mercador de veneza

13
William Shakespeare O Mercador de Veneza Tradução Daniel Jonas Cotovia

Upload: livros-cotovia

Post on 30-Mar-2016

216 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Mercador de Veneza de William Shakespeare foi traduzido por Daniel Jonas

TRANSCRIPT

Page 1: Mercador de Veneza

William Shakespeare

O Mercador de Veneza

Tradução

Daniel Jonas

Cotovia

Page 2: Mercador de Veneza

Índice

Personagens p. 9

Elenco da estreia 13

O MERCADOR DE VENEZA 17

Notas à tradução ??

Título original: The Merchant of Venice

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008

Concepção gráfica de João Botelho

ISBN 978-972-795-277-9

Page 3: Mercador de Veneza

Personagens

ANTÓNIO, um mercador de Veneza.BASSÂNIO, seu amigo e pretendente de Pórcia.GRAZIANO

SALÉRIO

SOLÂNIO

LORENZO, apaixonado por JessicaPÓRCIA, uma herdeira.NERISSA, sua dama de companhia.SHYLOCK, um judeu.LANCELOTE GOBBO, criado de Shylock e depois de Bassânio.GOBBO, pai de Lancelote.JESSICA, filha de Shylock.PRÍNCIPE DE MARROCOS, um pretendente de Pórcia.PRÍNCIPE DE ARAGÃO, um pretendente de Pórcia.TUBAL, um judeu, amigo de Shylock.LEONARDO, serviçal de Bassânio.BALTASAR, serviçal de Pórcia.STEFANO, um mensageiro ao serviço de Pórcia.DUQUE DE VENEZA

Magníficos de Veneza, Carcereiro, Criado e Mensageiro.

7

amigos de António e Bassânio}

Page 4: Mercador de Veneza

WILLIAM SHAKESPEARE

O MERCADORDE VENEZA

Esta tradução estreou no Teatro Nacional São João,no Porto, a 7 de Novembro de 2008

versão cénica Ricardo Pais, Daniel Jonasencenação Ricardo Pais cenografia Pedro Tudela figurinos Bernardo Monteiro música Vítor Rua desenho de luz Nuno Meira desenho de som Francisco Lealassistência de encenação Nuno M Cardoso preparação vocal e elocução João Henriques

Interpretação:

António Albano JerónimoBassânio Pedro AlmendraGraziano Pedro FriasSalério João CastroSolânio Jorge MotaLorenzo José Eduardo SilvaPórcia Micaela CardosoNerissa Lígia RoqueShylock António DurãesLancelote Gobbo Luís AraújoGobbo Paulo FreixinhoJessica Sara CarinhasPríncipe de Marrocos Paulo FreixinhoPríncipe de Aragão João CastroTubal Paulo FreixinhoLeonardo Pedro MananaBaltasar Pedro MananaStefano Pedro Jorge RibeiroDuque de Veneza Jorge MotaMagníficos de Veneza, Carcereiro,Mensageiro, Criado Pedro Jorge Ribeiro,

Pedro Manana.

Page 5: Mercador de Veneza

ACTO ICENA I

[Veneza]

Entram António, Salério e Solânio.

ANTÓNIO

Na verdade, não sei por que ando tão triste.Pesa-me o coração; peso com ele o vosso;Mas como veio, ou dei com isto, ou me deu tal,De onde veio, qual a sua natureza,Ainda estou p’ra saber.E tanto me quebranta a razão este pesoQue ando à deriva sem saber a quantas ando.

SALÉRIO

A tua mente anda nas ondas do oceano,Onde os teus navios mercantes incham velasQuais senhores, burgueses de ricas marés,Um cortejo alegórico em mar alto lembram,E olham de alto os cargueiros insignificantesQue se inclinam perante eles, com muitas vénias,Ao passarem voando nas asas rendilhadas.

SOLÂNIO

Digo-te, meu caro, tivesse essa venturaE a maior parte dos meus afãs largariaÂncoras com a frota. Passaria a vida

11

Page 6: Mercador de Veneza

Nem num só lugar; não, nem todos os meus bensDependem das marés, das tendências deste ano:Essa mercadoria não me põe em baixo.

SOLÂNIO

Ora, ora, então estás apaixonado.

ANTÓNIO

Juízo!

