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MHisCA MUSEU HISTÓRICO E CULTURAL DO ALIMENTO: UM PROJETO DE MUSEALIZAÇÃO DO ALIMENTO Liliane Faria Corrêa Pinto UFMA / MHisCA E-mail: [email protected] Caroline Césari de Oliveira ICOMUS / MHisCA E-mail: [email protected] Resumo: O alimento é essencial para a vida, mas seu consumo é permeado por facetas culturais, sociais e históricas que envolvem diversos campos da história da alimentação. Como patrimônio, se relaciona à categoria dos saberes, já que o modo de fazer e os processos e conhecimentos decorrentes do cozinhar se constituem em bens que podem representar parte de uma cultura local. É o caso do queijo Minas, dos doces de Pelotas, do acarajé da Bahia, entre outros. Este último, foi alvo indireto do registro pelo IPHAN como produto final do “ofício das baianas do acarajé” (2005). Temos também o registro federal das paneleiras de goiabeiras (2002), cujo ofício é fazer panelas em barro para preparar pratos da cozinha tradicional capixaba. Observa-se também uma relevância atribuída à “comida de festa” que acompanha ritos religiosos, como o candomblé, os festejos das congadas, a festa do Divino de Pirenópolis, etc. Nesses casos, o alimento simbolicamente se inclui numa concepção maussiana de “reciprocidade” e “dádiva” e se torna uma parte relevante do processo de trocas simbólicas e trânsitos de saberes agenciados nessas celebrações. Entender e transformar esse conhecimento em exposições visuais virtuais é o objetivo do MHisCA, um projeto de extensão interdisciplinar e interprofissional da UFMA, de desenvolvimento de um equipamento museal que divulgará e informará as pesquisas e o conhecimento produzido sobre a complexidade da relação do homem com sua comida e seu patrimônio alimentar. Em processo de organização, o MHisCA se propõe a construir um “conhecimento novo” que vai associar a produção da universidade ao saberes não técnicos das comunidades. Nesse sentido, essa comunicação vai expor as ações realizadas nesse projeto de construção de um museu que possa expressar a complexidade da alimentação na cultura e como patrimônio cultural e produzirá novas leituras do cotidiano e do conhecimento acadêmico sobre esse tema. Palavras-chave: patrimônio cultural alimentar; história da alimentação; museu; comida Introdução

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Page 1: MHisCA MUSEU HISTÓRICO E CULTURAL DO ALIMENTO: UM …

MHisCA – MUSEU HISTÓRICO E CULTURAL DO ALIMENTO: UM

PROJETO DE MUSEALIZAÇÃO DO ALIMENTO

Liliane Faria Corrêa Pinto

UFMA / MHisCA

E-mail: [email protected]

Caroline Césari de Oliveira

ICOMUS / MHisCA

E-mail: [email protected]

Resumo:

O alimento é essencial para a vida, mas seu consumo é permeado por facetas culturais,

sociais e históricas que envolvem diversos campos da história da alimentação. Como

patrimônio, se relaciona à categoria dos saberes, já que o modo de fazer e os processos e

conhecimentos decorrentes do cozinhar se constituem em bens que podem representar

parte de uma cultura local. É o caso do queijo Minas, dos doces de Pelotas, do acarajé da

Bahia, entre outros. Este último, foi alvo indireto do registro pelo IPHAN como produto

final do “ofício das baianas do acarajé” (2005). Temos também o registro federal das

paneleiras de goiabeiras (2002), cujo ofício é fazer panelas em barro para preparar pratos

da cozinha tradicional capixaba. Observa-se também uma relevância atribuída à “comida

de festa” que acompanha ritos religiosos, como o candomblé, os festejos das congadas, a

festa do Divino de Pirenópolis, etc. Nesses casos, o alimento simbolicamente se inclui

numa concepção maussiana de “reciprocidade” e “dádiva” e se torna uma parte relevante

do processo de trocas simbólicas e trânsitos de saberes agenciados nessas celebrações.

