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MHisCA – MUSEU HISTÓRICO E CULTURAL DO ALIMENTO: UM
PROJETO DE MUSEALIZAÇÃO DO ALIMENTO
Liliane Faria Corrêa Pinto
UFMA / MHisCA
E-mail: [email protected]
Caroline Césari de Oliveira
ICOMUS / MHisCA
E-mail: [email protected]
Resumo:
O alimento é essencial para a vida, mas seu consumo é permeado por facetas culturais,
sociais e históricas que envolvem diversos campos da história da alimentação. Como
patrimônio, se relaciona à categoria dos saberes, já que o modo de fazer e os processos e
conhecimentos decorrentes do cozinhar se constituem em bens que podem representar
parte de uma cultura local. É o caso do queijo Minas, dos doces de Pelotas, do acarajé da
Bahia, entre outros. Este último, foi alvo indireto do registro pelo IPHAN como produto
final do “ofício das baianas do acarajé” (2005). Temos também o registro federal das
paneleiras de goiabeiras (2002), cujo ofício é fazer panelas em barro para preparar pratos
da cozinha tradicional capixaba. Observa-se também uma relevância atribuída à “comida
de festa” que acompanha ritos religiosos, como o candomblé, os festejos das congadas, a
festa do Divino de Pirenópolis, etc. Nesses casos, o alimento simbolicamente se inclui
numa concepção maussiana de “reciprocidade” e “dádiva” e se torna uma parte relevante
do processo de trocas simbólicas e trânsitos de saberes agenciados nessas celebrações.
Entender e transformar esse conhecimento em exposições visuais virtuais é o objetivo do
MHisCA, um projeto de extensão interdisciplinar e interprofissional da UFMA, de
desenvolvimento de um equipamento museal que divulgará e informará as pesquisas e o
conhecimento produzido sobre a complexidade da relação do homem com sua comida e
seu patrimônio alimentar. Em processo de organização, o MHisCA se propõe a construir
um “conhecimento novo” que vai associar a produção da universidade ao saberes não
técnicos das comunidades. Nesse sentido, essa comunicação vai expor as ações realizadas
nesse projeto de construção de um museu que possa expressar a complexidade da
alimentação na cultura e como patrimônio cultural e produzirá novas leituras do cotidiano
e do conhecimento acadêmico sobre esse tema.
Palavras-chave: patrimônio cultural alimentar; história da alimentação; museu; comida
Introdução
O MHisCA (Museu Histórico e Cultural do Alimento) é um museu em processo
de formação como parte de um projeto de extensão da UFMA (Universidade Federal do
Maranhão). Nessa comunicação, serão expostos os problemas e as discussões em torno
do processo de criação do MHisCA. E, dentro dessa proposta, os conceitos adotados pela
equipe que envolvem o museu e suas variantes e possibilidades, as discussões em torno
do alimento e a cultura e, por fim, a relação do patrimônio, da identidade e da comida.
Nas considerações finais, serão tratadas as possiblidades futuras para a comunicação
desse conhecimento em exposições.
1 Criação do MHisCA
O MHisCA começou a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da
história da alimentação e a identificação de um vazio de material e acervo acadêmico
relevante para uma proposta museológica do alimento e que fosse disponível nas redes
ou mesmo em um museu físico. Inicialmente, foi elaborado um projeto de pesquisa,
registrado no sistema da UFMA – Universidade Federal do Maranhão, mas as pesquisas
não contemplavam a ideia da divulgação do conhecimento visual acerca da História da
Alimentação e, em vista disso, foi proposto o projeto de extensão na Pró-Reitoria de
Extensão e Cultura – PROEC da UFMA para a criação do Museu Histórico e Cultural do
Alimento. Em seguida, abriu-se um edital para bolsistas de extensão e o projeto do museu
ficou classificado em quinto lugar, recebendo, assim, uma bolsista para auxiliar no
processo de elaboração do plano museológico e das quatro primeiras exposições e para a
divulgação das ações do museu. Com o registro do projeto no sistema da UFMA (SIGAA)
foi realizada a primeira reunião em 18 de fevereiro com a coordenadora Profª. Drª Liliane
Faria Corrêa Pinto e a discente bolsista, Brennda Brasileiro da Silva Lucio, para
organizarem as reuniões seguintes. Enquanto isso, aguardávamos a aprovação do projeto
na câmara de extensão da universidade.
