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8 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica IDENTIDADE RELIGIOSA EM O MERCADOR DE VENEZA, DE WILLIAM SHAKESPEARE Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza 1 Resumo Nomes podem caracterizar identidades, mas não as limitam. Para além da denominação, existe uma complexa e densa rede de significados discursivos que promovem o acabamento estético de um personagem, definindo-o, ainda que temporariamente. O presente artigo propõe considerar as formas de acabamento estético do personagem Shylock, judeu da peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare. Para tanto, será utilizado o método de análise do discurso proposto por Mikhail Bakhtin, o que levará a um tratamento específico com os enunciados, seus posicionamentos sócio-valorativos, seus efeitos de sentido e suas condições de produção. A análise mostrará como o personagem caracterizado explicitamente como judeu apresenta, em seu âmago, parte do conflito religioso da Inglaterra elisabetana em processo de reforma religiosa, indicando que a identidade de Shylock carrega muitas outras características além daquelas tradicionalmente notadas. Palavras-chave: Identidade religiosa; Reforma Protestante; William Shakespeare; Análise do discurso. 1 Mestrando em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Psicologia pela UFPR. Graduando em Direito pela UFPR, com intercâmbio acadêmico junto à Universidade de Coimbra, Portugal (UC). Psicólogo jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR).

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8 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

IDENTIDADE RELIGIOSA EM O MERCADOR DE

VENEZA, DE WILLIAM SHAKESPEARE

Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza1

Resumo

Nomes podem caracterizar identidades, mas não as limitam.

Para além da denominação, existe uma complexa e densa rede

de significados discursivos que promovem o acabamento estético

de um personagem, definindo-o, ainda que temporariamente.

O presente artigo propõe considerar as formas de acabamento

estético do personagem Shylock, judeu da peça O Mercador de

Veneza, de William Shakespeare. Para tanto, será utilizado o

método de análise do discurso proposto por Mikhail Bakhtin, o

que levará a um tratamento específico com os enunciados, seus

posicionamentos sócio-valorativos, seus efeitos de sentido e suas

condições de produção. A análise mostrará como o personagem

caracterizado explicitamente como judeu apresenta, em seu

âmago, parte do conflito religioso da Inglaterra elisabetana

em processo de reforma religiosa, indicando que a identidade

de Shylock carrega muitas outras características além daquelas

tradicionalmente notadas.

Palavras-chave: Identidade religiosa; Reforma Protestante;

William Shakespeare; Análise do discurso.

1 Mestrando em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Psicologia pela UFPR. Graduando em Direito pela UFPR, com intercâmbio acadêmico junto à Universidade de Coimbra, Portugal (UC). Psicólogo jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR).

9Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

Abstract

Names can characterize identities, but they can’t delimitate

them. Beyond the denomination, there’s a complex and

dense discursive significations web that promotes the esthetic

completion of a character, defining it, though temporarily. The

present article proposes to consider the aesthetic completion

forms of the character, Shylock, the Jewish of the play The

Merchant of Venice, from William Shakespeare. For this, the

Mikhail Bakhtin’s discourse analysis method will be used, what

will conduce to a specific treatment with the enunciations, their

social-evaluative positionings, their meaning effects and their

production conditions. The analysis will show how the character

explicitly featured as a Jew presents, in itself, part of the religious

conflict on the Elizabethan England in the process of religious

reformat, indicating that the Shylock’s identity carries many

other features beyond those traditionally noted.

Key words: Religious identity, Protestant Reformation, William

Shakespeare, Discourse analysis.

“Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram” (Calvino, 2007).

“SÓ POR BRINCADEIRA”: Uma introdução

A despeito de ameaças que vêm sendo realizadas há

séculos, é notável que a religiosidade ainda ocupa papel central

na sociedade contemporânea. E não apenas nesta, mas também

nas sociedades pretéritas que participaram da construção

10 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

cultural hoje existente. Contudo, nem sempre as experiências

que envolveram a religiosidade se mostraram positivas. Basta

lembrar as cruzadas, a jihad, as inquisições, os pogroms, as guerras

entre católicos e protestantes, os movimentos colonialistas e

imperialistas, a escravidão, a intolerância, entre muitos outros.

Todos esses acontecimentos, e muitos outros, pautaram-se

em uma divisão basilar, por meio da qual um “eu” se diferencia

de um “outro”. Este outro reiteradas vezes é tomado como um

não-lugar, como um outro privado daquilo que é próprio ao eu

e, consequentemente, como um outro que, por sua diferença,

não pode partilhar a vida e a cultura do eu. A discussão inerente

a toda essa estratificação sociocultural passa pelo âmago da ideia

de identidade. Nesse caso, de identidade religiosa.

A temática da identidade religiosa tem sido estudada

ao longo do tempo, pelos mais diferentes métodos e teóricos.

Contudo, esses estudos costumeiramente se baseiam em

perspectivas da psicologia, da sociologia ou da filosofia ontológica

e, raramente, abarcam a dimensão da linguagem inerente à

subjetividade. Portanto, premente faz-se o desenvolvimento de

reflexões acerca da identidade a partir da filosofia da linguagem,

especialmente pela metodologia atualmente conhecida como

análise do discurso.

Destaca-se que a análise do discurso possui diversas

ramificações, adotando perspectivas metodológicas com

diferentes peculiaridades, a despeito da base comum entre todas

elas. No presente artigo, a metodologia adotada consiste na

filosofia da linguagem desenvolvida por Mikhail Bakhtin, cujas

considerações mostram-se muito pertinentes nos estudos que

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envolvem a subjetividade e as obras literárias.

Em diversas dessas obras de cunho artístico é possível notar

a presença do tema da identidade religiosa. De diferentes formas,

nas obras artísticas estão materializadas relações socioculturais,

repletas de opiniões, de valores, de posições e de divisões. Estão

manifestos os conflitos existentes na vida real, embora imbuídos

de representações e símbolos. Se a arte não reflete a vida tal e

qual um espelho, ao menos pode-se nela ver uma refração, um

indício, uma representação dessa realidade onde está inserida.

Dentre as incontáveis obras artísticas que tangenciam a

questão da identidade religiosa, uma se faz notável e constitui

o objeto de análise deste artigo. Trata-se da obra O Mercador

de Veneza, de William Shakespeare, que será oportunamente

apresentada. Por ora, basta salientar que a trama é construída

sobre a discórdia existente entre um cristão e um judeu que,

comprometidos por um acordo, expressam claramente os valores

que cultivam um pelo outro, indicando o lugar – ou o não-lugar

– disponível para a aceitação da identidade desse outro.

Mas antes de se proceder à análise da obra, é necessário tecer

algumas breves considerações metodológicas sobre a filosofia da

linguagem de Mikhail Bakhtin, base teórica da análise adotada.

“O ALUNO VAI SUPERAR SEUS MESTRES”: Alguns

conceitos-chave

Mikhail Bakhtin desenvolve uma nova teoria da linguagem

e da comunicação humana, confrontando a teoria estabelecida

que se pautava em bases estruturalistas. Segundo o ponto de vista

dominante, inaugurado por Ferdinand Saussure (1989) no século

12 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

XIX, a linguagem deveria ser analisada apenas como uma estrutura

gramatical, como um conjunto de regras formais que norteiam

a construção de palavras e frases. Nessa perspectiva, o falante, o

ouvinte, o leitor ou o escritor não têm grandes contribuições a

fazer. Pelo contrário, Saussure entendia que a presença desses

sujeitos seria prejudicial para a análise da linguagem que, sob

os auspícios do positivismo, deveria ser estudada como algo

objetivo, puro e neutro. Uma linguagem desprovida de um sujeito

era o que propunha o estruturalismo.

