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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 101-122, 2012 101 MESCLAGEM, METÁFORA E METONÍMIA EM CARTUM Sandra Bernardo e Naira de Almeida Velozo RESUMO Análise das interpretações de um cartum, produzidas por alunos de graduação, com vistas a demonstrar o tipo de mesclagem envolvido na conceptualização dos sentidos atribuídos ao mesmo. As interpretações mais frequentes consistem em uma crítica à dedicação excessiva ao traba- lho em detrimento da vida pessoal e configuram redes de escopo duplo com conflito. PALAVRAS-CHAVE: Mesclagem Conceptual; Metáfora Conceptual; Cartum Introdução A lém do objetivo central de alcançar uma escala humana para construção de sentidos, um dos propósitos da mesclagem é contar uma história. Nes- te texto, apresentaremos, com base nas teorias da Integração Conceptual (FAUCONNIER & TURNER, 2002) 1 e da Metáfora Conceptual (LAKOFF & JOHNSON, 2002[1980]) 2 , as “histórias” surgidas das interpretações de um cartum produzidas por alunos de graduação. O cartum escolhido foi criado por Caulos e integra o livro didático de Faraco e Moura (1999) 3 . Pretendemos postular, FAUCONNIER, Gilles & TURNER, Mark. e way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basis Books, 2002. 2 LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação de tradu- ção Mara Sophia Zanotto. Campinas-SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002[1980]. 3 CAULOS. Só dói quando eu respiro. Porto Alegre: L&PM, 1976. S.P.. FARACO & MOU- RA. Linguagem nova. São Paulo: Ática, 1999, p. 26.

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mEScLAgEm, mETáforA E mEToNÍmiA Em cArTum

Sandra Bernardo e Naira de Almeida Velozo

RESUMOAnálise das interpretações de um cartum, produzidas por alunos de graduação, com vistas a demonstrar o tipo de mesclagem envolvido na conceptualização dos sentidos atribuídos ao mesmo. As interpretações mais frequentes consistem em uma crítica à dedicação excessiva ao traba-lho em detrimento da vida pessoal e configuram redes de escopo duplo com conflito.

PALAVRAS-CHAVE: Mesclagem Conceptual; Metáfora Conceptual; Cartum

introdução

Além do objetivo central de alcançar uma escala humana para construção de sentidos, um dos propósitos da mesclagem é contar uma história. Nes-te texto, apresentaremos, com base nas teorias da Integração Conceptual

(FAUCONNIER & TURNER, 2002)1 e da Metáfora Conceptual (LAKOFF & JOHNSON, 2002[1980])2, as “histórias” surgidas das interpretações de um cartum produzidas por alunos de graduação. O cartum escolhido foi criado por Caulos e integra o livro didático de Faraco e Moura (1999)3. Pretendemos postular,

1  FAUCONNIER, Gilles & TURNER, Mark. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.

2 LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação de tradu-ção Mara Sophia Zanotto. Campinas-SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002[1980].

3 CAULOS. Só dói quando eu respiro. Porto Alegre: L&PM, 1976. S.P.. FARACO & MOU-RA. Linguagem nova. São Paulo: Ática, 1999, p. 26.

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a partir das interpretações de graduandos, o tipo de rede de integração envolvido nas conceptualizações selecionadas.

A imagem do cartum apresenta cinco retângulos sobrepostos com a fi-gura de um homem que caminha apressado, alternadamente da esquerda para direita e da direita para esquerda, representando um vai e vem. Esse homem, com o desenho de um coração no peito, carrega uma maleta sem preenchi-mento de cor, que vai quadro a quadro sendo preenchida, ou seja, enchendo--se. Quanto mais corre, enquanto o coração, inicialmente pintado de preto, preenchido, vai se esvaziando, proporcionalmente, à medida que a mala vai se enchendo.

Como, no livro didático, a imagem aparece abaixo da expressão “Di-virta-se”, consideramos a possibilidade de que tal expressão poderia interferir nas inferências produzidas para o estabelecimento dos sentidos atribuídos ao cartum pelos estudantes. Assim, a fim de verificar o papel da relação frase--imagem nas interpretações, apresentamos a um dos grupos de graduandos a imagem aliada ao texto e a outro grupo, apenas a imagem.

Com vistas ao alcance dos objetivos deste trabalho, antes de passarmos à análise, apresentamos, na próxima seção, uma síntese dos conceitos que lhe fundamentam.

1- Mesclagem, metáfora e metonímia4

Do pensamento mais simples a pensamentos complexos e imaginativos, a forma como raciocinamos, ao processar informações e conhecimentos de todos os tipos, deve-se, em muitos casos, à integração (ou mesclagem) conceptual. O sistema conceptualizador humano é dotado de grande potencial simbóli-co para construir significados. Como apontam Fauconnier e Turner (2002, p. 6ss)5, isso é possível devido a três operações cognitivas básicas interrelacionadas: identidade, integração e imaginação.

Perceber identidade, equivalências e oposições, entre todas as coisas (concretas ou abstratas), a fim de estabelecer-lhes relações e/ou delimitá-las, é

4 Como a base teórica deste artigo é comum a outras análises, parte desta seção figura em outros textos publicados.

5 FAUCONNIER, Gilles & TURNER, Mark. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.

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resultado de um trabalho complexo e elaborado do raciocínio. Não se trata de um ponto de partida primitivo cognitivo, neurobiológico e evolucionário, a percepção da identidade é parte de um processo de integração conceptual mui-to mais complicado, com propriedades dinâmicas e estruturais, bem como restrições operacionais, que trabalha, sem ser notado, de forma rápida nos bastidores da cognição, ao categorizarmos tudo que nos cerca (op. cit.).

