jappe as aventuras da mercadoria

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relativamente poucos anos muita gente quis acreditar no «fim da história» e no triunfo final da economia de mercado e da democracia liberal. Mas o «fim da história» não durou muito. A desordem reinante vê-se uma vez mais posta em causa por todo o lado. Na maior parte das vezes, porém, este descontentamento não sabe o que efectivamente quer. A ausência de um corpo teórico de natureza crítica, que seja abrangente e consequente, impede os sujeitos que queiram pensar criticamente a desordem de alcançarem um conhecimento fundado das causas e das con- sequências da situação em que estão mergulhados. É notória a necessidade de uma teoria explicativa que desça aos fundamen- tos do problema. O que é afinal uma «mercadoria»? Que signifi- cado tem o facto de uma sociedade assentar na mercadoria? É fun- damental dispormos de uma crítica das categorias de base da modernização capitalista enquanto tal, e não apenas da respec- tiva distribuição ou aplicação. A crítica do valor, do traba- lho abstracto e do dinheiro elaborada por Karl Marx já não é uma espécie de filosofia secreta e tornou-se extremamente actual. Este livro sintetiza o desenvolvimento dado por Marx à crítica da mercadoria, apresenta os autores que a ela se referem e a_, tomaram como ponto de partida, caracteriza a história da sociedade assente sobre a mercadoria, estabelece ligações com a antropologia cultural e discute alternativas possíveis à sociedade mercantil. AMOOiTMA ARSELm JAPPE t::;Ri:lDUÇílo JOSÉ mlRílílDíl JU5t::;O ANTÍGONA

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Jappe as Aventuras Da Mercadoria

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  • H relativamente poucos anos muita gente quis acreditar no fim da histria e no triunfo final da economia de mercado e da democracia liberal. Mas o fim da histria no durou muito. A desordem reinante v-se uma vez mais posta em causa por todo o lado. Na maior parte das vezes, porm, este descontentamento no sabe o que efectivamente quer. A ausncia de um corpo terico de natureza crtica, que seja abrangente e consequente, impede os sujeitos que queiram pensar criticamente a desordem de alcanarem um conhecimento fundado das causas e das con-sequncias da situao em que esto mergulhados. notria a necessidade de uma teoria explicativa que desa aos fundamen-tos do problema. O que afinal uma mercadoria? Que signifi-cado tem o facto de uma sociedade assentar na mercadoria? fun-damental dispormos de uma crtica das categorias de base da modernizao capitalista enquanto tal, e no apenas da respec-tiva distribuio ou aplicao. A crtica do valor, do traba-lho abstracto e do dinheiro elaborada por Karl Marx j no uma espcie de filosofia secreta e tornou-se extremamente actual. Este livro sintetiza o desenvolvimento dado por Marx crtica da mercadoria, apresenta os autores que a ela se referem e a_, tomaram como ponto de partida, caracteriza a histria da sociedade assente sobre a mercadoria, estabelece ligaes com a antropologia cultural e discute alternativas possveis sociedade mercantil.

    AMOOiTMA

    ARSELm JAPPE t::;Ri:lDUlo JOS mlRllDl JU5t::;O

    ANTGONA

  • Anselm Jappe nasceu em 1962 na Alemanha, tendo feito os seus estudos em Itlia e em Frana, onde vive actualmente. autor do Livro Guy Debord, publicado em vrios pases, incluindo o Brasil (editora Vozes).

    O presente livro no pretende apresen-tar descobertas inditas. A crtica do valor tem os seus antecedentes nos anos vinte com dois trabalhos: Histria e conscincia de classe, de Gyrgy Lukcs, e os Estudos sobre a teoria do valor, de Isaak Rubin. Continua depois por entre as linhas dos escritos de Theodor Adorno, para encontrar o seu verdadeiro nascimento por volta de 1968, quando em diferentes pases (Alemanha, Itlia, EUA) autores como Hans-Jrgen Krahl, Hans-Georg Backhaus, Lucio Colletti, Roman Rosdolsky ou Fredy Perlman traba-lham em torno do mesmo assunto. Desenvolve-se posteriormente, a partir da segunda metade dos anos oitenta, com autores como Robert Kurz, na Alemanha, Moshe Postone, nos Estados Unidos, e Jean-Marie Vincent, em Frana, os quais, sem contacto

    e-entre s. chegaram, por vezes literal-mente, s mesmas concluses. Como evidente, este facto no se explica por um crescimento da inteligncia dos tericos, mas sim pelo fim do

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    Rua da TrinclJde, n: 5, 2." F 1200-467 lisboa wv,1 1N.antigona.pt

    Ttulo As Aventuras da Mercadoria

    Preo

  • AS AUERt;URAS DA mERCADDRIA PARA umA nouA CRll:PICA DO VALOR AnSELm JAPPE t;Ri:lDUCAD JOS m1Ri:inor:i JUSt;O

    ANTGONA

  • UVRAGE PUBLI AVEC LE CONCOURS OU MINISTRE FRANAIS CHARG DE LA (ULTURE - CENTRE NATIONAL DU LIVRE.

    [BRA PUBLICADA COM O APOIO DO MINISTRIO DA CULTURA FRANCS - CENTRO NACIONAL DO LIVRO]

    Ttulo original Lrs AVENTURES DE LA MARClillMDIS[ - Poun UM[ MOUVELLE CRITIQUE DE LA VALWR

    Autor Anselm Jappe Traduo Jos Miranda Justo

    Reviso Carla da Silva Pereira Capa Ricardo Tadeu Barros I TI design

    Paginao Leonel Matias e/ Carla da Silva Pereira

    Impresso Guide - Artes Grficas Copyright 2003. dtons Denoel

    2006. Antgona para Portugal e pases africanos de expresso portuguesa

    /. edio porluguesa Maro de 2006 Anlgona editores refractrios

    Rua da Trindade. n. 5 - 2.0 fte. 1200-467 Lisboa ! Portugal tel. 213244170 1 fax. 213244171 www.antigona.pt infolQantigona.pt

    Depsito legal n. 239029/06 ISBN 972-608-176-9

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    SER O MUNDO UMA MERCADORIA?

    H ALGUNS anos muita gente estava disposta a acreditar no fim da histria e na vitria definitiva da economia de mercado e da demo-cracia liberal. Considerava-se que a dissoluo do imprio sovitico era uma prova da inexistncia de alternativa para o capitalismo oci-dental. Partidrios e inimigos jurados do capitalismo estavam igual-mente convencidos desse facto. E. segundo essa opinio dominante, a partir da a discusso deveria girar apenas em torno de questes de pormenor acerca da gesto da realidade existente.

    De facto desapareceu completamente da poltica oficial toda e qualquer luta entre concepes divergentes e. salvo algumas excep-es. passou tambm a estar ausente a prpria ideia da possibilidade de imaginar uma maneira de viver e de produzir que fosse diferente da que se imps. Esta ltima parece ter-se convertido por toda a parte no nico desejo dos homens. Porm. a realidade verga-se s ordens com menos facilidade do que os pensadores contemporneos_ Nos anos que se seguiram Vitria definitiva da economia de mercado, esta mostrou mais fragilidade do que durante as cinco dcadas pre-cedentes. como se na verdade a derrocada dos pases de Leste no

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  • tivesse sido mais do que o primeiro acto de uma crise de propor-es mundiais. O desemprego real cresce por toda a parte, e uma vez que a causa reside no enorme salto de produtividade decorrente da revoluo informtica. nada poder inverter essa tendncia nem a de desmantelamento do Estado social. Estas duas tendncias. em con-junto. geram a marginalizao de uma parte crescente da populao, mesmo nos pases mais ricos, que entram em regresso relativamente aos padres vigentes durante um sculo de evoluo social.

    Quanto ao resto do mundo. encontram-se umas quantas ilhas de bem-estar e de democracia new look no meio de um oceano de guerras. de misria e de trficos abominveis. E no se trata de uma ordem que. sendo injusta. fosse pelo menos estvel: a prpria riqueza encontra-se constantemente sob ameaa de desmoronamento. As Bolsas financeiras. com movimentaes cada vez mais irracionais e sujeitas a colapsos cada vez mais frequentes em pases-modelo como a Coreia do Sul. a Indonsia ou a Argentina. anunciam aos olhos de qualquer observador. mesmo do mais leviano. um cata-clismo a breve prazo. Enquanto se vai esperando. h uma espada de Dmocles suspensa sobre a cabea de todos. ricos ou pobres: a des-truio do ambiente. Neste domnio. cada pequeno melhoramento da situao que se consegue levar a cabo num determinado stio acompanhado por uma dezena de novas loucuras praticadas em outros locais do mundo.

    No necessrio prolongar este rol de constataes que todos os dias est disposio de qualquer telespectador minimamente atento. Afinal. o fim da histria durou muito pouco tempo. A desordem reinante volta a ser contestada por todo o lado. e por vezes em luga-res onde no seria previsvel. por parte de pessoas com que no se contaria e por motivos razoavelmente inesperados. Poder-se-iam citar as lutas camponesas em pases do Sul, como a ndia ou o Brasil. os movimentos de resistncia em pases europeus contra o desmantela-mento do Estado social e a precariedade laboral. a rapidez com que se difundiu em pases to diferentes como a Tailndia ou a Frana a recusa de novas biotecnologias de efeitos incalculveis. a formao de

    ser o mundo uma mercadora?

    uma nova sensibilidade moral em relao a questes como a explora-o do trabalho de menores nos pases pobres ou o endividamento do chamado terceiro mundo. Assiste-se ao surgimento de exigncias como a de comer alimentos dignos desse nome. crescente descon-fiana em relao aos meda. criao em Itlia de uma rede de espa-os ocupados e consagrados a actividades antagonistas - os Centri socali -. ao mesmo tempo que se v tambm uma recuperao da ideia de voluntariado e de outras activdades no orientadas para o lucro. Mesmo os sucessos eleitorais dos partidos ditos de extrema esquerda em Frana podem ser interpretados neste sentido. As con-testaes que, desde Seattle. acompanham quase todas as cimeiras dos pases ricos ou das respectivas instituies econmicas. represen-tam - embora de uma maneira sobretudo espectacular e meditica - a convergncia desses diferentes movimentos de protesto no plano mundial. O denominador comum dos protestos. para j. a luta con-tra o neoliberalismo. E. se os activistas so por enquanto pouco numerosos. a verdade que por vezes criam-se vastos movimentos de opinio pblica em torno de um ou outro desses temas.

    Seria portanto muito pouco sria a pretenso de ver o estado actual do mundo como algo que desfrutasse universalmente das boas graas dos que so constrangidos a ser seus contemporneos. Mas seria tambm difcil afirmar que esse descontentamento sabe sempre o que efectivamente quer. No a revoluo ou a ideia de uma sociedade radicalmente diferente que anima os que protestam. E tambm no se trata de reivindicaes de uma classe social bem definida. Tirando a vaga oposio universal ao neoliberalismo. cada movimento permanece limitado ao seu sector especfico e prope remdios fragmentrios sem se dar ao trabalho de procurar compre-ender as razes profundas dos fenmenos que combate. E contudo o sucesso que obteve um livro intitulado O mundo no uma mer-co.doria parece testemunhar uma preocupa3c menc~ superficia!. No entanto. todos aqueles que repetem este slogan parecem interpre-t-lo sobretudo no sentido de que certas coisas como a cultura. o corpo humano. os recursos naturais ou as capacidades profissionais

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  • no so coisas que possam simplesmente ser reduzidas a objecto de compra e venda, no devendo portanto estar submetidas ao poder nico do dinheiro. Uma tal interpretao releva da esfera dos bons sentimentos e no pode substituir-se a uma efectiva anlise da socie-dade que produz os monstros que se pretende exorcizar. Gritar que o que se passa um escndalo porque tudo se tornou vendvel no propriamente uma atitude nova e, na melhor das hipteses. o resul-tado expulsar os vendilhes do Templo para v-los instalarem-se no passeio do outro lado da rua. Uma crtica puramente moral. que recomenda que no se submeta tudo ao dinheiro e que se pense tambm no resto, no pode ir muito longe: acaba por assemelhar-se aos discursos solenes do presidente da Repblica e das Comisses de tica.

