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Mesa Temática: Epistemologíascoloniales/des/poscoloniales.
Titulo: Identidade, Colonialismo & Utopia: consideraçõessobre a ação artística do
Movimento Intercultural IDENTIDADES na comunidade quilombola Conceição das
Crioulas.
Autor: Madalena Zaccara
Instituição: Universidade Federal de Pernambuco
e-mail: [email protected]
Resumo
O Movimento Intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal, interage com
comunidades de colonização lusa através de uma proposta de arte relacional. Ele atua em
Moçambique, Cabo Verde e Conceição das Crioulas, comunidade quilombola no Nordeste do
Brasil. É sobre asua atuação em Conceição das Crioulas e de nossa experiência enquanto
historiadora de arte e membro do grupo que trataremos no presente texto. A utopia da
comunidade de origem quilombola é um dos produtos artísticos do grupo e serve de ponto de
partida para uma História da Arte que se afasta da cronologia e da concepção ocidental de obra
de arte.
Palavras Chave: Movimento Intercultural “Identidades”; descolonização; Utopia, Conceição
das Crioulas.
Abstract
The Intercultural Movement IDENTIDADES, born in Porto, Portugal,
interactswithportuguesecolonizationcoloniesthrough a proposalofrelational art. It acts in
Moçambique, Cabo Verde and Conceição das Crioulas, a quilombola community in
theNortheastofBrazil. It is to its activity in Conceição das Crioulas and our experience as an art
historian and member of the group that we will treat the present text. The utopia of the
community of quilombola origin is one of the artistic products of the group and serves as
starting point to a History of Art that moves away from chronology and the occidental
conception of the work of art.
Keywords: Intercultural Movement "Identidades", uncolonization; utopia; Conceição das
Crioulas.
Sobre economia, marginalização, identidade e descolonização.
Uma epistemologia do Sul se traduz em três orientações: aprender
que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e
com o Sul11
Novas formas de soberania capitalista desenham, na contemporaneidade, a
cartografia do poder econômico e cultural em um processo contemporâneo de
colonização. O discurso neoliberal fica ainda mais forte enfraquecendo as instituições
políticas que poderiam em principio tomar posição contra a liberdade do capital e da
movimentação financeira.Globalização significa, entre outras coisas, a progressiva
1Boaventura, Santos. Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, São Paulo: Cortez, 1995.
separação entre poder e política com um capital que tornou-se extraterritorial, não mais
submetido às fronteiras do Estado.
A pós – modernidade, modernidade líquida ou modernidade avançada (não
importa a terminologia utilizada para definir o aqui e agora), se manifesta como um
consumir transformado em uma ideologia de tal forma manipuladora que se torna quase
um culto. Não se consome o objeto em si, pela sua utilidade, e sim pelo que ele
representa pela sua capacidade de remeter o consumidor a uma determinada posição, a
um determinado status. Para tanto, todo um ritual foi criado, planejado e é executado
cotidianamente tendo as mídias como missionários na conversão dos fiéis.Trata-se de
uma sociedade de consumo estabelecida “com tipos de consumidores claramente
diferenciados e novas modalidades de comercialização e técnicas de marketing” 2.
Essa cultura do consumo encontra cada vez mais eco na contemporaneidade e,
segundo Don Slater 3 ,está vinculada a uma sociedade na qual as “práticas sociais,
valores culturais, ideias, aspirações e identidades são definidas e orientadas”. Vivemos,
portanto, em uma sociedade materialista e pecuniária na qual o valor social das pessoas
é aferido pelo que elas têm e não pelo que elas são. Uma sociedade de consumo como
quer Baudrillard4. Essa “sociedade do espetáculo” segundo a definição de Guy Debord
5.
Dentro deste contexto, de contornos ideológicos e econômicos forjados pelo
Ocidente hegemônico o mercado dita as regras anulando ideologias que se afastem dos
conceitos dominantes. Como forma de controle investena manipulação e no
estilhaçamento das identidades fundindo os seus fragmentos num todo conceitual onde
os critérios de importância do indivíduo e das sociedades estão ligados à sua capacidade
de gerar e consumir e onde os que fogem a esta regra são descartados a partir do
momento em que eles não correspondem às necessidades neoliberais que regulam hoje
esse “admirável mundo novo” globalizado.
Sob essa nova forma de colonização pertence - se a todos os espaços e a nenhum
espaço em particular. As identidades desaparecem. Sem território ou referências
culturais o indivíduo e os grupos perdem modelos.Não há lugar para a memória mesmo
que ela seja um elemento fundamental para a construção de uma identidade pessoal e
coletiva.