Identidade e integração não podem explicar o significado e seu desenvol-vimento sem a imaginação. Mesmo com ausência de estímulo externo, o cé-rebro pode produzir simulações: ficção, sonho, cenários hipotéticos, fantasias. Todavia, os processos imaginativos identificados nessas formas elaboradas de pensamento criativo também atuam na mais simples construção de significa-do (op. cit.).

Assim, quando se categorizam as entidades, atribuindo-lhes uma escala de valores, papéis e/ou funções, suas identidades são percebidas de modo a integrá-las numa categoria conceptual estável adequada ao contexto (comu-nicativo, social, cultural), a partir de experiências, armazenadas com base em modelos cognitivos idealizados, esquemas imagéticos e frames.

Modelos cognitivos idealizados (MCIs) consistem em um conjunto co-erente e estável de representações do conhecimento que pode ser organizado de várias maneiras (LAKOFF, 1987)6. Os esquemas imagéticos formam-se por meio da percepção sensório-motora das experiências humanas mais pri-mitivas, ligadas a uma série de situações que experienciamos em nossa inte-ração com o ambiente (GIBBS & COLSTON, 2006[1995])7. Semelhantes aos MCIs, na medida em que se relacionam a estruturas de conhecimentos relativamente complexas, os frames (ou enquadres) podem ser definidos como qualquer “sistema de conceitos relacionados, de tal forma que para entender qualquer um deles é necessário compreender toda a estrutura em que se en-quadram” (FILLMORE, 2006, p. 373)8.

6 LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things. Chicago: University of Chicago Press, 1987.

7 GIBBS Jr., Raymond W. & COLSTON, Herbert L. The cognitive psychological reality of image schemas and their transformations. In: GEERAERTS, Dirk (ed.). Cognitive linguistic: basic readings. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2006.

8 FILLMORE, Charles J. Frame semantics. In: GEERAERTS, Dirk (ed.). Cognitive linguis-tics: basic readings. Berlin:/New York: Mouton de Gruyter, 2006, p. 373-400.

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Grande parte da conceptualização, responsável pelo estabelecimento de sentidos, ocorre por meio de integração de espaços mentais interconectados, abertos dinamicamente à medida que o sistema conceptualizador humano aciona rotinas cognitivas para processamento e compreensão de tudo que nos cerca. Os espaços mentais são pequenos pacotes conceptuais construídos durante o pensamento e a fala. Trata-se de construtos parciais que contêm elementos estruturados por frames e modelos cognitivos. Embora operem na memória de trabalho, tais espaços são construídos parcialmente pela ativação de estruturas da memória de longo termo.

A compreensão de um enunciado como Se eu fosse você agiria com mais cuidado ao lidar como o novo encarregado, expresso, por exemplo, durante um diálogo entre colegas de trabalho, envolve a ativação de dois cenários: o da rea-lidade, a forma como os participantes estão agindo, e o da situação hipotética, o modo de ação recomendado. O cenário da realidade envolve o acionamento de dois espaços mentais: no primeiro, conceptualiza-se o funcionário que lida bem com o chefe; no segundo, o funcionário, que, segundo o enunciador, não vem interagindo bem com o chefe.

Para compreensão do cenário hipotético, projeta-se o papel desempe-nhado pelo funcionário cuidadoso na contraparte do papel desempenhado pelo funcionário relapso, integrando os dois papéis, ou seja, ligam-se as iden-tidades dos dois funcionários. No espaço mental em que ocorre a fusão de papéis, denominado espaço-mescla, os dois funcionários lidam bem com o novo encarregado. Nesse processo de integração conceptual, projeta-se apenas a qualidade esperada no trato com o novo encarregado.

Logo, a integração (ou mescla) conceptual é uma operação mental básica altamente imaginativa, que surge de uma rede de espaços mentais, cuja con-figuração mínima envolve a projeção seletiva de elementos de quatro espaços:

l Espaços externos iniciais – espaços-input 1 e 2 interconectados;l Espaço genérico – aquele que se projeta sobre cada um dos inputs,

contendo elementos comuns aos dois espaços externos iniciais em qualquer momento do desenvolvimento da rede de integração conceptual;

l Espaço-mescla – aquele em que elementos dos espaços iniciais são parcialmente projetados (por exemplo, a habilidade de lidar com o chefe do funcionário cuidadoso e o modo como o funcionário relapso passaria a agir).

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O espaço-mescla resultante dessa projeção seletiva apresenta uma estru-tura emergente com uma configuração distinta das estruturas proporcionadas pelos inputs inter-relacionadas de três maneiras:

(i) Composição – tomadas em conjunto, as projeções dos inputs engen-dram novas relações utilizáveis que não existiam separadamente nos inputs.

(ii) Completamento – conhecimentos anteriores, frames, modelos cogni-tivos idealizados e esquemas culturais permitem projetar a estrutura compósita no interior da mescla por transferências parciais de estru-turas dos inputs e serem vistos como parte de uma ampla estrutura autocontida na mescla. O padrão mais rico da mescla, estruturado pela herança das estruturas inputs, é completado na estrutura emer-gente mais ampla. O completamento traz uma estrutura adicional para o espaço-mescla: no exemplo acima, o funcionário que passa a lidar bem com o chefe num cenário hipotético.