A partir desta data, a equipe composta pela historiadora Drª Liliane Faria Corrêa
Pinto – UFMA (Coord.), Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly, com formação
em letras e literatura comparada, o historiador Ms. Gilson Moura Henrique Junior, a
antropóloga Msª Caroline Césari de Oliveira, a pedagoga e estudante de História Brennda
Brasileiro da Silva Lucio e o estudante de História Carlos Rogério da Silva Moura
passaram a se reunir regularmente todas as quintas-feiras, às 16h, horário de Brasília, em
plataforma virtual do Google Meet. Dessas reuniões foram estabelecidas alguma
diretrizes para a equipamento museal.
Como legislação de museus no Brasil exige que os equipamentos museológicos
tenham um plano que norteie suas atividades, denominado Plano Museológico (BRASIL,
2009)1, o projeto previa a elaboração desse documento. Concomitante às discussões dos
itens que compõem o Plano Museológico, estão sendo elaboradas as pesquisas para as
primeiras exposições.
Como missão do MHisCA, a equipe definiu:
Pesquisar, expor e salvaguardar os saberes e experiências associados ao
alimento, a partir de princípios interculturais e abordagens
interdisciplinares, sob os aspectos histórico, psicológico, nutricional,
medicinal, econômico, político, social, antropológico, artístico e
filosófico, projetando seus resultados para a educação e o turismo
(MHISCA, 2021).
E como visão, ficou estabelecido:
Ser reconhecido como um espaço físico-itinerante e virtual de
referência acerca dos estudos e das reflexões interdisciplinares sobre a
gastronomia, as práticas e os patrimônios alimentares por meio da arte,
da educação, da experiência, da difusão e da pesquisa (MHISCA,
2021).
E como objetivos, foram elencados:
• Pesquisar e difundir o conhecimento associado à alimentação;
• Oportunizar o conhecimento relacionado aos alimentos e suas
inúmeras vertentes e abordagens por meio de linguagens sensoriais;
• Compreender o alimento a partir de suas inúmeras possiblidades,
perspectivas e abordagens;
• Consolidar um acervo digital;
• Expor mecanismos e ferramentas para a compreensão do alimento e
de seus conhecimentos e saberes associados (MHISCA, 2021).
1 “Art. 44. É dever dos museus elaborar e implementar o Plano Museológico” (BRASIL, 2009).
Como fruto de um trabalho interdisciplinar, interprofissional e democrático, foram
definidas as diretrizes principais do museu.
A partir daí, foi feita uma análise da realidade do museu por meio do método
Análise SWOT, considerando a situação atual e as possibilidades futuras a curto prazo.
Nesse sentido, identificamos os pontos fortes e fracos e as oportunidades e ameaças. Essa
leitura das características do equipamento em criação possibilitou direcionar melhor as
atividades dos programas, especialmente, o de exposições que está em processo de
elaboração.
Como pontos fortes foram observados:
A alimentação é um tema de interesse do público em geral;
Acervo com acesso livre online;
Exposições com acesso livre online;
Acervo em processo de coleta e em suporte virtual;
Acervo coletado fica armazenado na nuvem;
Existência de projetos de pesquisa em andamento;
Vocação para a interdisciplinaridade (MHISCA, 2021);
Como pontos fracos, identificamos:
Catalogação do acervo em processo de sistematização;
Processo de armazenagem do acervo em sistematização;
Ausência de site, apenas um blog;
Ausência de equipe que elabore sites (MHISCA, 2021).
Ainda dentro da análise SWOT, identificamos as oportunidades:
O tema do museu é rico e amplo;
O museu está associado a uma universidade federal;
É possível o uso das dependências do Campus de Codó para futuras
atividades do museu
Há uma redução de gastos pela virtualidade do museu;
A virtualidade das exposições e do acervo facilitam o contato do
público com a produção do museu;
A virtualidade possibilita maior divulgação das pesquisas do museu;
Vocação para a extensão (MHISCA, 2021).
E as ameaças elencadas foram: “Não há autonomia financeira; A equipe pequena
e depende de bolsas; Não há uma cozinha independente” (MHISCA, 2021).
