito angustiado) (11.555f); de modo semelhante, Menelau retrocede da proteo do corpo de Ptroclo como um leo cujo corao coagula como gelo ( , 17.109-13; cf. Hes. Op. 360); e Antloco amedronta-se () como um animal enxotado de uma fazenda (15.585-90).

    25 Sobre o significado de , ver n. 43 infra.

  • 12

    ,

    ...26

    Aqui a similaridade mais ntima entre homem e animal a emoo

    nomeada por , e a partir daqui atinge o que Homero chama de

    27, a exultao do recrutamento ao combate ou batalha. Nesse

    sentido, o leo representa o temperamento mais violento e blico do

    guerreiro em outras palavras, seu estado mental quando ele se comporta da

    maneira que o define como um heri.

    Isso nos leva a um outro, mais sutil aspecto do vnculo entre

    guerreiros e animais. Essa a qualidade da , coragem combinada com

    fora fsica, que a semente da virtude guerreira. a o que faz um

    verdadeiro homem, como na repetida exortao ao nimo dos companheiros:

    , , 28. Da mesma maneira, o

    recurso da agresso implacvel dos animais: tanto que quando um guerreiro

    comparado a um animal, o ponto crucial da comparao sugere que cada um

    seja (confiante em valores: ver 5.299, 13.471, 17.61,

    17.728)29. Crucialmente, a qualidade que faz homens ou animais

    desejarem arriscar-se morte em batalha. Por exemplo, quando o corao de

    Agenor, seu (corao corajoso) (21.571f), o incita a opor-se

    contra Aquiles em defesa da desvantagem dos troianos, seu estado mental

    26 muito exultante ficou, como leo esfaimado ao topar / com um cervo morto, de

    pontas em galho, ou uma caba selvagem; / avidamente o devora, ainda mesmo que cleres ces / lhe venham vindo no encalo e pastores de aspecto robusto: dessa maneira, exultou Menelau quando Pris, o belo, / teve ante os olhos [pensando que iria, por fim, castig-lo].

    27 Notar tambm o leo agressivo que ataca com (16.823) em um smile descrevendo como Heitor ataca Ptroclo; comparar uma descrio de guerreiros exultando-se em alta fria (13.82): , . Isso no afeta nossa discusso de que o substantivo tambm pode se referir ao evento da batalha ao invs de a um estado psicolgico. Sobre , ver J. Latacz, Zum Wortfeld 'Freude' in der Sprache Homers (Heidelberg 1966) 30-38.

    28 Sede homens, caros amigos, e fora impetuosa mostrai": 6.112=8.174= 11.287=15.487, 734=16.270=17.185.

    29 Outras referncias a ou de animais: 4.253; 16.157, 753; 17.111,281; 20.169.

  • 13

    vinculado com o de um leopardo a confrontar um caador armado (21.576-

    80):

    ,

    ,

    , .30

    O homem e o animal so semelhantes em decidirem por cortejar a

    morte em exerccio de valor. Do mesmo modo, quando o (mpeto)

    de Sarpdone o ordena a avanar atravessando a estocada, arriscando sua

    vida, ele comparado a um leo cujo o ordena a arriscar-se morte

    em busca de comida nos apriscos (12.299-308). Aqui especialmente

    significativo que ele explique sua atitude em termos de no haver escapatria

    diante da morte, de modo que deve ser melhor procurar a glria do que se

    encolher diante da batalha (12.322-28). O smile animal torna-se um smbolo

    do trao psicolgico que a tragdia da Ilada articula: o temperamento

    herico e a perseguio da glria conduzem inevitavelmente morte. A

    partir daqui nosso argumento pode comear a tomar uma forma mais

    definitiva: e devemos explorar mais este tema antes de definirmos a forma

    que ele toma no smile retrico com que comeamos, onde Aquiles ousa

    comparar-se a um leo ou a um lobo.

