mestre vitorino
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FEIRA DE SÃO JOAQUIM, RUA DA CERÂMICA, BOX Nº 4: Pode entrar que tem história pra contar...
Ana Milena Gonçalves Bastos
Petry Lordelo1
SEJA BEM VINDO
Na Feira de São Joaquim, em Salvador, encontra-se a maior concentração de
cerâmica popular da Bahia. Quase toda produção vem da vila de Maragogipinho, no
interior do estado e chega até a Rua da Cerâmica, no interior da feira, onde, além das
afamadas peças utilitárias e de adorno, ainda temos o prazer de encontrar em um dos boxes
onde estas são vendidas, aquele que é considerado um dos seus mais antigos vendedores na
capital baiana: o Mestre Vitorino que, além de artesão, é um bom contador de história.
Este é o caminho que o presente artigo percorre. Assim sendo, vamos aos primeiros
passos...
1 O presente trabalho, produzido em 2006, teve como autores Ana Milena Gonçalves Bastos, estudante do curso de História (c/ Patrimônio Cultural) da Universidade Católica do Salvador e Petry Lordelo, professor de Educação Física e pesquisador das áreas de Educação e Cultura Popular.
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FEIRA DE SÃO JOAQUIM
“É dia de feira, quem quiser pode chegar”2
Originária da Feira do Sete (que ficava próxima
ao sétimo armazém das docas) e da Feira de Água
de Meninos (situada nos arredores do cais), a
Feira de São Joaquim ocupa hoje uma área de 34
mil/m² entre a Baía de Todos os Santos e a
Avenida Oscar Pontes, no bairro do Comércio,
desde 21 de setembro de 1964. A regulamentação da ocupação da área se deu em 12 de
outubro de 1964, em acordo assinado entre a Prefeitura de Salvador, a Capitania dos Portos,
a Companhia das Docas da Bahia (Codeba) e o Sindicato do Comércio Varejista Feirante e
Ambulante de Salvador (Sindifeira). No entanto, como o prazo deste acordo foi de 31 anos,
a área hoje se encontra irregular e de posse da União.
Apesar dos 42 anos da feira, o que, por uso capião já garantiria a posse da terra aos
feirantes, o poder público local e demais entidades supracitadas têm resistido à liberação do
terreno, o que, segundo João dos Prazeres (presidente do Sindifeira), dificulta qualquer
tentativa de investimento para melhoria da infra-estrutura do local. “Quem vai querer
investir em algo que é irregular? Ninguém!”, pergunta ele já respondendo.
Ainda assim, a feira possui uma certa organização. Com seus mais de 4 mil boxes e
7500 feirantes espalhados em 10 quadras, ela possui ruas específicas como a do coco, da
farinha, das verduras, das frutas, do camarão, das carnes, dos ovos, da cerâmica, dos
produtos afro-religiosos e indígenas, das barbearias, dos restaurantes, das confecções, o
porto da cana e o largo do quiabo, além de, por parte do sindicato, realizar inúmeros
eventos visando desde a integração entre os feirantes à melhoria do atendimento à
população local e aos turistas que somados chegam quase a 20 mil por dia.
Tantas são as peculiaridades e os atrativos da Feira de São Joaquim, que o Sindicato
dos Feirantes em conjunto com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Sindicato dos
Engenheiros, A Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR), estão empenhados no projeto de tombamento da Feira de São
2 Trecho de “A feira”, composta por Marcelo Yuka.
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Joaquim como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, título que é conferido pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Mas isso é um processo lento que,
assim como outro já citado, esbarra na burocracia e falta de empenho por parte de alguns
órgãos. “Gilberto Gil, que é Ministro da Cultura e filho de Salvador, assim como muita
gente importante, teve aqui na feira pra ver a exposição de fotografia3, mas não aparece pra
ajudar a resolver o que a gente precisa de fato”, exemplifica Babal, feirante e ex-diretor do
Sindifeira. Outro atrativo ambientado na feira de São Joaquim foi o filme Cidade Baixa,
primeiro longa-metragem do cineasta Sérgio Rezende. O sucesso do filme, que chegou a
ser exibido para os feirantes em um caminhão organizado pela produção especificamente
para isso, levou muita gente a conhecer a feira. Ainda assim, não fosse por um plano
emergencial de reordenamento elaborado pela Prefeitura Municipal de Salvador, que
pretende requalificar a Feira de São Joaquim melhorando a salubridade, higienização e
acessibilidade, que, a passos curtos, começa a ser encaminhado, as coisas não estariam tão
boas quando a fama recém conquistada. Con-tudo, espera-se que o valor histórico, cultural,
social e econômico da Feira de São Joaquim não seja mensurado, na lógica do quanto mais,
melhor, pela quantidade de moscas que os órgãos públicos parecem alimentar no local.
