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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MEU PARTO, MINHAS REGRAS: A CONSTRUÇÃO DO COMUM NA
REDE PARTO DO PRINCÍPIO
Clarissa Carvalho1
Resumo: O presente trabalho faz um recorte de dados etnográficos produzidos durante pesquisa de
doutorado, em andamento na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e debate tais
dados à luz dos conceitos de “comum” e “multidão”, de Antonio Negri (2003). Tais conceitos são
aqui elencados a fim de melhor compreender o ativismo em prol da humanização do parto e do
nascimento, empreendido por mulheres que fazem parte da Rede Parto do Princípio (RPP). Analisa-
se de que formas essas mulheres constroem um novo modelo de ação social, que parece se
aproximar da categoria “multidão” (NEGRI, 2003), ao buscar a construção de um comum, através
da articulação de singularidades. Busca-se entender como se dá o processo discursivo de
refinamento e construção das demandas a partir das experiências pessoais de cada membra; como se
articulam esses agenciamentos sociotécnicos no ciberespaço de modo a construir causas comuns às
membras da RPP. Dessa forma, busca-se entender, na RPP, como discursivamente se constrói a
“vontade política” (MAIA, 2014), pensada aqui não como “grande política”, mas como o processo
de reconhecimento de questões, nomeação dessas questões, problematização do que antes era
naturalizado e geração de legitimidade dessas questões. Tal processo ocorre por meio de práticas
discursivas contínuas (principalmente) nos ambientes de internet da RPP, a partir das experiências
pessoais de cada mulher com questões de gravidez e parto.
Palavras-chave: Humanização do parto. Ciberativismo. Rede Parto do Princípio
Os movimentos sociais pela humanização do parto
Parir de cócoras e/ou na banheira, em casa, na companhia de companheiro/a e filhos/as, na
presença de animais domésticos, com música relaxante e incensos, sem uso de analgesia e outros
fármacos, assistida por enfermeira obstétrica ou obstetriz. Essas são algumas imagens que
permeiam o senso comum quanto ao significado do termo “parto humanizado”. Embora esses
procedimentos e modos de organizar a cena de parto possam, sim, estar presentes em um parto
humanizado, é importante frisar que o mesmo não se resume a um ou a uma combinação de alguns
desses. Em outras palavras, não existe um “parto humanizado” per si, mas sim um processo de
humanização da gravidez e parto que pode culminar em escolhas que incluem as imagens que
iniciam esse tópico.
Por parto humanizado entende-se, a grosso modo, aquele com o mínimo de intervenções
médicas e farmacológicas possível ou, então, o que respeita o tempo físico e psíquico de
1 Doutoranda em Comunicação (PUC-RJ); Mestra em Antropologia (UFPI/2012); Bacharel em Comunicação Social –
Jornalismo (UFPI/2003); Professora do curso de Jornalismo da UESPI, em Teresina-PI; Líder do Grupo de Pesquisa
ComGênero/UESPI – Comunicação, corpo, gênero e sexualidade. E-mail: [email protected]
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cada mulher para parir, em ambiente respeitoso e acolhedor e com seu consentimento
informado para todo e qualquer procedimento realizado (CARNEIRO, 2011, p. 13).
Da conceituação feita pela pesquisadora do MHPN, depreende-se a negociação com as práticas
farmacológicas do saber médico tradicional e a participação ativa da mulher no processo de
parturição.
O parto humanizado não é uma técnica de parto. Não é o mesmo que parto domiciliar, e
também não é o mesmo que parto natural. Independente do local ou das intervenções, o
parto pode ser humanizado. Assim como pode haver parto em casa ou parto natural que não
é humanizado. Complicado? O parto humanizado é um conceito, onde a mulher é ouvida,
seu tempo, o tempo do bebê e os desejos da mulher são ouvidos e respeitados. E no caso de
algum desejo da mulher que não puder ser atendido, os profissionais que estão assistindo-a
irão explicar o porquê, qual intervenção é necessária e ela dará seu consentimento. (...) O
parto humanizado pode acontecer em um hospital, casa de parto ou na casa da parturiente,
com equipe que assista a mulher com base em evidências científicas, sem terrorismos
desnecessários. O ´parto humanizado pode ser natural ou pode precisar de intervenções, a
pedido da mulher (como a analgesia por exemplo) ou por indicação do profissional que está
assistindo o parto (LEAL, Gisele).2
Para entender toda a multiplicidade semântica do termo “parto humanizado”, é preciso
esclarecer primeiro que se trata não de um modo ou técnica definida de parir, mas de uma forma de
entender o corpo feminino e seus processos de gestação e parto. Assim, fala-se em “humanização
do parto e do nascimento” para caracterizar um tipo de assistência à mulher e ao bebê, mais que em
um tipo de parto especificamente.