O que a equipe concluiu até o momento é que o MHisCA tem grande potencial e
está em uma situação razoavelmente confortável diante de outros equipamentos museais
porque sua proposta demanda esforço de pesquisa da equipe e de elaboração das
exposições, não necessitando de recursos financeiros para se manter. Porém, sem esses
recursos, o museu com o tempo perderá sua capacidade de se manter e de renovar, sendo
necessário, então, participar de editais de cultura que possam financiar os projetos do
museu, bem como buscar patrocinadores para as exposições.
As atividades da equipe agora estão voltadas para a elaboração dos programas,
dando ênfase ao programa de exposições a partir do conceito de musealização do
alimento.
2 Musealização do alimento
O alimento é um fator essencial para a vida e sua existência em si não tem relação
com os museus ou ainda não demanda uma exposição em um museu. Porém ao ser
tomado na perspectiva do processo de conhecimento e de valorização desse saber
associado ao alimentar-se, ao preparo e à significação pela cultura dos produtos ingeridos
e processados, o alimento pode ser musealizado. O conceito é discutido por Zbynek
Stránský que cria uma tríade em torno do objeto no museu, musealia, da qualidade de
musealização desse objeto, a musealidade, e do processo de inserção desse objeto para a
análise e a apropriação museal, a musealização (BRULON, 2017).
E dentro desse conjunto conceitual, a musealização do alimento tem como
parâmetro três aspectos. O primeiro é a seleção, que define em que medida o alimento
pode ser objeto de um museu, e nesse caso, isso acontece ao se identificar a sua relação
com a cultura e o conhecimento. O segundo é tesaurização que consiste na absorção do
objeto selecionado, o alimento, no acervo do museu, mudando sua perspectiva de um
objeto em si para um musealia, ou seja, passível de ser comunicado como parte de uma
coleção. Aqui, o conceito é mais facilmente aplicável ao se pensar um objeto físico, mas
com a proposta de um musealia imaterial, é na tomada de conhecimento desse objeto e
de suas relações com a cultura que se estabelece a possibilidade da musealização. O
terceiro aspecto é a comunicação que acontece quando o conhecimento produzido sobre
objeto musealizado, nesse caso o alimento, é exposto para o público e se torna uma
exposição com significado (BRULON, 2017; IBRAM, s/d.).
Diante disso, a equipe do MHisCA iniciou o desenvolvimento das quatro
primeiras exposições do museu, sendo elas em suporte virtual. São duas de curta duração:
“Cinema Trash e a Comida” e “Cem anos de Semana de Arte Moderna, a antropofagia e
o alimento”. Ficou estabelecida uma exposição de média com o tema poesia e comida,
porém ainda sem uma definição propriamente dita e uma de longa com o tema “A
culinária como forma de resistência e resiliência dos povos”.
2.1 Cinema Trash e Comida
Nessa exposição, a comunicação propõe refletir sobre a relação da comida com os
filmes de terror/humor trash. Elencamos a trilogia dos Tomates Assassinos e The Stuff,
no Brasil, A Coisa, para desenvolvermos a pesquisa acerca da associação da comida com
o terror, numa leitura tosca do cinema de baixo custo e que passo do horror para o humor.
Partimos do conceito de que o alimento é sempre ressignificado pelas culturas e tomamos
o cinema como uma das expressões humana desses novos sentidos.
O cinema aborda a comida em suas produções que lidam com a vida e o trabalho
dos chefs de cozinha, a comida como parte da experiência do cotidiano e, muitas vezes,
o enredo da história gira em torno dos pratos ao invés do contrário. Já no cine trash, a
abordagem ocorre de forma absurda, mas também crítica, num contraposição entre a
normalidade do comer e a transgressão, e consequentemente revela outros significados
do alimento e dos sentidos do comer. O cinema trash é uma modalidade do horror que se
desenvolveu nos anos de 1970 e 1980 com filmes de baixo orçamento e que se dispunham
a rever a estética do terror, dando a ela um caráter satírico que valorizava o grotesco e
dessacralizava o mal. A comida como personagem nesses enredos perverte a expectativa
da narrativa porque perturba a ordem natural que está assentada numa concepção cultural
humana de que a comida representa a vida e no trash ela se revolta e resolve comer ou
matar os comensais. A exposição o “O Cinema Trash e a Comida” propõe comunicar a
fundação de um diálogo consciente entre o horror e o humor no cinema trash por meio
do ato de comer ou de ser comido pela comida, salientando os significados sagrados da
comida, a partir de um olhar bakhtiniano, e que pervertê-los cria um espaço para o riso.