(iii) Elaboração – completada na mescla, a estrutura pode então ser ela-borada através de um processo cognitivo desempenhado em seu in-terior, de acordo com sua lógica própria e emergente. Um exemplo de elaboração seria uma conversa entre os dois funcionários acerca de normas de conduta e relação hierárquica na empresa.

O aspecto mais importante é que o espaço mesclado se mantém conec-tado aos inputs, para que essas propriedades estruturais do espaço mesclado possam ser mapeadas, quando refletido de volta sobre os inputs. Por causa da familiaridade do quadro obtido pelo completamento, o cenário hipotético com mudança de comportamento do funcionário é automático.

Qualquer espaço pode ser modificado em qualquer momento da constru-ção da rede de integração. Isso ocorre porque o significado não é construído em nenhum dos espaços especificamente, mas reside na reciprocidade dos ar-ranjos elaborados e suas respectivas conexões. Logo, a ordem desses esquemas pode ser reorganizada a todo o momento. Espaços, domínios e enquadra-mentos podem proliferar-se e modificar-se, resultando assim em novos espa-ços-mescla antes não previstos e também provocando transformações naqueles já previstos.

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Mesclagens costumam ser originais e geradas on line, mas requerem acio-namento de projeções e frames já armazenados (entrincheirados – entrenchment). Uma vez criada, a mescla pode se tornar uma rotina cognitiva fixa, armazenada, com potencial para se tornar o input de outro processo de integração concep-tual. Um fato motivador fundamental da mesclagem é a integração de vários eventos em uma única unidade. Um exemplo de Fauconnier e Turner (2002)9 que ilustra bem essa característica é a conceptualização de cerimônias de forma-turas, cujo conceito representa em um único evento todas as etapas percorridas ao longo dos anos da graduação, que são comprimidos no espaço-mescla.

A capacidade de abrir, conectar e mesclar espaços mentais fornece um insight global, uma compreensão em escala humana e um novo sentido, tor-nando os seres humanos mais eficientes e criativos. Um dos mais importantes aspectos dessa eficiência, em termos de insight e criatividade, é a compressão alcançada por meio da mesclagem de relações conceptuais, denominadas rela-ções vitais (op. cit., 2002, p. 92ss).

Embora uniforme em sua dinâmica, a integração conceptual pode servir a diferentes objetivos, daí sua aplicação ampla a vários tipos de raciocínio, en-tre os quais se encontra o pensamento metafórico. Concebidas na Linguística Cognitiva como uma forma de raciocínio, as metáforas permitem a conceptu-alização de um domínio em termos do outro.

Segundo Lakoff e Johnson (2002[1980])10, os processos do pensamento são em grande parte metafóricos: “a essência da metáfora é compreender e expe-rienciar uma coisa em termos da outra” (op. cit., 2002, p. 43). A compreensão de discussão em termos de guerra, presente em “seus argumentos são indefensá-veis”; “ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação” e “suas críticas foram direto ao alvo”, evidenciada pelas expressões linguísticas grifadas que ilus-tram, por exemplo, a metáfora conceptual discussão é guerra. Essa metáfora surge da integração entre dois domínios distintos: o domínio fonte guerra com base no qual o domínio alvo discussão é experienciado. Os domínios fonte e alvo consistem nos espaços mentais de input, dos quais alguns elementos são projetados no espaço-mescla onde a conceptualização metafórica ocorre.

9 FAUCONNIER, Gilles & TURNER, Mark. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.

10 LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação de tradu-ção Mara Sophia Zanotto. Campinas-SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002[1980].

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Semelhantes às metáforas, metonímias, na Linguística Cognitiva, tam-bém apresentam uma natureza conceitual, porque não consistem apenas em um recurso retórico ou poético, já que estão presentes no modo como se age, pensa e fala no dia a dia. Metonímias conceptuais consistem em um processo cognitivo em que uma entidade conceptual, um veículo, fornece acesso men-tal a outra entidade conceitual, o alvo, dentro de um mesmo domínio, ou modelo cognitivo idealizado (KöVECSES, 2010, p. 173)11. A relação entre metáforas e metonímias conceptuais pode revelar metáforas motivadas por metonímias e metonímias constituídas por metáforas de modo que podem ser vistos como processos escalares.

As teorias da metáfora e da mesclagem conceptuais podem ser considera-das complementares (GRADY et alii, 1999)12, porque, embora existam metá-foras primárias motivadas por correlações de experiências físicas e/ou percep-tuais básicas, como importância e tamanho, que não envolvem mesclagem, tais metáforas podem configurar inputs para meclagem. Assim, as metáforas primárias são baseadas em uma correspondência entre conceitos, em vez de domínios inteiros – embora os conceitos da fonte primária e do alvo primário estejam em domínios diferentes (EVANS & GREEN, 2006, p. 437)13.

Dessa forma, uma importante conquista da teoria da metáfora concep-tual é identificar mapeamentos metafóricos diretamente baseados na experiên-cia. Projeções desse tipo, consideradas um dos aspectos mais fundamentais da estrutura conceitual, não configuram mesclas, portanto não podem ser abor-dados pela teoria da mesclagem conceptual.