    A desorientao terica dos novos contestatrios o espelho do completo desmoronamento da crtica social nas duas ltimas dcadas. A ausncia de uma verdadeira crtica. coerente e de vasto alcance. quando no mesmo a recusa explcita de toda e qualquer teoria totalizante, impede que os indivduos que pretendem assu-mir uma posio crtica tenham um conhecimento real das causas e das consequncias daquilo que criticam. Correm assim o risco de ver a sua crtica. muitas vezes ao arrepio das suas melhores inten-es. degenerar no exacto contrrio de toda e qualquer perspectiva de emancipao social. De facto vemos por vezes a oposio ao impe-rialismo amercano converter-se num nacionalismo vulgar. a crtica da especulao financeira adaptar coloraes de anti-semitismo. a luta contra a reestruturao neoliberal transformar-se em simples corpo-rativismo. a crtica do eurocentrismo desembocar na aceitao dos piores aspectos daquilo a que se chama alteridade cultural. ou a m-f levar alguns dos que lutam contra a mundializao a defender que o combate contra a imigrao. Quase toda esta gente parece acreditar que seria possvel extirpar as erv;is d;ininhas. si:>j;;im i:>las n milho geneticamente manipulado ou o desemprego. sem modificar profundamente a prpria sociedade.

    No h dvida. porm. de que se faz sentir a necessidade de

    ser o mundo uma mercadoria?

    explicaes mais aprofundadas. Afinal. o que uma mercadoria? Que significado tem o facto de uma sociedade se basear na merca-doria? Basta colocar este gnero de perguntas para se perceber muito rapidamente que inevitvel voltar a pegar nas obras de Karl Marx. Precisamente a propsito da mercadoria podem ler-se nos textos de Marx consideraes que no se encontram em mais lado nenhum. Aprende-se em Marx que a mercadoria a Clula germinal de todas as sociedades modernas, mas que no representa contudo nada de natural. Que a mercadoria. em virtude da sua estrutura bsica. torna impossvel a existncia de sociedades conscientes. Que a mercadoria conduz necessariamente os indivduos a trabalharem cada vez mais. ao mesmo tempo que priva quase toda a gente de trabalho. Que a mercadoria contm uma dinmica interna que s pode levar a uma crise final. Que ela d lugar a um fetichismo da mercadoria que cria um mundo invertido em que tudo o contrrio de si mesmo. De facto a crtica da economia poltica de Marx toda ela uma anlise da mercadoria e das suas consequncias. Quem fizer o esforo de seguir os raciocnios do autor. que por vezes so efectivamente difceis. encontrar uma quantidade de surpreendentes ideias capazes de iluminar a compreenso do trabalho, do dinheiro. do Estado, da comunidade humana ou da crise do capitalismo.

    Trata-se. pois. de encarar a necessidade de uma crtica das cate-gorias de base da modernizao capitalista. e no apenas de uma cr-tica da respectiva distribuio ou aplicao. Porm. durante mais de um sculo. o pensamento de Marx serviu sobretudo como teoria da modernizao. no intuito de fazer avanar essa mesma moderniza-o. Guiando-se por essa teoria. os partidos e os sindicatos operrios contriburam para integrao da classe operria na sociedade capita-lista. libertando assim a prpria sociedade capitalista de muitos dos seus anacronismos e deficincias estruturais. Na periferia capitalista. desde a Rssia Etipia. o pensamento de Marx serviu para justificar a modernizao tardia ensaiada por esses pases. Os marxistas tradicionais - fossem eles leninistas ou sociais-democratas. acad-micos ou revolucionrios. terceiro-mundistas ou socialistas ditos ti-

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  • cos - colocaram no centro dos seus raciocnios a noo de conflito de classe. entendendo-o como luta pela repartio do dinheiro. da mercadoria e do valor. sem pr em causa estas trs realidades em si mesmas. Retrospectivamente pode dizer-se que todo o marxismo tradicional e as suas aplicaes prticas mais no foram do que um factor do desenvolvimento da sociedade mercantil. A crise global do capitalismo - e diga-se desde j que a globalizao apenas a fuga para a frente que o capitalismo efectua depois de a revoluo infor-mtica ter levado ao paroxismo a sua contradio de base - constitu tambm a crise do marxismo tradicional. que foi afinal uma sua parte integrante. tal como a derrocada dos pases do Socialismo real foi uma etapa da decomposio do capitalismo global.

    Marx. contudo. para alm desse tipo de consideraes. deixou tambm outras de natureza muito diferente: as que dizem respeito crtica dos prprios fundamentos da modernidade capitalista. Durante muito tempo esta crtica foi completamente negligenciada tanto pelos partidrios de Marx como pelos seus adversrios. Porm. com o decl-nio do capitalismo. vem luz do dia precisamente a crise desses fundamentos. A partir daqui a crtica marxista da mercadoria, do tra-balho abstracto e do dinheiro deixa de ser uma espcie de premissa filosfica alcanando plena actualidade. E precisamente isso que se passa bem frente dos nossos olhos. Sendo assim. podemos dis-tinguir duas tendncias na obra de Marx. ou eventualmente falar de um duplo Marx: por um lado. o Marx exotrico, que toda a gente conhece. o teorizador da modernizao. o dissidente do liberalismo poltico (Kurz). um representante das Luzes que queria aperfeioar a sociedade industrial do trabalho sob a direco do proletariado: por outro lado. um Marx esotrico cuja crtica das categorias de base - difcil de compreender - visa mais alm do que a civilzao capi-talista 1 preciso contextualizar historicamente a teoria de Marx e o marxismo tradicional. em vez de ver simplesmente erros tanto numa coisa como na outra. No pode dizer-se que o Marx esotrico tem razo e que o Marx exotrico est errado. preciso p-los em correlao com duas etapas histricas distintas: a modernizao. por

    ser o mundo uma mercadoria?

    um lado. e a respectiva superao, por outro. Marx no se limitou a analisar a sua poca. antes previu tambm certas tendncias que s viriam a realizar-se um sculo mais tarde. Mas. justamente porque Marx foi capaz de reconhecer com tanto rigor os traos mais salien-tes do capitalismo numa altura em que este se encontrava ainda em gestao. tomou os primeiros estdios de desenvolvimento do capi-talismo pela respectiva maturidade e acreditou que estava iminente o seu fim.

    Hoje em dia s o Marx esotrico pode constituir a base de um pensamento capaz de captar os desafios actuais e de compreender simultaneamente as origens mais recuadas desses mesmos desafios. Neste alvorecer do sculo XXI. toda a contestao que no assente num tal pensamento corre o risco de ver nas transformaes actu-ais uma mera repetio de estdios anteriores do desenvolvimento capitalista. Este risco bem visvel na convico muito vulgarizada de que possvel regressar a uma etapa precedente desse desenvolvi-mento. em particular ao welfare state keynesiano e ao proteccionismo nacional. Mas este desejo piedoso ignora tudo o que diz respeito dinmica do capitalismo. No possvel explicar o triunfo do neoli-beralismo por intermdio de uma espcie de conspirao dos maus sequazes do capitalismo internacional que o bom povo poder sem-pre destituir. E estes desejos piedosos andam de mo dada com uma desoladora moderao dos contedos, pese embora a militncia por vezes demonstrada no plano dos mtodos. Restabelecer o Estado--providncia como reaco barbrie neoliberal. regressar agricultura industrial de h vinte anos como alternativa manipulao gentica dos alimentos. reduzir a poluio em 1 % por ano. limitar a explorao aos maiores de dezasseis anos. abolir a tortura e a pena de morte: eis um belo programa que parece querer evitar o pior e que pode at revelar-se justo em certos casos concretos. Mas uma coisa certa. um programa destes no pode em caso algum ser tido por uma cr-tica anticapitalista e emancipatria. Quem se contenta em querer um capitalismo de rosto humano ou um capitalismo ecolgico perde o que de melhor havia nas revoltas iniciadas em Maio de 68. ou seja.

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  • o desejo de tudo transformar em objecto de crtica. a comear pela vida quotidiana e pela loucura quotidiana da sociedade capitalista que coloca os indivduos perante a absurda alternativa entre sacrificar a vida ao trabalho (perder a vida a ganh-la) e sofrer as consequn-cias de no ter trabalho. Os horrores que escandalizam os actores da nova contestao - desde a pobreza s mars negras - so simples-mente as consequncias mais visveis do funcionamento quotidiano da sociedade de mercado. Tais horrores existiro enquanto existir a sociedade que os produz. pela simples razo de que decorrem da prpria lgica dessa sociedade.

    portanto necessrio desocultar essa lgica; e o Marx esot-rico)), com a sua crtica da lgica basilar da sociedade moderna. o nico ponto de partida que se nos oferece para uma tal investigao. Por exemplo. sem o conceito de trabalho abstracto)) corre-se a todo o momento o risco de voltar a cair na oposio entre a m espe-culao financeira e o trabalho honesto. oposio que se presta a ser explorada por todos. os populismos. desde a extrema direita aos marxistas tradicionais e aos nostlgicos do keynesianismo. Se no se retomar essa crtica dos fundamentos. a necessidade de uma completa oposio sociedade actual - que a nica opo realista - facilmente se ver atol ada ou num existencial ismo subjectivo. em geral recupervel no plano cultural, ou numa pseudo-radicalizao de velhos esteretipos marxistas (o imperialismo))) que apenas con-duzem a um militantismo vazio e ao sectarismo.

    Assim. retomar a crtica marxiana esotrica da mercadoria um pressuposto de qualquer anlise sria que. por seu turno. condio prvia de toda a prxis. Todavia. ningum fala da crtica da mercado-ria, nem os rgos oficiais da reflexo poltica. nem os supostamente marxistas. certo que na ideologia eclctica at agora prevalecente no seio da nova contestao se encontra uma quantidade de restos fragmentrias do marxismo tradicionL frequenttiT1enlt: ltdusigura-dos e dificilmente reconhecveis. Mas precisamente o marxismo tradicional que impede o recurso ao conjunto da riqueza contida no pensamento do prprio Marx. Desembaraarmo-nos de mais de um

    ser o mundo uma mercadoria?

    sculo de interpretaes marxistas uma primeira condio para reler a obra marxiana 2 Outra condio libertarmo-nos da concepo segundo a qual h que aceitar ou recusar em bloco a obra de Marx. mas rejeitando igualmente a ideia de que cada um possa retirar dela os fragmentos que mais lhe agradem para depois os misturar com migalhas diversas oriundas de outras teorias e cincias.

    Numa parte central - embora menor quanto ao nmero de pgi-nas - da sua obra da maturidade. Marx esboou os traos gerais de uma crtica das categorias de base da sociedade capitalista: o valor. o dinheiro. a mercadoria. o trabalho abstracto. o fetichismo da merca-doria. Uma tal crtica do ncleo central da modernidade hoje mais actual do que na poca em que Marx a concebeu. uma vez que esse ncleo existia ento apenas em estado embrionrio. Para fazer res-saltar este aspecto da crtica marxiana - a crtica do valor - no necessrio forar os textos por meio de interpretaes rebuscadas: basta l-los com ateno, coisa que quase ningum fez durante um sculo.