Bakhtin rompe com essa concepção e defende que o estudo

das estruturas gramaticais – embora importante – não é suficiente

para que se compreenda a linguagem e seu uso comunicativo. O

autor russo afirma que esse objetivo só pode ser alcançado com a

reintrodução do sujeito nos estudos sobre a linguagem.

Contudo, essa nova inserção não ocorreu nos moldes

anteriores ao estruturalismo, quando o sujeito da linguagem,

marcado pela filosofia inatista de Renè Descartes, era considerado

como fundamento e criador por meio do pensamento. Ao ser

recolocado no interior dos estudos da linguagem no contexto

temporal do século XX e ideológico da União Soviética, esse sujeito

falante, ouvinte, leitor ou escritor deixa de ser concebido como

fonte primária e fundamental da linguagem e da comunicação. A

partir da matriz materialista de pensamento de Bakhtin, o sujeito

torna-se um participante da vida da linguagem: ele não apenas

cria a linguagem, mas também é criado por ela; é perpassado,

definido, limitado e nomeado com e pela linguagem. Bakhtin

discorda de Saussure ao chamar novamente a pessoa para dentro

dos estudos da linguagem, mas o faz de forma muito diferente ao

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que ocorrera até então.

Portanto, Bakhtin não apresenta a linguagem como um

mero conjunto de regras formais. Ele a entende como algo mais

amplo, que ultrapassa as formalizações e regulamentações para

se tornar um meio de comunicação. Desse modo, a linguagem

é principalmente entendida como discurso. Conceber a

linguagem como discurso significa compreender seu papel

comunicativo e participante das interações humanas, e não

apenas sua estrutura gramatical.

Frente à unidade elementar da estrutura linguística – a oração

gramatical – Bakhtin estabelece o enunciado como unidade do

discurso. Enunciado que, diferentemente da estrutura linguística

formal, não é cristalizado por convenções socioculturais. Antes

pelo contrário, ele segue fluido e em constante movimento,

acompanhando e materializando as diferentes posições sociais que

frequentemente se contrapõem entre si e não raro confrontam a

estrutura formal. O enunciado apresenta, em seu bojo, diferentes

valores e posições muitas vezes apagados nos processos de

formação e manutenção da estrutura linguística formal, que se

propõe única e obrigatória para todos os falantes da cultura onde

está inserida. A enunciação sempre implica um posicionamento

socioaxiológico, onde as palavras manifestam uma opinião

concreta sobre o mundo vivenciado pelo sujeito.

Entretanto, é importante destacar que o enunciado

não pode ser desvinculado da língua. Para Bakhtin (2010b),

o ato de enunciação é sempre linguístico. Isso ocorre porque

o contexto extraverbal (as tradições culturais, valores morais,

crenças religiosas, científicas e filosóficas, estratificação social,

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organização do trabalho, etc.) lança mão das normas gramaticais,

utilizando o sistema rígido da língua para materializar suas

posições socioculturais. Assim, os elementos linguísticos neutros

(principalmente as palavras), suscetíveis à repetição e reprodução,

acabam se tornando o meio de propagação que o enunciado

utiliza para se posicionar na realidade humana. Por seu atributo

de neutralidade, a língua pode ser usada em favor de qualquer

posição socioaxiológica. Os significados das palavras não estão

dados a priori, mas são definidos quando a oração assume um

papel enunciativo, denotando uma materialidade sociocultural

repleta de sentidos e valores.

Portanto, o discurso depende inexoravelmente do contexto

externo onde está inserido. Embora o enunciado se manifeste

sempre como expressão linguística, sua existência só é possível

em virtude do extralinguístico. A significação é historicamente

instaurada, pois os sentidos não são criados pelo sujeito

enunciador; eles estão materializados na história humana. É na

vinculação entre o linguístico e o extralinguístico que o discurso

surge e seu significado é percebido. Brandão (2004) destaca que

o discurso não se resume a um punhado de símbolos escritos que

representam o mundo. Essa era a visão clássica, que vigorara em

Platão (2003), Agostinho (2005) e Descartes (2011). Nesse novo

momento, entretanto, o discurso passou a ser entendido como

o elo entre o linguístico e o extralinguístico, de modo que a não

participação de um dos polos conduz à inexistência do discurso.

Ele é, portanto, o ponto de articulação entre as manifestações

ideológicas e linguísticas.

Bakhtin (2010c) defende que todo discurso é essencialmente

15Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

dialógico, ou seja, é construído, enunciado e finalizado obedecendo

a todo um jogo de responsividade com um contexto muito

maior que o abrange e delimita sua manifestação. O dialogismo

é entendido pelo teórico como o núcleo histórico responsável

pela atribuição de sentidos. É um contexto materializado de

produção semiótica que institui o significado enunciativo. Nessa

perspectiva, o discurso depende necessariamente da atribuição

dos sentidos históricos e sociais existentes num contexto além

da linguagem. O significado textual é sempre atribuído por um

contexto extraverbal.

Portanto, o enunciado singular está indissoluvelmente

relacionado a um conjunto de outros enunciados, anteriores e

posteriores, que se comunicam por meio do diálogo, formando

o discurso. Dessa forma, toda comunicação é inerentemente

dialógica. O texto apenas pode ser considerado como enunciativo

quando possibilita a abertura de espaço para que seja confrontado

ou corroborado.

O enunciado entendido no interior do discurso (ou seja,

de uma manifestação verbal significada pelo contexto extraverbal)

implica sempre responsividade. Esse enunciado carece de respostas

a si mesmo para formar esse diálogo entre diferentes enunciados

– a dialogia. O enunciado que é emitido e exige uma resposta

para que a comunicação possa ser efetivada é, antes de tudo,

também uma resposta a algum enunciado anterior a ele mesmo.

Não há qualquer enunciação primária ou cabal. Não há sentidos

destruídos totalmente e nem sentidos originados a partir do nada.

Um enunciado que não recebe resposta não pode ser entendido

como parte de um diálogo, pois não promove a interpretação,

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participação e posicionamento do outro, seja ele ouvinte ou leitor.

Consequentemente, não promove a vinculação entre o linguístico

e o extralinguístico, não contribui para a comunicação e, enfim,

não pode ser entendido como discurso.

Contudo, seria um erro considerar que a comunicação

dialógica se dá apenas diretamente, entre indivíduos que se

relacionam pessoalmente. O diálogo que se estabelece entre

enunciados (e não apenas entre sujeitos) transcende as fronteiras

pessoais e temporais. Bakhtin não olha apenas para o receptor

do discurso, como aquele que tem a tarefa de respondê-lo, mas

sim para toda a manifestação discursiva, evidenciado os elos

na complexa rede comunicativa como vozes que entram em

contato com outras anteriores, e sobre as quais demonstram seu

compromisso com posições históricas e sociais, significando e

ressignificando o conteúdo simbólico-linguístico.