Enquanto isso, 40 mil pessoas dependem da feira para não morrerem, creiam, de fome.
RUA DA CERÂMICA
Dentre as inúmeras ruas específicas que
constituem a Feira de São Joaquim, optamos por
dar relevo à Rua da Cerâmica. Tal escolha foi
movida por uma relação antiga que estabelecemos
com esta rua. O fato de sermos ceramistas, tem
nos levado há anos a este local em busca da
matéria-prima – barro – que damos forma com a
atividade que exercemos.
3 Babal se refere à exposição “Lá e Cá”, do fotógrafo Sérgio Guerra, montada dentro da feira. Foram 438 fotos, mostrando a semelhança entre a Feira de São Joaquim e o Mercado São Paulo em Luanda (Angola), que estiveram expostas dentro de barracas e ao lado das ruas em outdoors durante cerca de dois meses, de janeiro a março de 2006. Algumas fotos permanecem no local.
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O barro, vendido nos boxes da Rua da Cerâmica, é oriundo da vila de
Maragogipinho, pequena comunidade de oleiros pertencente ao município de Aratuípe, no
Recôncavo da Bahia, a 222km de Salvador.
Considerada um dos maiores pólos da cerâmica artesanal da América Latina, a vila
localizada às margens do Rio Jaguaripe, conta com dezenas de olarias que há mais de 300
anos produz diariamente vasos, potes, moringas, jarros, pratos, esculturas diversas e os
famosos caxixis (miniaturas de peças maiores, utilitárias ou zoomorfas. Originariamente
destinadas a uma finalidade lúdica — jogos e brinquedos). Por falar em caxixis, boa parte
da produção de Maragogipinho é exposta durante a Feira dos Caxixis, uma tradição secular
que se realiza, anualmente, durante a Semana Santa na cidade de Nazaré das Farinhas,
também no Recôncavo da Bahia.
De uma feira à outra, voltamos à São Joaquim, onde a Rua da Cerâmica se constitui
no local onde se encontra a maior concentração de cerâmica popular da Bahia. São 11
boxes, mantidos por maragogipenses ou parentes destes que, há décadas, de forma quase
que geracional, trabalham no local. É o que aponta o feirante Júnior:
“Como Maragogipinho é uma vila pequena, praticamente todo mundo lá é parente. (...) Meu avô, sêo Milton Moreira, tinha um sonho que era a família manter isso aqui. É isso que estamos fazendo. (...) Cinco desses boxes, por exemplo, são de gente da minha família. Esse, aquele, o de lá, e aqueles dois que estão alugados.”
Mais a frente, no mesmo diálogo, ele mostra que apesar da diária vida dura em São
Joaquim, os feirantes dessa rua se encontram também nos parcos momentos destinados ao
lazer: “O legal é quando todo mundo se encontra. Tem o Baba de Setembro mesmo, em que
vai todo mundo daqui da rua. É uma festa bonita e a cada ano fica mais organizada.”
Por sinal, a organização é algo de suma importância, assumida com veemência por
alguns feirantes e artesãos. Dentre os organismos de classe citados por estes, podemos
destacar além do Sindifeira, já citado anteriormente, a Associação de Auxílio Mútuo dos
Oleiros de Maragogipinho, fundada com o apoio do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE), entidade que desde 1998 atua nesta localidade através de seu
programa de artesanato.
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Todo esse apoio técnico oferecido pelo SEBRAE, tem ajudado a melhorar desde a
qualidade do barro que é retirado do barreiro ao produto acabado que é colocado para o
mercado consumidor, que vai desde pessoas comuns, a turistas e empresas como hotéis e
restaurantes, interessados, principalmente, em trabalhos decorativos. Embora as vendas não
sejam tão regulares, tal instabilidade não impede que os artistas de Maragogipinho, da Rua
da Cerâmica e da Feira de São Joaquim sigam, historicamente, ocupando, resistindo e
produzindo com maestria.