Entender e transformar esse conhecimento em exposições visuais virtuais é o objetivo do

MHisCA, um projeto de extensão interdisciplinar e interprofissional da UFMA, de

desenvolvimento de um equipamento museal que divulgará e informará as pesquisas e o

conhecimento produzido sobre a complexidade da relação do homem com sua comida e

seu patrimônio alimentar. Em processo de organização, o MHisCA se propõe a construir

um “conhecimento novo” que vai associar a produção da universidade ao saberes não

técnicos das comunidades. Nesse sentido, essa comunicação vai expor as ações realizadas

nesse projeto de construção de um museu que possa expressar a complexidade da

alimentação na cultura e como patrimônio cultural e produzirá novas leituras do cotidiano

e do conhecimento acadêmico sobre esse tema.

Palavras-chave: patrimônio cultural alimentar; história da alimentação; museu; comida

Introdução

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O MHisCA (Museu Histórico e Cultural do Alimento) é um museu em processo

de formação como parte de um projeto de extensão da UFMA (Universidade Federal do

Maranhão). Nessa comunicação, serão expostos os problemas e as discussões em torno

do processo de criação do MHisCA. E, dentro dessa proposta, os conceitos adotados pela

equipe que envolvem o museu e suas variantes e possibilidades, as discussões em torno

do alimento e a cultura e, por fim, a relação do patrimônio, da identidade e da comida.

Nas considerações finais, serão tratadas as possiblidades futuras para a comunicação

desse conhecimento em exposições.

1 Criação do MHisCA

O MHisCA começou a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da

história da alimentação e a identificação de um vazio de material e acervo acadêmico

relevante para uma proposta museológica do alimento e que fosse disponível nas redes

ou mesmo em um museu físico. Inicialmente, foi elaborado um projeto de pesquisa,

registrado no sistema da UFMA – Universidade Federal do Maranhão, mas as pesquisas

não contemplavam a ideia da divulgação do conhecimento visual acerca da História da

Alimentação e, em vista disso, foi proposto o projeto de extensão na Pró-Reitoria de

Extensão e Cultura – PROEC da UFMA para a criação do Museu Histórico e Cultural do

Alimento. Em seguida, abriu-se um edital para bolsistas de extensão e o projeto do museu

ficou classificado em quinto lugar, recebendo, assim, uma bolsista para auxiliar no

processo de elaboração do plano museológico e das quatro primeiras exposições e para a

divulgação das ações do museu. Com o registro do projeto no sistema da UFMA (SIGAA)

foi realizada a primeira reunião em 18 de fevereiro com a coordenadora Profª. Drª Liliane

Faria Corrêa Pinto e a discente bolsista, Brennda Brasileiro da Silva Lucio, para

organizarem as reuniões seguintes. Enquanto isso, aguardávamos a aprovação do projeto

na câmara de extensão da universidade.

A partir desta data, a equipe composta pela historiadora Drª Liliane Faria Corrêa

Pinto – UFMA (Coord.), Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly, com formação

em letras e literatura comparada, o historiador Ms. Gilson Moura Henrique Junior, a

antropóloga Msª Caroline Césari de Oliveira, a pedagoga e estudante de História Brennda

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Brasileiro da Silva Lucio e o estudante de História Carlos Rogério da Silva Moura

passaram a se reunir regularmente todas as quintas-feiras, às 16h, horário de Brasília, em

plataforma virtual do Google Meet. Dessas reuniões foram estabelecidas alguma

diretrizes para a equipamento museal.

Como legislação de museus no Brasil exige que os equipamentos museológicos

tenham um plano que norteie suas atividades, denominado Plano Museológico (BRASIL,

2009)1, o projeto previa a elaboração desse documento. Concomitante às discussões dos

itens que compõem o Plano Museológico, estão sendo elaboradas as pesquisas para as

primeiras exposições.