A humanização do parto e do nascimento se assenta no seguinte tripé: protagonismo feminino;
atendimento à gravidez e parto por equipe multidisciplinar e procedimentos fundamentados na
Medicina Baseada em Evidências (MBE).3
Assim, em que pesem as representações do parto humanizado no senso comum, associando-
o a um retorno ao natural e/ou um saudosismo do tempo de nossas avós, o movimento do parto
humanizado é sustentado por uma racionalidade científica. Em constante embate com a obstetrícia
tradicional, entendida pelos adeptos da humanização do parto como tecnocrática, iatrocêntrica,
etiocêntrica e hospitalocêntrica4, a Medicina Baseada em Evidências (MBE) é que dá sustentação às
práticas de humanização do parto e do nascimento.
A fim de esboçar o ideário do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento,
Tornquist (2002) recorre ao ideário do Parto sem Dor (SALEM, 1983) e também à Ecologia,
2 Blog www.vilamamifera.com/mulheresempoderadas 3 Notas do diário de campo, registradas durante curso de formação de doulas, em janeiro de 2015. 4 Respectivamente, centrada na figura do médico, centrada na patologia e que privilegia os hospitais como centros de promoção da saúde.
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movimentos dos quais herdou seus valores. Assim, o MHPN defende a participação do pai ou
acompanhante no processo do parto; a valorização do casal igualitário; a valorização da natureza; a
crítica à medicalização da saúde; a inspiração em métodos e técnicas não-ocidentais de cuidados
com o corpo e saúde; a ênfase na dimensão sexual do parto; e a incorporação de outros profissionais
(obstetrizes, enfermeiras obstétricas, doulas) à equipe de atendimento, uma vez que médicos/as são
vistos como símbolos máximos do poder/saber biomédico intervencionista que é alvo de crítica.
Ao etnografar grupos de apoio ao parto humanizado, Rosamaria Carneiro (2011) encontrou
divergências quanto à necessidade ou não de algumas práticas. Assim, a pesquisadora entende a
proposta do MHPN como “guarda-chuva”, com pontos em comum e alguns divergentes, “quanto a
procedimentos, locais para parir e tempo de espera para dirigir-se ao hospital” (p. 59).
Nos grupos estudados, as propostas de parto humanizado não se dirigem diretamente contra
a cesárea, mas contra banalização de intervenções (de forma geral) das quais a cesárea
desnecessária (desnecesárea5) é o ápice. “O ponto de inflexão do discurso do parto humanizado (...)
é muito mais a regra da cesárea desnecessária e o uso abusivo da tecnologia e da farmacologia”
(CARNEIRO, 2011, p.19). Reconhece-se o saber médico e científico, mas há uma oposição ao
domínio da tecnologia, pois entende-se que o parto é um acontecimento não apenas corporal, mas
também psíquico, emocional, familiar, cultural, sexual e espiritual.
Rede Parto do Princípio
A Rede Parto do Princípio (RPP) foi criada em dezembro de 2005, logo após a II
Conferência Internacional pela Humanização do Parto e do Nascimento (Congresso +20+05),
realizado pela Rede de Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa). Um grupo de mulheres
que participavam da ReHuNa decidiu se desmembrar em uma rede, a partir da necessidade de
partilhar conhecimentos entre usuárias, cidadãs comuns.