Pouco a pouco, entretanto, os movimentos sociais, culturais e intelectuais tomam
consciência de que a colonização planetária não foi um produto de uma evolução
histórica que aconteceu de forma linear gerada pelo avanço de uma cultura superior
eurocêntrica, mas de um processo histórico de conquista militar e dominação econômica
e religiosa que orientou a ocidentalização do mundo6. A partir, principalmente, dos anos
oitenta do século XX passa-se a questionar, de forma interdisciplinar, a ideia de um
centro culturalmente e historicamente superior e a defender uma pluralidade de centros
nas margens e, consequentemente, a possibilidade de outros processos civilizatórios. O
2 Lívia Barbosa.Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. P. 27
3 Don Slater, citado por Barbosa Lívia Op. Cit., 2004, p.32.
4 Jean Baudrillard. La societé de consommation. Paris: Denoel, 1970.
5 Debord Guy. La Societé du Spectacle.Paris: Gallimard, 1992.
6 S. Latouche. Fault-il refuser le développement? : essai sur l’anti-économique du tiers-monde.
Paris :PUF, 1986.
modelo binário centro-periferiajá não é incondicionalmente aceito bem como a estrutura
hierárquica de dominação que foi construída pelo modelo eurocêntrico. 7
Frantz Fanon em Os condenados da terra8·,nos lembra de que a principal arma
do colonizador sempre foi a imposição da imagem que eles concebiam dos colonizados
sobre os povos subjugados. O processo do pensamento sobre a descolonização passa,
portanto, pela desconstrução de mitos tradicionais tais como modernização,
desenvolvimento, sociedade industrial, crescimento econômico ilimitado ou
superioridade étnica dos povos brancos9bem como pelasubstituição e superação da
concepção eurocêntrica de centro-periferia, pela ideia de um Norte e um Sul global e
pela valorização de outros campos do saber não necessariamente eurocêntricos.
A reconfiguração da ideia centro-periferia libera outras narrativas
questionadoras do eurocentrismo como fonte hegemônica de produçãodo saber sobre o
mundo gerando novas reflexões que partem tanto das margens quanto de alguns países
colonizadorescujos teóricos se dispõem a rever a uniformização global a partir de uma
ótica hegemônica. Como lembra Paulo Henrique Martins10
este “giro epistemológico se
desenvolve de modo importante neste momento simultaneamente em vários
continentes- América, Europa, África, Ásia e também em vários países considerados
colonizadores como França, Itália, entre outros”.
É necessário sublinhar que o trabalho de desconstrução do colonialismo, sob
suas mais diversas expressões, não se limita à produção do conhecimento teórico, mas a
uma práxis onde a artetambém tem lugar como possibilidade de subversão da
hipervalorização de inovações de caráter científico e tecnológico produzido pelas
culturas do Norte e legitimadas pela lógica do capitalismocomo referência de uma
verdade que fundamenta a hierarquia de dominação.
Michel Maffesoli11
, no prefácio de seu livro Eloge de laraisonsensible,afirma
que “no momento em que a mercantilização parece se impor” é necessário “ a audácia
de um pensamento meditativo no lugar de um calculador”.Portanto, pensar diverso,
investir no sensível, pode fazer toda a diferença.Os momentos de crise produziriam
como quer Chateaubriand“un redoublement de vie chez les hommes”?12
O tempo seria,
portanto, uma espiral, um ciclo, onde retornaria, em outro nível, aquilo que julgamos
perdido, passado.É investindo, pois, neste pensamento que passaremos a analisar o
papel da arte como instrumento de resistência e o papel de um grupo de artistas como
agentes de uma micro utopia na sociedade do espetáculo.
Arte e política como uma forma de resistência.
7Paulo Henrique Martins. La decolonidad de América Latina y la heterotopia de uma comunidade de destino
solidaria. Buenos Aires: Fundacion CICCUS, 2012. 8 Frantz Fanon.Les Damnés de la Terre .Paris : Editions Maspero, 1961.