BOX Nº 4
Falar de mestre na arte da cerâmica popular da
Bahia, é falar de Vitorino da Souza de Moreira,
proprietário do box Flôr de São Joaquim, nº 4.
Nascido na vila de Maragogipinho em
29/03/1920, o mestre Vitorino, aos seus 86 anos,
é um dos mais antigos oleiros vendedor da
cerâmica desta comunidade, na cidade de
Salvador.
Apesar do gosto pelo estudo, seu processo formal de escolarização foi até a 5ª série.
Tal falta de oportunidade incentivou a sua vontade de “ver o mundo”, o que o fez chegar à
capital baiana aos 15 anos de idade, já trabalhando como ceramista, atividade que começou
a desenvolver a partir dos 10 anos. Assim, Vitorino passou pela Feira do Sete, pela Feira de
Água de Meninos (que segundo ele foi criminosamente incendiada), e finalmente chegou à
São Joaquim, onde está há quase 40 anos.
Auto-didata, o mestre é criador de inúmeras peças. “Nunca gostei de copiar o
trabalho de ninguém”, afirma ele. Dentre as suas criações, destaca-se o “Boi-bilha”: tendo
como base a bilha portuguesa em junção com o bumba-meu-boi do mestre Vitalino
(ceramista pernambucano), a peça, que antes era usada como recipiente para água, hoje é
um dos objetos de decoração mais requisitados pelos compradores do artesanato de
Maragogipinho. O sucesso dessa peça símbolo foi confirmado com a menção honrosa
recebida pelo Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina e Caribe em 2004.
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Tendo chegado até Nova Iorque com suas peças e trabalhado com Udo Knoff,
Caribé, Grace Gradin, dentre outros importantes artistas plásticos, Vitorino segue obtendo
reconhecimento pelo seu trabalho, como, por exemplo, ocorreu no dia 28 de setembro
durante a Semana do Idoso, quando foi escolhido para representar o Sindifeira no Fórum
Permanente de Defesa do Idoso, onde discursou e foi homenageado pelo Projeto Memórias,
conferido pela Câmara Municipal do Salvador e que tem o objetivo de valorizar pessoas
que marcaram épocas, resgatando as suas vivências.
Embora não trabalhe mais no torno (instrumento utilizado pelos oleiros) por opção e
motivos de saúde, o Mestre Vitorino ainda produz pequenas peças e tem vitalidade
suficiente para seguir representando e referendando a cerâmica popular da Bahia. Pois, com
todo o carinho que ele trata a terra e seu povo, estamos certos de que a Flôr de São Joaquim
dificilmente se fechará para as páginas da história.
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OBRIGADO E VOLTE SEMPRE
Com esta expressão supracitada, uma das mais ouvidas no percurso que escolhemos
para escrever este trabalho, retribuímos o agradecimento e concluímos certos de que não
encerramos as idas e vindas pela Feira de São Joaquim, pela Rua da Cerâmica e pelo Box
nº 4. Mesmo porque, além da justificativa pessoal apresentada na introdução, as histórias
dos patrimônios culturais que a Bahia possui, precisam e devem ser afirmadas, registradas e
divulgadas, pra que não sejam desconhecidas, destruídas, esquecidas...
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REFERÊNCIAS
1. ARAÚJO, Guido. Maragogipinho (filme). 22min, 16mm. s.d. 2. EMPRESA DE TURISMO S/A (EMTURSA), www.emtursa.ba.gov.br
3. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
(IPHAN), www.iphan.gov.br
4. MINISTÉRIO DA CULTURA (MinC), www.cultura.gov.br
5. PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR.
6. SERVIÇO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS (SEBRAE). Entrevistas com: - João dos Prazeres (PRESIDENTE DO SINDIFEIRA) - Babal (FEIRANTE e EX-DIRETOR DO SINDIFEIRA) - Alan - Cidélio - Fernando Teixeira - João Santana - Júnior - Netinho - Rute - Vitorino de Moreira (Mestre Vitorino) (PROPRIETÁRIOS DE BOXES DA RUA DA CERÂMICA) Fotos: - Petry Lordelo