    A tcita o , a fora de personalidade que faz com que o

    heri lute diante da adversidade e a desvantagem31. o recurso de sua

    virtude, mas ao mesmo tempo arriscado, e esta ambigidade inerente um

    tema que aparece arraigado no pico32. O pode conduzir o guerreiro a

    tal extremo de paixo que pode se transformar em , uma exaltao

    30 E se, adiantando-se aquele, de longe ou de perto a vulnera, / no esmorece do

    ardor combativo, conquanto ferida, / antes de vir a travar-se com ele e mat-lo ou morrer: / da mesma forma Agenor, claro filho do grande Antenor, / no repedava, disposto a lutar com o forte Pelida. Sobre este smile, ver Lonsdale 36ff.

    31 No que segue, presumo que o significado do verbo , com o particpio , seja coordenado pelo substantivo .

    32 Sobre a antigidade de como definidor de um tema na pr-histria da pica grega, ver R. Schmitt, Dichtung und Dichtersprache in indogermanischer Zeit (Wiesbaden 1967) 103-22, com extensivos paralelos vdicos.

  • 14

    descontrolada33: a intimidade etimolgica entre as duas palavras as submete a

    uma conexo temtica que reaparece nos desastres que aplacam aqueles que

    lanam suas frias guerreiras muito avante notadamente Diomedes,

    Ptroclo e Heitor, assim como Aquiles34. Nesse contexto especialmente

    abominvel que o animal seja um comedor de carne crua, , algo

    que o homem homrico civilizado no pode ser35. No incio da Dolonia, um

    episdio onde Diomedes e Odisseu se comportaro com uma brutalidade

    incomum, h um smile estranho em que a selvageria sanguinria de lees

    derrama-se por sobre a cena narrada (10.297-8):

    , , .36

    Perseguindo essa imagem, ser possvel dizer que existe algo de

    bestial ou desumano em um guerreiro assassino cujas mos e ps so

    manchados de sangue como os de um leo,

    (17.541f)? Simplesmente para afirmar que se pode ir alm do que Homero

    realmente diz. Uma evidncia em uma direo amplamente similar, contudo,

    pode ser mencionada com uma outra passagem, onde um smile de leo

    33 construdo sobre grau-zero da raiz *men-, conforme *mn-i-o/e > -:

    ver P. Chantraine, Dictionnaire itymologique de la langue grecque (Paris 1960-80) s.v.; H. Frisk, Griechisches etymologisches Worterbuch (Heidelberg 1960-70) s.v. Semanticamente, o enigma reside no fato de que os cognatos de outras lnguas referem-se simplesmente a pensamentos no sentido mais amplo (e.g. Latin mens), mas no grego homrico a famlia representada por , e junta-se em torno de um sentido de atividade mental agressiva e furiosa em diferentes nveis. Poderia ser argumentado, claro, que o vnculo etimolgico entre e irrelevante na realidade homrica. A melhor resposta a isso que Heleno, o profeta, assinala explicitamente tal conexo no significado quando descreve o perigoso extremo da paixo de Diomedes em seu ataque violento sobre os troianos:

    ... ,

    (6.100f, citado por Chantraine s.v.). 34 Este no o lugar para se discutir a fascinante possibilidade de que , o nome

    da fria vingativa no centro da Ilada, possa pertencer tanto tematicamente quanto etimologicamente famlia . Ver mais recentemente L. C. Muellner, ltymologie et semantique de , em F. Letoublon, ed., La langue et les textes en Grce ancien (Paris 1992) 122-35.

    35 Ver 5.782, 7.256, 11.479, 15.592, 16.156f; similarmente, na Odissia Polifemo como um leo quando devora os homens de Odisseu (9.292f).

    36 como dois lees se puseram a andar pelo escuro da noite / atravessando os estragos, cadveres, armas e sangue.

  • 15

    desdobrado negativamente para simbolizar um orgulho arrogante. Como o

    smile de Aquiles, este aparece em uma retrica enftica. Na batalha sobre a

    morte de Ptroclo, o jovem Euforbo ordena que Menelau fuja de sua frente, e

    o homem mais velho ridiculariza essa irrefletida insolncia (17.19-23):

    . , , .37

    Menelau sugere que h algo de sinistro ou mesmo de arrogante em

    ser como um leo ou um javali: os animais so smbolos do excesso de

    que caracterizam o jovem e o imprudente. Aqui comeamos a isolar a

    ambigidade essencial da personalidade selvagem do animal: ele tem a fora

    e o poder que caracterizam os heris, mas lhe falta a circunspeco e o

    controle que deveriam fazer um homem mortal ciente de suas limitaes.