9 Paulo Henrique Martins. Op Cit. 2012.
10 Paulo Henrique Martins. Op. Cit. P 38
11 Michel Maffesoli. Éloge de la raison sensible.Paris : La table ronde. 2005.
12 Chateaubriand citado por Michel Maffsolli. Op. Cit, 2005. P 134
La subversion la plus profonde ne consiste forcément pas
a dire ce qui choque l‟opinion,la loi, la police,mais à
inventer un discours paradoxal 13
Na atual reconfiguração do universo das artes visuais como são introduzidas as
estratégias políticas de denúncia ou de transformação? Como podemos ir além do
espaço concedido pelo poder geopolítico que ainda parte dos, já denunciados ad
nauseam, centros hegemônicos? Em nossa realidade contemporânea globalizada onde as
novas formas de soberania capitalista desenham cartografias, inclusões, corações e
mentes qual o poder da arte, para agir de forma a interferir nas fissuras deste mundo e
como ela se situaria entre a utopia e a realidade?
A arte é aquilo que resiste segundo Deleuze 14
. Em que medida, porém arte e
artista escapam das relações/condicionantes em um mundo de ideias e conceitos cada
vez mais internacionais e uniformizados?
Para Canclini15
um futuro parece possível. Os processos de hibridização cultural,
nos quais a arte se inclui, seriam tão intensos que mobilizariam a construção de novas
identidades bem como o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais apesar
da consciência das relações de poder.Adolfo Pedro Arribas Montejo16
, por sua vez,
acredita que a arte pode interferir no processo de mudança social a partir de sua relação
com a utopia. Através da esperança que ela constrói. A arte poderia funcionar como
uma última instância, um último reservatório humano a escapar de ser
incorporado/apropriado pelo sistema que hoje serve ao capitalismo neoliberal.
Para Jacques Rancière17
a arte é um agente transformador pela sua capacidade de
reconfigurar o sensível. Rancière 18
reforça que é a partir “do recorte sensível do
comum, da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição, que se
coloca a questão da relação estética/politica”. Esse olhar priorizaria a noção de
envolvimento em relação ao desenvolvimento.
Vitalidade, como filosofia da vida, seria o caminho a seguir, segundo
Maffesoli19
. Um caminho ligado à priorização da vida onde novas formas do fazer
artístico apontariam caminhos. Paul Ardenne 20
denomina essa nova forma de fazer arte
de “arte contextual”, uma relação estreita entre artista & sociedade. Para ele “la
première raison de l‟art coxtextuel relève d‟un désir social:intensifier la présence de
l‟artiste à la réalité collective » 21
Uma nova gênese. Uma esperança.
As práticas artísticas seriam, portanto, para a maioria dos teóricos mencionados,
uma possibilidade de interferir na realidade ou, pelo menos, tornar uma utopia menos
13
Roland Barthes citado por Michel Maffesoli. Op. Cit. P.15. 14
Gilles Deleuse. O ato da criação. A obra de arte não é um instrumento de comunicação in Folha de São Paulo, São Paulo 27 de junho de 1999. 15
Nestor Garcia Canclini. Consumidores Y ciudadanos. Conflictos multiculturales de globalización. México: Grijalbo, 1995 16
Adolfo Pedro Montejo Arribas. Os paradoxos da imagem: arte versus visualidade. InÉ tudo mentira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. 17
Jacques Rancière. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. 18
Jacques Rancière . OP. Cit. 2009. P.26 19
Michel Maffesoli. Homo eroticus. Des communions émotionnelles.Paris : CNRS Editions,2012 20
PaulArdenne. Un art contextuel. Paris, Flammarion.2002.p.39. 21
Paul Ardenne. OP. Cit.p.40.
distante. Através de ações micropolíticas poder-se-ia tentar mudar a dinâmica do
mainstream. A liberdade conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas que
envolvem a política poderia abrigar umsonho para além das servidões e uma promessa
de reconciliação com o humano em sua expressão maior. Ela encontrar-se-ia, portanto,
para além das múltiplas grades com as quais o capital burocratiza e regula tudo,
inclusive a arte, incidindo em sua produção. A arte ofereceria uma alternativa de
resistência possível para esse mundo injusto.
O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga produção de
objetos destinados a serem vistos. Também, no que diz respeito à política, outras
maneiras de compreendê-la e pratica-la se processam nos tempos que correm. Nas
palavras de Jacques Rancière 22
: “a ação artística identifica-seentão com a produção de
subversões pontuais e simbólicas do sistema”. Outra maneira de militância.
A arte arrasta sempre a magia na sua sombra, o encanto do enigmático, a
inquietação das mentes insubmissas, a incompletude do estabelecido, a procura da
transcendência, a vontade de superação do conseguido. Em si isso se constitui em um
alento nesse mundo de pouca esperança. O artista pode abrir caminhos, resistindo e
isolando-se do ruído circundante do grande espetáculo que é promovido e gerar novas
propostas e ressonâncias.
