memórias fixadas, sentidos itinerantes: os arquivos abertos de … · e o arquivo1, dedicado à...

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FACOM - nº19 - 1º semestre de 2008 O século XX produziu muitos arquivos. De um lado, fomos impactados pelos novos instru- mentos e métodos de registro e catalogação, de outro, tivemos de reconhecer o potencial des- trutivo da própria técnica, revelado por duas grandes guerras, e nos apegamos à memória como forma de lidar com a fragilidade de nossa existência. Hoje, nós nos vemos diante de um novo problema. Produzimos muitos arquivos e, sem poder fazer circular seus documentos, eles mais demarcam o tamanho de nossa amnésia do que constroem efetivamente uma memória. Além dos historiadores e dos gestores dos arquivos que se esforçam para dar sentido às informações acumuladas, os artistas participam cada vez mais desse debate. Chris Marker, escri- tor, fotógrafo, cineasta francês, é um autor que discutiremos mais detidamente mas, antes disso, vale pontuar outras experiências, não para demonstrar que se trata de uma tendência mas, ao menos, que o problema está devidamente colocado para o campo da arte. Memórias fixadas, sentidos itinerantes: os arquivos abertos de Chris Marker Ronaldo Entler To fight against forgetfulness, modern societies have multiplied their archives and sought for methodologies to reconstruct a supposed historical time line. Aware of the failure of this project, some artists started to avail themselves of collections already constituted, playing with the remaining lacunae. In one way, we recognize in these experiences an example of how contemporary art extends over fields that are unrelated. On the other hand, these experiences reveal an effort to give to memory another role that is not simply a celebration of the past. The work of the French writer, photographer and movie maker, Chris Marker shows how the meanings of documental images remain in construction and above all, how they can be used as an instrument of critic and transformation of the present time. Keywords Chris Marker, photography, cinema, archive, history Para lutar contra o esquecimento, as sociedades modernas multiplicaram seus arquivos e buscaram metodologias para recompor um suposto fio contínuo da história. Conscientes do fracasso desse projeto, alguns artistas passaram a se apropriar de acervos já constituídos, jogando com as lacunas que neles inevitavelmente restam. Por um lado, reconhecemos nessas experiências um exemplo de como a arte contemporânea se expande sobre territórios que não lhe são próprios. Por outro, encontramos nelas o esforço de dar à memória um outro papel que não simplesmente o de celebrar o passado. Através da obra de Chris Marker, percebemos como o sentido das imagens que registram o passado permanece em construção e, sobretudo, como elas podem ser retomadas como instrumento de crítica e transformação do presente. Palavras-Chave Chris Marker, fotografia, cinema, arquivo, história Resumo Abstract

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Page 1: Memórias fixadas, sentidos itinerantes: os arquivos abertos de … · e o Arquivo1, dedicado à reflexão sobre diferentes modos de apropriação estética dessa questão. Dis-cutiram-se

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OséculoXXproduziumuitosarquivos.Deumlado,fomosimpactadospelosnovosinstru-mentosemétodosderegistroecatalogação,deoutro,tivemosdereconheceropotencialdes-trutivodaprópriatécnica,reveladoporduasgrandesguerras,enosapegamosàmemóriacomoformadelidarcomafragilidadedenossaexistência.Hoje,nósnosvemosdiantedeumnovoproblema.Produzimosmuitosarquivose,sempoderfazercircularseusdocumentos,elesmaisdemarcamotamanhodenossaamnésiadoqueconstroemefetivamenteumamemória. Alémdoshistoriadoresedosgestoresdosarquivosqueseesforçamparadarsentidoàsinformaçõesacumuladas,osartistasparticipamcadavezmaisdessedebate.ChrisMarker,escri-tor,fotógrafo,cineastafrancês,éumautorquediscutiremosmaisdetidamentemas,antesdisso,valepontuaroutrasexperiências,nãoparademonstrarquesetratadeumatendênciamas,aomenos,queoproblemaestádevidamentecolocadoparaocampodaarte.

Memórias fixadas, sentidos itinerantes:os arquivos abertos de Chris Marker

Ronaldo Entler

To fight against forgetfulness, modern societies have multiplied their archives and sought for methodologies to reconstruct a supposed historical time line. Aware of the failure of this project, some artists started to avail themselves of collections already constituted, playing with the remaining lacunae. In one way, we recognize in these experiences an example of how contemporary art extends over fields that are unrelated. On the other hand, these experiences reveal an effort to give to memory another role that is not simply a celebration of the past. The work of the French writer, photographer and movie maker, Chris Marker shows how the meanings of documental images remain in construction and above all, how they can be used as an instrument of critic and transformation of the present time.