    Isso sugere que amplas ressonncias temticas podem ser trazidas em

    jogo em todos os muitos lugares onde encontramos um smile animal sendo

    aplicado a um guerreiro que incorporou um extraordinrio38. O ponto

    em que isso assinala uma mudana em seu temperamento, que ir

    eventualmente conduzi-lo loucura, deve valer o questionamento se a

    imagem do leo, javali, ou lobo indica de fato que o heri est se colocando

    em perigo por uma violncia considerada excessiva. Por exemplo, um smile

    de leo notavelmente longo mostra o momento em que Atena d a Diomedes

    a fora sobrenatural do (5.121-32) que eventualmente o conduzir a

    infringir os termos ao impostar-se contra os deuses, sendo a fria em si

    mesma a responsvel (5.136-43):

    37 No bonito, por Zeus, a vanglria a tal ponto exaltada. / Nem a pantera, nem

    mesmo o leo de vigor indomvel, / nem o javardo possante que alberga no peito grande auso, / os quais, conscientes do prprio valor, orgulhosos se mostram, tanta jactncia estadeiam como estes valentes Pantidas.

    38 Ver 5.136-43, 161-64; 5.299-302; 10.482-88; 13.198-202; 15.275-78 (com 262), 592-95, 630-36 (com 603-10; ver n. 54 infra); 18.161-64 com 155f.

  • 16

    .39

    Aqui, contudo, encaramos o problema da ambigidade inerente dos

    smbolos que citamos anteriormente: nada, na maneira como esse smile est

    expresso, sugere que a qualidade do seu leonino seja o que conduzir

    precisamente agresso excessiva de seu assalto sobre Afrodite e Ares.

    Similarmente, a aristia de Agammnon no Canto 11 um episdio cheio de

    uma violncia inusualmente extrema, mas, entre os cinco smiles de leo que

    o pontuam (11.113-21, 129f, 172-78, 238ff, 292-95), h apenas um

    (11.238ff) que menciona de todo o do animal, e nada nos smiles ou na

    narrativa propriamente sugere transgresso ou desumanidade no

    comportamento do rei. Por si prprios, esses exemplos nos permitem apenas

    inferir que a imagem do animal captura a mesma ambigidade que a palavra

    , perfazendo-se a violncia herica at algo que quase podemos chamar

    de loucura.

    H dois smiles cruciais, contudo, que identificam o estado mental do

    animal com a imprudncia auto-destrutiva de um guerreiro que vai alm dos

    limites do auto-controle mortal. O primeiro vem em um momento de clmax,

    quando Heitor est para abrir caminho atravs da estocada aquia e conduzir

    seus homens a queimar os navios40. Ele est em total assalto ao campo

    inimigo, lutando como uma tempestade ( , 12.40),

    detendo seus cavalos e comandando seus homens a avanarem (12.41-46):

    39 trs vezes mais ardoroso se achava. Um leo parecia, / a que o pastor, que se

    encontra de guarda s lanzudas ovelhas, / fere, ao querer escalar o curral, [sem, contudo, prostr-lo / corre o pastor a esconder-se no estbulo, largando o rebanho; / apavoradas, comprimem-se a um canto as balantes ovelhas. / A fera, entanto, furiosa, o redil abandona, de um salto:] / com igual fria, o Tidida as fileiras Troianas penetra.

    40 Notar a leitura perceptiva deste smile por Moulton 47 n. 54.

  • 17

    , 41

    O cruzamento da trincheira conduzir eventualmente pilhagem de

    Ptroclo em sua tentativa de fazer recuar os troianos, e sua morte tornar

    inevitvel, a seu turno, a morte do prprio Heitor pelas mos de Aquiles.