Para Nicolas Bourriaud 23
cabe ao artista a tarefa de “devolver concretude ao que
se furta à nossa vida” o que ele faria rompendo com a lógica da sociedade do
espetáculo, com a escala diluidora da globalização colonialista e tentando reconstruir e
restituir fé a um mundo cuja dominação cultural pelo capitalismo avançado conduz a
um cotidiano transformado em um produto de consumo.
Talvez a melhor definição da prática artística contemporânea que opta pela ação
política, traga realmente em si o discutido conceito de utopia. Ela reflete um
questionamento crítico da ordem existente e abriga a ideia de outro território humano
possível. Ela poderia, portanto, supor e propor a revisão da mecânica ocidental
universalista através de uma interculturalidade baseada em trocas em que a
solidariedade e a participação se façam presentes.O ato de criação pode ser então um ato
utópico. Aquilo que nos arranque do sono do senso comum, que possa desenhar um
novo horizonte eque desperte em nós o desejo de construir novas formas para o
pensamento e para a vida.
Nicolas Bourriaud24
teorizou a proposta de uma arte ligada a uma estética
relacional que cria diferença no consenso legitimado de mundo e religa vínculos sociais
perdidos. Uma estética que se pauta em função das relações inter-humanas que elas
figuram, produzem ou criam. O mundo da arte e da vida está cada vez mais fundido e a
estética, como ciência do sensível, está em consonância com esse novo olhar.Para ele, a
possibilidade desta arte relacional, “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera
das relações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço
22
Jacques Rancière. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.p.108. 23
Nicolas Bourriaud. Pós-produção. Como a arte programa o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.p.31. 24
Nicolas Bourriaud. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
simbólico autônomo e privado” 25
,atende aos objetivos estéticos, culturais e políticos
postulados pela contemporaneidade e estaria contribuindo para a preparação de um
mundo futuro.Pressente-se já, através de suas ideias, a necessidade de uma retomada de
uma política ligada a uma transformação estética, ou como quer Carlos Vidal “uma
refundação da linguagem estética que ultrapasse a fatalidade do triunfo da
industrialização do pensamento”.26
A arte contemporânea desenvolveria, portanto, um projeto político quando se
empenha, por exemplo, em investir nas esferas das relações humanas. Essa condição
corresponde, hoje, a iniciativa de artistas que mergulham no campo ampliado da
criatividade onde o caráter político é relacionado ao fato de uma integração do trabalho
artístico com a vida.
O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga produção de
objetos destinados a serem vistos e consumidos e investiu em novos horizontes que
funcionam ora como mapas que orientam seu movimento ora como motor de um desejo
de caminhar novamente em busca de um ideal.
Essa prática levaria mesmo a uma (re) conceitualização da palavra utopia: uma
atualização de sentido. Ela seria uma práxis mais perto do chão. Possível. E necessária,
pois, afinal, não é que a utopia tenha o monopólio da esperança em uma perspectiva
histórica, mas a sua ausência em qualquer momento,inclusive no que vivemos, significa
uma falha para com a fé.
Jaques Rancière configura a utopia como “um bom lugar, de uma partilha não
polêmica do universo sensível, onde o que se faz se vê e se diz se ajustam
exatamente”.27·.
Ela abre uma dimensão de reflexão crítica e introduz no espaço da vida
e da arte uma zona de imaginação, de desequilíbrio, de suspensão. A arte deve
introduzir, neste mesmo espaço, processos que sinalizem uma desconstrução criativa
para que o território contemporâneo do espetáculo não se aproprie da ação de criar
baseado na constatação da inevitabilidade do consenso.
Para essa a concretização desta possibilidade, desta nova práxis, o envolvimento
do artista segundo Jose Carlos de Paiva e Silva seria o de procurar modelos que
ultrapassassem as fragilidades e investissemnas possibilidades utópicasdo mundo
contemporâneo, “em contextos sociais precisos, onde, se promoveu uma aproximação
epidérmica”28
Artistas ou grupos de artistas já se inserem neste universo de práticas que, dentro
de um circuito micropolítico, faz frente à estética e a ideologia dominante. Sua ação
interfere em todos os aspectos da vida cotidiana. A reação das mentes insubmissas é o
que pode levar à quebra do feitiço do consumo logo existo. Isto pode ser observado nas,
ainda raras, estratégias de resistência, individual ou coletiva, nos centros hegemônicos
ou nas margens que vêm acontecendo nos últimos anos:a artesendo utilizada como
25
Nicolas Bourriaud. Op. Cit. 2009. P.19. 26
Carlos Vidal. Definição da arte política. Lisboa: Fenda, 1997.p 22. 27
Jacques Rancière. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Ramada: Edições Pedago, 2010, p.61. 28
Jose Carlos de Paiva. ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto. 2009.p. 53
agente de transformação social com seu papel político sobre a sociedade reescrito e
redesenhado.