O dia 08 de março de 2006 é considerado pelos membros do grupo como a data da
instituição da Rede, pois corresponde à inauguração do site. A escolha da inauguração no Dia
Internacional da Mulher aponta para uma intenção de se aproximar das reivindicações mundiais em
5 Termo êmico usado para designar a cesárea realizada sem indicação real, segundo os fundamentos da MBE.
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nome do reconhecimento de um status social inferior relegado às mulheres historicamente. A sessão
“Quem Somos” do site traz informações sobre os objetivos e formas de atuação da RPP:
A Parto do Princípio é uma rede de mulheres usuárias do sistema de saúde brasileiro que
luta pela promoção da autonomia das mulheres, tendo como principal eixo de atuação a
defesa e a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, em especial no que se
refere à maternidade consciente. Atua na articulação de mulheres nos planos local, regional
e nacional por meios virtuais (redes sociais e e-mails) e presenciais. A rede se constitui de
forma democrática e tem caráter suprapartidário, de modo a estimular o debate entre as
participantes de modo horizontal e aberto. Apoia a auto-organização dos grupos regionais e
a articulação com outros movimentos sociais, o que favorece a elaboração de demandas
locais e regionais bem como a denúncia de conjunturas que firam direitos das mulheres.
Assim, fortalecem-se a participação politica das mulheres e sua atuação como cidadãs a
partir de suas realidades (www.partodoprincipio.com.br). (grifo nosso)
Além do site, a RPP conta com perfil no Twitter, listas de discussão, fanpage e grupo
fechado no Facebook. O grupo fechado no Facebook é aberto a novas adesões: basta solicitar a
entrada através de um perfil pessoal. Alguns e-mails foram criados para responder a dúvidas de
temas específicos de usuárias, como o [email protected],
[email protected], além do e-mail geral
Percebe-se, desde o início das atividades do grupo, a importância do uso do ciberespaço para
a sustentação de suas práticas, articulação e exposição de ideias, bem como organização de
atividades. Assim, busca-se entender essa “nova forma de ação social” do grupo, que se apoia nos
ambientes de internet.
A partir de entrevistas com mulheres que pertencem à RPP, buscou-se entender o percurso
que as levou ao ativismo em prol do parto humanizado, ou seja, de que formas, a partir de suas
experiências pessoais com gravidez e parto, essas mulheres se utilizaram das conexões facilitadas
pela internet e, mais especificamente, pela RPP, para compartilhar dúvidas, informações,
questionamentos, que culminaram em mudanças na forma de perceber gravidez e parto. Como, a
partir disso, essas mulheres constroem um território comum, que justifica a ação política. Para a
produção deste artigo, foi feito um recorte das entrevistas realizadas desde 2014, com mais de 40
mulheres que participam da RPP.
Ciberativismo e construção do comum
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A invenção do protocolo www (world wide web) abriu possibilidades de manifestação de
descontentamentos de grupos até então com pouca ou nenhuma visibilidade nas mídias tradicionais.
Ao propiciar a reunião de material antes segmentado em reuniões de grupo e possibilitar a
constituição de novos movimentos das guerras em rede, “as redes de vida social confundiram-se
com a luta biopolítica no ciberespaço” (MALINI; ANTOUN, 2013, p.55).
Rousiley Maia (2014) destaca que, na sociedade contemporânea, emergem variadas
possibilidades democráticas de representação na esfera civil, a fim de defender interesses e anseios
de grupos étnicos ou de minorias de gênero ou sexuais, entre outros.
(...)novos vocabulários precisam ser criados, a fim de problematizar o que antes não era
reconhecido como problema, no contexto social. (...) Particularmente em casos em que não
há direitos garantidos, algo moralmente relevante, porém ainda não tematizado, precisa ser
mostrado, revelado como injustiça enraizada nas regras de convivência ou nos arranjos
institucionais mais gerais da sociedade (MAIA, 2014,p. 83).
Um exemplo da criação de novos vocábulos, da tematização de um problema que antes nem
sequer era reconhecido como tal, é a questão da violência obstétrica. O termo, cunhado no meio
acadêmico em 2014, pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr.
Rogelio Pérez D’Gregorio, em editorial do Journal of Gynechology and Obstetrics, nomeia um tipo
de violência que passa, ou passava, despercebido “devido ao entendimento cultural do corpo
feminino como destinado ao sofrimento no momento do parto, o que justifica diversas práticas
médicas que vieram a reboque da hospitalização do parto” (CARVALHO, 2015).