A simples observação do contexto sociocultural imediato

onde ocorre a enunciação (objetivando compreender como

o enunciado presente responde ao passado) já é um passo

que vai além das limitações da linguística estruturalista, mas

ainda mantém-se distante de possibilitar o desenvolvimento da

hermenêutica ansiada pela análise discursiva. Uma compreensão

profunda do sentido enunciativo implica a necessidade de que o

enunciado seja analisado dentro da cadeia histórica que o abrange

e se estende durante a antecedência e a procedência do mesmo.

A unidade discursiva – o enunciado – precisa ser compreendida

tanto como resposta a enunciados anteriores quanto como uma

provocação para a emergência de enunciados posteriores.

Bakhtin (2010c) destaca que a definição do contexto

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sociocultural de onde emerge o enunciado é importante para a

compreensão do mesmo, visto que sua primeira aparição ocorre,

logicamente, na cultura de sua época de formação. Porém, dentro

do funcionamento dialógico, o fator da longa temporalidade

que abarca a enunciação também exerce influência sobre a

significação textual. Ao se entender o enunciado como um elo

na cadeia discursiva e o discurso como um diálogo responsivo

de enunciados, conclui-se que a responsividade não está

restrita ao contexto imediato da enunciação, mas abrange a

historicidade como um todo, relacionando as diferentes posições

socioaxiológicas ao longo dessa grande temporalidade.

Na medida em que a sociedade está materialmente separada

por classes econômicas, políticas, religiosas, profissionais, etárias,

dentre diversas outras, a dialogia reflete os posicionamentos

valorativos das diferentes vozes presentes na sociedade, que se

colocam em um patamar de comunicação ativa e responsiva. Como

na materialidade histórica e cultural, os enunciados demonstram

em seu interior a confrontação entre as diferentes vozes sociais, que

se digladiam em uma arena discursiva. A inextinguível pluralidade

das vozes discursivas acarreta em oposições verboaxiológicas que

dão corpo linguístico a embates sociais e históricos.

Consequentemente, nota-se que a dialogia é necessária e

indispensável para a própria constituição de sentido do enunciado,

uma vez que são as vozes já existentes, histórica e materialmente

erigidas, que permitem a solidificação de uma espécie de pano

de fundo, frente ao qual o enunciado se apresenta, em caráter

responsivo, utilizando os valores já postos e posicionando-se diante

deles. Dessa forma, o enunciado utiliza-se do embate, da arena

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de vozes diferentes, complementares e opostas, para se colocar e

apresentar sua posição responsiva e dialógica. A palavra apresenta-

se como um produto da interação existente entre as forças sociais

de valores contraditórios (Barros, 1997; Smolka 1991).

Tendo em vista a impossibilidade de apagar do seio do

enunciado seus valores socioculturais, o elemento discursivo

apresentará dentro de si rastos maiores ou menores do conflito

existente na sociedade. Portanto, uma adequada análise discursiva

deve levar em conta as vozes e os conflitos internalizados na

manifestação enunciativa. Essas vozes em disputa apresentam

e representam os conflitos e a estratificação da sociedade ao

mesmo tempo em que denotam um posicionamento axiológico.

Ergo, entender o ato da enunciação implica compreender as vozes

sociais ditas no enunciado, seus posicionamentos, o modo como

respondem e provocam a resposta, seus efeitos de sentido.

No tocante à literatura, é importante ressaltar que, em

sua compreensão discursiva da linguagem, Bakhtin (2010a)

entende que a pessoa, o escritor, o dito autor de um determinado

enunciado não responde totalmente pela obra. Ele é parte, mas

não a totalidade da autoria. O teórico diferencia o autor-pessoa

(indivíduo enunciador) do autor-criador (uma função estético-

formal inserida na própria obra).

O autor-criador é, portanto, parte da obra responsável

por materializar a relação axiológica do autor-pessoa com o

personagem e seu universo. Ele não necessariamente se identifica

com o narrador ou com qualquer um dos personagens, mas

apresenta o posicionamento valorativo do autor-pessoa sobre o

mundo representado em sua obra.

19Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

“O autor-criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele

não apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é

estenógrafo desses eventos), mas, a partir de uma certa posição

axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente.” (Faraco,

2010, p. 39).

O autor-criador é, portanto, uma segunda voz. Ele não

substitui o autor-pessoa. Ao contrário, trabalha para ordenar a

obra esteticamente segundo uma determinada voz social, escolhida

pelo escritor. O autor-criador é uma forma de ver o mundo

escolhida pelo autor-pessoa para ordenar a obra e direcionar a

visão do espectador.

Desse modo, a descrição literária sobre um determinado

personagem não reflete simplesmente a opinião do escritor

sobre sua obra. Antes, essa descrição é fruto de um determinado

posicionamento valorativo; decorre da escolha de uma voz social,

que refrata a realidade da vida para dentro da arte e imprime nos

personagens e em seus horizontes uma resposta axiológica, em

detrimento de muitas outras.

Bakhtin (2010a) defende que em certas obras literárias

(principalmente nos romances) é possível notar o aparecimento

e o conflito entre diversas vozes sociais diferentes. Contudo, elas

não são apresentadas de modo puro, neutro ou intocado. Não são

retiradas do mundo da vida e refletidas na obra de arte. Antes, elas

são refratadas, são transformadas em sua aparição, especialmente

pela ação do autor-criador, que materializa a escolha de uma

dessas vozes em detrimento das demais para a organização estética

do texto.

O autor encontra seu tema já estabelecido no contexto social

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e se orienta de forma responsiva frente a esse estabelecimento.

Portanto, a caracterização dos personagens na obra decorre muito

mais do trabalho funcional do autor-criador na estética dessa obra

do que do posicionamento particular do autor-pessoa.

Esse autor-criador possui um excedente de visão se

comparado ao personagem. Enquanto o personagem vive na obra

como as pessoas vivem a existência, o autor está mais avançado

do que o personagem, seja no tempo, no espaço ou na atribuição

de sentidos. O personagem mostra-se, perante seu horizonte,

como um ente indeterminado, em busca de uma identidade.

Essa identidade está em posse do autor, que lançando mão de

seu posicionamento axiológico fixará os limites do personagem

definindo-o (Tezza, 2007).

Portanto, a definição identitária do personagem é realizada

pelo autor, detentor desse excedente de visão e dessa capacidade

de proporcionar o acabamento a um ente sempre inacabado.

Para Bakhtin, tanto no mundo da vida, quanto no mundo da

arte, o acabamento é sempre dado pelo outro, pelo diferente, que

consegue ver o eu a partir de outra perspectiva, que o eu não

possui. Sem a alteridade, sem a ação desse outro que responde

aos enunciados, não há acabamento estético, não há identidade.

É com base nesse referencial teórico que a obra literária será

considerada a seguir.

Tendo em vista o objetivo do presente artigo – a saber,

a discussão sobre identidade religiosa – uma obra artística,

em especial, destaca-se por sua longevidade, repercussão e

profundidade. William Shakespeare marcou tanto sua geração

quanto as seguintes, e sua peça O Mercador de Veneza toca

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diretamente em assuntos como relações sociais e religiosas,

práticas culturais, questões jurídicas e políticas e, também,

construção de identidades.

Portanto, o objeto de estudo considerado no presente

artigo é a obra O Mercador de Veneza, de Shakespeare e, mais

especificamente, os enunciados presentes nessa obra que

manifestam posicionamentos socioaxiológicos sobre a questão da

identidade religiosa.