Keywords

Chris Marker, photography, cinema, archive, history

Para lutar contra o esquecimento, as sociedades modernas multiplicaram seus arquivos e buscaram metodologias para recompor um suposto fio contínuo da história. Conscientes do fracasso desse projeto, alguns artistas passaram a se apropriar de acervos já constituídos, jogando com as lacunas que neles inevitavelmente restam. Por um lado, reconhecemos nessas experiências um exemplo de como a arte contemporânea se expande sobre territórios que não lhe são próprios. Por outro, encontramos nelas o esforço de dar à memória um outro papel que não simplesmente o de celebrar o passado. Através da obra de Chris Marker, percebemos como o sentido das imagens que registram o passado permanece em construção e, sobretudo, como elas podem ser retomadas como instrumento de crítica e transformação do presente.

Palavras-Chave

Chris Marker, fotografia, cinema, arquivo, história

Resumo Abstract

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Em2001,aUniversidadedeRennes,naFran-ça,realizouocolóquioOs Artistas Contemporâneos e o Arquivo1, dedicado à reflexão sobre diferentes modosdeapropriaçãoestéticadessaquestão.Dis-cutiram-se alguns diferentes vieses: criadores quepensam através de suas obras o papel social dosarquivos;ouqueacumulameorganizamdocumen-tose vestígios ligadosa seusprocessoscriativos;outroscujasobrasassumemaestratégiadacoleçãoedo inventárioemseusmodosdeexibiçãoe,porfim, aquilo que efetivamente nos interessa, artistas quenãoapenastomamamemóriacomotema,maspartemdeacervosconsolidadoseseapropriamdedocumentosparacomporsuasobras. Na1�ªediçãodoVideobrasil (Festival Inter-nacional de Arte Eletrônicas, em 200�), notamostambémapresençamarcantede trabalhosexperi-mentaisquerecorriamaosarquivos.Naocasião,acomissãodeseleçãoobservava:

“Diante do gigantesco repertório audiovisual à nossadisposição, permanece a necessidade de associar aimagem a um discurso, para devolver-lhe alguma vi-talidade.Mas recorreraosarquivosnãoéapenas re-viraropassadoquefoialvodoregistro.Hátambémopensamento de quem o constituiu e o ordenou, poisnãoexisteumaformanaturaldeacumularimagens,anão ser dentro da expectativa sempre fracassada deacumulartodasasimagens.Assim,oqueseofereceàleituranãoéopassado,masoutrostantosolharesquejáselançaramsobreele,criandonovaszonasdefocoedesfoqueque,emparte,garantemsuasobrevivênciae,emoutraparte,decretamsuamorte”2.

Algunsartistas jápossuemuma longa traje-tória em ações que exploram acervos de imagensjá constituídos. Podemos destacar dois exemplosconsagrados, o francês Christian Boltanski, numaperspectiva mais autobiográfica e nostálgica, e a brasileira Rosângela Rennó, com uma abordagemmaiscríticaepolitizadadosaparatosdememória.Cadaumaseumodo,elespartemdeálbunsdefa-mília, fotografias 3 x 4 anônimas ou imagens publi-cadasemjornais.Porvezes,sedetêmefetivamentesobreacervosinstitucionaiscomofezRennónoAr-quivoPúblicodoDistritoFederal (Imemorial, 1994) e no Museu Penitenciário Paulista (Cicatriz,1996 eVulgo, 1998); e Boltanski, nos arquivos municipais

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deBerlim(La Maison Manquante,1990)enoInstitutNationaldel’AudiovisueldaFrança (6 Septembres, 2004). O valor dessasexperiênciasnãoéde reconhe-cimentounânimee,àsvezes,elaspare-ceminvadirumespaçoquetradicional-mente é ocupado pelo historiador. Noentanto, mesmo que denunciem certainsuficiência da imagem, e nos levem a pensarqueseuacúmulonãogaranteasobrevivênciadopassado,essesartistasestãolongedeproporumdiscursocon-traamemória. Há, de fato, propostas mais po-lêmicas,comoadoartistaalemãoJoa-chimSchmid.Desdeosanos80,elesu-gere–enfaticamente,mascomumfundodeironia,écerto–quenãoseproduzammais fotografias, já que há uma prolifera-çãodeimagensdescartadasquepode-riam substituir os novos e redundantesregistrosfeitostodososdias.Aindaquefalenumaespéciedeecologiadasima-gens,aapropriaçãoquefazdefotogra-fias, algumas delas provenientes de ál-bunsdoadosàsuasupostacausa,éporvezesentendidacomoumgesto icono-clastaquemaisatentacontraamemóriadoqueadiscute. Boris Kossoy, reconhecido porsuaspesquisasnocampodahistóriadafotografia (bem como da história através da fotografia), questiona o valor de tantos arquivosebancosdeimagensque,maisquenunca, seproliferam,equechamade “geladeiras da memória”. Suspeitasobretudo de algumas formas de utili-zaçãodasimagens:“osfatosimportammenosquesuarepresentação.Criam-sefatos para sua intensa repercussão mi-diática.Os fatospelos fatos,essesnãomais se sustentam (...). É a vitória damáscarafantásticasobreoseroriginal”(Kossoy, 2007:140-1). Podemos extrair daqui um parâ-metro para a crítica da exploração da