Como missão do MHisCA, a equipe definiu:

Pesquisar, expor e salvaguardar os saberes e experiências associados ao

alimento, a partir de princípios interculturais e abordagens

interdisciplinares, sob os aspectos histórico, psicológico, nutricional,

medicinal, econômico, político, social, antropológico, artístico e

filosófico, projetando seus resultados para a educação e o turismo

(MHISCA, 2021).

E como visão, ficou estabelecido:

Ser reconhecido como um espaço físico-itinerante e virtual de

referência acerca dos estudos e das reflexões interdisciplinares sobre a

gastronomia, as práticas e os patrimônios alimentares por meio da arte,

da educação, da experiência, da difusão e da pesquisa (MHISCA,

2021).

E como objetivos, foram elencados:

• Pesquisar e difundir o conhecimento associado à alimentação;

• Oportunizar o conhecimento relacionado aos alimentos e suas

inúmeras vertentes e abordagens por meio de linguagens sensoriais;

• Compreender o alimento a partir de suas inúmeras possiblidades,

perspectivas e abordagens;

• Consolidar um acervo digital;

• Expor mecanismos e ferramentas para a compreensão do alimento e

de seus conhecimentos e saberes associados (MHISCA, 2021).

1 “Art. 44. É dever dos museus elaborar e implementar o Plano Museológico” (BRASIL, 2009).

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Como fruto de um trabalho interdisciplinar, interprofissional e democrático, foram

definidas as diretrizes principais do museu.

A partir daí, foi feita uma análise da realidade do museu por meio do método

Análise SWOT, considerando a situação atual e as possibilidades futuras a curto prazo.

Nesse sentido, identificamos os pontos fortes e fracos e as oportunidades e ameaças. Essa

leitura das características do equipamento em criação possibilitou direcionar melhor as

atividades dos programas, especialmente, o de exposições que está em processo de

elaboração.

Como pontos fortes foram observados:

A alimentação é um tema de interesse do público em geral;

Acervo com acesso livre online;

Exposições com acesso livre online;

Acervo em processo de coleta e em suporte virtual;

Acervo coletado fica armazenado na nuvem;

Existência de projetos de pesquisa em andamento;

Vocação para a interdisciplinaridade (MHISCA, 2021);

Como pontos fracos, identificamos:

Catalogação do acervo em processo de sistematização;

Processo de armazenagem do acervo em sistematização;

Ausência de site, apenas um blog;

Ausência de equipe que elabore sites (MHISCA, 2021).

Ainda dentro da análise SWOT, identificamos as oportunidades:

O tema do museu é rico e amplo;

O museu está associado a uma universidade federal;

É possível o uso das dependências do Campus de Codó para futuras

atividades do museu

Há uma redução de gastos pela virtualidade do museu;

A virtualidade das exposições e do acervo facilitam o contato do

público com a produção do museu;

A virtualidade possibilita maior divulgação das pesquisas do museu;

Vocação para a extensão (MHISCA, 2021).

E as ameaças elencadas foram: “Não há autonomia financeira; A equipe pequena

e depende de bolsas; Não há uma cozinha independente” (MHISCA, 2021).

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O que a equipe concluiu até o momento é que o MHisCA tem grande potencial e

está em uma situação razoavelmente confortável diante de outros equipamentos museais

porque sua proposta demanda esforço de pesquisa da equipe e de elaboração das

exposições, não necessitando de recursos financeiros para se manter. Porém, sem esses

recursos, o museu com o tempo perderá sua capacidade de se manter e de renovar, sendo

necessário, então, participar de editais de cultura que possam financiar os projetos do

museu, bem como buscar patrocinadores para as exposições.

As atividades da equipe agora estão voltadas para a elaboração dos programas,

dando ênfase ao programa de exposições a partir do conceito de musealização do

alimento.