    Ao mesmo tempo necessrio admitir que uma boa parte da obra de Marx est hoje amplamente ultrapassada: designadamente a des-crio muito rigorosa do aspecto emprico da sociedade do seu tempo e de toda a fase ascendente do capitalismo. quando este se encontrava ainda em grande medida entrelaado com factores pr-capitalistas. O marxismo tradicional. alis com razo. podia reclamar-se com fre-quncia dessa parte. mesmo sem necessidade de desfigurar os textos. O Marx exotrico, que pregava a transformao dos operrios em cidados de pleno direito. no era de facto uma inveno dos sociais--democratas. No se tratar aqui. pois. de regressar a uma qualquer ortodoxia marxista restabelecendo a pureza da doutrina originria. como tambm no se trata de rever a teoria marxana para a adaptar ao mundo contemporneo. O que pretendemos em primeiro lugar reconstrui de maneia bastante precisa a Cftica mandana do valor. No porque acreditemos que ao estabelecer O que Marx verdadeira-mente disse se prove ipso facto alguma coisa acerca da realidade de que ele fala. Mas para se poder julgar a pertinncia da crtica marxiana

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  • preciso comear por conhec-la. E provavelmente haver mesmo entre os leitores declaradamente marxistas desta nossa reconstruo quem possa encontrar nela factores que lhe haviam escapado.

    A obra de Marx no um texto sagrado, e uma citao de Marx no constitui uma prova. Mas preciso sublinhar que a sua obra continua a ser a anlise social mais importante dos ltimos cento e cinquenta anos. Trata-se. quanto a este ponto. de uma deliberada inclinao nossa cuja validade procuraremos demonstrar. Marx foi exorcizado e declarado morto inmeras vezes. a ltima das quais em 1989. Mas como pode ento acontecer que passados alguns anos Marx tenha voltado. e sobretudo num estado de sade capaz de fazer inveja aos seus cbveiros da vspera? Infelizmente tal sucede porque - preciso que se diga - h quem preferisse viver num mundo em que as obras de Marx estivessem efectivamente ultrapassadas e j no constitussem seno uma recordao de um mundo totalmente passado!

    Apesar de todos os nossos esforos. a apresentao que fazemos da teoria marxiana do valor no de leitura fcil: contm muitas cita-es e pode por vezes dar a impresso de perder-se na filologia. Mas preciso atravessar um tal deserto, porque todos os desenvolvimentos posteriores regressaro sempre a essas pginas de Marx que so a respectiva fonte. Sem uma explicao prvia das categorias de base - trabalho abstracto. valor. mercadoria. dinheiro - os raciocnios ulte-riores no teriam sentido. Este no de facto um livro ps-moderno: no se pode l-lo de modo fragmentrio ou invertendo a ordem dos captulos. Pretende seguir um desenvolvimento coerente que vai do abstracto ao concreto e do simples ao composto: antes de o julgar seria bom que o leitor tivesse a certeza de ter captado a lgica sub-jacente.

    Depois dessa explicao inicial tentaremos extrair as consequn-cias das categorias de base assim estabelecidas. consequncias que muitas vezes vo ao arrepio de tudo o que habitual no marxismo tradicional e por vezes mesmo da teoria do prprio Marx, designada-mente no que diz respeito ao trabalho. Para o fazer apoiar-nos-emos

    ser o mundo uma mercadoria?

    nos raros autores que. a partir dos anos vinte. mas sobretudo nas ltimas dcadas. contriburam para o desenvolvimento da crtica do valoni3 De incio limitamo-nos a fazer uma parfrase do texto de Marx. As crticas que se podem fazer a propsito do texto. tanto quanto a exposio de eventuais contradies internas. so depois enunciadas no decurso do livro. Por outro lado. quando procedemos ao resumo do texto de Marx. utilizamos certos conceitos. por exem-plo, valor de uso e trabalho concreto, tal como Marx os utiliza. mesmo se posteriormente exprimimos reservas acerca do emprego desses conceitos.

    De seguida. o que tivermos estabelecido como ncleo vlido da anlise marxiana no ser combinado de maneira eclctica com outras anlises no intuito de colmatar pretensas lacunas. Tentaremos antes mostrar que as leis que regulam a sociedade fetichista foram igualmente objecto de outras investigaes. nomeadamente no mbito da antropologia. Utilizando uma abordagem distante da de Marx. autores como mile Durkheim. Marcel Mauss ou Karl Polanyi contriburam com anlises muito importantes em domnios que esca-param aos marxistas tradicionais: a crtica do fetichismo e a crtica da economia. No atingem. porm. o nvel de compreenso das formas de base que distingue a obra de Marx.

    Por outro lado. trataremos de colocar a crtica marxiana do valor em oposio no apenas com o marxismo tradicional. mas tambm com muitas teorias dos nossos dias que pretendem dizer verdades crticas sobre o mundo moderno desprezando as categorias de Marx. Esperamos. sobretudo. demonstrar que a teoria de Marx no uma teoria puramente econmica que reduza a vida social aos seus aspectos materiais sem levar em conta a complexidade da sociedade moderna. Quem lana a acusao de economismo, tantas vezes levantada contra Marx. inclusivamente esquerda, admite a con-tragosto que Marx pode ter razo na sua anlise do funcionamento da produo capitalista. Mas ao mesmo tempo. quem assim fala afirma que a produo material no seno um aspecto da vida social na sua totalidade. enquanto Marx nada teria dito de vlido no que toca

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  • aos restantes aspectos. Para defrontar este subterfgio, caro a autores como Bourdieu e Habermas. demonstraremos que Marx desenvol-veu uma teoria das categorias fundamentais que regulam a sociedade capitalista em todos os seus aspectos. No se trata da distino bem conhecida entre base11 e superestrutura11, mas sim do facto de o valor ser uma forma social total - para empregar uma formulao antropolgica - que d ela mesma luz as diferentes esferas da socie-dade burguesa. No h, pois. necessidade de Completar as ideias econmicas de Marx sobre as classes com consideraes relativas aos temas supostamente por ele negligenciados: a raa, o gender. a democracia. a linguagem. o simblico. etc. Importa antes pr em relevo o facto de a crtica da economia poltica levada a cabo por Marx. centrada na crtica da mercadoria e do respectivo fetichismo. descrever a forma de base da sociedade moderna que existe antes de toda e qualquer distino entre a economia, a poltica. a socie-dade e a cultura. Marx muitas vezes acusado de tudo reduzir vida econmica e de negligenciar o sujeito. o indivduo. a imaginao ou os sentimentos. Na verdade, porm. o que Marx fez foi simples-mente fornecer uma descrio implacvel da realidade capitalista. a sociedade mercantil que constitui ela mesma o maior reducionsmo alguma vez visto. Para sair deste reducionismo preciso sair do capitalismo. no da crtica do capitalismo. No a teoria do valor concebida por Marx que se encontra ultrapassada. mas sim o prprio valor.

    No faz parte das nossas intenes propor uma releitura integral de Marx. No obstante. esperamos contribuir para eliminar certos mal--entendidos muito difundidos. em parte responsveis pela pouca atraco que o pensamento de Marx actualmente exerce sobre muita gente que, pelo contrrio. deveria muito naturalmente procurar a a sua inspirao. Refutar-se- a afirmao segundo a qual a teoria de Marx. sendo materialista e economista. seria incapaz de ler um mundo dominado pela comunicao e pelo virtual. igualmente necessrio escapar s limitaes impostas pela convico amplamente difundida

    ser o mundo uma mercadoria?

    de que existe uma fractura entre o Marx Cientfico e o Marx revo-lucionrio. Houve quem prodigalizasse elogios a Marx, enquanto Sbio. e ao mesmo tempo aplicasse todo o seu zelo na tentativa de demonstrar que tal facto no implica que se haja de saltar para cima das barricadas. e que cada qual pode tirar das investigaes dele as concluses que entender. Quem assim procede procurou em geral adaptar a teoria de Marx aos critrios supostamente objectivos da economia poltica e da teoria da cincia burguesas. Por seu turno a opo revolucionria cr igualmente na existncia dessa fractura. mas para criticar uma suposta contradio entre a descrio cientfica e a luta prtica. Na verdade, porm, precisamente o Marx do Capital que pode ser entendido como o mais radical. Enquanto o Manifesto Comunista. reputadamente muito radical, desemboca em reivin-dicaes frequentemente reformistas>>, a crtica da economia pol-tica do Marx tardio (mas tambm a Crtica do Programa de Gotha) demonstra que toda a transformao social v se no chega a abolir a troca mercantil.

    Este livro pode ser lido em dois nveis: o texto princpal esboa os pon-tos essenciais da teoria da mercadoria e do seu fetichismo resumindo os escritos de Marx sobre essa matria e desenvolvendo a respec-tiva lgica at anlise do mundo contemporneo. Prope-se ser um ensaio completo e pode ser lido por si s. sem as notas. As citaes. excepo feita s do prprio Marx. e as referncias a outros autores no so. no texto principal. muito numerosas. As notas no final de cada captulo procuram ento aprofundar os desenvolvimentos con-tidos no texto: ou citando as passagens de Marx parafraseadas com brevidade no texto principal. no intuito de demonstrar aos marxistas tradicionais que no violentamos os textos sagrados: ou dando a palavra aos autores que contriburam para estabelecer a crtica do valor. para o que utilizamoc; c;ohrPtvdo textos no publicados em lngua francesa mas que merecem ser conhecidos: ou colocando em contraste diferentes opinies sobre um qualquer assunto. para assim melhor fundamentar a nossa: ou desenvolvendo, maneira de peque-

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  • nos excursos. pontos no abordados no texto principal. Esperamos que tais notas carreiem material novo para os leitores que desejem um aprofundamento terico; contudo, a leitura das notas no indispen-svel para a apreenso do contedo essencial do texto.

    O presente livro no pretende apresentar descobertas inditas. A crtica do valor tem os seus antecedentes nos anos vinte com dois trabalhos: Histria e conscincia de classe, de Gyrgy Lukcs. e os Estudos sobre a teoria do valor. de lsaak Rubin. Continua depois por entre as linhas dos escritos de Theodor Adorno, para encontrar o seu verdadeiro nascimento por volta de 1968, quando em diferen-tes pases (Alemanha. Itlia. EUA) autores como Hans-Jrgen Krahl, Hans-Georg Backhaus. Lucio Collett, Roman Rosdolsky ou Fredy Perlman trabalham em torno do mesmo assunto. Desenvolve-se pos-teriormente, a partir da segunda metade dos anos oitenta, com auto-res como Robert Kurz. na Alemanha. Moishe Postone. nos Estados Unidos, e Jean-Marie Vincent. em Frana, os quais, sem contacto entre si. chegaram, por vezes literalmente. s mesmas concluses. Como evidente, este facto no se explica por um crescimento da inteligncia dos tericos. mas sim pelo fim do capitalismo clssico: esse fim significou ao mesmo tempo o fim do marxismo tradicio-nal, desbloqueando assim a possibilidade de uma perspectiva sobre um outro terreno da crtica social. Deste modo, sucede que na sua maior parte as teses do presente livro j foram sendo expostas aqui e ali ao longo das ltimas dcadas por diferentes autores. sobretudo na Alemanha, mas tambm em Itlia, nos Estados Unidos e noutros locais. Se. apesar disso. este livro houver de suscitar um certo inte-resse, ser pelo facto de tentar resumir de um modo acessvel a um pblico no especializado um conjunto de pesquisas que at aqui per-maneciam dispersas em obras eruditas ou em revistas de circulao limitada. Cada um dos autores que se ocuparam da crtica do valor examinou um aspecto particular da questo, e quase sempre dirigindo--se a um pblico que se pressupunha conhecer j a teoria marxiana do valor. Alguns deles aplicaram-se em dissecar algumas pginas de Marx para delas extrarem todos os frutos possveis; outros analisa-

    ser o mundo uma mercadoria?

    ram as actuais convulses econmicas ou a histria do sculo XX uti-lizando a crtica do valor como uma espcie de pressuposto mudo que explicavam em meia dzia de frases. No existe nenhum texto que procure apresentar a crtica do valor na sua integralidade, come-ando pela anlise mais simples, a da relao entre duas mercadorias, para progredir depois gradualmente do abstracto ao concreto e chegar actualidade e s temticas histricas, literrias ou antropolgicas.