    Mais tarde, depois de ter atravessado a trincheira, Heitor vangloria-se em seu

    breve sucesso sem se dar conta de que, de acordo com o plano de Zeus, ele

    ser eventualmente derrotado: Zeus lhe confere a honra de sua glria porque

    ele viver pouco () e Atena j est preparando sua destruio

    (15.605-14). Sob esse prisma, o momento da travessia pode ser visto como o

    erro fatal, que culmina na runa de Heitor42. O momento narrativo e a

    imagem no smile usado espelham exatamente um ao outro, ambos

    fisicamente e psicologicamente. Heitor vai e volta atravs das fileiras

    troianas, bem como um animal se movendo para cima e para abaixo por meio

    de uma multido de homens; eles esto aterrorizados por seu temperamento;

    e Heitor est sendo conduzido a um perigo mortal por sua presunosa

    confiana, assim como a fria do javali ou do leo os destri quando eles se

    lanam sobre caadores armados. As palavras-chaves ligando as duas cenas

    so : isso porque o animal to excessivamente

    orgulhoso ou herico () que sua ferocidade o conduz morte43. O

    ponto psicolgico, e mesmo a forma em que as palavras o expressam,

    corresponde exatamente ao alerta anterior que Andrmaca faz a seu marido

    ao se despedirem: , (6.407: sua prpria fria

    ir destru-lo).

    41 Tal como um leo ou javardo, que, em meio de feros sabujos / e caadores, se

    volta, orgulhoso da fora nativa, / quando, agrupados em torre, eles todos se ajuntam, fazendo-lhe / frente e atirando-lhe setas em nmero grande, com brao / de comprovado vigor, sem que a fera temor manifeste / no corao valoroso a coragem morte a conduz.

    42 Ver J. M. Redfield, Nature and Culture in the Iliad (Chicago 1975: daqui em diante 'Redfield') 143-53.

    43 O que quer que seja a base etimolgica original de , o uso homrico parece ser tratado como se fosse o intensivo - prefixado ao radical visto em (virilidade ou coragem viril): ver Chantraine (supra n. 32). Literalmente, portanto, ser abundar naquela qualidade, potencialmente em seu ponto de excesso. Isso bem ilustrado quando Diomedes expressa a idia de que o orgulho e a ira de Aquiles so implacveis: ele especialmente e tem sido agora dirigido por uma maior (9.699f).

  • 18

    Um smile paralelo a esse surge quando o sucesso de Ptroclo contra

    os troianos o trouxe a uma exaltao semelhante, a ponto dele se esquecer do

    alerta de Aquiles para no afastar a batalha para muito longe ou tentar

    destruir Tria sozinho, a fim de no roubar a glria que pertence a outros

    guerreiros ou despertar a ira divina (16.87-96). Ele matou o cocheiro de

    Heitor, com escrnio e arrogncia, e est sobre o corpo a ponto de encarar o

    prprio Heitor (16.751-54):

    ,

    ,

    .44

    A bravura de Ptroclo o conduziu a encarar um inimigo alm da

    medida de sua fora, bem como a coragem que torna o leo bravo o bastante

    para arriscar-se morte aqui o que culmina sua runa (

    ). A falha fatal no animal ou no heri que sua fora, paixo e coragem

    caractersticas so algo que ameaam destru-lo. Em suma, esses smiles

    resumem a ligao entre a glria e a morte.

    A Fria e a Auto-Destruio de Aquiles

    Com isso em mente, retornamos ao nosso ponto de partida, o smile

    onde Aquiles equivale a si mesmo a um leo ou um lobo, implacavelmente

    apartado de Heitor como a fera apartada dos homens ou das ovelhas. A

    partir de agora estar claro que, nessa imagem, Aquiles est se associando

    no meramente a fora e coragem, mas tambm a um estado de extrema

    ferocidade mental, que implica em uma tendncia autodestruio. At aqui

    vimos esse tema ora sugerido ora feito explcito na voz do poeta, ou no modo

    como as personagens de Homero descrevem uns aos outros: o que torna o

    smile de Aquiles unicamente sombrio o fato dele descrever a si mesmo

    atravs de uma imagem com tais associaes funestas. Com efeito, ele se

    44 Ps ter falado, atirou-se a correr para o claro Cebrones, / como leo cheio de ira,

    que Morte a coragem conduz, / em pleno peito ferido depois de um redil devastar: / sobre Cebrones, Ptroclo, assim te atiraste, impetuoso.