“ISSO PEDE VINGANÇA”: uma apresentação de O Mercador

de Veneza

Embora a obra não possa ser considerada como um relato

histórico ou testemunhal de uma determinada época, uma

vez que se trata de criação artística, é uma resposta, um elo na

cadeia discursiva. Desse modo, é possível considerá-la como

uma manifestação discursiva, que apresenta posicionamentos

verboaxiológicos, indica valores sociais e refrata acontecimentos

históricos e culturais.

Portanto, entende-se que Shakespeare não relata, de forma

neutra e isenta, a história que envolve a interseção das vidas

de Antonio, Bassânio, Pórcia e Shylock, personagens-chave da

trama. Antes, o autor assume um determinado posicionamento,

manifesto no texto por meio da relação entre os personagens e

seus mundos. Essa relação é evidente nos enunciados e carrega

em seu bojo certos valores culturais, que se mostram refratados

na obra artística.

Em poucas palavras, O Mercador de Veneza conta a história

de um nobre italiano chamado Bassânio, que deseja cortejar uma

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rica dama e, para isso, necessita de recursos financeiros. Tais

recursos são solicitados a seu amigo Antonio, comerciante em

Veneza, que, no entanto, não dispõe de valores líquidos e viabiliza

um empréstimo junto ao judeu Shylock, usurário, prestando como

garantia uma libra de sua própria carne. A sucessão dos fatos

impele Antonio à inadimplência, dando a Shylock – cuja filha

havia fugido com um cristão amigo de Antonio, levando grande

quantidade de dinheiro do pai consigo – o direito de liquidar a

dívida de seu devedor, ao preço de sua vida. Nesse ínterim, Pórcia,

a rica dama conquistada por Bassânio, intervém secretamente na

trama para livrar o mercador da execução solicitada pelo judeu,

ao mesmo tempo em que infringe a Shylock uma severa punição

por sua conduta, restando ao agiota nada além de abandonar

seu desejo de vingança, sem a morte de seu inimigo ou mesmo

a restituição do empréstimo realizado. A peça termina com um

alegre final dos cristãos, salvos pelas instituições, mantidos vivos,

em posse de riquezas e celebrando uniões conjugais, enquanto o

judeu se vê desprezado pela justiça veneziana, ameaçado de morte,

desprovido de seus recursos e de seu trabalho e abandonado por

sua única familiar.

Nota-se que a peça é caracterizada como uma obra

renascentista, provida de nobres, damas, romances e segredos.

Parte de seu efeito cômico é obtido a partir de confusões, como

trocas de objetos importantes e de identidades, instrumento

estilístico comum no teatro elisabetano da época. Não obstante,

a presença de Shylock deixa claro que O Mercador de Veneza é,

como alega Viégas-Faria (2011), uma comédia marcada por um

personagem claramente trágico.

23Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

A peça recebe clara influência de duas obras. Em primeiro

lugar, um conto italiano datado do século XIV e publicado em

Milão em meados do século XVI, onde constam alguns dos

desencontros narrados no enredo shakesperiano. Em segundo

lugar, a obra O judeu de Malta, escrita por Christopher Marlowe,

contemporâneo e concorrente de William Shakespeare, na

qual havia um marcante personagem judeu, possível embrião

de Shylock. Viégas-Faria (2011) destaca que a peça O judeu de

Malta foi encenada duas vezes com grande sucesso, sendo que no

mesmo ano de uma dessas encenações – 1594 – o médico (judeu)

da rainha Elizabeth foi condenado à morte por traição.

Viégas-Faria (2011) afirma que O Mercador de Veneza foi

escrito por volta de 1596, período em que Shakespeare já era

considerado um dramaturgo e ator famoso, encontrando-se sem

rival desde 1594, após a morte dos dramaturgos Christopher

Marlowe e Thomas Kyd. Em 1596, sua produção cresce com obras

mais maduras, tais como Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de

verão e Ricardo II, além de O Mercador de Veneza.

Dois anos depois, a companhia de teatro da qual Shakespeare

fazia parte construiu uma nova casa de espetáculos, originando o

Globe Theatre. Nessa época, a fama do escritor estava consolidada,

e suas peças atraíam inúmeros espectadores às apresentações.

Nos anos seguintes, escreveu Julio Cesar, Hamlet, Otelo, Macbeth,

Rei Lear, Antonio e Cleópatra, dentre outras obras. A partir de

1601, reduziu sua atividade artística. Em 1603, o rei James, novo

monarca inglês, contratou a companhia em caráter permanente.

Ao que tudo indica, Shakespeare parou de interpretar por volta

de 1607, pois a partir desse ano seu nome já não constava na lista

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de atores. Pouco depois, voltou a viver em Stratford, sua cidade

natal, onde morreu em 1616.

Anna Camati (2009) defende que a peça O Mercador de

Veneza toca, fundamentalmente, no tema da intolerância étnica,

e afirma que a sociedade inglesa do período shakespeariano era

marcada e dominada por uma concepção antissemita. Esclarece

que os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra em 1290 pelo

rei Eduardo I, sendo readmitidos apenas em 1656, sob o governo

de Cromwell, e que os poucos judeus existentes em território

inglês nesse intervalo de tempo – em sua maioria convertidos ao

cristianismo – eram vistos com ressalvas e preconceitos. Embora

essa tese seja defendida por diferentes estudiosos da obra, este

artigo propõe outra visão sobre o personagem Shylock e sobre a

questão do conflito entre as identidades religiosas na peça.

“QUEM AQUI É O MERCADOR, E QUEM, O JUDEU?”:

uma breve análise

Dada a limitação e o recorte do presente trabalho, a análise

sobre a identidade religiosa será focada principalmente na figura

de Shylock, ficando para futura oportunidade o aprofundamento

analítico com relação aos demais personagens da trama.

Primeiramente, urge ressaltar que Shylock é, inegavelmente,

um judeu. Shakespeare converge, nesse personagem, grande parte

dos estereótipos negativos que pesavam sobre a nação judaica à

época. Ele é descrito repetidas vezes como avarento, rancoroso,

vingativo, maldoso, cruel e desumano. Esses, dentre outros,

eram estigmas socialmente estabelecidos sobre os judeus, e tais

caracteres perduraram em épocas e espaços geográficos diferentes.

25Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

O antissemitismo europeu nos séculos XVI e XVII era

forte e evidente, de tal modo que os judeus foram expulsos de

diversas nações e, naquelas em que puderam permanecer, foram

submetidos a rígidas leis discriminatórias (Baibich, 2001). Assim

ocorreu, por exemplo, em algumas das cidades italianas. Em

Veneza, palco montado por Shakespeare para sua trama, os judeus

eram considerados estrangeiros tolerados por sua importância no

mercado financeiro. Baibich (2001) esclarece que, em semelhança

a outras cidades cristãs e muçulmanas, em Veneza foi destacada

uma região da cidade especificamente para a moradia dos judeus,

que não poderiam residir em outros locais dentro do perímetro

urbano. Esse espaço era murado e guarnecido por dois portões

que davam acesso ao restante da cidade e eram guardados

diuturnamente por vigilantes. Em Veneza tal região foi criada

entre 1515 e 1516 e recebeu, pela primeira vez, o nome ghetto.