A história dos filmes escolhidos “O ataque dos tomates assassinos”, “O retorno
dos tomates assassinos” e “Os tomates assassinos atacam a França” e “A Coisa” (“The
Stuff”) tem um enlace semelhante: são comidas, o tomate e o marshmallow, que se voltam
contra os humanos e começam a comê-los. Os motivos que os transformam em criaturas
ameaçadoras são diferentes, no primeiro, os tomates são modificados por meio de
químicas prejudiciais, e no segundo, a ameaça é externa, o marshmallow é uma pasta
extra terrestre. Ambas as comidas querem dominar o mundo. A primeira, os tomates, tem
como motivação o fato de se sentirem humilhados por terem sido comidos a vida toda,
crus, em molhos, em forma de ketchup, etc., já a segunda, não fala, apenas come os
comensais por dentro, numa analogia com a má alimentação estadunidense, fundada
principalmente numa propaganda que vende o pior para o consumo sem escrúpulos.
Ambos os filmes lidam com uma estética militar e uma ironia com a guerra fria e a
tecnologia, dizendo mais sobre o período em que foram criados que sobre os enredos.
A exposição será composta por trechos dos filmes com suas análises em pequenos
vídeos, dispostos em um suporte de mídia digital, provavelmente, o blog do MHisCA.
Abaixo, estão dispostas dois quadro com imagens comparativas entre os cartazes dos
primeiros filmes da trilogia, associadas a imagens de tomates, numa perspectiva de
reproduzir a sensação de ironia dos filmes.
Quadro 1
Comparação visual do cartaz do primeiro filme da trilogia dos tomates assassinos e um tomate
Foto 1: O Ataque dos Tomates Assassinos Foto 2: Tomate sob uma mesa rústica
Fonte:
https://br.web.img3.acsta.net/pictures/15/04/29/19/
23/173745.jpg
Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/tomate-
vegetais-alimentos-frescos-2282101/
Quadro 2
Comparação do cartaz do segundo filme da trilogia dos tomates assassinos e tomates em lata
Foto 3: Cartaz do “Retorno dos
Tomates Assassinos”
Foto 4: Tomate em lata.
Fonte:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/p
t/6/6a/Return_of_the_Killer_Tomatoes.j
pg
Fonte: https://www.cozinhatecnica.com/wp-
content/uploads/2016/10/tomate-em-lata-1-480x270.jpg
2.2 Poesia e Comida: “da semente à semente” e “quando a comida vira arte e a arte
vira comida”.
A exposição de média duração terá o objetivo de difundir acervos, obras literárias,
artes plásticas, poesias e outras formas de expressão artísticas que possuem o alimento
como objeto de reflexão. Nesse sentido, intenta-se a construção de um acervo digital
robusto com toda a sorte de obras acerca do alimento e do alimentar-se, nas suas mais
diversas perspectivas analíticas. Para isso, o MHisCA associou-se ao MUNAP (Museu
Nacional da Poesia) para a elaboração dessa exposição cujo tema definido foi “Poesia e
Comida”.
As discussões acerca das possiblidades de comunicação desse tema giraram em
torno dos diversos conceitos que fundamentam a proposta. A princípio, foi desenvolvida
uma chuvas de ideias e chegamos a duas propostas, “Da semente à semente” e “Quando
a comida vira arte e a arte vira comida”, sendo a primeira a escolhida para a exposição.
Dessa sugestão, saiu a ideia de se trabalhar a laranja e seu processo de crescimento, uso
e reaproveitamento, dentro da conceituação da semente à semente. Já foram definidas as
etapas da exposição e os suportes para cada uma delas está em estudo. As sementes já
foram selecionadas, a pesquisa em torno do uso e do aproveitamento das cascas já está
em andamento, com a coleta e o armazenamento de cascas da fruta para a elaboração de
um objeto.