  • 19

    glorifica em um extremo de herosmo , , que se

    aproxima do suicdio. Um heri patriota poderia aceitar a morte como o

    orgulho necessrio para salvar seu pas no vergonha para ele morrer

    defendendo sua ptria, pois sua esposa e seus filhos so salvos, e seu lar e

    fazenda poupados, como Heitor declara (15.497ff), mas Aquiles abraa a

    morte em seu temperamento de leo sem nenhum objeto alm da saciedade

    de sua exaltao. Para entender o significado completo disso, devemos

    entender tal postura como parte da transformao interna a que ele se

    submeteu no curso de sua Ira45, conforme ele se move em direo ao

    prospecto inexorvel de sua prpria morte46.

    No curso de sua Ira, Aquiles se tornou ainda mais profundamente

    isolado. Na querela com Agammnon, ns o vemos furioso e com o orgulho

    ferido; em suas falas Embaixada, vemos esse temperamento se desenvolver

    em piedade por si mesmo e por sua alma mortal, (9.321f, 408f); agora,

    com a morte de Ptroclo, seu orgulho pede pela morte de Heitor, e seu

    destino, igualmente, pede que sua prpria morte deva segui-la, conforme sua

    me lhe revela: (18.96: a

    Morte est pronta para voc, imediatamente depois de Heitor). Nos

    primeiros episdios Aquiles sempre soube que morreria em Tria47, mas

    apenas a partir da morte de Ptroclo ele viu a ligao inevitvel entre as trs

    mortes48; tanto que, ao prantear a morte de Ptroclo, ele lamenta seu prprio

    fim49, e, ao buscar a morte de Heitor, ele tambm incita a sua prpria morte50.

    45 Este no o espao apropriado para se expandir os problemas da hamartia de

    Aquiles e sua suposta purificao nos ltimos cantos: ver esp. O. Taplin, Homeric Soundings (Oxford 1990) 194-201; Redfield 203-23; C. Segal, The Theme of the Mutilation of the Corpse in the Iliad (=Mnemosyne Suppl. 17 [Leiden 1971]) 9-17; Whitman 181-220.

    46 A mais clara afirmao sintica da primeira parte dessa corrente causal acontece entre Zeus e Hera, 15.53-77, ecoada na voz do poeta em 15.592-614. Nas profecias que a pontuam, ver M. W. Edwards em The Iliad: A Commentary V (Cambridge 1991) ad 17.404-11 e 18.85f, com outras referncias. Sobre o tema em geral de heris encarando a prpria morte, ver R. Renehan, "The Heldentod in Homer: One Heroic Ideal", CP 82 (1987) 99-116.

    47 a palavra-chave: 1.352 (Aquiles a Thtis), 414-18 (Thtis a Aquiles). Sobre esse tema e a escolha de Aquiles pela vida gloriosa e uma morte precoce, ver esp. Schadewaldt (supra n. ll) 234-67.

    48 Homero ambguo quanto predio da morte de Ptroclo: cf 16.50-54, 249f; 17.401-11; e 19.328-33, onde Aquiles implica que no teve conhecimento do vindouro desastre do amigo, com 18.8-14, onde ele diz que Thtis lhe disse que o melhor dos Mirmdones morreria antes dele.

    49 19.315-37; cf a lamentao de Thtis antecipando sua morte (18.54-64) com 18.440.

  • 20

    Como se j no fosse bravo o bastante para sofrer a morte, ele a aceita

    gentilmente em troca da satisfao de sua prpria ira: ,

    / (18.98f: Deixe-me logo

    morrer, uma vez que no pude servir de amparo ao companheiro querido

    quando ele foi morto). Esse amplexo da morte a chave de sua alienao da

    sociedade humana por meio de seu ataque furioso contra os troianos. Ele faz

    esta conexo sozinho quando Licone implora para ser feito refm: ele recusa

    poup-lo no apenas por ser parte de sua vingana por Ptroclo, mas tambm

    porque o seu prprio fim estando prximo faz da vida algo insignificante

    (21.106-13):

    ;

    , .