Entretanto, a Inglaterra de Shakespeare estava distante

dessa realidade. O Mercador de Veneza foi produzido após cerca

de trezentos anos da expulsão dos judeus da ilha. Diferentemente

do contexto veneziano, o público londrino, destinatário imediato

das peças de Shakespeare, não nutria relações frequentes ou

cotidianas com judeus, embora a existência desses estigmas seja

inegável. Como já observado, a teoria bakhtiniana apregoa que

um enunciado sempre responde ao seu contexto de surgimento,

sempre dialoga com os sentidos já constituídos, sempre decorre

de certas condições de produção que lhe são peculiares. Esse

pressuposto teórico inevitavelmente leva à pergunta: afinal, por

que O Mercador de Veneza foi escrito nesse período? Por que, após

trezentos anos de expulsão, esse enunciado retoma a temática

26 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

judaica? Quais são os signos, as vozes sociais, os efeitos de sentido

presentes no âmago de Shylock? Talvez, o judeu não seja apenas e

tão somente um judeu.

Em uma breve recapitulação do século XVI, notam-se

drásticas e profundas mudanças no ambiente europeu, frente

às quais a tradicional e resistente sociedade inglesa não pôde

ficar impassível.

Em 1517, Martinho Lutero publicou suas Noventa e cinco

teses em Wittemberg, dando início ao movimento da Reforma

Protestante. Em suas publicações e discursos seguintes, promoveu

alguns dos pilares do protestantismo, tais como valorização das

escrituras bíblicas, autonomia de interpretação do fiel para com

o texto revelado, compreensão das profissões seculares como

igualmente sacras em comparação aos ofícios sacerdotais, foco na

experiência individual do crente em sua relação com a divindade,

redução da autoridade espiritual da igreja católica, quebra de

hierarquias religiosas, dentre diversas outras mudanças.

A reforma alemã de Lutero encontrou correspondentes em

outros países. Especialmente na região da atual Suíça e dos Países

Baixos, a Reforma Protestante angariou adeptos. Após variados

conflitos internos e externos, cidades como Genebra, Amsterdã,

Basiléia e Estrasburgo se tornaram centros de desenvolvimento

do protestantismo.

Especialmente em Genebra, ganhou força a construção

teológica, eclesiástica e política de João Calvino que, a partir da

ruptura promovida por Lutero, sistematizou diversos aspectos da

crença protestante e legitimou, a partir dela, o lucro como fruto

do trabalho, agora entendido como bênção divina e não mais

27Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

como proibição.

Entrementes, na Grã Bretanha, assentou-se sobre o trono,

em 1509, o rei Henrique VIII, cujo casamento com Catarina de

Aragão (filha dos reis espanhóis Fernando e Isabel) gerou prole da

filha Maria. Embora esse matrimônio trouxesse vantagens políticas

ao monarca inglês, Henrique mostrava-se preocupado com sua

descendência e temia que a ausência de um varão interrompesse

a linha sucessória ou lançasse o país em um conflito de grandes

proporções – ambas as possibilidades plausíveis.

Seu desejo passou a ser, então, o de separar-se de Catarina

e contrair matrimônio com outra esposa, no caso, Ana Bolera,

assegurando a legitimidade de um possível filho varão que

decorresse desse casamento. Latourette (2007) destaca que o

monarca inglês solicitou ao pontífice máximo a anulação de seu

matrimônio com Catarina, o que não foi aceito pelo papa. Esse

evento deu ao rei ocasião para aproximar de si alguns setores da

igreja e do governo, de modo que, em 1534, obteve do Parlamento

a declaração de que o rei da Inglaterra é e deve ser o chefe superior

da igreja inglesa, intitulando-se, em seguida, a suprema cabeça

da Igreja Anglicana. A separação com Roma fora consumada.

Entretanto, suas causas decorreram mais de razões políticas do

que religiosas. Henrique VIII, o homem que em 1521 publicara

Afirmação dos setes sacramentos, combatendo a teologia luterana,

continuava sendo um católico quase ortodoxo, à exceção da

substituição da autoridade papal pela sua própria (Walker, 2005).

Seu relacionamento com Ana levou ao nascimento de

Elisabete. Posteriormente, Henrique VIII contraiu sucessivos

matrimônios oficiais com mais quatro esposas, gerando de uma

28 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

delas Eduardo, o filho homem tão desejado (Latourette, 2007).

O jovem e enfermo Eduardo VI assumiu o trono aos nove

anos de idade, em 1547, e faleceu em 1553. Nesse curto tempo

de governo, mudanças foram introduzidas para fortalecer o

protestantismo da nova igreja nacional. De acordo com Walker

(2005), o partido protestante que se formara sob o reinado de

Henrique VIII e se desenvolvera sob o governo de Eduardo VI

entendia que a igreja era una, nacional, e deveria ser reformada pelo

Estado. Esse partido via, também, as riquezas como um entrave

à espiritualidade, motivo pelo qual não se opôs aos confiscos

mobilizados pela Coroa sobre as propriedades eclesiásticas.

Latourette (2007) destaca que, ao final do reinado de

Eduardo VI, nem todos os ingleses eram simpáticos à reforma

protestante, uma vez que muitos deles eram indiferentes aos

acontecimentos e outros eram apegados às tradições católicas

romanas. Diferentemente dos movimentos reformistas alemão,

suíço, holandês ou francês, todos com significativa iniciativa ou

envolvimento popular, na Inglaterra a reforma foi demandada

pela Coroa e, como já visto, por motivações tipicamente políticas.

Contudo, o povo inglês vivenciaria um forte choque social no

decorrer dos cinco anos de reinado de Maria, filha de Henrique

e Catarina, herdeira do trono de seu meio-irmão Eduardo.

A rainha Maria foi claramente compromissada com

o catolicismo e, durante seu reinado, buscou restabelecer

a autoridade papal. Por meio da deposição de pessoas e da

revogação de leis, reaproximou a Inglaterra e a igreja romana.

Conseguiu restaurar diversos bispos católicos às suas antigas

sedes inglesas, obteve revogação do parlamento para várias leis

29Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

promulgadas sob o reinado de Eduardo VI e renovou leis contra

as heresias, procurou reavivar o sistema monástico e aproximar as

universidades de Oxford e Cambridge ao romanismo.

Seus esforços também conduziram à morte de opositores,

motivo pelo qual Latourette (2007) ressalta que a monarca

ficou conhecida por seus críticos como Maria, a sanguinária.

Efetivamente, em seu reinado ocorreram cerca de trezentas

execuções de protestantes por decapitação ou fogueira, em

decorrência das disputas religiosas. Embora o número tenha sido

menor do que outros verificados nos conflitos do continente

europeu, Walker (2005) assegura que o episódio causou grande

mobilização nacional, de modo que tais mártires contribuíram

mais para a reforma inglesa do que todas as ações governamentais

até então executadas. A chegada do novo monarca seria

acompanhada por um movimento religioso da nação.

Importante ressaltar que, em decorrência da restauração do

catolicismo romano e das perseguições promovidas pela Coroa,

muitos protestantes deixaram a ilha e se dirigiram para cidades

continentais com fortes igrejas reformadas, tais como Zurique,

Basiléia, Genebra, Estrasburgo, Frankfurt, dentre outras. Nesses

locais, se aprofundaram nas concepções teológicas e políticas

desenvolvidas pelo pensamento reformista e, ao retornarem para

a Inglaterra governada por Elisabete, levaram esse novo fôlego da

reforma consigo.