2 Musealização do alimento

O alimento é um fator essencial para a vida e sua existência em si não tem relação

com os museus ou ainda não demanda uma exposição em um museu. Porém ao ser

tomado na perspectiva do processo de conhecimento e de valorização desse saber

associado ao alimentar-se, ao preparo e à significação pela cultura dos produtos ingeridos

e processados, o alimento pode ser musealizado. O conceito é discutido por Zbynek

Stránský que cria uma tríade em torno do objeto no museu, musealia, da qualidade de

musealização desse objeto, a musealidade, e do processo de inserção desse objeto para a

análise e a apropriação museal, a musealização (BRULON, 2017).

E dentro desse conjunto conceitual, a musealização do alimento tem como

parâmetro três aspectos. O primeiro é a seleção, que define em que medida o alimento

pode ser objeto de um museu, e nesse caso, isso acontece ao se identificar a sua relação

com a cultura e o conhecimento. O segundo é tesaurização que consiste na absorção do

objeto selecionado, o alimento, no acervo do museu, mudando sua perspectiva de um

objeto em si para um musealia, ou seja, passível de ser comunicado como parte de uma

coleção. Aqui, o conceito é mais facilmente aplicável ao se pensar um objeto físico, mas

com a proposta de um musealia imaterial, é na tomada de conhecimento desse objeto e

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de suas relações com a cultura que se estabelece a possibilidade da musealização. O

terceiro aspecto é a comunicação que acontece quando o conhecimento produzido sobre

objeto musealizado, nesse caso o alimento, é exposto para o público e se torna uma

exposição com significado (BRULON, 2017; IBRAM, s/d.).

Diante disso, a equipe do MHisCA iniciou o desenvolvimento das quatro

primeiras exposições do museu, sendo elas em suporte virtual. São duas de curta duração:

“Cinema Trash e a Comida” e “Cem anos de Semana de Arte Moderna, a antropofagia e

o alimento”. Ficou estabelecida uma exposição de média com o tema poesia e comida,

porém ainda sem uma definição propriamente dita e uma de longa com o tema “A

culinária como forma de resistência e resiliência dos povos”.

2.1 Cinema Trash e Comida

Nessa exposição, a comunicação propõe refletir sobre a relação da comida com os

filmes de terror/humor trash. Elencamos a trilogia dos Tomates Assassinos e The Stuff,

no Brasil, A Coisa, para desenvolvermos a pesquisa acerca da associação da comida com

o terror, numa leitura tosca do cinema de baixo custo e que passo do horror para o humor.

Partimos do conceito de que o alimento é sempre ressignificado pelas culturas e tomamos

o cinema como uma das expressões humana desses novos sentidos.

O cinema aborda a comida em suas produções que lidam com a vida e o trabalho

dos chefs de cozinha, a comida como parte da experiência do cotidiano e, muitas vezes,

o enredo da história gira em torno dos pratos ao invés do contrário. Já no cine trash, a

abordagem ocorre de forma absurda, mas também crítica, num contraposição entre a

normalidade do comer e a transgressão, e consequentemente revela outros significados

do alimento e dos sentidos do comer. O cinema trash é uma modalidade do horror que se

desenvolveu nos anos de 1970 e 1980 com filmes de baixo orçamento e que se dispunham

a rever a estética do terror, dando a ela um caráter satírico que valorizava o grotesco e

dessacralizava o mal. A comida como personagem nesses enredos perverte a expectativa

da narrativa porque perturba a ordem natural que está assentada numa concepção cultural

humana de que a comida representa a vida e no trash ela se revolta e resolve comer ou

matar os comensais. A exposição o “O Cinema Trash e a Comida” propõe comunicar a

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fundação de um diálogo consciente entre o horror e o humor no cinema trash por meio

do ato de comer ou de ser comido pela comida, salientando os significados sagrados da

comida, a partir de um olhar bakhtiniano, e que pervertê-los cria um espaço para o riso.