Contudo, a geração da estrutura emergente, propiciada pelo processo de mesclagem, permite a explicação de metáforas subjacentes em frases como em Aquele cirurgião é um açougueiro, cujas inferências emergentes não poderiam ser explicadas por um modelo de dois domínios. Além disso, processo de mes-clagem promove a explicação de metáforas compostas, derivadas da integração

11 KöVECSES, Zóltan. Metaphor: a practical introdution (2. ed.). New York: Oxford Univer-sity Press, 2010.

12 GRADY, Joseph et alii. Blending and metaphor. In: GIBBS, R. W. e STEEN, G. (eds.). Metaphor in Cognitive Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, p. 101–124. Disponível em: http://www.sscnet.ucla.edu/comm/steen/cogweb/CogSci/Grady_99.html#top. Acesso em: 11/09/2011.

13 EVANS, Vyvyan & GREEN, Melanie. Cognitive linguistics: an introduction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006.

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ou unificação de metáforas primárias mais primitivas (op. cit., 2006, p. 437).Passamos, em seguida, à conceptualização do cartum a partir das inter-

pretações dos alunos. Ao longo da análise, aspectos teóricos específicos, não abordados nesta seção, serão referenciados.

2- “Divirta-se”

A análise das interpretações do cartum será desenvolvida em duas etapas: inicialmente trataremos dos sentidos mais frequentes. Em seguida, examinaremos três interpretações. Na Figura (1), abaixo, apresentamos o cartum em estudo.

Figura 1 – Cartum “Divirta-se”14

14 CAULOS. Só dói quando eu respiro. Porto Alegre: L&PM, 1976. S.P.. FARACO & MOU-RA. Linguagem nova. São Paulo: Ática, 1999, p. 26.

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Ao solicitar às turmas a tarefa de interpretação de cartum, os alunos foram orientados a descrever a imagem, sob a motivação de que os leitores potenciais dos seus textos não teriam tido acesso à mesma. Após a descrição da imagem, os graduandos deveriam apresentar a mensagem passada pelo car-tum. Dessa forma, esperávamos que os interpretantes registrassem o que o co-ração e a maleta representariam para eles e como os sentidos de tais elementos contribuiriam para mensagem.

A imagem exibida à turma A (26 textos) incluía a expressão “divirta--se”, que dá nome à seção do livro didático na qual são apresentados cartuns e tirinhas que levem à reflexão de assuntos variados de forma descontraí-da. Acreditávamos que a referida expressão imperativa levasse os alunos a relacionar a maleta com atividades estressantes, ligadas ao trabalho ou ao cotidiano corrido das pessoas, de forma mais acentuada em comparação às interpretações da turma B (27 textos), à qual a imagem foi apresentada sem a expressão.

Na Tabela (1), em seguida, elencamos a síntese das interpretações acio-nadas pela maleta nas duas turmas, a partir de palavras-chave extraídas ou in-feridas dos textos dos interpretantes. Como alguns alunos apresentaram mais de um sentido para a maleta e o coração, os totais em termos de sentido não coincidem com o número de textos.

Representação da maleta – turma A Representação da maleta – turma B

Correria do dia a dia/ obrigações/ quantidade de trabalhoDinheiro/ bens materiais/ lucro/ busca de vida estável TrabalhoExcesso de cansaço e de tarefasMuitas coisas guardadas, muito estresseVício da sociedade pelo trabalho/ sucesso na carreira

10

8 6

1 1 1

TrabalhoDinheiro/ sucesso profissional/ patrimônioEstresse/ preocupações/ ritmo aceleradoCansaço

138

5

1

Total de 27 sentidos Total de 27 sentidos

Tabela 1 – Interpretações da maleta nas turmas A e B

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A comparação das interpretações revela a possibilidade de a expressão ter levado ao acionamento de um frame dos aspectos mais estressantes resul-tantes do acúmulo de trabalho, já que, na turma A, a menção a trabalho, de uma forma geral, foi menor do que na turma B, que só teve acesso à imagem. A comparação entre o índice de referência ao estresse e à correria reforça nossa leitura dos sentidos atribuídos à maleta. Logo, podemos postular que a expressão “divirta-se” tenha motivado tais sentidos, por meio de uma relação vital de analogia-desanalogia, no sentido de que essa ex-pressão levaria ao cancelamento da analogia com trabalho, acionado pela maleta, como algo positivo/necessário e conduziria à visão negativa/exces-siva deste.

Outro enquadre frequente nas interpretações das duas turmas foi a representação da maleta como símbolo da busca por uma vida financeira estável como resultado do trabalho e do sucesso profissional (8 ocorrências sobre 27). Nesse enquadre, é focalizado o resultado mais “material” do mo-delo cognitivo de trabalho (doravante MCI). Nas duas turmas, o MCI tra-balho, de cunho mais geral, também apareceu, mas, na turma B, essa visão foi preponderante, possivelmente em razão de a imagem não ter sido exibida junto à expressão “divirta-se”, a qual encaminharia uma leitura do caráter estressante do trabalho. Assim, podemos considerar que o foco no trabalho, em termos gerais, revela a compressão de vários aspectos da compreensão dessa atividade humana, ao passo que o enquadre do estresse e da agitação e do sucesso financeiro e profissional, resultantes do trabalho, revelam enqua-dres específicos desse MCI.