O “outro” como proposta artística de (des) envolvimento.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio
vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou
figurandonas óperas de Alencar cheio de bons
sentimentosportugueses2929
O discurso (e a realidade) neoliberal torna-se ainda mais forte e contundente na
medida em que se acentua o enfraquecimento das instituições políticas “que poderiam
em principio tomar posição contra a liberdade do capital e da movimentação
financeira”30
.É um tempo em que os resultados econômicos, a produtividade e a
competitividadesubstituíram as grandes ideologias, suas utopias e os no qual os
indivíduos foram abandonados a sua própria sorte perdendo o sentido agregador da
tribo.
Dentro de um espaço minado pelo neoliberalismo e centrado na hegemonia
econômica e cultural, processa-se um aliciamento conceitual apoiado na força das novas
mídias, na diluição das fronteiras, na sedução da novidade, no fugidio, no efêmero que
têm como caixa de ressonância os centros periféricos. Dentro dessa relação
centro/periferia um modelo mais forte, inserido em um contexto com características
hierárquicas definidas por relações de poder, incide sobre outro deixando - lhe poucas
alternativas de sobrevivência.
Contrapondo - se a essa nova e muito mais eficiente forma de colonização,
levando-se em conta as ferramentas de difusão de influências, que promove o
desmanche diferencial e a primazia das culturas centralizadoras, coloca-se a alternativa
de que “identidades culturais não são construções atemporais dotadas de um núcleo
imutável de crenças e valores”31
sendo, portanto, porosas a um intercâmbio
conceitual.Nestas condições a arte se apresentaria “como uma mesa de montagem
alternativa que perturba, reorganiza ou insere as formas sociais”32
caberia ao artista
desprogramar a realidade para reprogramar uma estética que se pautaria em função das
relações inter-humanas. Uma estética que contemple o “outro” legitimando-o. O mundo
da arte e da vida estaria, então, de fato cada vez mais fundido e a estética, como ciência
do sensível, em consonância com esse novo olhar.
Se o artista é influenciado pelo meio, suas obras exercem influência sobre o
espaço social. Sua atuação afeta o contexto comunitário inserindo novos códigos de
29
Oswald de Andrade. Manifesto antropofágico, 1922.
inhttp://www.puc-campinas.edu.br /centros/clc/jornalismo/projetosweb/2003/Semanade22/mani
festo.htm 30 Zygmunt Bauman. Em busca da politica. Rio de Janeiro: Zahar Editora. 2000, p.36. 31 Moacir dos Anjos. Contraditório. Texto do Catálogo Panorama in
http://www.cultura.gov.br/brasil_arte_contemporanea/?Page_id=272 32 Nicolas Bourriaud. Op. Cit p. 2009.p.83
referência. O criador detém, portanto, uma forma de poder: aquele de trazer um olhar
particular sobre o mundo. Um olhar pessoal que pode conduzir o coletivo. Arte e
sociedade são, assim, estreitamente ligadas no que diz respeito à possibilidade de
reconfiguração dos padrões de referência coletiva pelo artista que atuaria, então, como
agente político de transformação social.
A arte contemporânea traz uma relação nova entre ela e o mundo. A realidade
transforma-se em um objetivo de investigação. Criadores e pensadores se debruçam
sobre o seu engajamento com a realidade, com o outro.Paul Ardenne 33
,por exemplo,
denomina de “arte contextual” esta relação artista & sociedade.Citando Richard Martel,
o teórico e artista canadense que se encontra a frente do Le Lieu,em Quebec, ele nos
lembra que “ l‟artcontextuelsupposelamatérialisation d‟ une intention
d‟artistedansuncontexteparticulier”. 34
Para Ardenne 35
“la première raison de l‟art
coxtextuel relève d‟un désir social:intensifier la présence de l‟artiste à la réalité
collective.”36
.