Foto 5
Cascas de laranjas
Foto: Regina Mello, MUNAP
A segunda proposta foi arquivada como parte do programa de exposições para ser
desenvolvida em outro momento. Compondo a formação do acervo, ela se propõe a
comunicar uma relação da poesia com a comida, numa perspectiva imagética do texto
como a poesia concreta de Fábio Bahia, que escreve seus versos em linhas que desenham
uma xícara e um coração de fumaça sobre ela (BAHIA, 2019) ou ainda o poema de Pablo
Neruda, “Ode à cebola”, em contraposição à “Natureza Morta com Prato de Cebolas”, de
1889, Vincent Van Gogh.
Neruda exalta a cebola que “ao alcance / das mãos do povo / regada com azeite /
polvilhada / com um pouco de sal, / matas a fome” e “e ao cortar-te / a faca na cozinha /
sobe a única / lágrima sem pena. / Fizeste-nos chorar sem nos afligir” (NERUDA, 1954).
Foto 6
Natureza Morta com Prato de Cebolas, de Vincent Van Gogh
O jogo entre imagens, poesias e comidas serão exploradas nessa exposição que acontecerá
no próximo ano e cuja pesquisa ainda está em desenvolvimento.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Van_Gogh_-
_Stillleben_mit_Zeichenbrett%2C_Pfeife%2C_Zwiebeln_und_Siegellack.jpeg
2.3 A culinária como forma de resistência e resiliência dos povos
As comunidades resgatam a memória do passado, estruturam a sua experiência
temporalmente e dão sentido aos acontecimentos por meio das suas narrativas orais. O
alimento, nesses enredos, engendra costumes e os modos de ser e fazer desses grupos,
entrelaçados com a construção e a continuidade dessas comunidades. A produção desses
saberes compartilhados possibilita a reflexão sobre a vida comunitária, sua herança
histórica e seus aspectos antropológicos. Sobre isso, afirma Canesqui (1988) que: “Não é
recente, no Brasil, o esforço antropológico de focalizar elementos culturais e ideológicos
que presidem as práticas de consumo alimentar” (CANESQUI, 1988). Nesse sentido, o
alimentar-se aparece como uma forma de resiliência cultural, já que através da
alimentação temos a manutenção de temperos, gostos, ingredientes, formas de cultivo e
usos da terra, que acabam influenciando não só no “o quê” se come, mas também no
“como” se come e, principalmente, em como a comida é preparada, o que inclui as
ferramentas e técnicas necessárias ao seu preparo, e também como é consumida.
Os hábitos alimentares estão condicionados ao acesso aos ingredientes e, portanto,
à existência deles e às características dos recursos naturais locais. Diante disso, a comida
e a falta dela estão intimamente associadas à disponibilidade de recursos, às condições
sociais e ecológicas e podem implicar tanto na manutenção de formas tradicionais, como
na incorporação de modismos, tais como o advento dos fast foods.
Na sua relação com a memória, o alimento tem sido amplamente utilizado e
reconhecido mediante seus símbolos diacríticos, ou seja, no que o distingue das formas
de comer de outras coletividades e, assim, afirma a potencialidade da sua dimensão de
patrimônio cultural. Corroborando com essa assertiva, já temos registrados em nível
nacional alguns saberes ligados ao fazer de alimentos e a formas de cultivo, reconhecidos
como bens culturais relevantes pelo IPHAN. São eles: o “Ofício das Baianas de Acarajé”,
o “Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro”, a “Produção Tradicional e práticas
socioculturais associadas à Cajuína no Piauí”, as “Tradições Doceiras da Região de
Pelotas e Antiga Pelotas – Morro Redondo, Ituruçu, Capão do Leão e Arroio do Padre”,
o “Sistema Agrícola Tradicional de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira” e o
“Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas, nas Regiões do Serro e das Serras da
Canastra e do Salitre” (IPHAN, 2021).
Nessa perspectiva, para essa exposição, definida como de longa duração, foram
pensados cinco produtos alimentares que possam representar tais aspectos. Para além do
patrimônio cultural alimentar, as comidas elencadas tem como princípio agregar os
diversos processos de resistência e resiliência na história brasileira. Selecionamos a
mandioca, o vatapá, o quiabo, o coco e o cachorro-quente que, cada um a sua medida,
representam parte dessa memória culinária no ambiente rural e/ou urbano.