Embora esse tipo de violência já seja reconhecido em lei6 no Estado venezuelano desde
2013, no Brasil, os debates sobre o assunto têm acontecido principalmente no âmbito do
Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento. A informante 1, natural de João Pessoa-
PB, que teve parto vaginal hospitalar, de seu primeiro filho, relatou:
Depois que o Miguel nasceu, eu só conseguia chorar. Logo disseram que era depressão pós-parto (...)
Todo mundo dizia que era pra eu tá feliz, meu filho era saudável... Meu marido tava comigo na hora
do parto e não achou nada demais na forma como o médico mandou me segurar pra fazer o corte
[episiotomia]. (...) Só depois que eu entendi que aquilo era violência. A grosseria daquela enfermeira,
o corte que nem precisava(..) e os empurrões em cima da minha barriga [Manobra de Kristeller].
Tudo isso era violência mas eu nem entendia.
6 Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a uma vida libre de violência.
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A nomeação e publicização de casos de violência obstétrica tem acontecido principalmente
em redes sociais e blogs maternos, o que não só permite o entendimento dessa forma de violência
por parte de mulheres, como também começa a chamar a atenção de instituições públicas. Prova
disso é que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou, em 2014, uma cartilha educativa
sobre assunto, elaborada pelo seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da
Mulher, pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e pela Ong Artemis,
Podemos, então, pensar nas redes sociais como espaços importantes de ativismo em prol dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ciberativismo, netativismo, internet activism são
alguns dos termos criados para dar conta do fenômeno de apropriação do ciberespaço para a defesa
de causas ou resistência a injustiças sociais. É importante frisar, no entanto, que não se trata de mera
incorporação da internet aos processos comunicativos do ativismo, mas sim da “forma como essa
tecnologia comunicativa transformou substancialmente o próprio ativismo e os conceitos de
participação, espaço democrático, identidade coletiva e estratégia política” (DI FELICE, 2012,
p.35).
Wilson Gomes (2005) defende que a conversação civil ocorrida em ambientes de internet,
mesmo que não deliberativa, se mostra como potência para novas formas de construção democrática
de grupos minoritários.
Desta forma, poderíamos entender a democracia, não como um processo de tomada de
decisão, e, sim, como “forma de vida”, ou seja, como sendo baseada no aumento de certas
características da existência individual e social. No espaço dialógico da realidade virtual da
Internet, a sociedade se revelaria “um corpo multivozes metamorfoseando-se”, implicando
para a democracia, real ou virtual, a necessidade de sustentar a interação ou a solidariedade
das “vozes” do seu corpo e, ao mesmo tempo, de respeitar sua heterogeneidade (MALINI;
ANTOUN, 2013, p. 78-79).
Antonio Negri (2003) chama a atenção para a necessidade de “explorar novas formas
de democracia, formas que sejam não-representativas ou diversamente representativas, descobrir
uma democracia adequada aos nossos tempos” (p.124). Mas que tempos são esses? Se
reconhecermos que há uma crise na democracia representativa e que as formas de resistência vêm
se modificando, que arcabouço teórico podemos utilizar para pensar esses fenômenos?
É a partir do pensamento de Hardt e Negri (2001, 2003, 2014, 2016) que tentamos nos
lançar a essa tarefa. Ao analisar a transição histórica da sociedade disciplinar para a sociedade de
controle, os autores enfatizam que, na última, os mecanismos de comando se tornam cada vez mais
interiorizados nos indivíduos, “distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos” (HARDT; NEGRI,
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2001, p.42). Diferentemente da sociedade disciplinar descrita por Foucault (2012), “esse controle
estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e
flutuantes” (p.43).
Esse novo paradigma de poder tem natureza biopolítica. Ao forjar o termo biopolítica,
Foucault designava uma modalidade de exercício do poder sobre a vida, centrada principalmente
nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, que passam a fazer parte dos cálculos
explícitos do poder. Peter Pál Pelbart (2011) chama a atenção para a inversão semântica, conceitual
e política desse termo por parte de Michael Hardt, Antonio Negri e outros teóricos, que propõem a
biopolítica não mais como poder sobre a vida, mas como potência da vida, como potência de
resistir e produzir subjetividades.
A biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade
refletida tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução,
sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos
biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e
subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral.
Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo (PÁL PELBART, 2011, p.24).
