mercadoria do governo: o mundo desde a prisão

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O texto explora uma categoria utilizada nas prisões femininas do Rio de Janeiro, "mercadoria do governo"; categoria que ilumina as condições de reclusão e as formas em que as presas as concebem.

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  • REVISTA DO CFCH Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ISSN 2177-9325 www.cfch.ufrj.br

    Edio Especial JICTAC agosto/2014

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    Mercadoria do Governo: o mundo desde a priso

    Ana Cristina Tonini [email protected]

    Instituto de Filosofia e Cincias Sociais 7 perodo

    Orientador: Fernando Rabossi - Instituto de Filosofia e Cincias Sociais

    Ocupando a quarta posio, em nmeros absolutos, entre os pases com o maior

    nmero de pessoas encarceradas, a populao carcerria do Brasil teve um crescimento

    de 120,03% no perodo de 2001 a 2011, cifra que contrasta com o 9,32 % do

    crescimento populacional.1 Segundo os dados estatsticos do DEPEN,

    2 em junho de

    2012 foram contabilizada um total de 549.577 pessoas presas que, de acordo com os

    dados estatsticos por condio scio-econmica, 95% delas so pobres ou muitos

    pobres.

    Analisando os dados estatsticos supracitados, o modelo de encarceramento em

    massa do Brasil, ao mesmo tempo, corresponde a um processo de modernizao

    econmica e poltica que pode ser traduzido como a mundializao do neoliberalismo.

    Processo que revela uma poltica de encarceramento baseada em uma clara distino de

    classes sociais, recolocando uma questo que comum no Brasil: o encarceramento em

    massa o encarceramento de um determinado setor social e de determinados tipos de

    crimes, onde atores do poder judicirio aplicam a lei de forma diferente conforme o

    estatuto daquela pessoa afetada.

    A forma em que mquina judicial se efetiva, aproveita esse vis da populao

    carcerria que, sem o devido processo legal, mantida encarcerada ao recuo da lei e

    com propsitos mercadolgicos. A percepo da utilizao que o sistema e suas

    instancias fazem de corpo do preso e da sua fora de trabalho, aparece na categoria

    nativa de mercadoria do governo.

    Mercadoria do governo uma categoria que apareceu recorrentemente no

    discurso das presas, revelando a percepo que elas tm da forma em que so

    1 Disponvel em: http://portal.mj.gov.br. 2 Departamento Penitencirio Nacional.

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    consideradas pelas instncias de governo s quais esto sujeitas.3 Tal como uma delas o

    colocara em uma entrevista: Somos mercadoria do governo, eles fazem o que querem

    de ns: o governo, o DESIPE,4 os juzes, o poltico... Somos mo de obra de graa.

    A frase revela a percepo de que a truculncia e a arbitrariedade s quais esto

    submetidas no obra exclusivamente dos agentes do sistema penitencirio, mas uma

    forma abrangente de lidar com elas por parte do governo, o qual inclui tambm o

    sistema judicial, policial e poltico. O governo so todas as instncias que lidam com a

    existncia delas e todas so partcipes daquilo que reconhecem como a sua

    transformao em mercadoria. Isso fica claro nos contextos em que a categoria era

    utilizada em outras situaes, tais como as transferncias para outras unidades, em casos

    de omisso de socorro, encaminhamentos para o isolamento sem direito de defesa,

    tratamento agressivo e/ou barganhas ofertadas por parte das funcionrias e funcionrios

    do DESIPE e/ou Servio de Operaes Especiais - SOE.5

    Uma lgica geral de toda mercadoria poltica

    A idia de ser mercadoria do governo remete a duas dimenses. Por um lado,

    arbitrariedade das aes -eles fazem o que eles querem- que envolve tanto os maus

    tratos fsicos e emocionais - aquilo que Goffman denomina a mortificao do eu -

    quanto discrecionalidade e manipulao de cada ato que envolve a vida das presas,

    desde as atividades cotidianas mais bsicas - utilizao do banheiro, comida, descanso -

    at questes que deveriam envolver decises judiciais tais como traslado, mudana de

    regime, etc. Por outro lado, na entrevista, mercadoria do governo aparece associada

    utilizao da fora de trabalho das encarceradas.