Jose Carlos de Paiva 37
considera que a arte “se constrói como lugar reflexivo e
contaminador”. As práticas artísticas seriam, portanto, uma possibilidade de interferir na
realidade ou, pelo menos, tornar tal fato uma utopia menos distante. Através deste olhar
o artista, também antropólogo, não mais estudaria ou registraria as aldeias, as
comunidades, ele estudaria e aprenderia nas comunidades. Essa seria a obra de arte:
uma realidade onde identidade e alteridade tornam-se matéria prima da produção
artística e que necessita do apoio da antropologia, sociologia, política e demais ciências
que ajudem à sua conceituação e gênese.
Essa nova realidade de ações micropolíticas como campo de expressão faz
pensar arte hoje em um mapa global que inclui formas de geografias materiais e
imateriais. A liberdade conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas que
envolvem o outro pode abrigar um sonho para além das servidões e uma promessa de
reconciliação com o humano em sua expressão maior. Sua proposta encontra-se para
além das múltiplas grades com as quais o capital burocratiza e regula a arte.
Gênese e percurso do Movimento Intercultural Identidades: Conceição das
crioulas.
Arte é uma palavra e uma categoria europeia,
que estágeralmente ausente da maioria das
línguas e das culturasnão ocidentais38
33
Paul Ardenne.Op. cit..2002.p.40. 34
A arte contextual supõe a materialização da intenção do artista dentro de um contexto particular (tradução do autor) 35
Paul Ardenne. Op. Cit.42. 36
A principal razão da arte contextual sublinha um desejo social: intensificar a presença do artista na realidade coletiva. (tradução do autor) 37
Paiva, José Carlos de. Investigar a partir da ação intercultural. Porto: Gesto Cooperativo Cultural, CRL, 2011.p. 29 38
José António B. Fernandes Dias. “Arte e Antropologia no Século XX: modos de relação”, in Etnográfica, Vol. V (1), 2001, p. 106 citado por Jose Carlos de Paiva in ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto.
Um grupo de artistas pode atingir novas possibilidades de atuação no real. Essa
interação pode se processar seja através de uma horta comunitária e canteiros, seja na
ajuda a uma comunidade para caiar suas casas, seja na produção de um mural, uma
calçada ou qualquer outra produção. Através de ações cotidianas, o artista promove oseu
espaço de convivência social. A intervenção na comunidade possibilita trocas e
experiências e possibilidade de novas poéticas visuais bem como de seus processos.
Grupos como o do coletivo dinamarquês Superflex que desenvolveu projetos de
arte coletiva entre eles o Supergas139
(1996-97) processada “a partir da realidade de
uma comunidade específica em Camboja (África) e na Tailândia (Ásia)”, serve de
exemplo. A preocupação do coletivo seria a preservação do meio ambiente através de
uma estratégia micro empresarial.Outro exemplo, também apontado por Janice Martins
Sitya Appel,40
é o do artista Rirkrit Tiravanija “que fundou em 1998 junto a outros
artistas, o projeto The Land, que reúne ações colaborativas e coletivas para moradia e
obtenção de energia natural para a comunidade”. As habitações, “pequenas
estruturassobre palafitas sobre plantações de arroz”, atendem a coletividade como obra
de arte relacional.41
O Movimento Intercultural IDENTIDADES “aposta” em um (re)
equacionamento do mundo da arte.Emuma linguagem artística voltada para a fusão de
mundo, arte e vida e na descolonização do olhar.A arte é uma forma de resistência e as
estratégias artísticas podem abrigar o sonho de liberdade.O IDENTIDADES inscreve
seu fazer entre as ações de caráter micro político. O seu interesse pelo outroimplica na
ideia de uma produção artística que tem identidade e alteridade, como matéria prima e
que necessita do apoio da antropologia, sociologia, política, direito e demais ciências
para ajudar na sua conceituação e ação. A sua reflexão/ação não está mais sujeita ao
olhar contemplativo do belo platônico ou o das belas-artes no sentido clássico. Ela
existe em sintonia com outras atividades da existência humana. Traz em sua gênese um
novo mapa global que inclui geografias e interesses diversos.