SOLÂNIO

Também não é paixão? Então andas em baixoPorque não em cima; e seria tão fácilP’ra ti rir e saltar, dizer que estás por cimaPorque não andas em baixo. P’las duas facesDe Jano, estranhos homens fez a natureza:Uns há, de tanto rir, que mal espreitam dos olhos,E a rir lá vão, da triste gaita até quais gaios;Outros tão vinagrados são, tão carrancudos,Que não mostram sequer os dentes numa piadaMesmo que um Nestor jure a pés juntos que é boa.

Entram Bassânio, Lorenzo, e Graziano.

E aqui temos Bassânio, teu nobre parente,E Graziano, e Lorenzo. Aqui nos despedimos.Deixamos-te agora em melhor companhia.

SALÉRIO

De bom grado ficaria até te animar.Valeu-te a intervenção de amigos mais capazes.

13

O MERCADOR DE VENEZA 1.1

A atirar erva ao ar p’ra ver o humor do vento,E a correr mapas por cais, portos e baías;E qualquer estorvo que me levasse a temerPela dita, e andar na dúvida, sem dúvida,Seria um peso igual.

SALÉRIO

Só de soprar a sopaDava-me o sopro um calafrio ao pensarNo estrago que um sopro maior faz no mar.E ao ver correr areento o tempo na ampulhetaNão veria senão baixios e atoleirosE o meu rico galeão na areia afocinhado,Vergando o grande mastro abaixo das costelas,A rojar-se no pó. E sempre que fosse à igrejaE contemplasse a santa pedra do edifícioNão pensaria noutra coisa que não escolhos,Que mal tocando o lado frágil do meu lenhoDeitariam por água os seus pós aromáticos,Vestindo o fragor das vagas co’a minha seda.Em suma, ainda agora o que valia tudoAgora já não vale nada? Dá-me um nóSó de o pensar e não me apertaria o nóSe me pudesse o nó passar de pensamento?Mas bem, eu ando sem apertos, já AntónioAnda em baixo ao pensar na mercadoria.

ANTÓNIO

Não, nada disso. Estou grato à sorte por isso.Os meus riscos não se acham todos num só casco,

12

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 7: Mercador de Veneza

ANTÓNIO

O mundo não passa de mundo, Graziano:Um palco onde cada homem tem um papel,O meu é triste.

GRAZIANO

Deixa-me fazer de Bobo.E que de rir em rir venham as velhas rugas,E que antes se me aqueça o fígado de vinhoQue se arrefeça o peito de suspiros mórbidos.Porque há-de o homem prenhe de sangue ferventeJazer como o avô esculpido em alabastro?Ir dormir quando acorda? Apanhar icteríciaDe tanto resmungar? Digo-te mais, António —Tenho-te muito amor, e é o amor que te fala —Ele há uma cepa de homens cujas carantonhasCoalham e ganham capa como água choca,E vão alimentando um ar de gravidade,De propósito, a fim de serem consultadosEm matéria profunda, de gente versada,Como quem diz, ‘Eu sou o Senhor Oráculo,E quando abro a boca os cães todos se calam!’Oh, meu António, sei de tantos destes sábiosDe nome, e reputados, só por se encostaremAo silêncio; falassem, e não tenhas dúvidas,Condenavam ao inferno quem os ouvisseP’lo pecado de chamar tolo ao seu irmão.Prossigo o raciocínio em melhor altura.Mas não vás à pesca co’esse isco melancólico

15

O MERCADOR DE VENEZA 1.1

ANTÓNIO

O teu valor é muito estimado aos meus olhos.Quero antes crer que os teus afazeres se impõem,E que juntas somente ocasião ao dever.

SALÉRIO

Bons dias, bons senhores.

BASSÂNIO

Bons vós, e rir p’ra quando? P’ra quando uma farra?Andam os dois bem estranhos; tem mesmo de ser?

SALÉRIO

A nossa folga está na tua agenda. Marca-a.

Saem Salério e Solânio.

LORENZO

Bassânio, uma vez que deste com AntónioVamos andando, mas à hora do jantarVê lá, não esqueças o lugar do nosso encontro.

BASSÂNIO

Não vos falharei.

GRAZIANO

Não andas nada com boa cara, António.Tu levas este mundo muito a peito, homem:Quem muito caro abraça perde a sua graça.Acredita, estás mesmo muito diferente.