A história dos filmes escolhidos “O ataque dos tomates assassinos”, “O retorno

dos tomates assassinos” e “Os tomates assassinos atacam a França” e “A Coisa” (“The

Stuff”) tem um enlace semelhante: são comidas, o tomate e o marshmallow, que se voltam

contra os humanos e começam a comê-los. Os motivos que os transformam em criaturas

ameaçadoras são diferentes, no primeiro, os tomates são modificados por meio de

químicas prejudiciais, e no segundo, a ameaça é externa, o marshmallow é uma pasta

extra terrestre. Ambas as comidas querem dominar o mundo. A primeira, os tomates, tem

como motivação o fato de se sentirem humilhados por terem sido comidos a vida toda,

crus, em molhos, em forma de ketchup, etc., já a segunda, não fala, apenas come os

comensais por dentro, numa analogia com a má alimentação estadunidense, fundada

principalmente numa propaganda que vende o pior para o consumo sem escrúpulos.

Ambos os filmes lidam com uma estética militar e uma ironia com a guerra fria e a

tecnologia, dizendo mais sobre o período em que foram criados que sobre os enredos.

A exposição será composta por trechos dos filmes com suas análises em pequenos

vídeos, dispostos em um suporte de mídia digital, provavelmente, o blog do MHisCA.

Abaixo, estão dispostas dois quadro com imagens comparativas entre os cartazes dos

primeiros filmes da trilogia, associadas a imagens de tomates, numa perspectiva de

reproduzir a sensação de ironia dos filmes.

Quadro 1

Comparação visual do cartaz do primeiro filme da trilogia dos tomates assassinos e um tomate

Foto 1: O Ataque dos Tomates Assassinos Foto 2: Tomate sob uma mesa rústica

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Fonte:

https://br.web.img3.acsta.net/pictures/15/04/29/19/

23/173745.jpg

Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/tomate-

vegetais-alimentos-frescos-2282101/

Quadro 2

Comparação do cartaz do segundo filme da trilogia dos tomates assassinos e tomates em lata

Foto 3: Cartaz do “Retorno dos

Tomates Assassinos”

Foto 4: Tomate em lata.

Fonte:

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/p

t/6/6a/Return_of_the_Killer_Tomatoes.j

pg

Fonte: https://www.cozinhatecnica.com/wp-

content/uploads/2016/10/tomate-em-lata-1-480x270.jpg

2.2 Poesia e Comida: “da semente à semente” e “quando a comida vira arte e a arte

vira comida”.

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A exposição de média duração terá o objetivo de difundir acervos, obras literárias,

artes plásticas, poesias e outras formas de expressão artísticas que possuem o alimento

como objeto de reflexão. Nesse sentido, intenta-se a construção de um acervo digital

robusto com toda a sorte de obras acerca do alimento e do alimentar-se, nas suas mais

diversas perspectivas analíticas. Para isso, o MHisCA associou-se ao MUNAP (Museu

Nacional da Poesia) para a elaboração dessa exposição cujo tema definido foi “Poesia e

Comida”.

As discussões acerca das possiblidades de comunicação desse tema giraram em

torno dos diversos conceitos que fundamentam a proposta. A princípio, foi desenvolvida

uma chuvas de ideias e chegamos a duas propostas, “Da semente à semente” e “Quando

a comida vira arte e a arte vira comida”, sendo a primeira a escolhida para a exposição.

Dessa sugestão, saiu a ideia de se trabalhar a laranja e seu processo de crescimento, uso

e reaproveitamento, dentro da conceituação da semente à semente. Já foram definidas as

etapas da exposição e os suportes para cada uma delas está em estudo. As sementes já

foram selecionadas, a pesquisa em torno do uso e do aproveitamento das cascas já está

em andamento, com a coleta e o armazenamento de cascas da fruta para a elaboração de

um objeto.