    A teoria do fetichismo apresentada neste livro deve muito revista Krsis e a alguns dos seus colaboradores. O autor participou pessoalmente no desenvolvimento dessa teoria. e nas pginas que aqui se oferecem ao leitor ela encontra-se presente com maior fre-quncia do que possa julgar-se com base meramente nas citaes explcitas. Contudo. o presente livro no representa de modo algum uma condensao oficial das posies do grupo Krisis. que alis entretanto se cindiu em dois grupos e duas revistas. Nenhum dos autores que constituram o grupo Krisis responsvel pelo uso que aqui feito das respectivas teses.

    garantidamente mais fcil escrever sobre as multinacionais do que sobre o valor. e mais fcil sair rua para protestar contra a Organizao Mundial do Comrcio ou contra o desemprego do que faz-lo para contestar o trabalho abstracto. No preciso grande esforo mental para exigir uma distribuio diferente do dinheiro ou um maior nmero de empregos. infinitamente mais difcil algum levar a cabo uma crtica que recai sobre si prprio, enquanto sujeito que trabalha e ganha dinheiro. A crtica do valor uma crtica do mundo, mas uma crtica que no permite que se acusem de todos os males do mundo as multinacionais ou OS economistas neoli-berais, continuando-se ao mesmo tempo a viver a prpria existncia pessoal no seio das categorias do dinheiro e do trabalho. sem ter a ousadia de as pr em causa por receio de se perder a aparncia de razoabilidade. Tornou-se. porm. um absurdo acusar o sistema capitalista de no fornecer trabalho e dinheiro suficentes. O tempo das solues fceis passou. Este livro no se furta questo Que fazer?, mas simultaneamente no renega a sua condio de texto

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  • terico que no constitui um guia para a aco. Este livro ter alcanado o seu objectivo se conseguir transmitir

    ao leitor a paixo que o seu autor sente pela temtica, aparentemente to abstracta. do valor. a paixo que nasce no instante em que se tem a impresso de ter entrado na cmara onde esto guardados os segredos mais importantes da vida social. os segredos de que depen-dem todos os outros.

    Nas notas. cada citao identificada por uma sigla ou abreviatura que se encon-tra explicada na bibliografia final. No caso de todas as obras de Marx contidas nos ivurxEngeis-'Werke. cias edies Dietz, incicamm tambm o nmero cio vourne e o nmero da pgina dessa edio alem (por exemplo. MEW 23/49). O mesmo acontece no caso de algumas citaes extradas da Marx-Enge/s-Gesamtausgabe (por exemplo. MEGA. 11.5. pg. 643).

    ser o mundo uma mercadoria?

    NOTAS

    Foi o prprio Marx quem aplicou os termos esotrico" e exotricon a Adam Smith (MEW 26.2/163, 166: Thores li. 185, 188 - trata-se da questo de saber se Adam Smith penetra at essncia do processo global. ou se se coloca do ponto de vista do capitalista individual). J antes Heinrch Heine e os jovens hegelianos tinham aplicado estes termos a Hegel. e outros autores aplic-los-iam mais tarde a Plato.

    2 Ser necessrio integrar tambm no conjunto dessas interpretaes marxistas uma grande parte daquilo que ficou conhecido com o nome de marxismo crtico". Os respectivos representantes limitaram-se em geral crtica e refu-tao - sem dvida. meritrias - da interpretao Ortodoxa ou estalinista da obra de Marx. por exemplo. nos livros de M. Rubel (Marx critique du marxsme. Paris. Payot. 1974) e K. Papaioannou (Marx et /es marxisles. Paris. j'ai tu. 1965. posteriormente Paris. Flammarion. 1972. 1984: rldo/ogie froide. Essai sur /e dprissement du marxisme. Paris. Jean-Jacques Pauvert. 1967). Esses autores interessaram-se sobretudo pelo aspecto poltico da teoria de Marx e pela sua crtica da ideologia. ao passo que concebiam a sua crtica da economia poltica exactamente como o fazia a interpretao ortodoxa. ou seja. acreditando que o respectivo fulcro se identificava com os conceitos de classe. propriedade privada e trabalho vivo. Por vezes os tericos mais radi-cais acentuavam ainda mais estas noes. designadamente a luta de clas-ses. acusando os Ortodoxos de as haverem adoado. A partir do momento em que rejeitavam essas prprias noes (como a ontologia do trabalho" que julgavam poder reconhecer em Marx). tais intrpretes - por exemplo C. Castoriadis ou CI. Lefort - rejeitavam tambm a crtica marxiana da economia poltica. sem fazerem qualquer tentativa para criticar Marx por intermdio de Marx. e sem sequer imaginarem que a chave para ultrapassar os conceitos marxistas poderia encontrar-se no prprio Marx. Outros queriam conservar a economia de Marx na sua interpretao tradicional. combinando-a porm com os resultados de outras disciplinas particulares. como a lingustica. a antropologia ou a sociologia emprica. Dentro deste quadro. existe tambm uma forte tendncia para rever a teoria de Marx luz da concepo burguesa da democracia. O resultado ltimo de tais eclectismos foi em geral o aban-dono puro e simples das prprias categorias marxianas. Todas estas teorias

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  • tm em comum o facto de nunca encontrarem a sua referncia na crtica marxiana quer do valor. quer da mercadoria. sendo incapazes de lhes atribuir qualquer papel central. E por muito frequente que fosse em certa poca o emprego dos termos 11fetichismo e alienao. a verdade que estes fen-menos nunca eram postos na dependncia da estrutura da mercadoria.

    ser o mundo uma mercadoria?

    2

    A MERCADORIA, ESSA DESCONHECIDA

    A dupla natureza da mercadoria

    Que uma mercadoria? A questo parece estpida uma vez que qualquer um sabe como responder. Uma mercadoria um objecto vendido ou comprado que muda de mos mediante um pagamento. Quanto se paga por ela coisa que depende do seu valor. e o valor determinado pela oferta e pela procura. Paga-se a mercadoria com dinheiro porque a troca directa s possvel nas sociedades muito primitivas. Se algum pergunta: quanto Valem vinte metros de tecido? A resposta ser: 20 Euros. A mercadoria, o dinheiro e o valor so coisas bvias que se encontram em quase todas as formas conhecidas de vida social a partir da pr-histria. P-las em discus-so pode parecer to insensato como contestar a fora da gravidade. A discusso s possvel no que respeita ao capital e mais-valia. aos investimentos e ;:ios

  • Tais afirmaes so partilhadas por toda a gente, tanto por aque-les que consideram o sistema econmico contemporneo como sendo algo de natural e a melhor soluo possvel. quanto pelos que contestam a distribuio actual das mercadorias e do dinheiro. Os que se reclamam de Marx no constituem excepo. E. contudo, o prprio Marx tinha uma opinio diferente. O Capital comea com uma anlise pormenorizada da estrutura da mercadoria. do valor e do dinheiro. Claro est que se pode defender a ideia de que Marx no faz mais do que resumir a coisas banais. j estabelecidas pelos seus predecessores burgueses, como Adam Smith e David Ricardo. e de que a sua prpria contribuio s comea com a anlise da transformao do dinheiro em capital. Contudo, o prprio Marx sublinhou explcitamente que a sua anlise da mercadoria era a parte mais fundamental e a mais revolucionria das suas investigaes. precisamente com essa parte da sua teoria que Marx entende ter feito uma das grandes descobertas da histria humana e ter resolvido um enigma milenar: A forma valor. cuja configurao acabada a forma moeda. muito simples e desprovida de contedo. Contudo. h mais de dois mil anos que o esprito humano se esfora por pene-trar o respectivo segredo. 1 Seja como for. negligenciar as anlises que Marx havia colocado no incio da sua principal obra foi uma caracterstica constante de todas as variantes do marxismo tradicio-nal: as runas dessa tendncia constituem hoje mais uma razo que deve incitar-nos a interessarmo-nos por aquilo que ela negligenciou.

    Poder-se-ia igualmente contra-argumentar que, de entre os milha-res de pginas que Marx escreveu dando corpo Crtica da econo-mia poltica, a anlise da mercadoria e da forma valor ocupa apenas uma parte relativamente pequena. Mas Marx chamou forma valor a Clula germinal de toda a sociedade burguesa. e toda a sua crtica da economia poltica mais no do que uma explicao. uma demons-

    trc;Pnvolvimr.nto d;iquilo que j est contido nessa anlise aparentemente andina. Sem ela. Marx no teria escrito uma crtica da economia poltica. mas simplesmente mais uma doutrina da eco-nomia poltica.

    a mercadoria, essa desconhecida

    Poder-se-ia. enfim. afirmar que a anlise marxiana do valor no clara e que obscurecida pela sua linguagem hegeliana. que a sua gnese foi difcil. que existe em diferentes verses e que Marx. ao longo de vinte e cinco anos. nunca conseguiu dar-lhe uma forma definitiva2 Efectivamente. dentro da anlise a que Marx submete o capital. a teoria do valor a parte cuja elaborao lhe custou maio-res esforos. Os textos. neste particular. apresentam obscuridades e contradies que mesmo as melhores tentativas de interpretao filolgica no puderam resolver completamente. Mas isso demons-tra precisamente que Marx se encontrava aqui na presena de um terreno completamente novo. frente a um aspecto da vida social. um mistrio (como ele prprio lhe chama) to fundamental e to pouco explorado que mesmo um esprito to subtil como o seu tinha dificuldade em capt-lo e explic-lo. Mais uma razo para que tente-mos finalmente fazer com que essas intuies frutifiquem. sobretudo porque esse mistrio , de algum modo. mais fcil de compreender hoje do que na poca de Marx.