E é justamente a partir do entendimento da biopolítica como potência na sociedade de
controle que Hardt e Negri propõem o conceito de Império para nomear e definir o ordenamento
global contemporâneo. Diferente do imperialismo, o conceito de Império refere-se a uma nova
estrutura de comando que envolve “não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social
da sociedade mas também o próprio bios social” (HARDT; NEGRI, 2001, p.44). O poder do
Império não é exercido verticalmente; sua lógica é fluida, esparramada, em rede, entrelaçada ao
tecido social e à sua heterogeneidade, articulando singularidades.
Ao definir o Império como um regime biopolítico, reconhece-se nele um poder sobre a vida
de dimensões inéditas, mas também – e por isso mesmo – revela-se uma potência de vida também
inédita. “A esse corpo biopolítico coletivo, em seu misto de inteligência, conhecimento, afeto,
desejo, os autores [Hardt e Negri] deram o nome de multidão” (PÁL PELBART, 2011, p. 83).
O termo multidão, tradicionalmente usado de maneira pejorativa, como agregado disforme a
ser dominado, é apresentado, com outra perspectiva, por Hardt e Negri, diante da dissolução do
conceito de povo na era do Império. Ao contrário do povo, a multidão prescinde da contratualidade
e da representação. Enquanto o povo é representado como uma unidade, a multidão congrega
multiplicidade e singularidades não representáveis.
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Podemos definir multidão como um conjunto de singularidades cooperantes que se
apresentam como uma rede, na qual as singularidades se definem em suas relações umas com as
outras. Não se trata de um processo identitário nem de simples exaltação das diferenças, mas do
“reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir ‘algo comum’, isto é, ‘um
comum’, sempre que ele seja entendido como proliferação de vontades criativas, relações ou
formas associativas diferentes” (NEGRI, 2003, p.148).
É uma nova imagem de sujeito político que é proposta aqui. As singularidades são
concebidas como produção das diferenças. A constituição do comum se dá no processo de
cooperação e individuação, no encontro das diferenças: “é esta participação, esta capacidade de
assumir pelas próprias mãos as condições biopolíticas da própria existência, do próprio modo de
trabalhar” (NEGRI, s.d.).
A partir desse ponto de vista, podemos pensar multidão como potência democrática, e
democracia como a forma através da qual a multidão, articulando singularidades, produz a vontade
comum. O comum, nas palavras de Peter Pál Pelbart (2011, p.30), como “potência de vida da
multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de
capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de
cooperação”.
No espaço da comunicação, a propriedade comum é possibilitada pela informática e
pela telemática, que permitem que as singularidades exerçam esse espaço comum, construindo
novas formas de organização dos sujeitos políticos, capazes de expressar potência e vontade
política. Henrique Antoun (2001) levanta a questão das mudanças no espaço democrático a partir do
desenvolvimentos de comunidades facilitadas pelas novas tecnologias e das organizações em rede
que elas potencializam: “a multidão encontra na rede um meio privilegiado de exprimir sua potência
de ação, fazendo seus movimentos de luta através da construção de redes” (p. 23).
A informante 2, de São Paulo-SP, foi submetida a uma cesárea, no primeiro parto,
devido a uma “desaceleração no trabalho de parto”, segundo foi informada pela equipe. Passado
algum tempo, começou a pesquisar sobre humanização do parto; primeiro, a partir de “um livro que
eu vi por acaso em uma livraria”, e depois na internet.
O que mudou mesmo o meu olhar foi quando comecei a conversar na lista [de discussão]. (...) Muitas
mulheres tinham histórias parecidas com a minha...Eu sabia desde o início que queria parto normal, é
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o natural, né? Meu médico sabia, desde a primeira consulta. Ele já era meu ginecologista antes. Ele
sabia, e mesmo assim ele não respeitou. Ele só dizia que ia ser normal, e no final acabei na cesárea.
(...)Eu dei a sorte de achar esse livro, porque eu pensava que parto humanizado era coisa de gente
doida, sabe? Tipo, eu não queria ter filho em casa, Deus me livre! (...) Mas aí com o livro eu vi que
era outras coisas, e quando eu fui pra lista e pros grupos e comecei a conversar, parece que abriu um
portal, uma coisa assim que agora eu finalmente entendi. (...) Pouco tempo depois eu tava grávida de
novo. E dessa vez eu sabia que tinha que lutar pelo meu parto.