14

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 8: Mercador de Veneza

ANTÓNIO

Bem, conta-me lá então que mulher é essaA quem juraste a peregrinação secretaQue me prometeste hoje revelar por fim.

BASSÂNIO

Não é nada que já não conheças, António,O quanto delapidei as minhas finançasÀ custa de viver acima do meu nível,Do que mo permitiam os meus bens modestos.Nem agora me queixo de me ver privadoDe luxos, mas o meu principal compromissoÉ sair-me com honra das pesadas dívidasDe que o meu passado um tanto ou quanto pródigoMe fez refém. De ti mais, António, a quemEu devo a maior parte em dinheiro e amor,Esse amor ao qual vou buscar a garantiaDe achar a solução deste quebra-cabeçasA fim de me livrar do que me endivida.

ANTÓNIO

Conta, Bassânio, vamos, põe-me a par de tudo,E se a coisa puder ser vista com bons olhosComo tu sempre foste, de resto, garanto-te,A minha bolsa, a minha pessoa, os meus meiosAbrem-se às tuas ordens em qualquer aperto.

BASSÂNIO

Nos meus tempos de escola, perdia uma setaE atirava uma igual, de alcance semelhante,

17

O MERCADOR DE VENEZA 1.1

Por essa truta-e-meia, por esses papalvos.Vem, Lorenzo. Até logo. Não será por muito;Acabo a exortação a seguir ao jantar.

LORENZO

Bom, vemo-nos então à hora do jantar.Eu devo ser um destes sábios que são mudos,É que o Graziano nunca me deixa falar.

GRAZIANO

Pois faz-me companhia mais uns dois aninhos,Que até te esqueces do som da tua língua.

ANTÓNIO

Até ver. Falarei a bom falar agora.

GRAZIANO

Fá-lo. Essa abstinência apenas se aconselhaÀ língua curada e à tia sem remédio.

Saem Graziano e Lorenzo.

ANTÓNIO

Mas a que é que vem isto!

BASSÂNIO

Graziano diz um nunca mais acabar de nada, mais doque qualquer outro em Veneza. As razões dele são comodois grãos de trigo no meio de dois montes de palha: vai--se um dia e ainda não os encontraste, e quando osencontras não valem a procura.

16

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 9: Mercador de Veneza

Os quatro ventos trazem-lhe de cada praiaPretendentes de nome, e os seus caracóis lourosCaem nas suas fontes como o tosão de ouro,E faz da sua Belmonte a costa da Cólquida,E muitos Jasões vêm por ela em demanda.Oh, António, tivesse eu ao menos os meiosPara rivalizar com apenas um destes,A minha mente adianta-me tamanho lucroQue a crédito me sinto já afortunado.

ANTÓNIO

Sabes que as minhas posses estão todas no mar;Nem tenho o suficiente à mão nem o que troqueP’ra te conseguir essa soma; faz assim,Põe à prova o meu nome e crédito em Veneza,O que quer que se esprema até chegar à somaQue te faça chegar a Belmonte e à admirável.Vai prontamente, e indaga, vou fazer o mesmo,Tratemos disso. Por mim, dou por adquiridoObtê-lo, seja a crédito, seja à confiança.

Saem.

19

O MERCADOR DE VENEZA 1.1

Na mesma trajectória, com olho mais certoP’ra ir dar com a outra; e arriscando as duasCo’as duas dava amiúde. Uso as lições de infânciaPorque o que vem agora vem da inocência.Devo-te muito, e como jovem obstinadoO que devo perdi; mas se te permitiresAtirar outra seta à mesma trajectóriaQue a primeira seguiu, sem dúvida nenhuma,Que hei-de acertar a mira, ou dou com as duasOu te trago de volta a que arrisquei por últimoE grato devedor ficarei da primeira.

ANTÓNIO

Conheces-me tão bem, gastas apenas tempoNesses rodeios sobre amor e circunstância;E, sem dúvida, assim só agravas a ofensa,De tanto pôr em xeque a minha pronta ajuda,Mais do que se deitasses tudo a perder.Por isso, diz-me lá o que for de uma vez,Do que saibas que possa ser feito por mim,E eu prontamente o faço: vamos então, fala.