A mandioca é uma tradição alimentar que caracteriza a cultura indígena e foi
absorvida pela sociedade brasileira como parte essencial de sua alimentação básica,
porém os processos de preparo e elaboração dessas farinhas ainda estão presentes na zona
rural como saberes que remontam o passado pré-colonial. Os pratos derivados da
mandioca e seus subprodutos são inúmeros e vão desde a mandioca cozida propriamente
dita aos bolos e pães preparados com a massa da mandioca em suas diversas etapas de
processamento. Segundo Câmara Cascudo (1967), “O beiju é da mesma massa da farinha
de mandioca. A tapioca é da goma, retirada por decantação, da primeira água da
manipueira, na primeira operação com a mandioca ralada”.
Dessas etapas, temos os beijus, as tapiocas, o polvilho que, segundo Cascudo, vão
ser moldados pelas mãos das mulheres portuguesas e se transformarão em bolos de
mandioca, pão de queijo, pães, doces, etc. (CASCUDO, 1967). Da farinha torrada, temos
sua larga utilização no preparo de caldos e comidas pastosas como o tutu de feijão ou o
pirão de peixe e frango.
Para comunicar esse conhecimento, lançaremos mão de uma pesquisa realizada
pelos alunos da disciplina de Tópicos da Pesquisa Histórica I – História da Alimentação,
do curso de Licenciatura em Ciências Humanas / História, da UFMA/Codó, no ano de
2016.2 Eles acompanharam o processo desde a colheita da mandioca até o preparo da
farinha em uma Casa de Farinha da localidade de Bacabinha, no município de Codó, no
2 CASTRO NETA, Antonia Tavares Gama de; FAUSTINO, Natanael Araújo, OLIVEIRAS, Nathália
Cristielle Mouzinho de. Produção de farinha no povoado Bacabinha do município de Codó/Maranhão.
Trabalho apresentado para a obtenção de nota dentro da disciplina de Tópicos Espaciais da Pesquisa de
História I – História da Alimentação. Universidade Federal do Maranhão, Campus de Codó, 2016.
Maranhão. A pesquisa ainda vai buscar entre as tradições de grupos indígenas as técnicas
utilizadas por eles para o preparo da mandioca e, a partir desse estudo, podemos
compreender heranças relacionadas ao vegetal e suas apropriações na culinária brasileira.
A comunicação desse saber deve ser apresentado em imagens dos modos de fazer
associados a pequenos vídeos com o preparo das receitas atuais e antigas.
O vatapá, que já é uma mistura, tem um caráter de resiliência africana em suas
apropriações, mas está presente em receitas desde o século XIX, como no Cozinheiro
Imperial. Nele, há vatapás de vários tipos como o de bacalhau e o de carne de porco,
sendo preparados com “toucinho derretido, tomates, cebolas, salsa, alho, tudo muito bem
picado, gengibre raspado, cardamomo, louro, pimenta da índia e bastante da cumari” (R.
C. M., p. 111, 1887). Acrescenta-se farinha de amendoim torrado e se utiliza a farinha de
mandioca fina para engrossar o caldo. A mistura é temperada com o azeite de dendê. O
vatapá é parte do Acarajé e isso o caracteriza como uma comida sagrada do Candomblé,
religião de matriz africana cuja iguaria e seu ofício são uma forma de resistência da
tradição afrodescendente no Brasil. Para além do vatapá do acarajé, a exposição deve
explorar as receitas com frango, frutos do mar e peixes como sugere o “Cozinheiro
Imperial”.
O quiabo chega ao Brasil por mãos africanas ou árabes e se incorpora à
alimentação em pratos que estão dispersos em todo o território nacional (CASCUDO,
1967). As receitas como o frango com quiabo, o caruru, o quiabo com o cuxá tem forma
e sabor semelhantes a pratos da culinária egípcia como o quiabo com carne e a moloheya.
É uma forma de resistência e resiliência dos povos negros porque, ao que tudo indica,
reproduz sabores da terra natal desses homens e mulheres e foi incorporado à culinária
das fazendas, fazendo com que os senhores comessem as comidas que os cativos tinham
o costume de saborear.
O coco, conhecido como coco da praia, coco verde ou coco da Bahia, é asiático e
chegou ao Brasil trazido pelos portugueses no século XVI (SIQUEIRA, et. all., 2002).