Na síntese das interpretações para o elemento coração, foram identifi-cados três aspectos: a visão de que o coração representa (i) vida (pessoal/so-cial); (ii) saúde, energia, vitalidade e (iii) emoções e sentimentos. Além desses MCIs, também foram encontradas interpretações mais gerais de que o coração significava “coisas realmente importantes na vida”, em alguns textos, seguidas de uma enumeração: família, amor, amigos. A Tabela (2), a seguir, ilustra os levantamentos dos sentidos atribuídos ao coração nas duas turmas.

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Representação do coração – turma A Representação do coração – turma BSaúde / Energia/ VitalidadeEmoções e sentimentosAspectos realmente importantes da vidaVida (pessoal/ social, trajetória)Dedicação e amor à profissão

966

61

Vida (pessoal/social)Saúde/ Energia/ VitalidadeEmoções e sentimentosAspectos realmente importantes da vidaDedicação e amor à profissãoFamíliaLazerPerda do coração devido à correria

10 9 4 3 1

1 1 1

Total de 28 sentidos Total de 30 sentidos

Tabela 2 – Interpretações do coração nas turmas A e B

O número maior de casos de interpretações do coração, ligado ao frame de saúde, energia e vitalidade na turma A pode estar relacionado ao papel da expressão “divirta-se”, se comparado ao resultado das interpretações da turma B, divididas, prioritariamente, entre essa interpretação e o significado mais geral de vida (pessoal, social). Assim, a expressão pode ter levado a turma (A) a conceptualizações ligadas à agitação e ao estresse do cotidiano como resultado do trabalho excessivo.

A visão do coração como símbolo de saúde, energia e vitalidade consiste em um processo metonímico parte-todo, dado o papel crucial desse órgão para vida humana. Já no sentido de emoções e sentimentos, podemos vis-lumbrar uma metáfora da metonímia, porque a motivação metonímica das alterações percebidas nos batimentos cardíacos, quando nos emocionamos, fundamenta a simbolização do coração como a parte do corpo responsável pe-los sentimentos. A representação da vida pessoal e social, por meio do coração, pode ser considerada uma metonímia dentro da metáfora, devido ao caráter mais abrangente da imagem convencional dessa parte do corpo como símbolo da própria vida em termos não apenas físicos, mas pessoais, sociais, abarcando aspectos relevantes do complexo MCI vida.

A relação vital parte-todo também está relacionada ao sentido atribuído à maleta, instanciada pela metonímia instrumento pela atividade, já que se trata de um objeto usado durante o trabalho. Essa relação vital, acionada pela projeção metonímica parte-todo, também relaciona a figura masculina

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às pessoas, em geral, nas interpretações das mensagens relacionadas ao cartum. Outra relação vital aos enquadres do coração e da maleta é a representação, ligada à capacidade de simbolização do pensamento humano, já que os senti-dos atribuídos a esses dois elementos compõem os inputs da rede de integração para conceptualização do cartum. Na figura (2), abaixo, expomos as redes de integração para os sentidos atribuídos à maleta e ao coração.

Figura (2) – Mesclagens para atribuição de sentido à maleta a ao coração

Esses processos de mesclagem, demonstrados separadamente apenas por questões redacionais do encaminhamento das ideias postuladas neste texto, será representado nas redes para os sentidos atribuídos ao cartum pela ligação em linha mais forte entre os inputs imagem-trabalho e imagem--vida, porque acreditamos que tais conexões são acionadas simultaneamente em razão da capacidade imaginativa humana. A rede da Figura (2) apresenta um sentido geral para tais elementos; assim, a depender do aspecto projeta-do seletivamente acerca do trabalho e da vida, chegaríamos a configurações específicas para cada espaço de input, como será observado nas redes pro-postas adiante.

Apresentamos, na Tabela (3), em seguida, a síntese das mensagens ex-pressas nas interpretações das turmas A e B.

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Mensagem do cartum – turma A Mensagem do cartum – turma BCrítica à priorização do trabalho/ dinheiroNecessidade de equilibrar o trabalho com outros aspectos da vidaPrejuízo à saúde pelo excesso de trabalhoPrejuízo às relações interpessoais pelo excesso de trabalhoCansaço/ falta de energia devido ao trabalhoEmbora desgastante, trabalho requer dedicação e vontade, pois é essencial para sobrevivência na sociedade

10 7

3 2

1

1

Crítica à priorização do trabalho/ dinheiroPrejuízo à saúde pelo excesso de trabalhoNecessidade de equilibrar o trabalho com outros aspectos da vidaVazio interior/ solidão causada pelo excesso de trabalhoPrejuízo às relações interpessoais pelo excesso de trabalhoCansaço/ falta de energia devido ao trabalhoBusca por melhoria de vida gera dependência do trabalhoFrustração em relação aos valores da sociedade capitalista e consumidoraCorreria/ vida agitada gerada ao trabalhoEstresse gerado pelo trabalhoMecanização gerada pelo trabalho

12

5

3

2

1

1

1

1 1 1 1

Total de 27 interpretações Total de 29 interpretaçõesTabela 3 – Mensagens atribuídas ao cartum nas turmas A e B

Cada interpretação pode configurar um processo de mesclagem especí-fico; contudo, em decorrência dos sentidos atribuídos aos elementos coração e maleta, podemos observar, de modo geral, que as interpretações evidenciaram um conflito entre trabalho e qualidade de vida (física, pessoal, social). Essa tendência de sentido atribuído ao cartum pode ser configurada numa rede de escopo duplo com conflito, porque o espaço-mescla receberá elementos projetados dos espaços de input acionados por frames organizacionais ligados trabalho e vida (pessoal, social, corpórea).