    A seleo de pessoas encarceradas para atividades laborativa realizada pelo

    sistema prisional tem por base as redes de interaes entre presas e funcionrios, presas

    entre presas e/ou tcnicos. No entanto, nem todas as pessoas presas possuem e/ou

    3 O artigo baseia-se em material coletado no formato clssico do mtodo etnogrfico e na condio legal e

    social de pesquisadora e encarcerada a partir da observao participante por mais de nove anos nas

    unidades prisionais localizadas no Estado do Rio de Janeiro: Polinter Niteri, presdio Nelson Hungria

    (antigo complexo penitencirio Frei caneca), penitenciria Talavera Bruce, Bangu 07 (atual presdio

    Nelson Hungria e Bangu 08 (Penitenciria Joaquim Ferreira de Souza). 4 Departamento de Sistema Penitencirio. 5 Grupamento responsvel que tem por funo oficial transportar encarceradas. Utilizados tambm em

    aplicao de prticas de torturas.

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    desejam fazer uso de redes de contato no mbito carcerrio, restando-lhes aguardar o

    processo de inscrio realizada pelo setor da disciplina da unidade prisional, o qual

    condiciona o comportamento disciplinar da presa como fator principal para que a

    mesma seja classificada em uma atividade laborativa.

    A manuteno nas unidades prisionais realizado pelas pessoas encarceradas.

    As atividades incluem limpeza, alimentao, senhas de atendimentos nas sees,

    cantina, trabalhos na zeladoria, dentre outras. Cada seo tem seus critrios nessa

    alocao. No setor de alimentao da direo, a cozinha da direo, as pessoas

    selecionadas passam por avaliaes cujo principal fator a confiana que a direo

    possui na pessoa encarcerada. Outros setores tambm se utilizam de critrios baseados

    em confiana e/ou aparncia esttica, tais como, no setor de classificao, segurana,

    inspetoria e limpeza nas reas prximas ao porto de sada.

    Atividades como limpeza de banheiros da visita, monitoria nas celas e/ou

    galerias, alojamentos, ptios e distribuio de alimentao s encarceradas so

    destinadas s presas sem expresso simblica e/ou as consideradas indesejveis, seja

    por serem questionadoras ou consideradas indisciplinadas, do ponto de vista dos agentes

    penitencirios.

    Contudo, a utilizao da fora de trabalho das encarceradas no deriva das redes

    de interaes dentro da priso, mas ela encontra respaldo na legislao ao reduzir o

    tempo de cumprimento de pena descaracterizando trabalho escravo. Ainda que a

    legislao determine que cada trs dias de trabalho pode resultar em um dia a menos de

    pena6, essa simples frmula matemtica no , necessariamente, computada

    corretamente quando o clculo de pena emitido pela Vara de Execues Penais - VEP.

    A perversidade desse sistema consiste no fato das presas estarem submetidas

    vontade dos que detm o poder dentro da priso. As detentas passam por humilhaes e

    incertezas ao serem ameaadas constantemente com a perda da remisso de pena e/ou

    outro benefcio, perfazendo caractersticas de trabalho servil. Desta forma, o sistema

    prisional detm o corpo e o tempo do detento, referendando a frase das encarceradas

    sobre o simbolismo que h em trabalhar sem receber a reduo de pena: nem relgio

    trabalha de graa. precisamente aqui que a categoria mercadoria do governo

    adquire sua preciso de analise e denuncia.

    6 Desde 2011, o abatimento tambm pode ser obtido com 12 horas de estudo, divididas em trs dias.

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    A parte disciplinar no sistema prisional produzida pelos prprios agentes e

    julgada pela Comisso Tcnica de Classificao7, a qual raramente emite parecer

    favorvel presa. O relatrio sobre o comportamento disciplinar encaminhado ao juiz

    da vara de execues penais (VEP) subsidia ao magistrado em negar ou conceder

    benefcios, alm da retirada de tempo remido da pessoa encarcerada, sobretudo se o

    comportamento estiver ou for arbitrariamente qualificado como negativo, visto que,

    dependendo da presa, o comportamento pode estar em muito bom e passar para negativo

    conforme o grau da gravidade da parte disciplinar, e esse grau medido segundo a

    interpretao do agente penitencirio que aplica a punio e, tambm, por parte dos

    componentes da CTC8.

    A destituio dos dias trabalhados por deciso judicial configura, por lei,

    trabalho escravo, sendo necessrio aos encarcerados como forma de reaver seus direitos

    a perpetrao de recurso legal por meio de seus representantes, caso tenha representao

    legal.