Foto 5

Cascas de laranjas

Foto: Regina Mello, MUNAP

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A segunda proposta foi arquivada como parte do programa de exposições para ser

desenvolvida em outro momento. Compondo a formação do acervo, ela se propõe a

comunicar uma relação da poesia com a comida, numa perspectiva imagética do texto

como a poesia concreta de Fábio Bahia, que escreve seus versos em linhas que desenham

uma xícara e um coração de fumaça sobre ela (BAHIA, 2019) ou ainda o poema de Pablo

Neruda, “Ode à cebola”, em contraposição à “Natureza Morta com Prato de Cebolas”, de

1889, Vincent Van Gogh.

Neruda exalta a cebola que “ao alcance / das mãos do povo / regada com azeite /

polvilhada / com um pouco de sal, / matas a fome” e “e ao cortar-te / a faca na cozinha /

sobe a única / lágrima sem pena. / Fizeste-nos chorar sem nos afligir” (NERUDA, 1954).

Foto 6

Natureza Morta com Prato de Cebolas, de Vincent Van Gogh

O jogo entre imagens, poesias e comidas serão exploradas nessa exposição que acontecerá

no próximo ano e cuja pesquisa ainda está em desenvolvimento.

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Van_Gogh_-

_Stillleben_mit_Zeichenbrett%2C_Pfeife%2C_Zwiebeln_und_Siegellack.jpeg

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2.3 A culinária como forma de resistência e resiliência dos povos

As comunidades resgatam a memória do passado, estruturam a sua experiência

temporalmente e dão sentido aos acontecimentos por meio das suas narrativas orais. O

alimento, nesses enredos, engendra costumes e os modos de ser e fazer desses grupos,

entrelaçados com a construção e a continuidade dessas comunidades. A produção desses

saberes compartilhados possibilita a reflexão sobre a vida comunitária, sua herança

histórica e seus aspectos antropológicos. Sobre isso, afirma Canesqui (1988) que: “Não é

recente, no Brasil, o esforço antropológico de focalizar elementos culturais e ideológicos

que presidem as práticas de consumo alimentar” (CANESQUI, 1988). Nesse sentido, o

alimentar-se aparece como uma forma de resiliência cultural, já que através da

alimentação temos a manutenção de temperos, gostos, ingredientes, formas de cultivo e

usos da terra, que acabam influenciando não só no “o quê” se come, mas também no

“como” se come e, principalmente, em como a comida é preparada, o que inclui as

ferramentas e técnicas necessárias ao seu preparo, e também como é consumida.

Os hábitos alimentares estão condicionados ao acesso aos ingredientes e, portanto,

à existência deles e às características dos recursos naturais locais. Diante disso, a comida

e a falta dela estão intimamente associadas à disponibilidade de recursos, às condições

sociais e ecológicas e podem implicar tanto na manutenção de formas tradicionais, como

na incorporação de modismos, tais como o advento dos fast foods.

Na sua relação com a memória, o alimento tem sido amplamente utilizado e

reconhecido mediante seus símbolos diacríticos, ou seja, no que o distingue das formas

de comer de outras coletividades e, assim, afirma a potencialidade da sua dimensão de

patrimônio cultural. Corroborando com essa assertiva, já temos registrados em nível

nacional alguns saberes ligados ao fazer de alimentos e a formas de cultivo, reconhecidos

como bens culturais relevantes pelo IPHAN. São eles: o “Ofício das Baianas de Acarajé”,

o “Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro”, a “Produção Tradicional e práticas

socioculturais associadas à Cajuína no Piauí”, as “Tradições Doceiras da Região de

Pelotas e Antiga Pelotas – Morro Redondo, Ituruçu, Capão do Leão e Arroio do Padre”,

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o “Sistema Agrícola Tradicional de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira” e o

“Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas, nas Regiões do Serro e das Serras da

Canastra e do Salitre” (IPHAN, 2021).

Nessa perspectiva, para essa exposição, definida como de longa duração, foram

pensados cinco produtos alimentares que possam representar tais aspectos. Para além do

patrimônio cultural alimentar, as comidas elencadas tem como princípio agregar os

diversos processos de resistência e resiliência na história brasileira. Selecionamos a

mandioca, o vatapá, o quiabo, o coco e o cachorro-quente que, cada um a sua medida,

representam parte dessa memória culinária no ambiente rural e/ou urbano.