    ;

    ,

    .51

    esse prospecto convicto da morte que torna Aquiles selvagem

    ( , 20.468) e o afasta do tipo de homens que fazem trguas e

    pactos civilizados. Sua pressa atual est ligada com o que causou sua

    Ira, e seu afastamento orgulhoso na ocasio de sua retirada deu lugar a uma

    rejeio orgulhosa ainda maior pela coibio que modera a violncia em

    batalha.

    Nesse sentido Aquiles est separado dos outros homens pelas

    qualidades que j vimos ligar heris e animais durante todo o poema. Em seu

    smile retrico ele expressa as funestas implicaes do seu isolamento: ao

    50 Dilogo de Thtis e Aquiles (18.52-137; cf. sua reao profecia do cavalo Xanto (19.404-23)).

    51 Morre tambm, caro amigo; por que lastimares-te assim? / No morreu Ptroclo, heri muito mais importante que tu? / V como sou bem formado e de grande estatura; de pai / mui valoroso provenho; uma deusa imortal me deu vida. / Fica sabendo, no entanto, que a Morte j me anda no encalo. / No est longe o momento, no meio do dia, em qualquer / tarde ou manh, em que a vida algum venha tirar-me, em combate / seja com lana, de perto, ou com seta que o arco dispare.

  • 21

    referir a si mesmo entre lobos e lees ele anuncia que est abandonando os

    valores humanos e a sociedade humana e escolhendo a morte a preferir a

    vida. Por ltimo, a imagem do animal expressa o fato de que aquelas duas

    decises implicam-se uma na outra. Nesse sentido o smile explora as

    profundidades do estado mental ao qual ele foi conduzido pelo extremo

    herosmo exultado que o caracteriza: de modo que ele explora o significado

    potico, homrico do smbolo em um nvel de habilidade retrica que

    nenhuma outra personagem do poema fora capaz.

    Nosso smile pode ainda ser caracterizado como o ponto alto na

    seqncia de smiles animais a pontuarem o movimento de Aquiles em

    direo morte de Heitor e sua prpria morte. O primeiro das sries

    especialmente notvel porque o ponto imediato de comparao

    psicologicamente preciso, mas de um modo mais ntimo que em qualquer dos

    smiles que observamos anteriormente. Aquiles comea seu lamento por

    Ptroclo como um leo aflito pela perda de seus filhotes (18.318-22):

    ,

    ,

    52

    Aqui a correspondncia liga-se ao , a emoo destrutiva que

    levou a Ira ao desastre. Quando Aquiles se retrata para a Embaixada, ele fala

    do que inchara em seu peito (9.646f); quando ele se recusa a ajudar os

    aqueus em suas necessidades, seus seguidores reclamam que sua me o criara

    com (fel) ao invs de leite (16.203; cf. 16.30f); agora ele diz para

    sua me que detesta Agammnon (18.107-11), mas isso se aprofunda nele

    conforme sua fria belicosa se acumula. O temperamento que o prende agora

    amargamente transformado em agresso violenta. O claro sinal desse

    movimento nefasto surge quando Thtis traz sua armadura, e apenas ele entre

    52 de mui sentidos suspiros, no jeito de leo gadelhudo, / a que no espesso das

    matas, preador de geis gamos roubado / tenha os cachorros queridos; o leo, ao voltar para a grota, / se desespera e, saindo procura de rastros desse homem, / s desejoso de ach-lo, percorre convales e montes.

  • 22

    os mirmdones porta-se no com reverncia, mas com um misto de rancor e

    prazer simultneos: / , A ,

    / (19.16ff: O divo

    Aquiles, ao v-la, sentiu aumentar-se-lhe mais / a grande clera; os olhos, nas

    plpebras, chispas emitem). O ardor que agora parece leonino o que o

    impediu de conquistar seu esprito poderoso ( ,

    9.496), seja em seu mau humor ou agora em sua final e fatal carreira. Nesse

    primeiro smile da seqncia, o movimento de Aquiles em direo

    violncia desenfreada expresso por uma imagem que liga o leo emoo

    que o carregou desde o comeo de sua Ira.