Ao assumir o trono, após a morte de sua meia-irmã

Maria, em 1558, Elisabete assumia uma nação dividida. Além

das consequências das múltiplas e contraditórias mudanças

religiosas promovidas por seus antecessores, a nova rainha tinha

30 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

que lidar com súditos que desejavam a plena restauração do

catolicismo romano e com outros que desejavam a plena ruptura,

além dos intermediários. Entre aqueles que defendiam a ruptura,

começavam a se formar subdivisões, com entendimentos e

objetivos diversificados. Ao longo dos quarenta e cinco anos

de seu reinado, a governante procurou conciliar as oposições,

favorecendo, moderadamente, a perspectiva protestante.

Walker (2005) destaca que Elisabete buscava uma igreja

nacional, conciliadora e compreensiva. Porém, esse não era o

objetivo de todos os seus súditos, e estava especialmente fora

dos planos dos protestantes exilados que retornavam à pátria.

Após entrarem em contato com modelos mais radicais de

protestantismo, majoritariamente baseados no calvinismo,

muitos retornaram à Inglaterra propondo medidas enérgicas

para afastar tradições católicas consideradas como incorretas

ou perigosas. Esses protestantes não procuravam a criação de

uma nova instituição religiosa e nem o rompimento com a igreja

oficial do Estado. Antes, desejavam que a organização existente

fosse submetida a uma profunda limpeza capaz de remover as

máculas existentes e trazer à igreja a purificação necessária. Por

esse motivo, por volta de 1560, esses protestantes passaram a ser

conhecidos como puritanos.

De modo geral, os puritanos defendiam práticas litúrgicas

mais simples, aceitação do sacerdócio de todos os crentes, redução

dos sacramentos, forma de governo presbiteriana, valorização

da Bíblia e vocação dos salvos. Consistiam em uma corrente

ascética, que pregava a busca pela santificação ao invés da busca

pelos prazeres na vida. Contudo, diferenciavam-se abertamente

31Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

das correntes ascéticas católicas medievais que, baseadas nos

claustros, impunham uma vida de isolamento, meditação,

castidade e pobreza. Ao sair das celas monásticas, o ascetismo

puritano alcança a moral laica e, com base na dessacralização das

atividades sacerdotais e na valorização do trabalho individual,

permitiu que o ascetismo se espalhasse pela sociedade. Não

como as ordens mendicantes do século XII (nomeadamente,

franciscanos e dominicanos), mas como trabalhadores que se

empenhavam no labor, auferindo, em conseqüência, lucros que

deveriam ser preservados.

Em sua consagrada obra A ética protestante e o espírito do

capitalismo, Max Weber (2005) apresenta algumas relações

entre os padrões éticos exigidos pela dogmática protestante (em

especial pela puritana) e o desenvolvimento de uma certa atitude

frente à vida e ao trabalho, chamada de espírito do capitalismo.

Weber (2005) esclarece que o ascetismo puritano se

diferenciava notadamente por não coibir o enriquecimento,

mas apenas suas possíveis consequências. Demonstra que a

ética de vida puritana valorizava sobremaneira o trabalho,

entendendo-o como meio de manifestação da glória e da graça

de Deus. Esse trabalho, inegavelmente relacionado à vocação

de vida individual, vincula-se ao destino de cada sujeito.

Consequentemente, graves pecados são o desperdício de tempo

e o ócio, que se tornam possíveis com o acúmulo de riquezas.

Dessa forma, os puritanos separam o acúmulo financeiro, de

um lado, e possíveis consequências desse acúmulo, manifestas

no luxo, no conforto, no gozo e no ócio, de outro, valorizando

o primeiro em oposição ao segundo. O enriquecimento é visto

32 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

como fruto legítimo do trabalho, obrigação religiosa do ser

humano, e deve ser sempre acumulado, demonstrando a graça

de Deus sobre o trabalhador.

Assim, a riqueza seria eticamente má apenas à medida que venha a ser uma tentação para um gozo da vida no ócio e no pecado, e sua aquisição seria ruim só quando obtida com o propósito posterior de uma vida folgada e despreocupada. Mas como desempenho do próprio dever na vocação, não só é permissível moralmente, como realmente recomendada. (Weber, 2005, p. 122).

Importante notar, ainda, que Calvino e os puritanos

autorizavam o empréstimo a juros, condenado pela doutrina

romana. Entretanto, essa atividade deveria obedecer a alguns

requisitos (tais como limites de taxas de juros) e, de forma alguma,

poderiam consistir em um meio para se obter o lucro per si, como

finalidade última. O pensamento puritano definia o lucro como

fruto aceitável do trabalho, e não o trabalho como meio para se

obter lucro. Sendo a riqueza uma forma de tentação, que pode levar

ao pecado do ócio, a busca unicamente pela fortuna particular

consiste em grave erro, pois conduz à avareza e à ganância. Longe

de ser utilizada para gozo próprio, a renda recebida por meio do

trabalho deve ser acumulada, manifestando a bênção divina.

Por conta dessas peculiaridades, Weber (2005) demons-

tra como a ética protestante e a ética judaica apresentam pon-

tos de conexão, notavelmente por contribuírem para a ascen-

são e desenvolvimento do capitalismo moderno, embora de

formas diferenciadas.

Entretanto, o movimento puritano não foi muito bem

recebido em sua chegada à Inglaterra. A rainha Elisabete resistiu

33Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

aos puritanos e às suas pretensões de mudança. Autorizou a

organização de uma comissão com o propósito de suprimir os

puritanos e, em 1593, obteve do parlamento a declaração de que

esses reformistas consistiam em sectários sediciosos e pessoas

desleais (Latourette, 2007). Os monarcas seguintes, James I e Carlos

I também enfrentaram o puritanismo. Realmente, Shakespeare

tinha farto material para discutir a questão da identidade religiosa

em 1596.

Agora, é possível retroceder à pergunta que motivou toda

esta recapitulação histórica. Afinal, o que há nesse personagem,

Shylock, de tão importante para a questão da identidade e dos

conflitos religiosos? Como já dito, Shylock é, inegavelmente,

um judeu. Ele é apresentado desse modo, com os estereótipos

tradicionais aplicados à comunidade judaica. Suas falas e ações

são interpretadas pelos outros personagens (e abrem espaço para

interpretação dos espectadores e leitores) confirmando esses

estigmas. No início da trama, ao notar a figura de Antonio,

Shylock afirma:

Detesto o sujeito por ser um cristão, mas detesto ainda mais porque, assim humilde e simplório, ele faz empréstimos de graça e reduz a taxa de juros aqui para nós em Veneza. Se eu conseguir pegar ele de jeito, então alimento à larga o meu velho rancor contra ele. (...) Amaldiçoada seja a minha tribo, se eu conceder perdão a esse sujeito! (Shakespeare, 2011, p. 37).

Em outro momento, questionado sobre seu intento

em executar a multa prevista na promissória – a retirada de

uma libra da carne de Antonio – e sobre a utilidade disso,

Shylock afirma: “Posso usar de isca nas minhas pescarias. Se

ela não alimentar nada mais, vai alimentar a minha vingança.”