    Na verso definitiva do captulo sobre a mercadoria. a que consta da segunda edio do Capital ( 1873 ). Marx analisa a estrutura da mercadoria da maneira mais simples possvel. Examina somente a relao entre cinco ou seis mercadorias. abstraindo aparentemente de tudo o resto, sobretudo dos respectivos proprietrios e de tudo o que diga respeito ao contexto histrico ou social. Quase se fica com a impresso de estarmos perante uma operao matemtica ou uma exemplificao lgica. Contudo. no se trata nem da descrio de um estado arcaico ou embrionrio que tivesse realmente existido. nem de uma simples hiptese ou de um modelo que devesse ser posterior-mente verificado. Marx pretende ter identificado a forma celular3 da sociedade burguesa (ou capitalista. ou moderna). Esta forma no existe em estado puro. in uitro, e s dificilmente se pode dissoci-la d3s suas manife~taes empfricas e concretas. ~.4as ela i::onfigura o prprio tecido de todos os actos que. repetidos milhes de vezes por dia em todo o mundo. constituem a vida social que conhecemos. Na primeira frase do Capital. Marx chama mercadoria a forma

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  • elementar da riqueza das sociedades nas quais reina o modo de produo capitalista4 A mercadoria elementar, no no sentido de um pressuposto neutro. mas porque encerra j os traos essen-ciais do modo de produo capitalista. Essa clula germinal. como Marx lhe chama tambm. contm contradies de base difceis de reconhecer primeira vista. mas que depois se encontram em todas as formas da vida econmica e social da sociedade moderna. Marx tinha plena conscincia de que a sua anlise da forma valor era uma novidade quase incompreensvel. tanto na forma como no contedo. mesmo por parte de leitores bem intencionados e avisados. No pre-fcio primeira edio do Capital. escreve: portanto a compreen-so do primeiro captulo. sobretudo na seco que contm a anlise da mercadoria. que causar maior dificuldade [ ... ]. Assim. portanto. excepo feita seco sobre a forma valor. no se poder acusar este livro de ser de difcil compreenso.5

    A mercadoria no idntica ao bem ou ao Objecto trocado. antes a forma particular que uma parte, maior ou menor. dos ubens assume em certas sociedades humanas. A mercadoria antes de mais um objecto que no tem apenas um valor de uso. mas tambm um valor de troca. Cada objecto que satisfaz uma qualquer necessidade humana tem um valor de uso. o qual. contudo. enquanto tal. no uma categoria econmica. Mas, na medida em que um objecto tro-cado em quantidades determinadas por outros objectos. possui tam-bm um valor de troca. Enquanto valores de troca. as mercadorias s conhecem determinaes quantitativas. Se algum troca uma camisa por 30 quilos de batatas - no sentido de que as duas coisas tm o mesmo preo -. estas mercadorias so tratadas como quantidades diferentes de algo idntico que devem ter em comum. Enquanto valor de uso. as mercadorias so totalmente incomensurveis: a camisa e as batatas nada tm em comum. As relaes no interior das quais d::. 1r1ercddorias so tocdas esto sujeitas a vaiae:; contnuas e portanto os respectivos valores de troca tambm. Mas num momento dado. o mesmo produto trocado contra diferentes valores de troca que so iguais entre si: uma camisa pode trocar-se por um grama

    a mercadaria, essa desconhecido

    de ouro. ou por dez quilos de trigo ou por um par de sapatos. etc. portanto necessrio que estes diferentes valores de troca tenham. em ltima anlise. algo em comum: o seu valor.

    Esta substncia comum das mercadorias no pode ser seno o trabalho que as criou: ele a nica coisa que h de idntico em mer-cadorias que de resto so incomensurveis6 O trabalho tem a sua medida na respectiva durao. portanto na respectiva quantidade: o valor de cada mercadoria depende da quantidade de trabalho que foi necessria para a produzir. Nesta perspectiva pouco importa qual o valor de uso em que esse trabalho se realiza. Uma hora utilizada para fazer um vestido ou uma hora utilizada para fabricar uma bomba sempre um hora de trabalho. Se para fabricar a bomba foram neces-srias duas horas. o respectivo valor7 o dobro do valor do vestido. sem levar em conta o valor de uso de cada um. A diferena quantita-tiva a nica que pode existir entre valores: se os diferentes valores de uso que as mercadorias possam ter no contam para determinar o respectivo valor. os diferentes trabalhos concretos que as criaram tambm no contam. O trabalho que compe o valor no conta por-tanto seno como puro dispndio de tempo de trabalho. sem consi-derao pela forma especfica em que o tempo foi despendido. A esta forma do trabalho. na qual se abstrai de todas as formas concretas que lhe digam respeito. Marx chamou trabalho abstracto. Os valo-res das mercadorias no so ento outra coisa seno Cristalizaes dessa ugeleia que o trabalho humano indiferenciado. o valor - que n? dever confundir-se com o valor de troca - uma quanti-dade determinada de trabalho abstracto contido numa mercadoria. A mercadoria assim a unidade do valor de uso e do valor. bem como do trabalho concreto e do trabalho abstracto que a criaram.

    Neste contexto. no se fala do trabalho que o indivduo concreto empregou efectivamente para produzir a sua mercadoria. O valor antes determinado pelo tempo que. numa certa sociedade e num certo grau de desenvolvimento das foras produtivas. em mdia necessrio para produzir a mercadoria em causa. Se uma hora sufi-ciente para fazer um vestido em condies mdias. ento o respectivo

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  • valor de uma hora. e o produtor que empregue uma hora e meia ser remunerado somente por uma hora de trabalho. Marx chama a este tempo o tempo de trabalho socialmente necessrio. Assim sendo. qualquer alterao da produtividade do trabalho afecta o valor das mercadorias. Se um novo invento permite que numa hora se produ-zam dez camisas em vez de uma. depois da difuso desse invento cada camisa j s contm seis minutos de trabalho social. mesmo se os indivduos que no podem recorrer ao dito invento continuam a empregar uma hora para fazer uma camisa.

    Como evidente. no se trabalha duas vezes para produzir uma mercadoria. executando-se uma vez um trabalho concreto para pro-duzir um valor de uso. e depois uma outra vez para produzir um valor de troca. antes o mesmo trabalho que tem um duplo carcter: por um lado trabalho abstracto e por outro lado trabalho concreto. Enquanto trabalho concreto a infindvel diversidade de todos ostra-balhos que. em qualquer sociedade onde reine a diviso do trabalho. produzem os diversos objectos. Este trabalho tem as suas diferenas qualitativas: umas vezes trata-se de tecer. outras de conduzir um ve-culo. outras de cavar a terra. e assim por diante. Enquanto trabalho abstracto. todos os trabalhos contam somente como dispndio pro-dutivo de matria cerebral. de msculo. de fora anmica. de fora manual. etc.n, que consequentemente so em qualquer dos casos trabalho humano9 O trabalho abstracto. o trabalho enquanto tal. s conhece diferenas quantitativas: umas vezes trata-se de trabalhar uma hora. outras vezes trata-se de trabalhar dez horas. Os trabalhos mais complexos contam como uma forma multiplicada do trabalho simples: uma hora de trabalho de um trabalhador muito especiali-zado pode valer dez horas de trabalho de um servente ou ajudante. Esta contabilidade produz-se automaticamente dentro da vida econ-mica.

    O trabalho abstracto e o valor que ele cria nada tm. portanto. de material e de concreto. antes so estritamente abstraces sociais. O tecido fabricado pelo trabalho concreto do tecelo visvel. mas o trabalho abstracto que o mesmo tecido contm no pode exprimir-se

    a mercadoria, essa desconhecida

    directamente. O valor que cria no tem existncia emprica. antes existe apenas na cabea dos homens que vivem numa sociedade em que os bens tomam habitualmente a forma mercadoria'. somente o valor enquanto Substncia comum das mercadorias que as torna susceptveis de serem trocadas. precisamente porque as torna comen-surveis. Porm, esta substncia comum. ou seja, o tempo de traba-lho abstracto. uma abstraco que no pode manifestar-se. adquirir uma forma sensvel, seno de modo indirecto: nas relaes de uma dada mercadoria com outras mercadorias. Nada se diz quando se afirma que vinte metros de tecido valem vinte metros de tecido. Mas pode exprimir-se o respectivo valor no valor de uma outra merca-doria. por exemplo se dissermos: vinte metros de tecido tm o valor de um fato. Nesta equao. a primeira mercadoria. que exprime o seu prprio valor. desempenha um papel activo e apresentada como valor relativo; a segunda mercadoria. na qual a primeira exprime o seu valor. funciona como equualente". A mercadoria que est na forma de valor relativo no pode ser ao mesmo tempo o equivalente e vice-versa: a mercadoria que exprime o seu prprio valor no pode ser a matria para a expresso da outra mercadoria. Mas nesta forma simples ou acidental do valor, em que s esto presentes duas mer-cadorias. a relao ainda susceptvel de ser invertida. A equao exprime o facto de as duas mercadorias terem a mesma substncia. O ser-valor de uma mercadoria encontra portanto a sua forma na forma natural. no valor de uso. de uma outra mercadoria. O valor do tecido. que enquanto tal uma abstraco. torna a forma do fato. O trabalho abstracto. indistinto. que criou o valor do tecido. exprime--se no trabalho concreto que criou o fato. portanto na sua forma concreta de valor de uso que o fato exprime o valor do tecido; para o tecido, o valor. essa abstraco. toma a forma de um fato. No se trata de uma qualidade que coubesse naturalmente ao fato. ao contrrio do que se passa. por exemplo. com a respec:tiv;:i c:r1pr1rirlr1rlP

  • -se como sendo diferente do seu prprio valor de uso. preciso ter sempre em mente a diferena entre valor e valor de troca: o valor. que permanece abstracto. no perceptvef. exprime-se num valor de troca perceptvel. designadamente a mercadoria com a qual a primeira mer-cadoria trocada. Em termos filosficos. ser-se-ia tentado a encarar o valor enquanto substncia e o valor de troca enquanto a respectiva forma fenomnica. apesar de, como veremos. a identificao do valor com uma substncia colocar problemas.

    Entretanto a verdade que no existem apenas duas mercadorias. Os mesmos vinte metros de tecido podem igualmente trocar-se por quantidades determinadas de todas as outras mercadorias. Chegamos assim forma valor total ou desenvolvida: 20 metros de tecido= 1 fato. ou= 1 O libras de ch. ou= 40 libras de caf. ou= 2 onas de ouro. ou 1/2 tonelada de ferro. etc. Chegados aqui. o tecido exprime o seu valor em todas as outras mercadorias. e torna-se evidente que o respectvo valor indiferente forma particular de valor de uso sob a qual surge 12 E assim torna-se tambm mais fcil verificar que todos os trabalhos representados nas diferentes mercadorias so iguais. so trabalho abstracto. sem considerao da forma concreta na qual se objectivam.