Logo, o frame organizacional do input de trabalho acionado pela ma-leta provoca prejuízo em algum aspecto da vida, acionado pelo input do coração. A mensagem evocada pelo cartum ocorre na estrutura emergente do espaço-mescla em que se elabora uma crítica ou se constatam os proble-mas causados pela dificuldade de conciliar trabalho e rotina da vida em todos

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os seus aspectos mais importantes (saúde, lazer, relacionamentos pessoais). Isso ocorre por meio de completamento da operação de composição herdada dos elementos dos inputs de trabalho e vida (pessoal, social, corpórea, doravante x).

Todavia, essa rede não apresenta apenas dois inputs, há outro espa-ço inicial aberto pela imagem do cartum, responsável pelo acionamento dos frames de vida(x) e trabalho, por meio da relação vital de repre-sentação. Esse input está ligado ao espaço genérico bem abrangente das histórias de vida das pessoas de nossa sociedade. Tais histórias funcionam como âncoras conceituais prototípicas, baseadas na categorização das expe-riências físicas e emocionais, vivenciadas ao longo da vida numa sociedade ocidental capitalista, fundamentadas pela metáfora vida é jornada. Essa metáfora é motivada pelo caráter sequencial da imagem que retrata as idas e vindas da figura masculina, produzindo uma leitura narrativa, constatada em vários textos.

Em um dos textos (turma B), por exemplo, é narrada a história do “Sr. Copas”, que sai de casa com coração repleto de bondade e alegria, mas, ao se deparar com o caos da cidade, chega ao trabalho preocupado e estressado. Ao final do dia de trabalho, volta a casa, “ansioso para provar mais uma vez o gosto da felicidade”. É interessante notar a atribuição do nome do perso-nagem, devido a uma analogia com o coração do naipe de baralho. Em outro texto, os cinco retângulos foram relacionados aos cinco dias da semana e, em outros, às horas do dia e às atividades a serem desempenhadas ao longo do dia. Nesse sentido, também observamos nas conceptualizações a relação vital de tempo.

O input da imagem também deve estar conectado aos inputs de traba-lho e vida(x), por meio da projeção entre os elementos maleta, coração e ho-mem. As relações maleta-trabalho e coração-vida resultam de uma mesclagem representada pela conexão entre os espaços imagem-trabalho (instrumentos de trabalho) e imagem-vida(x), representada pela linha mais forte ligando esses espaços (cf. Figura 2). Na Figura (3), apresentamos a rede de integração para essa análise geral das interpretações do cartum.

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Figura (3) – Mesclagem da interpretação geral do cartum

A imagem do cartum com os elementos maleta, coração e homem aciona um espaço de input embasado pela relação vital de representação, que, com base nas nossas experiências sobre as atividades humanas ligadas à vida e ao trabalho, aciona outros dois espaços de input: trabalho e vida(x). Nesses espaços, várias experiências e sentimentos relacionados ao trabalho e à vida pessoal, social, corpórea são comprimidos. A ligação entre a imagem dos ele-mentos que funcionam como gatilho para abertura dos outros dois espaços (maleta, coração, homem), por meio de uma linha mais fina, representa o acesso a relações vitais conceituais comprimidas de analogia e identidade, já que coração representa a vida; maleta, trabalho; e homem, experiências e sentimentos humanos.

A interpretação desse cartum também envolve compressões de tempo e mudança, na medida em que as atividades profissionais realizadas rotineira-mente ao longo do tempo acarretam mudanças físicas, sociais e emocionais

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nas pessoas. Tempo e mudança são comprimidos nas relações de causa-efei-to, devido ao fato de as mudanças ocorridas provocarem resultados singulares na estrutura emergente surgida no espaço-mescla, no sentido de que os ele-mentos projetados seletivamente dos inputs na mescla produzem compreen-sões únicas, por meio da relação vital de singularidade/unicidade, sobre os efeitos negativos das atividades laborais em outros aspectos da vida social, corpórea e afetiva, verbalizadas na maioria dos textos. Para que tais inferên-cias e analogias fossem produzidas, todas essas relações vitais precisaram ser comprimidas e descomprimidas, de modo a se alcançar uma escala humana, objetivo principal da mesclagem, contando uma história, outro objetivo desse mecanismo de construção de sentidos.

Dessa forma, no espaço-mescla da Figura (3), observamos uma parte da jornada: as dificuldades do cotidiano humano que alteram a qualidade de vida(x). Essas inferências não estão presentes nos inputs separadamente, mas na estrutura emergente do espaço-mescla, por completamento das estru-turas compósitas herdadas dos espaços externos de input projetados seletiva-mente, conforme o enquadre expresso nas interpretações.

Essa visão negativa do papel do trabalho no cotidiano das pessoas, que perpassou várias interpretações, também está presente em análises com ele-mentos específicos projetados seletivamente na estrutura emergente a depen-der da relação vital em foco na mesclagem. Assim, passamos, em seguida, à análise de três interpretações em que são observadas especificidades na cons-trução dos sentidos do cartum.