34 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

(Shakespeare, 2011, p. 73).

Ao longo da obra há outras semelhantes manifestações

sobre o caráter cruel e desumano do judeu Shylock. Contudo, é

premente salientar que a identidade do pária não é oriunda apenas

de sua descendência étnica ou de sua vinculação religiosa. O

Shylock desprezado pelos cristãos é frequentemente caracterizado

por sua atividade laboral – o empréstimo a juros.

O primeiro diálogo entre Shylock e Antonio enfatiza

exatamente a tensão social dos dois personagens em torno da

cobrança de juros, instrumento de trabalho para o primeiro e

motivo de desprezo para o segundo. Após Antonio afirmar que

não cobra e nem paga juros, Shylock defende sua prosperidade

financeira, argumentando a partir de um relato bíblico que “o

lucro é uma bênção se não for roubado” (Shakespeare, 2011, p. 39).

Próximo ao final da trama, às vésperas da execução da

promissória, Antonio fala a um amigo: “Ele quer que eu pague

com a vida, e eu sei bem por que razão: muitas vezes livrei das

multas dele muitos que vez ou outra vinham se queixar comigo;

portanto, ele me tem ódio.” (Shakespeare, 2011, p. 89).

Os trechos citados, dentre outros existentes na obra,

mostram que a questão da identidade religiosa e do conflito daí

decorrente fundamentam-se prioritariamente na prática da usura,

e não em questões teológicas, diferenças eclesiásticas ou distinções

étnicas (Paixão, 2002). Usura que, na Inglaterra elisabetana, era

defendida e praticada pelos vários puritanos, com aborrecimento

aos valores católicos de proibição da cobrança de juros. Em O

Mercador de Veneza, o personagem Shylock, formalmente definido

como judeu, apresenta claras características puritanas e, em suas

35Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

falas, propõe a desconstrução de diferentes práticas e tradições

existentes na sociedade que o oprime. Muitas dessas práticas,

inclusive, identificadas na figura do cristão Antonio, mercador

respeitado e de sólida reputação na cidade.

Relevante notar que Shylock apresenta outras características

tipicamente associadas ao puritanismo, tais como seu desejo

de purificação (visível no modo como trata a mascarada), sua

parcimônia (que ganha destaque frente à prodigalidade da filha

Jessica), sua apreciação pelo trabalho (nítida na crítica que

direciona ao criado Lancelote), seu apego às normas escritas

(quando apela ao direito e à justiça para reaver seu patrimônio e

para penalizar Antonio), dentre outras situações.

Situar esses personagens diante dos posicionamentos

sócio-valorativos que cada um deles defende, permite notar que

o rótulo “cristão” e “judeu” esmaece o vivo confronto social e

religioso do período. Confronto esse entre puritanos, de um lado,

e católicos romanos e anglicanos, de outro. Contemplar as outras

significações possíveis que envolvem esses personagens confere

ainda maior peso à fala de Pórcia, no julgamento, conclamando a

presença das partes litigantes: “Quem aqui é o mercador, e quem,

o judeu?” (Shakespeare, 2011, p. 103).

A tensão inicial entre Shylock e Antonio, consoante à

cobrança ou não de juros sobre o empréstimo solicitado, é esvaziada

pelo judeu que, em uma armadilha, propõe uma substituição da

cobrança dos juros pela carne de Antonio. “Só por brincadeira, se

você não me pagar o que deve no dia previsto, no local previsto,

tal quantia ou quantias como descritas na promissória, que seja

a multa exatamente uma libra de sua carne” (Shakespeare, 2011,

36 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

p. 41). Essas palavras são interpretadas por Antonio como sinal

de benevolência e, após a saída do usurário da cena, o mercador

ressalta o peso que a atividade de empréstimo exerce sobre a

identidade de seu interlocutor: “Apressa-te, judeu gentio. O hebreu

vai virar cristão, de tal modo tornou-se generoso” (Shakespeare,

2011, p. 42). A cobrança de juros se mostra tão importante para a

definição identitária do judeu/puritano, que sua ausência indica

a negação da própria subjetividade, culminando (nesse ponto da

obra, ainda uma simples ameaça) com a conversão do errante para

o reto caminho cristão e, consequentemente, em sua completa

ausência enquanto outro.

Essa tentativa de negação é apontada argumentativamente

por Shylock, em pelo menos dois diferentes momentos da obra,

nos quais ele mostra que as práticas de Antonio e dos demais

cristãos e cidadãos de Veneza não eram apropriadas a partir de

critérios de humanidade. Em uma dessas situações, o agiota mostra

seu inconformismo com o lugar social que recebe, destacando a

humanidade comum entre judeus e cristãos, entre o eu e o outro:

Eu sou um judeu. Judeu não tem olhos? Judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, impulsos, sentimentos? Não se alimenta também de comida, não se machuca com as mesmas armas, não está sujeito às mesmas doenças, não se cura pelos mesmos métodos, não passa frio e não sente calor com o mesmo verão e o mesmo inverno que um cristão? Se vocês nos furam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? (Shakespeare, 2011, p. 73).

E continua, com uma clara mudança na tonalidade do

enunciado, deixando de lado o viés argumentativo e substituindo-o

por uma fala agressiva e ameaçadora:

E, se vocês nos fazem mal, não devemos nos vingar? Se somos

37Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

como vocês em todo o resto, vamos ser como vocês nisso. Se um judeu faz mal a um cristão, isso é recebido com humildade? Não, isso pede vingança. Se um cristão faz mal a um judeu, pelo exemplo cristão, qual deve ser a clemência? Ora, vingança. A baixeza que vocês me ensinam eu vou executar e, se não houver impedimentos, o aluno vai superar seus mestres. (Shakespeare, 2011, p. 73,74).

Os ativos protestantes executados sob o reinado de Maria

não morreriam em vão. Pela boca de Shylock são proferidos

os enunciados que balançaram a Europa através das guerras

religiosas. Se uma abordagem ideológica e argumentativa não

se mostrasse suficiente para os fins da purificação pretendida,

então a tática bélica seria adotada. Esse conflito, capaz de levar à

morte de uma das partes, é muito bem representado pela figura

do julgamento, onde não apenas o direito, mas também as vidas

estão em disputa.

O Shylock que não dobrou seus adversários pela

argumentação e que recebeu de sua filha a traição, aceita por

fim a definição que desde o início da peça lhe fora imputada.

Embora tenha resistido ao acabamento estético que lhe era feito,

embora tenha combatido a delimitação identitária que lhe era

imposta, Shylock recua e, assim, aceita, internaliza e responde

afirmativamente ao que seus acusadores – presentes na pessoa

de seu grande outro, o mercador Antonio – alegavam: “Tu me

chamaste de cachorro sem ter motivo algum para tanto. Então, já

que sou cachorro, cuidado com as minhas presas.” (Shakespeare,

2011, p. 88).

Essa é a postura combativa que Shylock adota no julgamento

contra Antonio. Determinado a alcançar sua vingança, o judeu

exige incansavelmente que o mercador pague pelo mal que lhe

38 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

fez (desprezando-o e dificultando sua atividade comercial) com

a própria vida. O mercador, já sem esperanças de salvação, não

contra-argumenta os clamores de seu adversário, o que fica ao

encargo do amigo Bassânio. Na cena do julgamento, o grande

interlocutor de Shylock é a instituição jurídica, responsável pela

aplicação do direito e pela execução da justiça. Essa instituição

é personificada na figura do doge, cargo de suma importância

na Veneza medieval e pré-moderna, e, principalmente, na figura

de Baltasar, suposto jurisconsulto representado por Pórcia com o

intuito de transformar o resultado final do julgamento em favor

de Antonio.