memória,sejapelaarte,pelahistória,oupelasciên-ciasemgeral,poisnãoéraroverespéciesde“par-ques temáticos” serem vestidos com trejeitos dapesquisa histórica ou arqueológica. Ainda que tireproveitodocaráterfugidiodarealidade,aobrateráforçanamedidaemqueaindadirijaseuolharparaaquiloquedeuorigemaoarquivo,tantoosfatosdopassadoquantoosoutrosolharesqueorientaramaproduçãodeseusdocumentos.Podemosvalorizaromodocomoalgunsartistasexploramconsciente-menteasambigüidadeselacunasdamemória,masaindaesperamosdiferenciaressaatuaçãodosdis-cursosque,aocontrário,pretendemimpororeco-nhecimentodeumpassadodesprovidodesentido,pormeiodaespetacularizaçãoedamonumentalização.

A origem dos arquivos na poesia

Amemóriasemprefoisubstratoparaaarte.Paraosgregosantigos, eraMnemosine (aMemó-ria),irmãdeCronosemãedasMusas,quemtornavapossívelahistória,mastambémapoesia,amúsica,adança.OhelenistaMarcelDetiennelembraopapeldopoetanumaGréciaarcaica,maisantigadoqueaquelaGréciaclássicaquecostumamosestudar:opoeta,alcançandoaverdadeatravésdeMnemosine,nãoapenasrecordaosfeitosdoherói,aocontrário,alguémapenassetornaheróipeloagenciamentodesuapalavra,acadavezqueestaépronunciada(cf.Detienne, 1988:19-20). Dentro de uma concepçãopré-filosófica de verdade, a palavra do poeta é in-questionável, ela não apenas se refere a algo queé,masfaz com que algo seja,umgestoqueémaisdivinoquehumano,graçasaorespaldodeMnemo-sine.Odestinodoheróinãoestáresolvido,eleentraem jogoacadavezqueseus feitossãoobjetodorelato.Estapalavraéconcreta,cantada,carregadadevisualidade,exigeentonaçãodavozeexpressãocorporal,émaisdaordemdaperformancequedoconceito.Porsuavez,estamemóriamíticaéviva,não se situa na distância do tempo, porque faz opassado desfilar diante dos olhos para dar sentido aopresente,masdemaneirasempreprovisória,atéqueomitosejanovamenteritualizado. QuandoaGréciacomeçaaesboçaraestru-turação de suas cidades e de suas filosofias, as no-

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çõesdememóriaeverdadetendemasedissociar.Masétambémpelasmãosdopoetaqueamemóriapassaaumdomínioterreno,efetivamentehumano,sujeitoàescolha,àopiniãoeaoequívoco.Atribui-seaSimônidesdeCéos,poetagregodoséculoVIa.C.quenãodeclamaporinspiraçãodivina,masporofí-cio,ainvençãodamnemotécnica.Dealgummodo,eledemarcaummomentodedistinçãoentreapa-lavradopoeta,quepermaneceambígua,imagética,afetiva, ilusionista, e a palavra do filósofo, abstrata, precisa,unária,aquempassaacaberarelaçãocomaverdade(Detienne,1988:��-60).Quandoahistóriatambémsedistanciadosmitos,asalegoriasdãolu-garàsreferênciaslógicaseaodiscursolinear,ains-piraçãodálugaràcoletasistemáticadeevidências,eoarquivotendeasurgircomoformasistematizadadamemória.Maselepreservaumaconexãocomsuaorigempoética.Emsuatentativaderecomporumahistória dos arquivos, Fausto Colombo reencontraSimônides como personagem fundador: baseadanumaimaginaçãoqueassociafatosaimagens,paradistribuí-los em lugares que serão acessados pelaimaginação, sua mnemotécnica é precursora deum modo de funcionamento de todo arquivo, queé sempreumamemória representadasoba formade um espaço navegável (Colombo, 1991:30-1). Na Grécia clássica, a época dos grandes filósofos mas também dos sofistas, lembrar não é mais uma con-cessão divina, torna-se uma técnica acessível aoshomens,operadasegundoordensescolhidascons-cientemente.Anarrativatalequaléfeitapelopoetaéumdentreosmodospossíveisdearticularosdadosdessamemóriasecularizada.Porisso,aocontráriodo filósofo, sua palavra está dotada de ambigüida-de, de sentidos potenciais. Contemporaneamente,mesmodiantedasmemóriastecnológicas,diráCo-lombo,osarquivosquedelaresultamsão,maisdoquenunca,umacúmuloextremamente fragmentá-riodesignosnumespaçocomplexo.Tentandodarcontaderepresentá-lo,olabirintoéametáforaqueelegeparacomeçareencerraraanálisedasvelhasenovas formas que os arquivos assumem (1991:124). Quando uma potência divina não mais ga-rantearelaçãocomaverdade,amemóriapassaaseconstituirdeimagensfragmentárias,organizadasnumespaçoqueseassumecomoarbitrário.Onde

há imagens há jogo: de um lado, osmétodosetécnicasmnemônicasnãosão capazes de preencher todas asfolgas, de outro, a ânsia de resolvê-las deixa sobras, rebarbas, sobrepo-sições, constroemumespaçopoucohomogêneo, incapaz de respondercomprecisãoaosencadeamentosquesepretendedaraosfatosdopassado.Enquanto uma historiografia positivis-tatentasuperartalcondição,oartistaaexplora,jogacomela.