A mandioca é uma tradição alimentar que caracteriza a cultura indígena e foi

absorvida pela sociedade brasileira como parte essencial de sua alimentação básica,

porém os processos de preparo e elaboração dessas farinhas ainda estão presentes na zona

rural como saberes que remontam o passado pré-colonial. Os pratos derivados da

mandioca e seus subprodutos são inúmeros e vão desde a mandioca cozida propriamente

dita aos bolos e pães preparados com a massa da mandioca em suas diversas etapas de

processamento. Segundo Câmara Cascudo (1967), “O beiju é da mesma massa da farinha

de mandioca. A tapioca é da goma, retirada por decantação, da primeira água da

manipueira, na primeira operação com a mandioca ralada”.

Dessas etapas, temos os beijus, as tapiocas, o polvilho que, segundo Cascudo, vão

ser moldados pelas mãos das mulheres portuguesas e se transformarão em bolos de

mandioca, pão de queijo, pães, doces, etc. (CASCUDO, 1967). Da farinha torrada, temos

sua larga utilização no preparo de caldos e comidas pastosas como o tutu de feijão ou o

pirão de peixe e frango.

Para comunicar esse conhecimento, lançaremos mão de uma pesquisa realizada

pelos alunos da disciplina de Tópicos da Pesquisa Histórica I – História da Alimentação,

do curso de Licenciatura em Ciências Humanas / História, da UFMA/Codó, no ano de

2016.2 Eles acompanharam o processo desde a colheita da mandioca até o preparo da

farinha em uma Casa de Farinha da localidade de Bacabinha, no município de Codó, no

2 CASTRO NETA, Antonia Tavares Gama de; FAUSTINO, Natanael Araújo, OLIVEIRAS, Nathália

Cristielle Mouzinho de. Produção de farinha no povoado Bacabinha do município de Codó/Maranhão.

Trabalho apresentado para a obtenção de nota dentro da disciplina de Tópicos Espaciais da Pesquisa de

História I – História da Alimentação. Universidade Federal do Maranhão, Campus de Codó, 2016.

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Maranhão. A pesquisa ainda vai buscar entre as tradições de grupos indígenas as técnicas

utilizadas por eles para o preparo da mandioca e, a partir desse estudo, podemos

compreender heranças relacionadas ao vegetal e suas apropriações na culinária brasileira.

A comunicação desse saber deve ser apresentado em imagens dos modos de fazer

associados a pequenos vídeos com o preparo das receitas atuais e antigas.

O vatapá, que já é uma mistura, tem um caráter de resiliência africana em suas

apropriações, mas está presente em receitas desde o século XIX, como no Cozinheiro

Imperial. Nele, há vatapás de vários tipos como o de bacalhau e o de carne de porco,

sendo preparados com “toucinho derretido, tomates, cebolas, salsa, alho, tudo muito bem

picado, gengibre raspado, cardamomo, louro, pimenta da índia e bastante da cumari” (R.

C. M., p. 111, 1887). Acrescenta-se farinha de amendoim torrado e se utiliza a farinha de

mandioca fina para engrossar o caldo. A mistura é temperada com o azeite de dendê. O

vatapá é parte do Acarajé e isso o caracteriza como uma comida sagrada do Candomblé,

religião de matriz africana cuja iguaria e seu ofício são uma forma de resistência da

tradição afrodescendente no Brasil. Para além do vatapá do acarajé, a exposição deve

explorar as receitas com frango, frutos do mar e peixes como sugere o “Cozinheiro

Imperial”.

O quiabo chega ao Brasil por mãos africanas ou árabes e se incorpora à

alimentação em pratos que estão dispersos em todo o território nacional (CASCUDO,

1967). As receitas como o frango com quiabo, o caruru, o quiabo com o cuxá tem forma

e sabor semelhantes a pratos da culinária egípcia como o quiabo com carne e a moloheya.