    O prospecto da autodestruio do leo surge mais explicitamente

    frente do prximo smile na seqncia, quando o ataque violento de Aquiles

    comea e ele encara Enias. Aqui a descrio coordenada da aparncia e

    emoo finalmente detalhada (20.164-75):

    ,

    ,

    ,

    , ,

    , ,

    ,

    ,

    .53

    53 Marcha para ele o Pelida veloz, como leo valoroso / contra o qual todos os

    homens de um pago se renem, sequiosos / de dar-lhe caa e da vida priv-lo; a princpio, ele segue / sem que ateno lhes conceda; mas, quando um dos moos valentes / de lana o fere, recolhe-se, as fauces dilata, mostrando / os dentes cheios de espuma; no vlido peito lhe freme / o corao; com a cauda o costado e os ilhais aoitando, / para a batalha procurar animar-se, at quando, a rolar / os glaucos olhos, o salto desfere terrvel, ou para / um caador apanhar, ou perder ali mesmo a existncia: o corao valoroso de Aquiles, assim, e o alto brio / o concitavam a ir contra Enias de peito magnnimo.

  • 23

    Em todo ponto, a descrio do leo corresponde a algo do imaginrio

    de um heri em seu estado mais excitado e perigoso: boca abrindo-se para

    gritar, maxilas a espumar, olhos chamejantes54.

    Aqui o risco de autodestruio expresso como uma mesma balana

    de possibilidades, como em alguns dos smiles menos concentrados que

    examinamos em outras passagens, mas o prospecto , por sua vez, dado com

    um significado ainda mais funesto pelo progresso fatal de Aquiles. As

    correspondncias temticas so mais ntimas medida que as ressonncias

    do smile se tornam mais profundas; aqui, conseqentemente, a assimilao

    tanto psicolgica quanto visual do heri ao animal est em sua evocao

    mais intensa.

    O prximo estgio dessa seqncia nossa imagem retrica de

    Aquiles, armando-se sobre Heitor como um leo ou um lobo e recusando-se a

    fazer pactos. Neste ponto ele est para cumprir a deciso de um momento

    importante: no apenas matar Heitor, mas tambm ultrajar seu corpo e matar

    os cativos troianos sobre o corpo de Ptroclo (ver 18.334-37; Segal [supra n.

    45] 33-47). No passado ele estivera preparado para devolver prisioneiros para

    seus resgates (11.104ff, 21.34-48), e uma vez ainda no incio da Ira ns

    mesmos o vemos descrito como (gentil) e sem (2.241),

    bem como quando ele mata Eecio no saque de Tebas e o honra depois da

    morte, em sinal de respeito ( (pois ao menos a

    conscincia o impediu), 6.417). Agora, contudo, ele se recusa a refrear o

    impulso violncia, e seu intenso temperamento (selvagem). Um

    pouco depois, Heitor, agora em seus joelhos, renova seu apelo para que seu

    corpo seja devolvido para suas exquias, e Aquiles replica com a mesma

    selvageria anterior (22.345-47):

    , ,55

    54 Cf. a fria frentica de Heitor (15.605-14), que j citamos em um contexto

    diferente (supra 142). Lonsdale (68f) aponta a ntima correspondncia entre a descrio de Heitor nessa passagem e a descrio de animais selvagens nos smiles como o citado aqui.

    55 Nem por meus joelhos, cachorro, por meus genitores supliques. / Se em meu furor fosse, agora, eu levado a fazer-te em pedaos / e crus os membros comer-te, em vingana do que me fizeste, / como impossvel dos ces voradores livrar-te a cabea!.

  • 24

    A retrica de Aquiles manifesta em termos humanos a expresso

    impiedosa do smile da sua fala anterior56: ele se aparta do mbito do

    comportamento humano, e torna-se como o animal que devora a carne de

    suas vtimas57.

    A desumanidade ofende aos deuses, e quando eles a descobrem

    vemos as implicaes do comportamento leonino em seu perigo mais srio.