Na interpretação (A), os retângulos foram associados aos cinco dias da semana, sendo a cor amarela de fundo uma representação das manhãs de cada dia. Podemos postular, nesse caso, um enquadre com foco nas relações vitais de tempo e mudança dos espaços externos, já que, conforme a semana passa, “a saúde, gás, disposição” da segunda-feira, “depois de um final de semana relaxante”, vão se esvaindo até chegar ao último quadro, em que o homem “não tem mais nada a perder, seu coração está vazio e desmotivado, e a maleta cheia de cansaço e abarrotada de tarefas”. Na Figura (4), expomos a rede de integração referente a tal leitura.

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Figura (4) – Mesclagem da interpretação (A)

As mesmas relações vitais que orientam as inferências da visão geral do cartum estão presentes nessa rede; todavia, o fato de as mudanças na saúde e na disposição do homem serem conceptualizadas como o decorrer de uma história pela interpretante, aliado à simbolização dos retângulos, levou-nos a postular um foco no tempo e na mudança. Com base no mesmo espaço genérico, configuramos a rede com elementos específicos acionados nessa aná-lise: no espaço externo da imagem, destacamos os retângulos relacionados à metáfora semana é jornada, uma instância da metáfora vida é jornada, já convencionada como uma das formas de categorização das experiências viven-ciadas ao longo da vida.

O espaço externo de input do trabalho configura-se sob enquadre do trabalhador, metonimicamente motivado – pessoa pela atividade –, ligado ao homem e à maleta que este carrega no espaço da imagem. Nesse mesmo es-paço, os retângulos são conectados à metáfora trabalho é jornada, também superordenada pela metáfora geral vida é jornada. Saúde, gás, disposição do espaço estruturado pelo frame vida são ativados pela imagem do coração, símbolo da vida motivado pela metonímia parte-todo.

No espaço-mescla, por meio das projeções seletivas dos elementos dos espaços externos de input, completa-se a inferência do desgaste físico resultante

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do trabalho excessivo, já que a mala permanece “abarrotada de tarefas”. A relação vital de tempo aparece sincopada na metáfora subsidiária, subjacente à compreensão do cartum, dia é jornada, já que, de acordo com a análise, o último “quadro” revela a mensagem da falta de equilíbrio entre trabalho e outros aspectos da vida.

Numa acepção semelhante a essa, na interpretação (B), o cartum foi analisado como “uma forma simples” de vivenciar a expressão “‘dar a vida pelo emprego’”, ao retratar a relação do homem com seu emprego. Nessa concep-tualização, a maleta foi relacionada ao emprego; o homem, aos trabalhado-res atuais, sempre ocupados, tendo de correr; o coração, categorizado como “maior símbolo da vida conhecido”. Na Figura (5), apresentamos a configura-ção da rede para essa leitura do cartum.

Figura (5) – Mesclagem da interpretação (B)

Diferentemente das outras duas redes, a imagem acionou o conhecimen-to de ditos populares, além das experiências físicas e emocionais sobre a rela-ção homem-trabalho, como aparece configurado no espaço genérico. Entre as relações vitais ativadas nessa análise, destacamos a de causa-efeito, expressa a partir das conexões entre os elementos dos espaços externos, projetados no espaço-mescla por meio do dito popular.

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Essa operação de conceptualização envolve a combinação dos elementos projetados, completamento por meio do dito e elaboração, porque, uma vez gerada a estrutura emergente do espaço-mescla, novas inferências podem ser produzidas, como o alerta sobre a necessidade de conciliar trabalho e lazer. A elaboração é representada pela linha mais forte ligando dito e alerta no espaço--mescla. O fato de a rede permanecer disponível também é determinante para esse processo de mesclagem, na medida em que as experiências vivenciadas ao longo do tempo, comprimidas no dito, devem ser descomprimidas num cenário de alerta sobre algo a ser evitado, a saber: não se deve “dar a vida pelo trabalho”.

Em outra interpretação (C), o cartum foi caracterizado como uma “metá-fora da vida”, mostrando que “às vezes é preciso correr até o alto do prédio para respirar e lembrar que as coisas mais importantes são as que enchem o coração e não o estresse do trabalho ou qualquer outra preocupação superficial”. Nessa análise, diferente da grande maioria, a leitura foi feita de baixo para cima (hou-ve apenas mais um caso desse tipo de leitura). Os retângulos foram simboliza-dos como cinco andares de um prédio percorridos rapidamente pelo homem, cuja maleta “contém muitas coisas guardadas na sua vida, muito estresse”, por isso se esquece de coisas importantes, “como o amor, representado pelo cora-ção”. Na Figura (6), ilustramos a rede de integração dessa conceptualização.

Figura (6) – Mesclagem da interpretação (C)

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Postulamos que, nesse caso, a imagem do cartum aciona, com base na re-lação vital de representação, os seguintes espaços externos de input: (i) ima-gem, espaço composto pelos elementos que funcionam como gatilhos para inferências metafóricas sobre a vida; (ii)  construções, ancorado na nossa experiência com objetos, em razão dos cinco retângulos terem sido relacio-nados a um prédio, através do qual o personagem estressado corre, a fim de descarregar tudo que o angustia; (iii) males da vida, como estresse, especifica-mente citado pela interpretante, e outros sentimentos angustiantes rotulados de “muitas coisas guardadas”; (iv) benesses da vida, algo que não se conquis-ta com trabalho, como o amor. Cada um desses espaços projeta seletivamente elementos que geram a estrutura emergente por completamento.