Memória e poder

A memória humana é impreci-saefalívele,diantedaexpectativadepreencheraslacunasquesempreres-tam,cercamo-nosde representaçõese vestígios do passado. Cumprindoessesdoispapéis,as imagens técni-cas são produzidas e preservadas apartirdeestratégiasnasquaisapren-demos a confiar. Mas logo a imagem? Elaqueéàsvezestãoplana,àsvezestão estática, ou feita de descontinui-dades, tãodelimitadaporcortes,porbordas bem demarcadas, enfim, ela que é tão fragmentária e incompleta? Desejamos que a imagem funcionecomomemóriaobjetiva,explicandootempoquelhedeuorigeme,enquantonãopuderfazê-lo,nósaguardamosecatalogamosnaesperançadequeumdia ela possa entregar efetivamenteaquiloquetemadizer.Masoqueelatem a dizer? Uma imagem como a fotogra-fia oferece poucas garantias de uma leitura inequívoca, pois o discursoque produz é poroso, permeável àsintenções com as quais é confronta-do.Relembremosoquedizemosau-tores mais consagrados... SegundoBarthes,aindaqueatesteaexistênciadeumreferentenopassadodianteda

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câmera,umafotoapenasécapazdedi-zer “isso foi” (1984:140) – o que já é su-ficiente para caracterizar-lhe uma visão realista da fotografia. Benjamin, citando Brecht, sugere que a fotografia de uma fábrica diz pouco sobre sua realidade,sobre as relações reificadas que produz (1994:106). Gisèle Freund conta como se surpreendeuaoverumadesuas fotos,quemostravaavendadeaçõesaoarli-vrenaBolsadeParis,ilustrandoreporta-genscomsentidosopostos:primeiro,a“altanabolsadeParis”,depois,o“pâni-co na bolsa de Paris” (1976:142). Susan Sontagdiscuteomodocomoomaterialreunido por fotógrafos de guerra podeser útil em campanhas anti-belicistas,assimcomopode,igualmente,difundiraimagemdeumadmirávelheroísmoqueexige que a guerra vá até suas últimasconseqüências (2003:36). Quando nos deparamos com si-tuaçõesdessetipo,denunciamosama-nipulaçãoda imagem,comoseelapu-desse existir num estado originário depureza.Ummínimodeconsciênciasobreo modo de produção das imagens nosdemonstraqueumafoto“nãomanipula-da”éumanoçãoretóricaque,nomáxi-mo,serveparareivindicaruma“autorida-deoriginal”sobreodiscurso,quandoeleresulta em leituras divergentes. Confor-meocaso,essa “autoridade”podeserreivindicada pelo retratado que dirá: “ofotógrafodistorceuaminhaimagem”;oupelo fotógrafo que dirá “o jornal modifi-couaminhaimagem”;oupelojornalquedirá:“oleitorinterpretoudemodoerradoanossaimagem”.Reconhecerounãoaveracidadedesteoudaquelediscursoéumaquestãodeserounãosolidáriocomestaouaquelaautoridade. No final das contas, só um ato de poder é capaz de empurrar a fotografia paraumaposiçãoquelhefaz“quererdi-zer algo”. Alguns acervos são concebi-

dosparapermanecerfechados,parapouparame-móriada imprecisãodoolhar humano.Estãobemrepresentados pelos tradicionais arquivos de aço,associadosaousoburocráticodosdocumentos:sãoopacos, pesados, ruidosos, feitos para não seremabertos.Nessecárcere,aimagemsetornaumaes-péciedeprisioneiroprivadodesuaspossibilidadesdetrânsitoatéquelembre,quediga,queconfesseaquiloquesequerouvir.Feitoisso,eladeveráentãocirculareserexpostaparatestemunharoquedelafoiarrancadoàforça. Nãoapenasaimagemestásujeitaaopoder,mas o próprio passado, como lembra Regine Ro-bin,numensaioquediscuteasaturaçãodamemóriacomoformadeesquecimento:

“opassadonãoélivre.Eleéregido,gerido,conservado,explicado,narrado,comemoradoouodiado.Sejacele-bradoouocultado,eleéuminvestimentofundamentaldopresente (...).Sobrevémumanovaconjuntura,umnovohorizontedeexpectativas,anecessidadedeno-vasbases,enósodescartamos,esquecemos,coloca-mosàfrenteoutrosepisódios,reencontramos,reescre-vemosahistória,inventamos,emfunçãodeexigênciasdo momento, antigas lendas” (Robin, 2003:27).