Apesar de ter origem em um país de passado
colonialista,Portugal,eleproporciona uma (re) conceitualização da palavra utopia: uma
atualização de sentido. Ela, a utopia, seria uma práxis possível através de um processo
de comunicação entre culturas diversas em condições de respeito, de um intercâmbio
construídoentre pessoas, saberes e práticas culturalmente diferentes buscando um novo
sentido nas suas diferenças, de uma negociação onde os conflitos de poder são
confrontados gerando práticas e ações conscientes.A partir de Porto, Portugal, ele se
39
Appel, Janice Martins Sitya. Dispositivos relacionais em processos coletivos e prática artística emcomunidades:
hortas comunitárias e canteiros como possibilidade in Panorama Crítico. Junho-julho 2010. Disponível em http://www.panoramacritico.com/006/docs/JaniceMartins_DispositivosRelacionais_artigos_panoramacritico06.pdf 40
Appel, Janice Martins Sitya. Op. Cit. 2010. 41
Idem Op. Cit. 2010.
relaciona com Moçambique e Cabo Verde, na África e Conceição das Crioulas,
comunidade quilombola42
em Pernambuco, Nordeste do Brasil.
De acordo com o site oficial do município de Salgueiro, Pernambuco, ao qual
pertence Conceição das Crioulas, a gênese desta comunidade éconcebida e divulgada
através da tradição oral. Sua origem seria, segundo os moradores mais
velhos,proveniente da ação de seis negras escravas que no início do século XIX
conquistaram a liberdade, chegaram à região e arrendaram uma área de
aproximadamente três léguas. Com a produção e fiação do algodão que vendiam na
cidade de Flores, conseguiram pagar a renda e ganharam o direito à posse das
terras.Esta comunidade quilombola,de características matriarcais, faz parte das hoje já
reconhecidas pelo Estado Brasileiro por meio de “certificação feita pela Fundação
Cultural Palmares (FCP) (certificação do autorreconhecimento) e da abertura de
processo de regularização dos territórios quilombolas pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA)” 43
Conceição das Crioulas foi (e é) marcada por conflitos pela posse da terra.
Historicamente, em tempos mais remotos teve lugar a Guerra dos Urias onde ela, a
comunidade, enfrentou brancos apoiados por fazendeiros e a Guerra dos Revoltosos que
obedeceu aos mesmos padrões. 44
Esses conflitos ainda perduram na atualidade neste
espaço geográfico que faz divisa com o território indígena pertencente a tribo Atikum
Uma com a qual a comunidade interage e miscigena-se.
No ano 2000 foi fundada a AQCC (Associação Quilombola da Conceição das
Crioulas) representada por membros desta comunidade e das vizinhas. Seu objetivo
maior era a luta por seus direitos, inclusive o da posse da terra. Finalmente isso
aconteceu no dia vinte e dois de setembro de 2014,um dia histórico para a comunidade
quilombola Conceição das Crioulas.Nesta data foram entregues pelo INCRA três títulos
de domínio de cinco imóveis rurais que estavam dentro do Território Quilombola.Com
este ato (que visa assegurar direitos históricos e garantir segurança jurídica quanto à
situação fundiária) aproximadamente 898 hectares passaram a compor efetivamente o
patrimônio coletivo da comunidade, beneficiando 750 famílias.
O movimento IDENTIDADES descobriu nesse cenário sertanejo brasileiro um
espaço de investigação e a possibilidade de “poder partilhar com uma abnegada
população a construção do seu destino.”45
. Em 2003 estabeleceu-se o início de um
42
No período de escravidão no Brasil (séculos XVII e XVIII), os negros que conseguiam fugir se refugiavam com outros em igual situação em locais bem escondidos e fortificados no meio das matas. Estes locais eram conhecidos como quilombos. Nestas comunidades, eles viviam de acordo com sua cultura africana, plantando e
produzindo em comunidade. Na época colonial, o Brasil chegou a ter centenas destas comunidades espalhadas,
principalmente, pelos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas. 43
Gilvania Maria da Silva Educação como processo de luta politica. A experiência de ‘Educação diferenciada’ do
território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação. 2012., p. 28 44
Crioulas Vídeo in ID10: com 10 anos o Identidades esclarece-se e dá-se a conhecer. Porto: Gesto,2007. 45
José Carlos de Paiva, ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto. 2009, p.141
relacionamento intercultural que permanece até hoje. Naquele momento,que estabelece
um marco, foi criada uma oficina de artes plásticas e uma oficina de teatro ministrada
pelo ator moçambicano Rogério Manjate.O objetivo erasediar lá um projeto duradouro
que pouco a pouco criasse raízes no território. A interação se daria via cumplicidade
com a comunidade e comunhão com as suas lutas.