O “homem que corre” e os “retângulos” da imagem são conectados ao “prédio de cinco andares” do espaço das construções, que o homem deve percorrer. Tal ligação é ancorada pelo esquema imagético de percurso, fre-quente no cotidiano de cidades verticais como as capitais. Esses elementos são projetados na estrutura emergente do espaço-mescla, como gatilhos para metáfora tempo é espaço percorrido, na medida em que o homem, na in-terpretação produzida, deve se deslocar até um local alto, portanto com visão privilegiada, a fim de parar e refletir sobre o ritmo e os valores da sua vida.

Assim, o prédio também evoca o esquema imagético de verticalidade, presente em muitas experiências cotidianas, o qual conceptualiza as metáforas bom é para cima e ruim é para baixo, subjacentes, em nossa análise, à leitura de baixo para cima. Essa metáfora superordena as metáforas que fundamentam a mensagem atribuída ao cartum: amor é para cima e estresse e preocupações superficiais são para baixo, as quais recebem elementos projetados dos espaços da construção, o prédio, em razão da verticalidade; dos males da vida, aciona-dos pela maleta, que deve ser esvaziada; e das benesses da vida, o amor.

No espaço genérico, além as experiências cotidianas sobre trabalho, sen-timento e vida, encontram-se também as experiências com objetos e o pen-samento metafórico, na medida em que a interpretante conceituou o cartum como metáfora da vida. Assim, relacionamos essa visão metafórica à metáfora vida é jornada, também presente nas demais conceptualizações do cartum, por se tratar de uma imagem convencional que caracteriza domínios básicos da compreensão humana acerca das trajetórias da vida das pessoas, licenciada pela relação vital de tempo, comprimida no esquema narrativo das interpretações.

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Além de leitura de baixo para cima, nessa conceptualização, a maleta não foi tomada inicialmente como símbolo do trabalho por meio de projeção metonímica instrumento pela atividade, mas dos males da vida. Todavia, em razão de ser uma fonte de estresse, o trabalho aparece representado na mensagem do cartum por meio da relação vital parte-todo, como algo que deve permanecer no primeiro andar do prédio, algo a ser evitado.

Tal relação é conceptualizada por elaboração na estrutura emergente do espaço-mescla, licenciada pelo princípio da descompressão, em razão de toda a rede permanecer acessível durante o processo de mesclagem, permitindo o acesso aos espaços da imagem e dos males. Logo, relação vital causa-efeito, que comprime, no espaço dos males, todos os eventos geradores do estresse, é descomprimida, para que o trabalho seja acessado como uma das causas do estresse. Essa relação vital é comprimida na mescla como uma relação par-te-todo.

Consideramos que a relação vital em foco na interpretação (C) é a de mudança, devido à desanalogia estabelecida com o ritmo de vida cotidiano das pessoas, simbolizadas pelo homem em busca de mudanças na rotina da vida e nos valores. Dessa forma, a desanalogia estabelecida com os elementos do espaço externo dos males da vida é projetada como mudança no espaço--mescla. Devido às projeções de elementos oriundos de três espaços mentais externos de input, consideramos essa rede múltipla.

Considerações finais

Por meio da mesclagem conceptual, foi possível postular a configuração dos processos de conceptualização da interpretação geral do cartum, a par-tir das mensagens e dos sentidos atribuídos, pelos alunos, aos elementos que compõem a imagem, sobretudo no que tange aos elementos coração e maleta, devido ao papel que desempenham na compreensão do cartum, colocando em conflito aspectos da rotina da vida ligados ao trabalho e à vida social, pessoal e corpórea. Também propomos configurações para as conceptualizações de três interpretações, as quais revelaram enquadres específicos acerca desse conflito.

Para as compreensões acionadas aqui, várias relações conceptuais vitais foram comprimidas e descomprimidas. A relação vital de representação permitiu o acesso à simbolização dos elementos do cartum: homem, maleta,

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coração, prédio, dias da semana. Além disso, tais elementos foram ligados por analogia-desanalogia aos aspectos das experiências físicas e emocionais ati-vados nas interpretações a serem revistos, em razão das consequências nocivas do ritmo de vida atual. As compressões do tempo, causa-efeito e mudança produziram enquadres singulares nas mensagens geradas nos espaços-mes-cla, no sentido de que a rotina de vida passaria a pautar por outros valores (propriedades únicas).

Embora em número reduzido (dois casos), o coração foi relacionado à dedicação e amor ao trabalho, mas apenas em um deles o trabalho foi aponta-do de forma positiva, num texto em que o autor da análise também apresen-tou a visão geral nociva do trabalho. Esse enquadre geral está relacionado às idas e às vindas do personagem com o coração desenhado no peito, carregan-do, apressado, sua maleta. Logo, a imagem funcionou como um importante gatilho para abertura dos espaços mentais que configuram as redes postuladas neste estudo.

BLENDiNG, METAPHOR AND METONYMY iN CARTOON

ABSTRACTAnalysis of various interpretations of the same cartoon, produced by undergraduate students, in order to de-monstrate the kind of blending involved in the concep-tualization of the meanings attributed to it. The most common interpretations obtained consist of a critical view of excessive dedication to work to the detriment of personal life and thus configure double scope con-flicting networks.

KEYWORDS: Conceptual blending; Conceptual meta-phor; Cartoon

Recebido em: 30/09/11Aprovado em: 30/04/12