Essa perspectiva é assustadora. A flexibili-dadenousodedocumentoshistóricossemprenossuscita o temor de abusos interpretativos como,porexemplo,aquelesquevisamminimizarosefei-tosdasditaduras,guerrasegenocídios.Esse tipode revisionismo não se beneficia da liberdade de in-terpretaçãomas,antes,danegaçãoedaocultaçãodasevidências.Apiorcoisaquepodeaconteceraumdocumentoéele tersuacirculaçãosubstituídaporumadesuasleituras(issoéanálogoàsuposiçãodequeaexplicitaçãodoveredictotornadispensávelojulgamento,umatofascistapornatureza).Emcon-trapartida, a melhor coisa que pode acontecer aodocumento,atémesmocomoformadeevitarapro-priaçõesabusivas,é fazê-loaparecer,econfrontá-locomumamultiplicidadedemétodosepropósitos(porsuavez,énessaperspectivaqueodesejoderestaurarasdemocraciasvemsempreacompanha-dodaaberturadearquivosobscuros3). Sabemos dos perigos de pensar a históriacomoficçãooupura subjetividade.Mas,aoquererevitartalrelativismo,aindaprecisamosfazerumain-

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finidade de ponderações antes de usar termos como documentário e objetividade.Nãoénecessárioanu-lar as especificidades que separam a arte e a his-tória,masa imagemnãoreconheceessafronteira.Diantedela,essasdicotomiasapenasexistemcomoumaespéciedemoralismo,omesmoquenosimpe-dedefalaremrealismoquandoestamosnoterritóriodaarte,oudepoesia,quandoestamosnoterritóriodahistória. A imagem não é a resposta única, sequermúltipla,oferecidaaoolharqueinterrogaopassado,masumelementoconstitutivodaprópriaperguntaquenosmoveeque,desdeopassado,nãocessadeser formulada.Elanãopreencheas lacunasdamemória.Elaapenasdetémoolharnumadesuasbeiradas, ajudando a dar impulso par o salto quelevaoolharaopassado,porcaminhosquenuncasãocontínuoselineares.Umanarrativaconstituídadessemodo,apartirdevestígiosincompletoscomoruínas,seráfeita,comopropunhaWalterBenjamin,desolavancos,asperezasearestas,umanarrativaque permanece esburacada (Gagnebin, 2004:99-100). Se não for abusivo, podemos buscar nessefilósofo uma compreensão de história que permiti-riaaoarquivoescapardoengessamento.Paraele,a história é “uma apreensão do tempo em termosde intensidade e não de cronologia”, mais afim com aatividadedocolecionadorquedohistoriadortra-dicional,que“tentaestabelecerumarelaçãocausalcom os elementos do passado” (Gagnebin, 2004:8-10). O arquivo ideal deveria resgatar seu aspectodecoleção,a singularidadedos fragmentosqueacompõesãomaisfortesqueométodoquebusca,atravésdecategoriasabstratas,dar-lhesumsentidodefinitivo. Opassadonãoéalgoresolvido,prontoparaser recuperado por uma fotografia bem feita e um olhar bem instrumentalizado. Apesar disso, a fo-tografia nos convida sempre a encontrar o víncu-lo com uma realidade que a originou, mesmo quepouco tenha a dizer sobre ela (apenas que “issofoi”).Masopoucoquediz,diz intensamente.Por-tanto, todas essas dúvidas não pretendem afirmar um caráter absolutamente ficcional da imagem, mas darumamedidamaishonestaaoseu realismo4.A

imagem mais profundamente nosvinculará ao passado, quanto menosresolvido estiver seu discurso. Assimtambémosarquivosseduzemporsuaimperfeição. Pois, se nos fosse pos-sível lembrarde tudo,empacaríamoscomoFunes,personagemdeBorges,obcecado pela memória e capaz delembrartodososnomes,fatos,ece-nasqueatravessaramsuaexistência,tudoorganizadoatravésdaatribuiçãoprecisadeumnúmeroparacadacoi-sa(Borges,1999).

Os arquivos abertos de Chris Marker

ChrisMarkeréumescritor, fo-tógrafo e cineasta conhecido em cír-culos muito restritos, mas que temsidoredescobertoatravésdemostrasrecentes,algumasdelasmais ligadasaocircuitodasartesplásticasdoquedo cinema. No Brasil, até este mo-mento, há apenas um DVD lançadooficialmente que inclui dois de seus filmes, La Jetée (1962) e Sans Soleil(1983). Desde que dirigiu a série de livrosdeviagemdacoleçãofrancesaPetite Planète,nosanos�0e60,suasimagens sempre foram produzidas emostradasdentrodeuma itinerância,queconectafatostestemunhadosemtempos e lugares distantes do mun-do,bemcomo faz interagir aspectosdiversosdaslinguagensaudiovisuais.Iniciou sua carreira cinematográfica nosanos�0e,nasúltimascincodé-cadas,assinouváriosroteiros,direçãoououtrascolaboraçõesemdedeze-nasdedocumentários,quasesemprecomtemáticaspolíticas,etodoselesentendidossoborótulodocinemaex-perimental. Aforçadeseustrabalhosresi-