BASSÂNIO

Em Belmonte há uma mulher rica por herança,De admirável beleza, e — mais admirável —De admiráveis virtudes. E aqui há uns temposTrocámos pelo olhar bilhetes em segredo.Chama-se Pórcia, e em nada a acho inferiorÀ filha de Catão, a Pórcia de Bruto.Nem o mundo lhe ignora, ao que parece, o preço;

18

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 10: Mercador de Veneza

ensinar a vinte o que se deve fazer do que ser uma dosvinte a seguir o meu próprio ensino. O cérebro podearranjar leis para amestrar o sangue, mas o tempera-mento ardente salta por cima de decretos frios — essalebre é a loucura do jovem que escapa às malhas do con-selho do inválido. Mas este raciocínio não é o que me vaiajudar a escolher um marido. Ai de mim, esta palavra,‘escolher’. Nem posso escolher quem quero, nem recu-sar quem não quero, assim é o desejo de uma filha vivasujeita ao desejo de um pai morto. Não é duro, Nerissa,não poder escolher um nem recusar nenhum?

NERISSA

O vosso pai foi sempre virtuoso; e os homens santos àhora da morte têm boas inspirações. Por isso a lotariaque ele engendrou nestes cofres de ouro, prata echumbo, pelo meio da qual quem escolher o que bementenda vos escolhe a vós, nunca calhará a ninguém anão ser a quem vos calhe gostar. Mas qual é a tempera-tura do vosso sentimento em relação a estes pretenden-tes reais que já estão entre nós?

PÓRCIA

Peço-te, relembra-mos, e à medida que mos fores men-cionando descrevê-los-ei — e de acordo com a minhadescrição, medes a temperatura.

NERISSA

Bem, primeiro há o príncipe napolitano.

21

O MERCADOR DE VENEZA 1.2

CENA II

[Belmonte]

Entram Pórcia e a sua confidente Nerissa.

PÓRCIA

Na verdade, Nerissa, este corpo miúdo está cansadodeste mundo graúdo.

NERISSA

Estaríeis, minha gentil princesa, se as vossas tristezasempatassem as vossas muitas alegrias; e contudo, peloque me é dado ver, tanto se enjoam aqueles que se enfar-tam em demasia como aqueles que andam à míngua.Não é felicidade mediana, por isso, estar no meio — oexcesso chega depressa aos cabelos brancos, mas a par-cimónia vive mais anos.

PÓRCIA

Boas máximas, e bem ditas.

NERISSA

Melhores seriam se bem seguidas.

PÓRCIA

Se o fazer fosse tão fácil quanto o saber o que se devefazer, as capelas seriam igrejas e os casebres dos pobrespalácios de príncipes. É um bom pregador aquele quesegue as suas próprias admoestações; mais fácil me seria

20

Page 11: Mercador de Veneza

Conde Palatino: ele é todos os homens em homemnenhum. Se um tordo canta cai logo à dança; é capaz deesgrimir com a própria sombra. Se casasse com ele seriacomo desposar vinte maridos. E mesmo se me despre-zasse perdoá-los-ia; porque ainda que desse em amar--me até à loucura não havia de dar troco a nenhumdeles.

NERISSA

E quanto a Falconbridge, o jovem barão inglês?

PÓRCIA

Sabes que a esse não lhe digo nada porque ele a mim nãome entende, nem eu a ele: nenhum latim, francês, ita-liano, e haverias de jurar em tribunal que o meu inglêsnão vale uma coroa. É uma estampa de homem, masquem pode conversar com um boneco? E que mal seveste ele! Tem um gibão de Itália, calções tufados deFrança, gorro da Alemanha, e os modos de todo o lado.

NERISSA

E o que achais do senhor seu vizinho, o lorde escocês?

PÓRCIA

Está na cara a caridade que pratica com o seu próximo,já que tomou de empréstimo um sopapo do inglês ejurou que lho pagaria assim que pudesse. Creio que ofrancês acabou por ficar como fiador dando-lhe a suaoutra face.

23

O MERCADOR DE VENEZA 1.2

PÓRCIA

Ui, aí está um verdadeiro potro, já que não faz mais nadaa não ser falar do cavalo; e acha que é um grande acres-cento aos seus méritos conseguir ferrá-lo ele próprio.Suspeito bem que a senhora sua mãe tenha andado a darumas voltinhas com o ferreiro.

NERISSA

Depois há o Conde Palatino.