Em 2005, o grupo (que sempre incluiu artistas professores e alunos), voltou a
Conceição das Crioulas para iniciar o programa intitulado Deslocações, programa este
que garantia uma presença anual do coletivo e que se centrava em espaços de
intervenção através das linguagens doVídeo e do Web design. Nascia o “Crioulas
Vídeo”, formado por membros da comunidade. A partir de um computador, uma câmara
de vídeo pessoal e um microfone este grupo realizou,de forma autônoma, no que diz
respeito à técnica e narrativa, um conjunto de documentários em vídeode apoio à luta da
comunidade e o divulgou.O IDENTIDADESdotou, assim, a população de instrumentos
de comunicação, de informação e de preservação de sua memória utilizando meios
contemporâneos.Com isso libertou a população de um passado já ausente e de um
isolamento fatal contribuindo para a construção de uma identidade que se edifica
permanentemente.
O coletivo atuou também na revitalização da cerâmica local,uma tradição na
comunidade em declíniopor conta do envelhecimento das suas artesãs ministrando
oficinas de expressão plástica,técnicas de impressão e animação cultural. O método,
elaborado gradualmente ao longo de muitas discussões e de análises das diversas
experiências vividas teve (e tem) como premissas o conhecimento, a confiança e a
cumplicidade com a comunidade para a construção crítica do conhecimento.
Hoje a ação do grupo centra-se no trabalho desenvolvido com as professoras, no
sentido de que elas adquiriram as competências mínimas necessáriaspara a passagem do
conhecimento sobre arte.Neste exato momento, por exemplo, Elisabete Mônica Moreira
Faria, doutoranda em Educação Artística pela Universidade de Porto e membro
domovimento IDENTIDADES desde 2000, desenvolvesua pesquisa na
comunidade.Sobre essa experiência ela assim se manifesta:
A comunidadeentendeu que deve integrar as diversas áreas da
expressão no seu currículo, num processo de cruzamento intercultural
com o IDENTIDADES. Neste contexto o projecto „expressões
artísticas nas escolas da comunidade‟ visa elaborar uma discussão
construtiva e participativa paraum Currículo nas Artes. 46
A experiência educacional de Conceição das Crioulas é considerada referência
para o movimento quilombola e outras organizações que trabalham com educação. A
comunidade construiu um projeto de educação específica e diferenciada que trabalha
com uma concepção na qual os valores, a cultura, os costumes, as tradições, a sabedoria
das pessoas mais velhas e a história dos antepassados fazem parte do processo.
46
Entrevista online concedida a autora. Dezembro de 2013.
A proposta de uma descolonização mental pode relativizar condicionamentos a
partir de uma visão mais generosa, mais sensata e mais ética de mundo. A liberdade
conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas ditas utópicas que envolvem
a política pode abrigar um sonho para além das servidões e uma promessa de
reconciliação com o humano em sua expressão maior. A arte, devemos lembrar, pode
ser o último reservatório do imaginário a escapar de ser incorporada/apropriada pelo
sistema que hoje serve ao capitalismo neoliberal.
A arte relacional ou contextual a qual se propõe o movimento analisado
transforma o artista em participante da história imediata. Esse engajamento dessa forma
de criar artístico com a realidade não visa o sublime ou o transcendente. Sua proposta se
volta para a possibilidade de transformação do social e nele se encontra seus
instrumentos.
O movimento IDENTIDADES propõe ação para além das teorizações. Aotomar
comunidades e suas relações interculturais como campo do fazer artístico quevisa a
desconstrução da subalternidade e o fortalecimento de sua identidade, ocoletivo
pretendeu e pretende encontrar outras modulações para as oposições entre periferia
ecentro, atrasado e desenvolvido, subalterno e dominante, popular e acadêmico, apartir
de relações de reciprocidade e de dialogo.Nas palavras do coordenador do grupo José
Carlos de Paiva 47
oque diferencia a ação do coletivo da política social é que «a ação
artística nãoprepara nenhum amanhã, lida com o que habita em cada um, amplia a
capacidadede admiração, de atenção, de reflexão”. É o que acontece hoje em Conceição
das Crioulas no interior profundo do Nordeste do Brasil.
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Currículo:
Madalena Zaccara é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal
de Pernambuco, tem doutorado em História da Arte pela Université Toulouse II, França
pós-doutorado na Faculdade de Bellas Artes da Universidade de Porto, Portugal como
bolsista da CAPES. É professora associada do Departamento de Teoria da Arte e
Expressão Artística da UFPE e do Programa de Pós Graduação Associado em Artes
Visuais UFPE-UFPB. É autor de vários livros, capítulos de livros e artigos.