Shylock legitima seu pedido com base na segurança

jurídica de Veneza, nos direitos que os estrangeiros possuem e na

necessidade de que as leis e tradições sejam mantidas e respeitadas,

insinuando que sua quebra constituiria em perigo para o futuro

da cidade. Acrescenta também uma crítica à sociedade que o

oprime e que procura negar-lhe o direito de executar a promissória.

Abordando o tema da escravidão, mostra como essa sociedade cristã

– ou católico-anglicana, como já visto – não buscava a justiça no

julgamento, mas tão somente a proteção de seus próprios cidadãos,

relegando tanto aos estrangeiros quanto aos escravos um lugar vazio

e desprovido de garantias institucionais. Na Inglaterra de Elisabete

e de seus sucessores mais próximos, os incômodos puritanos que

procuravam modificar a cultura e a relação entre a igreja e o Estado,

que acusavam falhas políticas, eclesiásticas e morais na sociedade

inglesa, não poderiam receber da Coroa liberdades ou garantias.

Shylock não poderia recebê-las.

Contra o argumento jurídico e o apelo à justiça proclamados

39Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

por Shylock, Baltasar fala de misericórdia e perdão, alegando

que no frio cumprimento da justiça nenhuma das partes seria

plenamente saciada, ao passo que a misericórdia promoveria o

benefício de todos. Negando os clamores puritanos, a melhor

resposta que a rainha Elisabete dá ao movimento é a integração

pacífica com seus oponentes.

Contudo, a situação do litigante que nega a misericórdia

fica mais complexa logo a seguir. Após ter sua promissória

validada pelo tribunal e a sentença de corte de uma libra de carne

autorizada, Shylock é impedido por Baltasar de executar sua tão

esperada multa. Em uma manipulação jurídica, Baltasar afirma

que Shylock não tem direito ao sangue de Antonio, mas apenas

a uma exata libra de sua carne e, desse modo, ao cobrar a multa

da promissória, que levaria o mercador à morte, incorreu em um

atentado à vida de um cidadão veneziano, devendo ser punido

com o completo confisco de seus bens e com uma possível pena

capital. Deixando de lado a alegação de misericórdia, afirma a

Pórcia intérprete de Baltasar: “como tu clamavas por justiça,

podes estar seguro de que terás mais justiça do que querias.”

(Shakespeare, 2011, p. 109).

Anna Camati (2009) defende que a manobra realizada

no julgamento, ao invés de perseguir a justiça, como tantas

interpretações sugeriram, teria como finalidade, de fato, a

perseguição e humilhação do usurário em benefício do mercador.

Rapidamente, o doge usa de sua autoridade e, retomando o

tema da misericórdia, afirma que Shylock poderia continuar vivo.

Porém, todos os seus bens seriam confiscados, o que implicaria a

impossibilidade de trabalho do agiota.

40 Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44 | Via Teológica

Saindo do julgamento como vitorioso, Antonio propõe

outra resolução e apresenta duas obrigações a Shylock, em troca do

favor que seria o perdão da pena estipulada pelo doge: a conversão

do judeu em cristão e a assinatura de um documento pelo qual

todos os seus bens seriam transmitidos à filha Jéssica, que o havia

abandonado e furtado, na ocasião de sua morte. Concordando

com construção proposta por Antonio, o doge sentencia Shylock

a cumprir essa determinação, sob pena de ser condenado à morte.

Enfim, o julgamento termina ao avesso. O judeu/puritano

que lá entrara para ver sua concepção de justiça cumprida – e,

consequentemente, o reconhecimento de seu lugar na sociedade

–, sai derrotado, sem vingança, sem execução da multa, sem o

pagamento do vultoso empréstimo que fizera, sem parte do seu

patrimônio e de seu meio de subsistência, sem orgulho, sem

esperança, sem liberdade para dispor livremente de seus bens e,

enfim, sem sua própria identidade. Não bastasse o preconceito com

relação à sua confissão e origem, presente em toda a trama, agora

Shylock é impedido até mesmo de ser o judeu, ou puritano, que é.

A absoluta e completa negação do outro, antes apenas insinuada

ou mencionada, passa a ser legitimada e obrigada pelas instituições.

O puritano inglês refratado por Shylock deixa de ser apenas o

estrangeiro, o diferente, o outro. Ele perde até mesmo a possibilidade

de ser desprezado como outro, pois deve, coercitivamente, se tornar

semelhante ao eu. No anglicanismo conciliador elisabetano, não há

espaço para radicais purificadores externos. Ou eles se convertem

ou perdem a vida. Tanto em uma quanto em outra situação, o

puritanismo é impedido de existir.

41Via Teológica | Daniel Jaccoud Ribeiro de Souza, Vol. 13, n.25, jun.2012, p. 08 - 44

“TERÁS MAIS JUSTIÇA DO QUE QUERIAS”: considerações

finais

O Mercador de Veneza apresenta Shylock como um

personagem de extrema complexidade. Possui caráter malévolo e

vingativo, embora em diferentes oportunidades busque justificar-

se. Odeia e combate o sistema que lhe despreza e não o aceita.

Encarna todos os estereótipos negativos atribuídos aos judeus.

Mas mostra-os também nos cristãos.

É impressionante notar que, das vinte cenas que compõem

a peça, Shylock se faz presente apenas em cinco. O leitor e o

espectador da obra têm a nítida impressão de que a personalidade

do anti-herói, bem como suas tramas, dominam todo o enredo.

O judeu é desprezado pelos cidadãos venezianos, é

abandonado por sua filha, é despojado de suas riquezas, é

desacreditado pelas instituições em que confia e, por fim, é

proibido de ser quem ele é. Por conta disso, despeja seu furor e

ódio contra a sociedade em que vive, mas que não o reconhece.

Considerar O Mercador de Veneza sob a perspectiva da

análise discursiva bakhtiniana implica considerar a obra como

um conjunto de enunciados que se posicionam responsivamente

na cadeia dialógica. Contrariamente a tentação de aceitar

Shylock como uma representação exata dos conflitos envolvendo

o antissemitismo da época, a análise discursiva convida à

compreensão das condições de produção enunciativas, refratadas

na obra de arte por meio de um posicionamento socioaxiológico

do autor. O personagem não reflete translucidamente o

contexto londrino ou veneziano da época de Shakespeare.

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Antes, ele empresta sua boca, sua vida, seu caráter, seu ser em

constante processo de acabamento estético para apresentar certos

posicionamentos sociais, sempre em conflito na arena de vozes.

Ouvir a voz abafada do puritano reprimido na Inglaterra

elisabetana permite olhar a obra de Shakespeare com uma nova

visão, diferente das tradicionais interpretações que abordam o

preconceito ao judaísmo. A questão da identidade religiosa está,

sim, presente na obra, e constitui eixo central de toda a trama.

Contudo, a responsividade dos enunciados alcança sujeitos, no

mundo da vida, não necessariamente nomeados no mundo da arte.

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