    A forma valor total ou desenvolvida funciona de maneira difcil: a sequncia de comparaes de valor sempre incompleta. uma vez que aparecem constantemente novas mercadorias. Mais ainda: dessa maneira. cada mercadoria tem uma forma de valor relativo diferente da de qualquer outra mercadoria. e existe um nmero igual de formas de equivalncia das quais nenhuma completa e vlida para todas as mercadorias. Contudo. possvel inverter simplesmente a frmula: se o tecido exprime o seu valor no ch. no caf. no ouro. etc.. tambm verdade que um fato. 10 libras de ch. 40 fibras de caf. 2 onas de ouro. etc .. tm o mesmo equivalente em 20 metros de tecido. Obtm-

    -~e d~!>i1r1 a orma de valor geral. ~!.~~ mercadorias exprmPm r1eora o seu valor: de maneira 1) simples. pois que o fazem numa s e nica mercadoria e 2) unitria. pois que o fazem na mesma mercadoria. A respectiva forma valor ao mesmo tempo simples e colectiva: em

    o mercadoria, essa desconhecido

    consequncia. geral.n 13 Cada mercadoria exprime agora o seu valor por intermdio da respectiva igualdade com o tecido. e dessa maneira manifesta-se tambm a igualdade quantitativa de todas as mercado-rias que se trocam por 20 metros de tecido. O tecido. agora tornado equivalente geral. tornou-se imediatamente trocvel contra todas as outras mercadorias: A sua forma corprea passa por incarnao visvel. por crislida social universal de todo o trabalho humano.14 A forma de valor geral pressupe que todas as mercadorias agem da mesma maneira: as mercadorias tm que excluir uma de entre si da forma valor relativa e fazer dela a forma equivalente geral. ou seja. a matria da sua forma valor geral e unitria. Teoricamente toda e qualquer mercadoria pode desempenhar este papel. mas necess-rio que uma tal excluso se fixe de maneira permanente sobre uma dada mercadoria especfica. Em termos histricos foi o ouro que con-quistou esse lugar. Basta que substituamos o tecido pelo ouro para obtermos a quarta forma. a forma dinheiro: 20 metros de tecido. um fato. 1 O libras de ch. 40 libras de caf. etc.. valem 2 onas de ouro. Diferentemente do que se passava na transio da forma simples para a forma desenvolvida e na transio da forma desenvolvida para a forma geral. pode dizer-se que quase nada distingue a forma dinheiro da forma geral. A possibilidade de troca. imediata e universal, toma agora a forma do ouro. Se agora pusermos em vez de 2 onas de ouro)} a respectiva forma preo. 20 Euros. obtm-se uma frmula que toda a gente conhece: 20 metros de tecido = 20 Euros. A forma dinheiro portanto uma simples consequncia do desenvolvimento da forma mercadoria e encontra a sua razo de ser ltima na frmula: 20 metros de tecido= 1 fato. ou: x mercadoria A= y mercadoria B. Desta maneira Marx entende ter resolvido ao mesmo tempo o enigma da forma dinheiro que os seus predecessores (mas tambm os suces-sores) burgueses nunca haviam compreendido.

    Esta anlise da mercadoria pode aparentar ser enfadonha e insig-nificante. Nela nada parece existir que se preste a contestaes. e. por outro lado. nada parece decorrer dela que diga respeito especfi-

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  • camente sociedade capitalista ou que permita critic-la. De facto, os marxistas no viram nada de explosivo nessas pginas em que primeira vista Marx se limita a resumir o fundamento que a sua teoria tem em comum com a economia poltica clssica que a antecede. Mas, se a teoria do valor em Marx mais no fosse do que a doutrina do valor trabalho da economia poltica burguesa clssica, sobre-tudo de David Ricardo, no se poderia compreender por que motivo o prprio Marx considera precisamente a sua teoria do valor como a mais importante das suas descobertas15

    De facto, o captulo sobre a mercadoria contm uma parte final que. de modo algo enigmtico. se intitula: O carcter fetiche da mercadoria e o seu segredo. Marx retira a algumas consequncias daquilo que foi estabelecendo ao longo das pginas precedentes. Nas quatro primeiras pginas deste subcaptulo utiliza as seguintes expresses: segredo, subtilezas metafsicas, argcias teolgi-casi1, misterioso, caprichos, forma bizarra1, Carcter msticoi1, Carcter enigmtico. quiproquo1, forma fantstica, regio nebu-losa, enigma,,, hierglifos, misticismo. Torna-se evidente que para Marx a mercadoria no algo de propriamente banal. mas bem pelo contrrio um objecto que desafia a compreenso em termos comuns. Chama-lhe Uma coisa sensvel supra-sensvel, na qual as relaes entre os homens se apresentam como coisas. e as coisas como seres dotados de uma vontade prpria: O que h de misterioso na forma mercadoria consiste. pois. simplesmente no facto de ela devolver aos homens a imagem dos caracteres sociais do seu pr-prio trabalho como caracteres objectivos dos prprios produtos do trabalho, como qualidades sociais que essas coisas possuiriam por natureza.11 16 Na produo mercantil o processo de produo que governa os homens, e ainda no o inversoll 17, e O seu movimento social prprio tem para os indivduos que procedem a trocas a forma de um movimP.nto de coisas que eles no controlam, mas das quais. pelo contrrio, sofrem o respectivo controloll 18 O fetichismo reside desde logo no prprio facto de a actividade social tomar uma apa-rncia de object019 na mercadoria. no valor e no dinheiro. E contudo

    a mercadoria, essa desconhecida

    os homens no tm conscincia dessa aparncia; produzem-na. sem o saber. com os seus actos de troca. nos quais se impe constante-mente, como se fora uma lei natural, o tempo de trabalho socialmente necessrio, enquanto elemento regulador. a forma dinheiro que faz desaparecer a verdadeira relao das mercadorias por trs de uma apa-rncia de coisa: o facto, aceite por toda a gente. de que uma camisa vale)) 20 Euros mais no do que um desenvolvimento da forma valor simples, segundo a qual uma camisa Vale11 3 quilos de ch. porque o ch representa nessa equao o trabalho humano abstracto. Dito de outra maneira. um primeiro significado do termo fetichismo}) o seguinte: os homens pem em relao os seus trabalhos priva-dos. no directamente. mas somente numa forma objectiva. sob uma aparncia de coisa. a saber, como trabalho humano igual. exprimido num valor de uso. Contudo, no o sabem e atribuem os movimentos dos seus produtos a qualidades naturais dos mesmos.

    Marx compara explicitamente o fetichismo da mercadoria ao feti-chismo religioso, no qual os homens adoram os fetiches que eles pr-prios criaram e atribuem poderes sobrenaturais a objectos materiais. Os marxistas tradicionais, tanto quanto os no-marxistas, quando no preferiram simplesmente ignorar esta temtica marxiana ou liquid-la como se de galimatias filosfico,, se tratasse, quase sem-pre interpretaram o fetichismo como uma mistificao. no sentido de que a estrutura real da produo capitalista produz necessariamente representaes falsas que lhe escondem o verdadeiro aspecto. Essa mistificao existe, sem dvida. e por vezes (em particular no final do terceiro volume do Capital) Marx utiliza a expresso fetichismo>1 sobretudo nesse sentido. Mas o breve captulo sobre o fetichismo que ctvamos h pouco. bem como outras observaes espalhadas ao longo da sua obra. permitem chegar a uma concluso inteiramente diversa: para Marx, o fetichismo no apenas uma representao invertida da realidade, mas uma inverso da prpria realidade2. E. neste sentido, a teoria do fetichismo o centro de toda a crtica que Marx dirige aos fundamentos do capitalismo. Muito para l do uso explcito da palavra fetichismo, o conceito de fetichismo como

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  • inverso atravessa toda a crtica da economia de Marx e encontra os seus antecedentes nas obras filosficas de juventude. O carcter fetichista da sociedade capitalista no um aspecto secundrio, antes reside na sua prpria Clula germinal. O fetichismo, o facto. portanto. de para os homens as suas prprias relaes de produo tomarem uma figura de coisa material. escapando ao seu controlo. independente da sua activdade individual consciente, manifesta-se em primeiro lugar no facto de os produtos do trabalho dos homens tomarem universalmente a forma de mercadoria21 Longe de ser uma Superestrutura pertencente esfera mental ou simblica da vida social. o fetichismo reside nas prprias bases da sociedade capitalista e impregna todos os seus aspectos. Pode-se de pleno direito falar de uma identidade entre a teoria do valor e a teoria do fetchismo em Marx. O valor e a mercadoria. longe de serem esses pressupostos neutros de que falvamos inicialmente. so categorias fetichistas que do fundamento a uma sociedade fetichista. Para Marx. o homem moderno. cuja actvidade reveste a forma de uma mercadoria ou se representa num valor. corresponde ao Selvagem que adora um dolo de madeira. e um quilo de batatas comprado num supermercado no mais racional do que um totem. A categoria do fetichismo. originariamente tomada de emprstimo histria da religio. surge - esperamos demonstr-lo - como muito mais capaz do que todas as doutrinas econmicas acadmicas de explicar. por exemplo. as crises financeiras contemporneas. Convm, pois. regressar anlise mar-xiana da mercadoria e pr em relevo o carcter fetichista da mercado-ria enquanto tal22

    A abstraco real

    l'. dupla natureza da merc::inori;:i no coisa muito difcil de compreender. J Aristteles a havia analisado: Assim. uma sandlia pode servir de calado. mas tambm de objecto de troca.23 Mesmo a dupla natureza do trabalho incorporado numa mercadoria foi reco-

    a mercadoria, essa desconhecida

    nhecida. embora de maneira imperfeita. pela economia poltica cls-sica. Uma mercadoria singular relativamente fcil de compreender. O fetichismo s comea na relao entre duas mercadorias24. Segundo Marx. todos os aspectos essenciais esto j contidos na forma valor simples: 20 metros de tecido = 1 fato. Contnua depois dizendo que O segredo de toda a forma valor reside nessa forma valor simples. portanto a anlise dessa forma simples que apre-senta a verdadeira dificuldade.25 a essa anlise que Marx consagra maior nmero de pginas; a forma valor total, a forma geral e a forma dinheiro decorrem depois rapidamente como meras consequncias. O facto de se colocar em equivalncia duas mercadorias, que apa-rentemente a coisa mais evidente deste mundo, contm j todo 0 modo de socializao que distingue o capitalismo. Na primeira edi-o do Capital, Marx diz que a forma primeira ou simples do valor relativo um pouco difcil de analisar porque simples, acrescen-tando em nota de rodap: Ela . por assim dizer. a forma celular ou, como diria Hegel, o em-si do dinheiro.>i26

    A mercadoria contm em si mesma uma contradio que vem luz do dia na respectiva relao de troca com uma outra mercadoria: o seu valor de uso e o seu valor - consequentemente a existncia da mercadoria enquanto representao de uma quantidade de trabalho abstracto - no existem pacificamente um ao lado do outro. antes entram numa relao de conflito. A oposio interior a cada merca-doria no se pode exprimir seno constituindo dois plos: torna-se uma oposio exterior, uma relao entre duas mercadorias. das quais uma conta apenas como valor de uso. a outra (o equivalente) apenas como valor de troca. A forma valor simples tambm a forma mais ~imples e menos desenvolvida em que esta oposio aparece. por isso que difcil de compreendef>J, e por isso tambm que nela se ~ncontra j encerrado todo o segredo do modo de produo capita-lista. O desenvolvimento dessa forma tambm o desenvolvimento dessa oposio interna.

    Na forma valor. o trabalho abstracto contido numa mercado-ria manifesta-se no corpo de uma outra mercadoria, no valor de uso

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  • desta outra mercadoria. Mas a igualizao do produto do trabalho com uma outra mercadoria na qual se exprime imediatamente o tra-balho social no de maneira alguma um processo inocente ou um procedimento puramente tcnico. Trata-se antes de uma inverso. da qual Marx enumera as trs manifestaes mais importantes. logo na anlise da forma valor simples. 0 valor de uso torna-se a forma feno-mnica do seu contrrio. o valor27: uma coisa sensvel. o corpo de uma mercadoria. representa uma coisa sobrenatural. Supra-sensvel, puramente social: o valor. trabalho concreto torna-se a a forma fenomnica do seu contrrio. do trabalho humano abstracto2: o tra-balho abstracto. que no criou o tecido. mas sim o valor do tecido. utiliza para exprimir esse valor o trabalho concreto do alfaiate que fez o fato. Neste exemplo. o trabalho do alfaiate o equivalente imedia-tamente trocvel com todas as outras mercadorias. Por fim. escreve Marx, "trabalho privado torna-se a a forma do seu contrrio. torna--se trabalho sob forma imediatamente social29 : o trabalho privado. no momento em que entra na troca, torna-se o mesmo trabalho que o de todos os participantes na troca.