    O juiz da VEP, aps recurso apreciado, costuma desfazer sua deciso judicial

    anterior restituindo os dias remidos da pessoa presa, o que no serve como garantia

    legal quando o juiz analisa outro caso semelhante e volta a retirar os dias remidos,

    criando conflitos de interpretao entre os atores sociais envolvidos e intensificando

    quantitativamente o nmero de recursos impetrado sobre o mesmo ponto.

    Essa configurao social poltica de julgar impacta nos resultados e na aplicao

    de penas, a qual est intimamente ligada s condies financeiras dos acusados

    formando uma populao carcerria, basicamente, proveniente da mesma classe social e

    periferia evidenciando os resultados quantitativos e qualitativos impetrados pelo poder

    judicirio em condenaes criminais.

    7 Comisso existente em cada estabelecimento prisional composta por, no mnimo, dois chefes de

    servios, um psiquiatra, um psiclogo e um assistente social, presidida pelo diretor do estabelecimento

    (Lei de Execuo Penal/Lei 7.210/84, art. 7), com a funo de realizar o exame criminolgico inicial

    para elaborar o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisrio (NR do art. 6 da LEP, alterado pela Lei 10.792/2003). Outras competncias da CTC esto estabelecidas no art. 4 do Regulamento Penal do Rio de Janeiro (RPERJ/Decreto 8.897, de

    31.03.1986), dentre elas, o inc. III estabelecer: apurar e emitir parecer sobre infraes disciplinares ocorridas nos estabelecimentos. 8 Por exemplo: Data: 10/03/2009 Origem: DR ANA PAULA FILGUEIRAS MASSA RAMOS Destino:

    SVP1 / FINAL 2 Prateleira: 2

    Assunto: RETORNO DA C ONC LUSO Descrio: ...A REGRESSAO AO REGIME FEC HADO E A

    PAERDA TOLTAL DOS DIAS REMIDOS,VEZ QUE O DIRETOR VIGENTE NAO ADMITE

    LIMITA AO TEMPORAL(SUMUA VINC UNLANTE N9,STF)C UMPRA-SE.

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    Esta extenso de relaes remete a uma anlise apontada pela pesquisadora

    Manuela Ivone Cunha sobre o pensar os espaos priso e bairro conjuntamente ao invs

    de pens-los separadamente. Esta continuidade abordada como um dos pilares de

    paradigma da poltica prisional.

    ... s transformaes ocorridas na populao prisional... uma populao

    prisional... ligadas h muito por vnculos de parentesco, de vizinhana e de

    amizade ora so detidos de forma simultnea, ora vo se revezando em

    territrio prisional, cumprindo penas bastante longas... esta incorporao

    mtua entre bairro e priso torna impossvel analisar estes contextos

    separadamente...(Cunha, 2002: 535).

    O uso que se faz das pessoas confinadas apresenta caractersticas e objetivos

    mercadolgicos, mas tambm religiosos. Sobre as detentas h um controle em todas as

    esferas e, atravs da legislao, deveres e preceitos legais e religiosos se combinam. O

    fato de se impor ao encarcerado a prova de silncio,9 ou a obrigatoriedade de

    participao em missas comemorativas de indulto de natal, dentre outras, so a

    constatao dessa combinao.

    Nessa condio de mercadoria, poltica e moral, uma massa social produzida a

    partir da negao de autonomia, destituda de uma forma de existncia social,

    invisibilizadas, sem status de pessoas e reconhecimento formal, condies inatingveis

    para o grupo supracitado. Explorar a categoria mercadoria do governo nos permite

    iluminar a forma em que elas interpretam as suas condies de recluso, assim como

    refletir sobre as formas de governo e opresso a que esto submetidas.

    Referncias Bibliogrficas

    CUNHA, Manuela Ivone. Entre o bairro e a priso: trfico e trajectos. Lisboa: Fim de

    Sculo, 2002..

    GOFFMAN, Erving. Manicmios, prises e Conventos. Traduo de Dante Moreira

    Leite. 7 Edio. So Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

    9 A cada transferncia a detenta isolada das demais lhe sendo negado o direito de se comunicar, como

    em um retiro espiritual. A durao da prova de silncio varia conforme determinao de cada direo

    prisional.