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denumaidéiasimples:aconsciênciadeque a imagem que constrói a memóriapermanece um campo aberto de signi-ficados, afetado de modo intenso pelas linguagenscomqueseconfronta:amú-sica, anarraçãoeoutras imagens.NaspalavrasdeBillHorigan,curadordeumadesuasexposiçõesrecentes,“nãoseriaimprecisodizerqueaodisséiaeavoca-çãodeMarker,comoelechama,consis-tememfazereolharimagensfotografa-daseusarpalavrasparaembaralhar(topuzzle)aquiloque representam,emos-trar como seus significados podem ser transformados” (Horigan, 2007:140). NodocumentárioLettre de Siberie (Carta da Sibéria,19��),Markerdemons-tra issocommuitaprecisão.Ele repetetrêsvezesumamesmatomadadacida-dedeIrkutsk,capitaldeumadasrepú-blicassoviéticas,masacompanhando-adetrilhassonorasetextosdiferentes:aprimeira delas, apologética, destaca ostrabalhadoresfelizesconstruindoumlu-garmelhorparaviver;asegunda,crítica,exibeumacidadesombriacomtrabalha-dores miseráveis em condições escra-vas; e, a terceira, ponderada, descreve

os soviéticos em seus esforços para melhorar ascondiçõesdesuacidade.Amesmaimagemparecelegitimarostrêsrelatosdemodoigualmenteconvin-cente. Comumavastaobradocumental,seutraba-lho mais conhecido é, no entanto, La Jetée, filme de ficção que não é único, mas certamente um dos pioneirosemsuaestratégia.Feitoapartirde foto-grafias estáticas, refilmadas e montadas como cine-ma,apresenta-seemseuscréditoscomoumfoto-romance (e, paradoxalmente, como cine-romance,numaversãolançadaemlivro).Seotempoéoele-mento essencial da linguagem cinematográfica, Ma-rkerdemonstraráquesuaevocaçãonãodependedomovimento da imagem. Neste filme, o tempo existe mais como fluxo da consciência garantido pela rela-ção entre fotografias, trilha sonora e narração. Existe também como tema essencial do próprio filme. A história começa num campo de concen-traçãosituadosoboquerestoudeParisdepoisda3ª Guerra Mundial. Marker incorpora aqui questões járeferenciadasemoutrosdeseusdocumentários,sobretudoo fracassodeumanoçãodeprogressoprometidapelopensamentomoderno.Nessemun-dosubterrâneo,umprisioneiroérecrutadoparapar-ticipardeexperiênciascomviagensnotempo,pos-síveisgraçasaumafortelembrançadesuainfância.Essas viagens tiram proveito da capacidade queuma tensãodopassado temdeafetaropresente:otraumadeterpresenciadoamortedeumhomeme,emcontrapartida,avisãoacalentadoradorosto

Cena de La Jetée, 1962

Sem Sol e La Jetée, DVD lançado no Brasil

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deumamulherdesconhecida,presentenomesmolocal,oterminaldoaeroportodeOrly. Acamadaessencialdestatramaéinterioraopersonagem,masaviolênciaemquestãoconsistejustamentenaapropriaçãoutilitáriadessalembran-çaprivada.Nãoénovidadequeofascismofazumusocasuísticodamemória:anostalgiadeumpas-sadomelhor,traduzidacomoresgatedeumaiden-tidadenacional,umbemcoletivoaserreconstruídoequeservedepretextoparacercearaliberdadedoindivíduo.EmLa Jetée,amemóriapessoaltambémécolocadaaserviçodaordemsocial,nocaso,umaconcepção de sobrevivência que, contraditoria-mente, torna a vida descartável. Tudo nesse filme, sua narrativa e sua técnica, é uma reflexão sobre otempo,eraramenteformaeconteúdotrabalhamdemodotãoconsonanteaserviçodeumtematãoabstrato.La Jetéeéumtrabalhooriginal,feitocomimagensinéditas,masnãodeixadetrazerreleiturase citações, por exemplo, uma fotografia de Robert Capa feita durante a Guerra Civil Espanhola (1936), ou o filme Um corpo que cai (Vertigo,19�8),deAl-fredHitchcock. Percorrendovárioscontinentes,Markercons-tituiu um vasto arquivo de registros fotográficos e cinematográficos que não são resolvidos pela cata-

logação,equepodemserretomadosem seus trabalhos, mesmo que nãotenhamsidofeitosespecialmenteparataisocasiões.Comfreqüência,recorretambémaimagensdeterceiros,frag-mentos de documentários e notíciastelevisivas. Muitas dessas imagenspodem ser encontradas em mais deum trabalho, geralmente filmes, mas também livros, exposições ou aindaexperiênciasmultimediáticas,comoocd-romImmemory(realizadoem199�,naocasiãodeumaexposiçãodeseustrabalhos no Centro Georges Pompi-dou,deParis),ouailhaOuvroircriadadentro do Second Life5 (reproduçãovirtual da exposição apresentada si-multaneamentenoMuseudeDesign,emZurique,em2008). Seugostopela reinvençãoco-meça consigo mesmo: Chris Marker,que aparece em alguns trabalhos naformadeheterônimosealter-egos,jáé, na verdade, o pseudônimo de umcertoChristianFrançoisBouche-Ville-neuve,nascidonaFrança,numacida-

Ouvroir, espaço concebido por Chris Marker para o Second Life.