    A mercadoria portanto a unidade de duas determinaes da mesma coisa, determinaes estas que no so simplesmente dife-rentes, mas das quais uma exclu a outra: o valor de uso o contrrio do valor. o trabalho concreto o contrrio do trabalho abstracto. o trabalho privado o contrrio do trabalho social. Assim, a mercadoria contm um conflito perptuo e dinmico; ela tem portanto de procu-rar formas que permitam a essas contradies existir sem a fazerem explodir imediatamente. Na forma valor, uma mercadoria serve para exprimir de modo sensvel o Valor de uma outra mercadoria. Isto significa que a forma concreta de uma mercadoria. o seu valor de uso, 0 seu corpo sensvel, incarnam a qualidade supra-sensvel de uma outra mercadoria. Contudo. os sujeitos atribuem mercadoria como se fosse untd qualidade natural o facto dP ela ter um certo Valor" ou um outro walor3. Os sujeitos no executam conscientemente um tal processo; por trs das costas dos sujeitos que se passa a inverso na qual o objecto concreto e sensvel no conta seno como incarna-

    a mercadoria, essa desconhecida

    o do valor abstracto e supra-sensvel. Na inverso que caracteriza logo a mercadoria singular. o concreto torna-se um simples portador do abstracto. O concreto s tem existncia social na medida em que serve ao abstracto para que este d a si mesmo uma expresso sen-sve/31. E se a mercadoria a clula germinal,, de todo o capitafsmo. isso significa que a contradio entre o abstracto e o concreto nela contida regressa em cada estdio da anlise. constituindo de algum modo a contradio fundamental da formao social capitalista.

    Se a mercadoria uma categoria fetichista, porque o trabalho que constitui o respectivo valor trabalho abstracto: Este carcter fetche do mundo das mercadorias, como a nossa precedente an-lise j demonstrou. provm do carcter social prprio do trabalho que produz mercadorias.32 Mas - poder-se-ia objectar -. por que motivo a abstraco ter de ser entendida como coisa negativa? O pensamento, dir-se-ia. no pode existir sem resumir os elementos que vrias coisas tm em comum. ou seja, sem abstrair da respectva diversidade. Nada h de mal em colocar os ces, os gatos. as lebres e os cavalos na mesma categoria. a do animal, mesmo se 0 animal enquanto tal no existe. De igual modo. poder-se-ia ainda continuar. impossvel que os homens troquem os seus produtos sem que redu-zam. no plano do pensamento. os seus diversos trabalhos concretos ao facto de haver sido empregue trabalho; esta abstraco um sim-ples meio auxiliar. tcnico.

    De facto neste ltimo sentido que o conceito de trabalho abs-tracto foi empregue pela economia poltica clssica. Esta. depois de ter ultrapassado as teorias que atribuam a qualidade de criar valor apenas a um certo tipo de trabalho - os mercantilistas atribuam-na exclusivamente ao trabalho de extraco de metais preciosos. a dou-trina dos fisiocratas ao trabalho na agricultura -. reconheceu no tra-balho. sem qualquer qualificativo. a fonte do valor. Mas ao faz-lo a economia poltica clssica seguiu um procedimento analtico no qual se retiram gradualmente a um objecto todas as suas determina-es para o reduzir ao seu elemento mais simples. como quando se reduzem todos os homens. na sua diversidade. a uma certa estrutura

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  • qumica que comum a todos. tanto ao bosqumano c~m~ ao im~erador do Japo. No propriamente um erro. mas sena 1mp~ss1vel explicar a diferena (cultural. histrica. social) entre ~ bosqu1man~ e 0 imperador do Japo com base na estrutura qumica que lhes e comum. De igual maneira. por intermdio de um processo purame~te mental possvel chegar concluso de que todas as mercadonas so constitudas por alguma forma de trabalho. Esta digresso do complexo ao simples. resume-a Marx nos dois primeiros subcaptulos da anlise a que submete a mercadoria. Mas seria um enorme ~rro _ embora frequente - pensar que Marx partilha desse ponto de ~1sta e que 0 seu conceito de trabalho abstracto o mesmo que Smith e Ricardo haviam obtido mediante a sua reducto ad unum. De facto o trabalho sem mais que se obtm pela via desta reduo indepen-dente de toda a determinao social e existe em todas as sociedades. Trata-se de um puro facto fisiolgico: o dispndio de trabalho fsico ou mental.

    Com a sua anlise da forma valor no terceiro subcaptulo do primeiro captulo do Capital. Marx toma o caminho inverso. que muito mais difcil. um caminho em que se mostra totalmente hege-liano e em que abandona completamente o mtodo da ~cono~ia poltica. Marx quer agora explicar a gnese lgica - n~~ a genese his-trica - das categorias encontradas na realidade empmca. em vez de as aceitar como meros dados. Trata-se. para Marx. de explicar como e por que razo as formas de base abstractas se tornam ~s fenm_:-nos visveis superfcie. Desta maneira desvela a respect1va relaao de pertena a uma certa formao social. em vez de ver nelas dad~s naturais presentes em toda a parte, como sucede com a economia poltica burguesa.

    o trabalho abstracto analisado por Marx no um pressuposto indeclinvel sem consequncias especficas. como porventura o facto . _, __ --~~;~ pir., "i"r PPln mntrrio. o trabalho abstracto. ae ser 1~L1::.u 1c::ip11a .... u -. - -no sentido marxano, existe somente no capitalismo e a sua carac-terstica principal. Marx refere-se a ele como sendo todo . segr~~O e 0 ponto axial: Fui 0 primeiro a pr o dedo. de maneira cnt1ca.

    a mercadoria, essa desconhecida

    sobre essa natureza bfida do trabalho contido na mercadoria. Como em torno deste ponto axial que gira a compreenso da economia poltica. convm esclarec-lo um pouco mais neste contexto.33 O trabalho abstracto. cujo conceito Marx estabelece. no a gene-ralizao mental de que falvamos h pouco. mas sim uma realidade socal. uma abstraco que se torna realidade. Vimos acima que. se todas as mercadorias devem ser trocveis entre si. o trabalho contido nas mercadorias deve igualmente ser imediatamente trocvel. S o pode ser se for igual em todas as mercadorias, ou seja, se se tratar sempre do mesmo trabalho. O trabalho contido numa mercadoria dever ser igual ao trabalho contido em todas as outras mercado-rias. Na medida em que se representam no valor. todos os trabalhos valem somente enquanto dispndios da fora humana de trabalho. O respectivo contedo concreto apagado; os trabalhos equivalem--se todos entre si. No se trata aqui de uma operao puramente mental: de facto. o valor dos diferentes trabalhos representa-se numa forma material. o valor de troca. que nas condies mais evoludas toma a forma de uma quantidade determinada de dinheiro. O dinheiro representa algo de abstracto - o valor -. e representa-o enquanto algo de abstracto. Uma soma de dinheiro pode representar qualquer valor de uso. qualquer trabalho concreto. Onde a circulao de bens for mediada pelo dinheiro, a abstraco tornou-se algo de bastante real. Podemos ento falar de uma abstraco real>J34 A abstraco de toda e qualquer qualidade sensvel. de todos os valores de uso. no uma espcie de resumo mental. como sucede quando se abstrai dos diferentes gneros de animais para falar de" animal, que con-tudo no existe enquanto tal. A melhor expresso da essncia desta abstraco real encontra-se numa passagem da primeira edio que Marx. infelizmente. no reproduziu nas edies seguintes: como se a par e margem dos lees. dos tigres. das lebres e de todos os outros animais reais que em grupo constituem os diferentes gneros. espcies. subespcies. famlias. etc.. do reino animal. existisse ainda o animal. a incarnao individual de todo o reino animal. Urna tal singularidade. que compreende em si mesma todas as espcies real-

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  • mente existentes da mesma coisa. um universal. como por exemplo animal. Deus. etc.35

    A mistificao contida na abstraco mercantil bem real: ela constitui a verdadeira natureza deste modo de produo: 0 facto de uma relao de produo social se apresentar sob a forma de um objecto existente fora dos indivduos e de as relaes determinadas nas quais estes entram no processo de produo da sua vida social se apresentarem como propriedades especficas de um objecto constitui essa inverso. essa mistificao no imaginria. mas de uma prosaica realidade, que caracteriza todas as formas sociais do trabalho criador de valor de troca. No dinheiro ela limita-se a aparecer de maneira mais notria do que na mercadoria.36 O dinheiro no representa os valores de uso na sua multiplicidade. antes a forma visvel de uma abstraco social. o valor. Na sociedade mercantil. cada coisa tem uma dupla existncia. enquanto realidade concreta e enquanto quan-tidade de trabalho abstracto. este segundo modo de existncia que se exprime no dinheiro. que merece portanto ser chamado abstraco real principal. Uma coisa uma camisa ou uma ida ao cinema e ao mesmo tempo 1 O ou 20 Euros. Esta qualidade do dinheiro no pode ser comparada com nenhuma outra coisa; ela situa-se para l da dicotomia tradicional entre o ser e o pensamento. dicotomia para a qual uma coisa ou existe somente na cabea, sendo pois imaginria - esse o sentido habitual do termo abstraco-. ou. pelo contrrio. efectivamente real. material. emprica37 Trata-se de uma forma de realidade para cuja anlise a dialctca hegelana constitui o melhor instrumento. como teremos ainda ocasio de sublinhar.

    Enquanto o trabalho concreto se realiza sempre em alguma coisa - material ou imaterial. num bem ou num servio38 -. o trabalho abstracto no pode exprimir-se de modo directo porque produz uni-camente uma forma '.;oci:il. Tem pois necessidade de s~ ~xprmir de. uma maneira indirecta no valor de troca: em termos prticos. no dinheiro. Nas trocas socais. os actores no tm conscincia do facto de que os valores das coisas mais no so do que representantes de

    a mercadoria, essa desconhecida

    unidades de trabalho. O valor de troca esconde o facto de que so as quantidades de trabalho incorporadas que determinam os valores das mercadorias. e no as respectivas qualidades naturais. Aqui pode falar-se efectivamente de uma dissimulao. Mas Marx coloca tam-bm uma outra questo, uma questo mais radical: por que razo o trabalho, a actvidade produtiva. toma a forma do valor? O valor j uma forma de abstraco, por confronto com a actividade real. No apenas a representao do valor na forma valor - o valor de troca - que fetichista, mas tambm, a montante. a representao do tra-balho vivo no valor. Se todo o valor se dissolve em trabalho. ento parece lgico concluir-se, como faz a economia poltica burguesa. que todo o trabalho se representa em um valor. Estes dois termos seriam equivalentes. e ento a nica questo seria a de saber quanto valor contm uma mercadoria. e no sob que forma o trabalho se tornou valor. Mas Marx censurava a economia poltica clssica por ter chegado a esta concluso interessando-se exclusivamente pelo aspecto quantitativo do valor: A economia poltica analsou de facto. ainda que de maneira imperfeita. o valor e a dimenso do valor. e des-cobriu o contedo escondido sob estas formas. Mas nunca colocou ao menos a simples questo de saber por que motivo este contedo toma aquela forma. e portanto por que razo o trabalho se exprime no valor e a medida do trabalho pela respectiva durao se exprime na dimenso do valor do produto do trabalho.39 Os marxistas. por seu turno. tambm prestaram muito pouca ateno a esta questo. Acharam normal que o trabalho se tornasse valor e concentraram a sua crtica na representao infiel do trabalho no dinheiro. Porm. h que admitir que o prprio Marx nem sempre separou rigorosamente estes dois nveis: a passagem do trabalho ao valor e a passagem do valor ao valor de troca.