PÓRCIA

Esse não faz mais nada a não ser franzir o sobrolho,como quem diz, ‘Se não me quiseres, tanto se me dá.’Ouve histórias engraçadas e não ensaia um sorriso. Achoque vai dar uma de filósofo chorão quando envelhecer,com aquela tristeza toda tão avessa à juventude. Preferiacasar-me com a cabeça de um morto com um osso naboca do que com um destes. Deus me proteja destesdois!

NERISSA

E o que me dizeis do cavalheiro francês, Monsieur leBon?

PÓRCIA

Deus criou-o homem, partamos então do princípio deque homem é. Bem sei que é pecado fazer pouco, masele! — tem um cavalo melhor do que o napolitano, ummau hábito de franzir o sobrolho melhor do que o

22

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 12: Mercador de Veneza

PÓRCIA

Mesmo que eu chegue à idade da Sibila, hei-de morrer

tão casta como Diana a não ser que me ganhem pelo

desejo de meu pai. Ainda bem que esta feira de galan-

teios vem de candidatos razoáveis; é que não encontro

um por quem não sinta um fraquinho à distância e rogo

a Deus que dê a todos bons ventos de regresso.

NERISSA

Não vos lembrais, senhora, no tempo de vosso pai, de

um veneziano, estudante e soldado, que aqui veio em

companhia do Marquês de Montferrat?

PÓRCIA

Sim, sim, Bassânio! — assim acho que se chamava.

NERISSA

Achais bem, senhora; de todos os homens em que estes

meus olhos insensatos puseram a vista ele era o mais

merecedor de uma bela senhora.

PÓRCIA

Lembro-me bem dele, e se bem me lembro dele é mere-

cedor do teu elogio.

Entra um Criado.

E o que há de novo?

25

O MERCADOR DE VENEZA 1.2

NERISSA

Já o jovem alemão, o sobrinho do Duque da Saxónia?

PÓRCIA

Muito repelente de manhã quando ainda está sóbrio, erepelentíssimo à tarde quando já está bêbado. No seumelhor é um nadinha pior do que um homem, no seupior um nadinha melhor do que uma besta. E no piordos cenários ainda espero sair-me sem ele.

NERISSA

Se ele se oferecesse para escolher e escolhesse o cofrecerto, recusar-vos-íeis a executar o desejo do vosso pai sevos recusásseis a aceitá-lo.

PÓRCIA

Por isso, e não vá acontecer o pior, peço-te, põe um bomcopo de vinho do Reno num dos cofres errados, poisainda que o diabo esteja lá dentro, se a tentação estivercá fora, é certo que o escolhe. Farei tudo o que for pre-ciso, Nerissa, para não casar com tal esponja.

NERISSA

Não deveis temer, senhora, tomar nenhum destes. Já mefizeram saber as suas intenções, e essas são regressar acasa e não mais vos incomodar com ofertas, a não serque possais ser ganha de outra forma que não depen-dendo de cofres, assim como foi imposto pelo vossopai.

24

WILLIAM SHAKESPEARE

Page 13: Mercador de Veneza

CENA III

[Veneza]

Entra Bassânio com Shylock, o Judeu.

SHYLOCK

Três mil ducados — bem.

BASSÂNIO

Sim, senhor. Por três meses.

SHYLOCK

Três meses — bem.

BASSÂNIO

Dos quais, como vos disse, se dá António pela devidaexecução.

SHYLOCK

António a executar — bem.

BASSÂNIO

O que me dizeis? Tenho o vosso sim? Dais-me a res-posta que eu quero?

SHYLOCK

Três mil ducados, por três meses, e António a executar.

BASSÂNIO

E a vossa resposta?

27

CRIADO

Os estrangeiros esperam-na, senhora, para se despedi-rem; e há um mensageiro de um outro, o Príncipe deMarrocos, que anuncia a chegada do príncipe seu amopara esta noite.

PÓRCIA

Se pudesse dar as boas-vindas a este com tanta sinceri-dade como digo adeus aos outros muito me encantaria asua chegada. Se tem a condição de santo e a compleiçãodo diabo, que me absolva o primeiro de não casar como segundo.Vem, Nerissa; senhor, vai à frente:Fechamos o portão a um e já outro nos bate à porta.

Saem.

26

WILLIAM SHAKESPEARE