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de que varia conforme a biografia a que recorremos, alguém que raramente falasobresimesmo.Numadesuasrarasen-trevistas,naocasiãodo lançamentodomesmo DVD recentemente editado noBrasil, eleconclui: “vinteanosseparamLa Jetée de Sans Soleil. E outros vinteanosatéopresente.Nestascondições,se eu pudesse falar em nome dessaspessoas que fizeram esses filmes, não seriaumaentrevista,seriaespiritismo”6. Le fond de l’air est rouge (19��),filme que analisa as conturbações políti-casdosanos60pelomundo,éexemplodeumaobra feita apartir das imagensdeseupróprioarquivo,algumasinéditas,outras não. Desde o início, ele anunciasuaestratégiadeconfrontarimagensdefontesdistintas:eleseapropriadeoutraexperiência emblemática de montagemcinematográfica, O Encouraçado Pote-mkin (Eisenstein, 192�),queorientaráaleitura dos registros de outros conflitos mais recentes. Conforme Ursula Lang-man, nesse trabalho, Marker “distingueduasformasderecalcamentovisual:odeimagensquesobramdepoisdeconcluí-da a montagem de um filme, sem terem sido utilizadas na sua versão definitiva, eodasquesão transmitidaspela tele-visão,emnoticiários,equeacabamporperder o significado devido à sucessão arbitrária em que são apreendidas, de-saparecendona‘nãomemóriacoletiva’”(Langman, 1986:30). Markersabequeosentidodaima-gemsemovejuntocomahistória.Nare-leituraquefazdealgunsregistrosantigos(nocaso,feitoparaumdeseusprimeirosfilmes, Olympia 52, 19�2), reconhece ocavaleirodaequipechilenadehipismo,nasOlimpíadasdeHelsinque,quemaistarde se tornaria o general Mendoza,braçodireitodePinochet.Apartirdessacena,avozemoffdeMarkerconclui,emLe fond de l’air est rouge:“nuncasabe-mos o que estamos filmando”.

EmSansSoleil,ele tambémretornaàs ima-gens de arquivo, saltando entre diferentes regiõesdomundo,masnotadamenteentreoJapãoedoispaísesafricanos,Guiné-BissaueCaboVerde.Nes-se trabalhoelediscuteahistóriaeo tempo,aindasobumaformadocumental,masatravésdevozes

inventadas:umamulheranônimalêascartasdeumpersonagem fictício, um cineasta chamado Sandor Krasna,quefalasobreasimagensqueregistrouemsuasviagenspelomundo. Markerexplicitaoprivilégioqueépoderatuarnasbrechasdamemória.NumapassagemdeSansSoleil,elesupõeumpersonagemquenoslembrao“memorioso” Irineo Funes de Borges. Trata-se deumhomemdeumfuturoemquenadaprecisariaserlembrado,simplesmenteporquenadaseriaesque-cido.Econclui:“umamemóriatotaléumamemóriaanestesiada”. Por curiosidade e compaixão, essehomem do futuro decidiria estudar seus infelizesancestrais, que ainda padeciam do esquecimento.Indoatéeles,numaviagemsemelhanteàdeLa Je-tée,acabariapordescobrirabelezadessainconsis-tênciaquenospermiteaemoçãodelembrar. Jogarcomamemóriaéumaatividadetantopoéticaquantopolítica.Marker,comoBenjamin,vêapossibilidadededaràhistóriaeaosregistrostéc-nicosumpapel revolucionário.Paraambos,narrarahistórianãoérestituiropassado.Antes,éumatotransformador do presente ou, pelo menos, cons-trutor de uma utopia. Os saltos promovidos pelosfilmes de Marker se dão em múltiplas direções: com

Cena de Olympia 52, 1952.