    Aquiles est deixando o corpo de Heitor apodrecer, e Apolo queixa-se a Zeus

    por meio de um smile intimamente detalhado que, novamente, iguala

    Aquiles a um leo saqueador (24.39-45):

    ,

    , ,

    ,

    . ...58

    Tanto o homem quanto o animal so selvagens, eles se rendem s

    suas paixes inflamadas e rejeitam , a lei de coibies coletivas.

    Render-se ao , como o leo faz aqui, exatamente contra o que Fnix

    alertou Aquiles em vo (9.597-601). Similarmente, foi por causa de seu

    esprito orgulhoso () que Aquiles se recusou a aceitar a oferta de

    Agammnon por meio da Embaixada (ver 9.699f), bem como agora ele est

    se comportando como um leo cujo (mpeto orgulhoso) o

    afasta para longe da piedade. De acordo com Apolo, sua selvageria lhe traz

    ultrajes: (24.54: pois contra terra

    56 56 Cf. K. Stanley, The Shield of Homer (Princeton 1993) 217f. 57 A ameaa de comer carne humana imposta em outras passagens por outras

    personagens, mas em contextos onde parece mera hiprbole: como quando Zeus zomba da averso de Hera pelos troianos (4.30-36), ou quando Hcuba d vazo a seu dio impotente por Aquiles (24.209-16).

    58 Ao invs disso, ao funesto Pelida, somente, amparais, / to destitudo de humano sentir, sem razoveis propsitos / no corao abrigar, como o leo, cujo instinto selvagem, / fora ingente associada e indomvel coragem, o leva / a devastar os rebanhos dos homens a fim de saciar-se. / Toda a piedade falece ao Pelida, falece-lhe o senso / da reverncia, que fonte de males e bens para os homens.

  • 25

    insensvel, apenas, exerce o furor). Ao destratar algum que no pode se

    defender, Aquiles ultrajou as leis da natureza humana e a ordem das coisas59.

    Essa a atitude de algum de idias frenticas ( ,

    24.135). Essas idias parecem ter se amenizado quando Aquiles recebe

    Pramo em sua tenda, mas mostram-se novamente quando Pramo tenta

    apress-lo a entregar o corpo de Heitor. Sua ira lhe sobrevm mais uma vez,

    ele ameaa quebrar o comando de Zeus e matar a visita suplicante, e

    medida que ele o faz a imagem do leo reacende (24.568-72):

    ,

    , .

    , .

    60

    As duas palavras (como um leo) nos lembram, como

    nada poderia fazer to sucintamente, que a ira de Aquiles foi encoberta mas

    no conquistada61.

    sob a luz do julgamento de Apolo que podemos resumir nossa

    leitura do smile em que Aquiles identifica seu estado mental com o estado

    mental de um animal. Entendido atravs das associaes mais profundas com

    os animais na linguagem simblica de Homero, ser como um leo no sentido

    mais profundo desafiar a Zeus e a sanidade, e dar as boas-vindas morte

    que tal desafio pode trazer. Quando Aquiles vincula-se ao leo, ele est

    revelando no apenas ser um heri, mas um louco. Naquela fala

    extraordinria o vocabulrio simblico da tradio do smile permite-o

    expressar uma idia que no poderia, de outra maneira, ter sido posta em

    59 Esta linha difcil, porquanto ambgua a respeito de / se referir morte

    de Heitor ou terra divina, que poderia surgir como um guardio para a violada por Aquiles. A interpretao anterior fortemente sugerida pelo uso do verbo (cf. esp. 22.256, 404; 24.22); e ver ainda C. Macleod, Homer: Iliad Book 24 (Cambridge 1982) ad loc.

    60 No venhas, pois, irritar-me ainda mais as angstias no peito; / no acontea expulsar-te da tenda, conquanto aqui estejas / como pedinte, violando, desta arte, os mandados de Zeus. Pramo a tudo obedece, de espanto indizvel tomado. / Tal como um leo, para fora da tenda o Pelida saltou.

    61 Cf. o perspicaz comentrio de N. Richardson sobre esta passagem: The Iliad: A Commentary VI (Cambridge 1993) ad 24.552-95.

  • 26

    palavras sem expandir os recursos da linguagem potica, ou sem fazer o

    prprio heri parecer grotesco.