Adaptou-se completamente ao litoral e seus subprodutos compõem muitas receitas doces
e salgadas. Entre as doces, observamos que ele substitui as castanhas e amêndoas
europeias e entre as salgadas, engrossas molhos e caldos, além de temperar carnes e
peixes (CASCUDO, 2014). Mais tarde, no século XX, foram introduzidas outras espécies
de coco mais rentáveis e ele é produzido em larga escala no nordeste e consumido em
todo o território nacional. O leite de coco compõe receitas tradicionais dos diversos
estados, especialmente, do nordeste brasileiro, mas os doces que levam coco, como a
cocada, o quindim, a canjica temperada com coco, o amor em pedaços, entre outros são
difundidos em todo o Brasil. O alimento faz parte das culinárias brasileiras em diversas
iguarias diferentes como prato principal, tempero ou sobremesa.
Por fim, mas não menos importante, o cachorro-quente que é um sanduíche
considerado pouco nutritivo e símbolo da dominação estadunidense dos modos
alimentares. Porém, no Brasil, ele se torna um sanduíche repleto de ingredientes que se
caracteriza por transgredir o seu sentido original. Os cachorros-quentes recebem novos
itens como queijos, vinagretes, purê de batata, molho de carne, cenoura ralada, batalha
palha, milho, passa de uva, ervilha, molhos de alho, maionese e os tradicionais mostarda
e ketchup. Essa mistura, servida em carrinhos de rua, é a comida tradicional do fim de
noite em várias cidades brasileiras. Há variações desses ingredientes de estado para
estado, mas o sanduíche brasileiro é muito mais completo e nutritivo que o original
estadunidense ou alemão que são compostos pelo pão e a salsicha, regados
moderadamente a mostarda e ketchup. Incorporado também nas festividades infantis e
nas festas juninas (MIESSA, 2013), o cachorro-quente que deveria se apresentar como
uma desconstrução das tradições alimentares brasileiras acaba por representar parte dessa
cozinha porque agrega a variedade própria do paladar brasileiro ao sanduíche
tradicionalmente simples.
3 Considerações finais
O MHisCA está em processo de organização e formulação e suas atividades ainda
não foram abertas ao público. Isso ocorrerá com a disponibilização da primeira exposição,
provavelmente, em setembro de 2021. Durante esse processo de planejamento e
elaboração das exposições, a equipe observou a potencialidade do objeto do museu. O
alimento está presente em todas as culturas e abrange conhecimentos que perpassam a
cultura, a sociedade, a ciência e a natureza.
A complexidade da relação do homem com sua comida está presente nos mais
diversos aspectos tais como o histórico, o psicológico, o nutricional, o medicinal, o
econômico, o político, o social, o antropológico, o artístico e o filosófico, como afirma a
missão do MHisCA. Na mesma medida, há uma enorme complexidade na relação entre
as culturas e seus patrimônios alimentares, culminando no reconhecimento desses saberes
pelos órgão de proteção ao patrimônio cultural.
Por fim, o alimento como objeto museal possibilita uma infinidade de composição
de acervos e, consequentemente, de comunicação desse conhecimento para o público, o
que fornece ao MHisCA diversas abordagens visuais, auditivas, gustativas e sensoriais
para serem desenvolvidas em exposições com formas, modalidades, ferramentas e
expressões diferenciadas.
4 Referências
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https://www.recantodasletras.com.br/poesias-concretas/6648631> Acesso em 1 jun.
2021.
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BRULON, Bruno. “Provocando a Museologia: o pensamento geminal de Zbynˇek Z.
Stránský e a Escola de Brno”, Annals of Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.25. n.1.
p. 403-425. jan.-abril 2017
CANESQUI, Ana Maria. “Antropologia e alimentação”, Rev. Saúde Pública, 22 (3),
Jun., 1988. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0034-89101988000300007>.
Acesso em 1 jun. 2021.
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia da alimentação no Brasil. 1ª ed. dig. São
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CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação Brasileira. São Paulo:
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IBRAM. Plano Museológico: Planejamento Estratégico para os Museus. Coleção
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IPHAN. Bens registrados. Disponível em <www.iphan.gov.br> Acesso em 2 jun. 2021
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SIQUEIRA, L.A., ARAGÃO, W.M., TUPINAMBÁ, E.A. A Introdução do coqueiro
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