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freqüência ele flerta com a ficção científica, imagi-nando no futuro uma lembrança sobre o presente(cf.Grélier,1986:1�).AlémdeLa Jetée e Sans Soleil,esseexercícioreapareceem2084 (1984), filme que, paracomemorarocentenáriodaleiquelegalizouossindicatosnaFrança,secolocaimaginariamentenaocasiãodeseubi-centenário.NessamesmadireçãosecolocaotítulodeumtrabalhorecentedeMarker,Le souvenir d’un avenir(A lembrança de um futuro,2001), focado na vida e obra da fotógrafa DeniseBellon. Lembramosaquideumaconsideração feitaporAndreasHuyssen,maispreocupadocomaaçãodamemórianaconstruçãodofuturo,quecomsuaetabilização por meio da monumentalização e damusealização.Apóspercorreroconjuntodefatoresqueconstroemumacivilização,aomesmo tempo,excessivamentededicadaàmemóriaeatormentadapelomedodoesquecimento,dizesseautor:

“Dado que a memória pública está sujeita a mudan-ças–políticas,geracionaiseindividuais-,elanãopodeser armazenadapara semprenemprotegidaemmo-numentos (...).Seosentimentode tempovividoestásendo renegociado nas nossas culturas de memóriacontemporâneas,nãodevemosesquecerqueotemponãoéapenasopassado,suapreservaçãoetransmis-são.Senósestamos,defato,sofrendodeumexcessodememória,devemosfazerumesforçoparadistinguir

os passados usáveis dos passadosdispensáveis. Precisamos de discri-minaçãoerememoraçãoprodutivae,ademais,aculturademassaeamí-diavirtualnãosãoincompatíveiscomesseobjetivo.Mesmoqueaamnésiaseja um subproduto do ciberespaço,precisamosnãopermitirqueomedoe o esquecimento nos dominem. Aíentão, talvez, seja hora de lembrar ofuturo, em vez de apenas nos preo-cuparmoscomo futurodamemória”(Huyssen, 2000:37).

A exposição Staring back (difícil detraduzir, algo como “olhando deti-damentedevolta”)éumdosúltimostrabalhos de Chris Marker – mesmoque“último”soevazionumatrajetóriade tantas reapropriações.É,como jáhavia sidoocd-rom Immemory, umareflexão sobre sua trajetória, não com ointuitodedemarcarseulugarnahis-tória do cinema e da fotografia mas, aocontrário,degarantirapermanenteitinerância das imagens que compõeseuarquivo.Orecortequeapresentanesta série de fotografias (tomadas entre 19�2 e 2006) não exalta o que

Capa do livro Staring Back, 2007.

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foi dito, ao contrário, busca algo quenelas permaneceu mudo, algo que nãoforamcapazesdedizer.Destaca rostosde pessoas de eventos que, geralmen-te,envolviammultidões,olharesqueatéentãonãosehaviamcruzadoouperce-bido.Nesses“olharesdevolta”,Markerencontra marcas que anunciam os sal-tosdotempo,porexemplo,umamesmaárvore em duas imagens feitas com 40 anosdedistância:enquantoelepercorriao mundo e assistia à sua reconfiguação, enquantopassavadocinemaaovídeoedo vídeo ao computador, “ela cresceu,só um pouco” (Marker, 2007:43). Por fim, voltando efetivamente aosrostos,todosjádistantesnotempo,eledeixaumaliçãosobreumlimitequesempreteremosdiantedahistória,equedeve orientar nossa relação com todasas imagens, de todos os arquivos. Dizele,comodeveríamostambémfazer:“Euosolheidetidamente,masnãoobastan-te”(200�:80).

Notas

1O colóquio, cujos textos estão publicados nolivro homônimo, Les Artistes Contemporains e l’Archive (Poinsot et Alii, 2004), foi complemen-tadopelaexposiçãoL’Archive entre colection et production,organizadaporRamonTioBellidoeLaurenceLePoupon.2Texto da Comissão de Seleção do Festival,compostapelacuradoradoevento,SolangeFa-rkas,eporRonaldoEntler,AndréBrasil,ChristineMello,EduardodeJesus(Farkas:200�:2�).3Comoexemplo recente,osarquivosdoDeopsde São Paulo, aparelho de combate à subver-sãoligadoàditaduramilitar,foramabertosparaapesquisaeparaavisitação,sobacoordena-çãodeBorisKossoyeMariaLuizaTucciCarnei-ro,professoresdaUniversidadedeSãoPaulo.Éigualmente significativo o gesto que fez de seu edifício, incluindo antigos espaços de prisão etortura,umespaçopúblicodedicadoàsexposi-çõesdearte,ligadoàPinacotecadeSãoPaulo.

4Discutimos as possibilidades desta concepção de realis-monumartigoanterior,“TestemunhosSilenciosos:umanovaconcepção de realismo na fotografia contemporânea” (Entler, 2006).�Second Life: http://slurl.com/secondlife/Ouvroir/186/68/40. Visitado em 13/06/20086EntrevistaàSamuelDouhaireeAnnickRivoiore.“RareMarker”,inLibération, 05/03/2003 (Citado no blog Notes from the Era of Imperfect Memory (http://www.chrismarker.org/2008/04/time-travel, consultado em 10/0�/2008, e também em Horrigan,2007:149).

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RonaldoEntler

Professor de Análise da Imagem daFACOM-FAAP e de Multimeios da FAP-FAAP. Jornalista, Mestre em Multimeiospelo IA-Unicamp, Doutor em Artes pelaECA-USPePós-DoutorpeloIA-Unicamp.