    A diferena entre o Marx exotrico e o Marx esotrico existe mesmo no interior da anlise que faz do v;:ilnr P f> vi.;;vd nas suas flutuaes no que respeita determinao do valor4. Para refutar a concepo segundo a qual um facto natural. comum a todas as socedades. a criao do valor por parte do trabalho, preciso criticar

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  • tambm a concepo segundo a qual o trabalho est contido no valor. valor. Cria o valor. Mas Marx. ele prprio, utiliza frequen-temente estas expresses tpicas de Smith e de Ricardo, para quem 0 trabalho cria o valor Como o padeiro faz o po (Kurz). Noutros contextos Marx diz antes que o trabalho Se representa no valor. 0 que coisa bastante diferente. Mas no presta ateno suficiente necessidade de se demarcar da concepo naturalista dos seus predecessores. At aqui temos vindo a reproduzir essas hesitaes na nossa parfrase do discurso de Marx. simplesmente porque fazem parte desse discurso. Daqui em diante passaremos a levar em linha de conta a diferena entre o valor contido e o valor representado, diferena a que havemos de regressar.

    absolutamente necessrio eliminar um outro mal-entendido muito divulgado nestes ltimos anos. segundo o qual o trabalho abstracto e 0 trabalho concreto de que Marx fala seriam dois tipos diferentes de trabalho. Em Marx. estas categorias nada tm a ver com o con-tedo do trabalho. e nem sequer com a organizao do trabalho. E menos ainda se trata de dois estdios diferentes do processo de trabalho. O trabalho no comea por ser concreto, para depois se tornar abstracto. O trabalho abstracto, no sentido de Marx. nada tem a ver com a parcelarizao do trabalho. com a sua fragmentao em unidades destitudas de sentido. ou com a respectiva desmate-rializao - recentemente tem havido quem com frequncia tenha posto a noo de trabalho abstracto em relao com a importncia crescente do trab.alho imaterial. O trabalho abstracto no nem o trabalho fragmentado na linha de produo, nem o trabalho do infor-mtico. Consequentemente falso dizer-se que o trabalho abstracto substitui cada vez mais o trabalho concreto. ou que o trabalho se torna cada vez mais abstracto. Logo no primeiro texto que retomou 0 conc1::l rnaxiano de trabalho abstracto. ou s~j;:i_ em Histria e conscincia de classe. de Gyrgy Lukcs ( 1923), esta interpretao do conceito de trabalho abstracto desempenha um papel importante. A tnica que Lukcs coloca sobre a abstraco produzida pela

    a mercadoria, essa desconhecida

    parcelarizao do trabalho decorre do facto de, nesse livro, o autor atribuir diviso do trabalho uma importncia muito maior do que aquela que o prprio Marx. na sua obra tardia. lhe conferiu. Marx escreveu. por exemplo. o seguinte: Ora, tanto quanto exacto dizer que a troca privada supe a diviso do trabalho, inexacto dizer que a diviso do trabalho supe a troca privada.41 A diviso do trabalho seria portanto uma categoria mais vasta do que a da troca privada. a base do capitalismo, e em consequncia a diviso do trabalho no conduz necessariamente ao capitalismo.

    Segundo a teoria marxiana da duplicao. na produo de mer-cadorias todo o trabalho ao mesmo tempo abstracto e concreto: Do que precede resulta que. se no existem dois tipos de trabalho na mercadoria. o mesmo trabalho recebe nela contudo determinaes diferentes e opostas eritre si, segundo se reporte o trabalho ao valor de uso dessa mercadoria enquanto respectivo produto, ou ele seja reportado ao valor desta enquanto sua pura expresso objectiva."42 Assim acontece. mesmo com o trabalho agrcola. no qual tomar a cargo as pessoas de idade . nas condies do capitalismo. numa das vertentes. um trabalho abstracto. e mesmo com o trabalho ao com-putador ou num laboratrio. que , numa das vertentes. um trabalho concreto. Qualquer trabalho criador de mercadorias sempre inevita-velmente abstracto e concreto. Estes dois tipos de trabalho so com-pletamente incomensurveis entre si. e pertencem mesmo a nveis ontolgicos inteiramente diferentes. No portanto possvel que o trabalho abstracto se substitua ao trabalho concreto. ou vice-versa.

    verdade que existe um tipo de trabalho a que aludimos mais acima e ao qual. usando uma expresso um tanto paradoxal. poder-amos chamar trabalho empiricamente abstracton43 A difuso deste tipo de trabalho efectivamente um resultado da predominncia do trabalho abstracto em sentido formal. mas esse trabalho no de rnnrln "'"um rlnticn ., tr.,h.,lhn .,hrtr-.rto f ;,.,.u.,lmnntn .,,,,r1 ... .-1,, .....,.._. .... Hb lf t .. H ... I 1.1 V U UUUJI V UlJJt..tU\..L ~ L. 1& U 1 H ... JtL\.,. V\,..l\,.U,H.H,..

    que o trabalho abstracto em sentido formal se torna a forma social dominante apenas quando a potencialidade dos trabalhos para serem trocados uns pelos outros. a sua no especificidade e a possibilidade

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  • de se passar de um trabalho para outro penetraram j inteiramente o conjunto da sociedade. Quando Marx escreveu as suas primeiras reflexes sobre o trabalho abstracto. tinha efectivamente perante o seu olhar esse trabalho no especfico: Este estado de coisas atin-giu o seu mais elevado grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existncia das sociedades burguesas, nos Estados Unidos. apenas a. com efeito. que a abstraco da categoria "trabalho". "trabalho em geral ... trabalho sem outros qualificativos. que o ponto de partida da economia moderna. se torna verdade prtica.'14 Mas ao mesmo tempo sublinha que o trabalho abstracto. enquanto simples dispndio defora de trabalho. no um dado natural. mas sim o resultado de uma evoluo histrica: Este exemplo do trabalho mos-tra de uma maneira muito ntida que mesmo as categorias mais abs-tractas. ainda que vlidas - precisamente por causa da sua abstraco - para todas as pocas. no deixam de ser. sob a forma determinada dessa mesma abstraco. um produto de relaes histricas. e que s tm a sua inteira validade em funo dessas relaes e no inte-rior delas. Mas. como j dissemos. na poca em que escreveu estas palavras. Marx no distinguia ainda o trabalho no qualificado e o trabalho abstracto como determinao formal.

    O valor contra a comunidade humana

    muito mais fcil compreender as particularidades da produo mercantil quando se compara este tipo de produo com os modos de produo que a antecederam. Para o fazer contudo indispen-svel abstermo-nos momentaneamente de todo e qualquer juzo de valor. No se trata aqui de opor ao capitalismo as sociedades pr--capitalistas. como se estas fossem melhores do que ele, como tam-bm no se trata de tazer o contrrio: trata-st: l-somente de retirar ao valor e ao trabalho abstracto a sua aparncia natural, recordando para esse efeito que at uma data relativamente recente a maior parte dos homens. escala mundial. viveram quase sem dinheiro, sem mer-

    a mercadoria, essa desconhecida

    cadoria e sem trabalho abstracto - neste ponto pouco importa saber se viviam bem ou mal.

    O trabalho tem sempre lugar em sociedade. e em quase toda a parte existe alguma forma de diviso do trabalho. No esta ltima enquanto tal. que cria o trabalho abstracto. Cada trabalho individual faz parte do trabalho total de uma sociedade dada. Mas o facto de 0 trabalho ter um carcter social e de fazer parte de uma universalidade do trabalho ainda no o torna abstracto. No de todo em todo necessrio (e de facto no assim nas sociedades pr-capitalistas) que o carcter social do trabalho tome uma existncia separada a par do carcter concreto e privado do trabalho. Nas sociedades que pre-cederam a produo mercantil. os trabalhos so sociais precisamente na sua forma natural, enquanto particularidade: a forma natural do trabalho. portanto a sua particularidade e no a sua universalidade. como sucede com base na produo mercantil. que neste caso a forma imediatamente socal.45 Na famlia camponesa patriarcal, os diversos trabalhos que esto na origem desses produtos. cultivo. pas-toreio. fiao. tecelagem, confeco, etc.. so, sob a respectiva forma natural, funes sociais46. Em cada modo de produo. sublinha Marx. a socedade deve de alguma maneira captar os trabalhos con-cretos dos indivduos - que enquanto tal so totalmente incomensu-rveis - como partes do trabalho social total. tanto em vista da sua distribuio apropriada pelos diferentes ramos da produo. como para medir as contribuies dos produtores individuais (pelo menos numa sociedade no comunista). Mas em circunstncias em que no predomine a produo moderna de mercadorias precisamente enquanto trabalhos concretos que os diferentes trabalhos so sociais. seja como consequncia da diviso natural do trabalho nos modos de produo patriarcal, esclavagista ou feudal, seja como funciona-mento de uma sociedade futura capaz de regular conscientemente a s11;i pr0duo. Na !dade Mdia udn "" tr::ih:ilhnc rt,,t,,rmnulnc r1,..c-indivduos. sob a respectiva for~a-~;t~;a~:~v;~;r~i;~~;;i~~~:uev~~v; universalidade do trabalho, que constituem o lao sociah,47 Tambm no interior de uma fbrica. as seces no trocam valores entre si.

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  • mas cada produto. cada trabalho faz imediatamente parte do trabalho geral distribudo. Aqui. atravs do seu valor de uso que cada produto se refere aos outros valores de uso. Cada pessoa que faz parte de uma fbrica contribui com o seu trabalho para a realizao de um produto total que seguidamente distribudo. segundo modalidades variveis. entre essas pessoas48. A actividade de cada um indispensvel (ou considerada como tal) para o sucesso do conjunto; o papel de cada um no interior da produo colectiva. e no a quantidade de trabalho por ele despendida. que d fundamento ao direito de cada participante a uma parte dos frutos. Se numa fbrica de automveis a seco de pra-choques envia cem pra-choques para a seco de montagem e simultaneamente pede duas toneladas de alumnio ao armazm. no se calcula se estas quantidades de objectos tm o mesmo Valor. Alis. as seces no pagam os materiais que recebem. Contudo. na fbrica o conjunto da produo rege-se pela produo de valor. mais apropriado. portanto. fazer uma comparao com a agricultura tradicional: o campons que corta a erva. o servo que o ajuda e a av. cuja tarefa impedir que as galinhas entrem dentro de casa. no procedem ao confronto dos respectivos trabalhos para determinar a parte relativa de cada um. Os trabalhos que levam a cabo no so privados, antes fazem parte desde o princpio de um trabalho social. De facto no h sequer o risco de que os seus trabalhos privados no cheguem a tornar-se sociais. porque impossvel que essas suas actividades se revelem ao fim e ao cabo no trocveis entre si dentro do contexto dado. A necessidade dessas actividades, e a necessi-dade delas dentro de uma certa quantidade (por exemplo, o facto de trs homens se consagrarem durante trs dias a cortar erva), aqui colocada antecipadamente, e ningum tem necessidade de oferecer o seu trabalho ou o seu produto a um outro indivduo que possa aceit--lo ou recus-lo. Em todas as situaes no reguladas pela troca de mercadorias o trabalho o!>Liuudo antes da sua ealizao !::egundo critrios qualitativos que obedecem s necessidades dos produtores e s necessidades da produo. certo que esta distribuio pode per-feitamente ter lugar de uma maneira no consciente e fetichista, por

    a mercadoria, essa desconhecida

    exemplo. quando determinada pela tradio ou