Depois de passar por um VBAC hospitalar, a Informante 2 começou a atuar cada vez mais em prol
da humanização do parto. Além de usar as redes sociais para disseminar informações a respeito, ela
também dá depoimentos em rodas de gestantes,
porque o que mudou pra mim foi ouvir outras mulheres, então eu quero contar que é
possível, sim, mas tem que brigar muito.
Como exemplificado nas falas acima, a infraestrutura rizomática das redes telemáticas
favorece não só o encontro e a publicização de informações para a organização de ações, mas
também a vocalização de experiências pessoais, aspirações, opiniões e perspectivas individuais. De
acordo com Maia (2014), a partir do refinamento da pluralidade de visões e necessidades, em um
processo discursivo contínuo, é possível construir os pontos comuns e dar visibilidade para questões
até então negligenciadas, de modo a exercer influência contra ou dentro do Estado.
O mundo do comum brota da colaboração das singularidades da multidão em suas
participações e compartilhamentos. As redes são uma forma própria de poder constituinte
através da qual uma multidão inteligente armada pela comunicação distribuída em redes
interativas estaria conquistando sua emancipação social MALINI; ANTOUN, 2013, p.58).
Embora não seja possível determinar com clareza qual o impacto dessa colaboração nas
esferas decisórias do Estado, que determinam políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva,
parece não restar dúvidas de que o “trabalho de formiguinha” empreendido por mulheres que
tornam-se ativistas a partir de suas experiências pessoais surte, além dos óbvios efeitos pessoais - de
mulher para mulher-, algum efeito coletivo. A narrativa mais recorrente entre as informantes traz os
mesmos passos, com pequenas diferenças: 1. Decepção com o primeiro parto, que não teve o
desfecho esperado; 2. Busca de informações que, em quase todos os casos, começa pela
internet/redes sociais e costuma também incluir encontros presenciais em grupos de apoio ao parto
humanizado; 3. Busca por uma nova forma de parir, a partir dos novos conhecimentos adquiridos;
4. Ativismo, principalmente a partir dos ambientes de internet. A construção do comum, através da
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colaboração entre mulheres, se mostra aqui de forma contundente, através da distribuição de
informações em rede. A politização do privado, nesse contexto, influencia ações e estratégias de
resistência ao sistema obstétrico tecnocrático brasileiro. Ainda com Negri (s.d.), podemos pensar o
ativismo político dessas mulheres, essa participação, como “capacidade de assumir pelas próprias
mãos as condições biopolíticas da própria existência”. Ao exigirem o direito aos próprios corpos e
ao protagonismo em seus processos de gravidez e parto, e ao fazê-lo colaborativamente, em rede,
essas mulheres tornam-se multidão, e se insurgem contra esse regime biopolítico, que é o Império.
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Participação e Democracia. Florianópolis, p. 145-160, 2007.
My delivery, my rules: construction of common in Rede Parto do Princípio
Abstract: This paper uses ethnographic data produced during doctoral research, in progress at the
Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, and discusses such data in light of the concepts of
"common" and "multitude", by Antonio Negri (2003). These concepts are used here in order to
better understand the activism for the humanization of childbirth undertaken by women who are
part of Rede Parto do Princípio (RPP). We analyze the ways in which these women construct a new
model of social action, which seems to be approaching the "multitude" category (NEGRI, 2003),
when seeking the construction of a “common”, through the articulation of singularities. We attempt
to understand how the discursive process of refinement and construction of the demands takes place
from the personal experiences of each member; how these sociotechnical assemblages are
articulated in cyberspace in order to build common causes for the members of the RPP. In this way,
we try to understand, in RPP, how the "political will" is constructed discursively (MAIA, 2014),
understood here not as "the big politics", but as the process of recognition of issues, naming of
those issues, problematization of what was previously naturalized, and the legitimation of these
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
issues. This process occurs through continuous discursive practices (mainly) in the RPP internet
environments, based on the personal experiences of each woman with pregnancy and childbirth
issues.
Keywords: Humanization of birth. Cyberactivism. Rede Parto do Princípio