É uma forma de resistência e resiliência dos povos negros porque, ao que tudo indica,

reproduz sabores da terra natal desses homens e mulheres e foi incorporado à culinária

das fazendas, fazendo com que os senhores comessem as comidas que os cativos tinham

o costume de saborear.

O coco, conhecido como coco da praia, coco verde ou coco da Bahia, é asiático e

chegou ao Brasil trazido pelos portugueses no século XVI (SIQUEIRA, et. all., 2002).

Adaptou-se completamente ao litoral e seus subprodutos compõem muitas receitas doces

e salgadas. Entre as doces, observamos que ele substitui as castanhas e amêndoas

europeias e entre as salgadas, engrossas molhos e caldos, além de temperar carnes e

peixes (CASCUDO, 2014). Mais tarde, no século XX, foram introduzidas outras espécies

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de coco mais rentáveis e ele é produzido em larga escala no nordeste e consumido em

todo o território nacional. O leite de coco compõe receitas tradicionais dos diversos

estados, especialmente, do nordeste brasileiro, mas os doces que levam coco, como a

cocada, o quindim, a canjica temperada com coco, o amor em pedaços, entre outros são

difundidos em todo o Brasil. O alimento faz parte das culinárias brasileiras em diversas

iguarias diferentes como prato principal, tempero ou sobremesa.

Por fim, mas não menos importante, o cachorro-quente que é um sanduíche

considerado pouco nutritivo e símbolo da dominação estadunidense dos modos

alimentares. Porém, no Brasil, ele se torna um sanduíche repleto de ingredientes que se

caracteriza por transgredir o seu sentido original. Os cachorros-quentes recebem novos

itens como queijos, vinagretes, purê de batata, molho de carne, cenoura ralada, batalha

palha, milho, passa de uva, ervilha, molhos de alho, maionese e os tradicionais mostarda

e ketchup. Essa mistura, servida em carrinhos de rua, é a comida tradicional do fim de

noite em várias cidades brasileiras. Há variações desses ingredientes de estado para

estado, mas o sanduíche brasileiro é muito mais completo e nutritivo que o original

estadunidense ou alemão que são compostos pelo pão e a salsicha, regados

moderadamente a mostarda e ketchup. Incorporado também nas festividades infantis e

nas festas juninas (MIESSA, 2013), o cachorro-quente que deveria se apresentar como

uma desconstrução das tradições alimentares brasileiras acaba por representar parte dessa

cozinha porque agrega a variedade própria do paladar brasileiro ao sanduíche

tradicionalmente simples.

3 Considerações finais

O MHisCA está em processo de organização e formulação e suas atividades ainda

não foram abertas ao público. Isso ocorrerá com a disponibilização da primeira exposição,

provavelmente, em setembro de 2021. Durante esse processo de planejamento e

elaboração das exposições, a equipe observou a potencialidade do objeto do museu. O

alimento está presente em todas as culturas e abrange conhecimentos que perpassam a

cultura, a sociedade, a ciência e a natureza.

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A complexidade da relação do homem com sua comida está presente nos mais

diversos aspectos tais como o histórico, o psicológico, o nutricional, o medicinal, o

econômico, o político, o social, o antropológico, o artístico e o filosófico, como afirma a

missão do MHisCA. Na mesma medida, há uma enorme complexidade na relação entre

as culturas e seus patrimônios alimentares, culminando no reconhecimento desses saberes

pelos órgão de proteção ao patrimônio cultural.

Por fim, o alimento como objeto museal possibilita uma infinidade de composição

de acervos e, consequentemente, de comunicação desse conhecimento para o público, o

que fornece ao MHisCA diversas abordagens visuais, auditivas, gustativas e sensoriais

para serem desenvolvidas em exposições com formas, modalidades, ferramentas e

expressões diferenciadas.

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