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     I MEMORIAL EM PROL DE UMA NOVA

     MENTALIDADE QUANTO À PROTEÇÃO DOS

     DIREITOS HUMANOS NOS PLANOS INTERNACIONAL E NACIONAL1

     ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE 

    Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do

     Instituto Rio-Branco; Membro dos Conselhos Diretores do Instituto Internacional de Direitos Humanos

    (Estrasburgo) e do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (Costa Rica); Associado do Institut de Droit

     International.

    I. Introdução

    Há algum tempo, na abertura do EncontroInternacional promovido pela Comissão deDireitos Humanos da Câmara dos Deputados erealizado neste mesmo Auditório, que marcou oinício em nosso país dos preparativos dascomemorações do cinqüentenário das DeclaraçõesUniversal e Americana de Direitos Humanos, tivea ocasião de abordar, em longa exposição, olegado da Declaração Universal de 1948, desdeseus trabalhos preparatórios até sua projeção

    normativa em numerosos e sucessivos tratados dedireitos humanos nos planos global e regional, nasConstituições e legislações nacionais, e na práticados tribunais internacionais e nacionais tambémde numerosos países. Ao voltar a esta Casa, oCongresso Nacional de meu país, para participarnesta III Conferência Nacional de DireitosHumanos, o tema e o propósito de minhaexposição são claramente distintos.

    Permito-me, inicialmente, expressar meusagradecimentos pela distinção do convite e minhasatisfação pela realização deste evento. Vejo um

    valor simbólico no fato de contar esta Conferênciacom a presença e participação de autoridades dasinstituições públicas e representantes e membros dasociedade civil brasileira, congregados em torno dotema central que nos une: o da proteção dos direitoshumanos nos planos a um tempo internacional enacional. O fato de estarmos aqui todos reunidos, para uma reflexão coletiva sobre a matéria, atesta ovalor que todos atribuímos à referida temática. Não poderia haver melhor ocasião para um diálogo

    franco e respeitoso, sobre um tema que diz respeitoao quotidiano de todos os brasileiros e de todas as pessoas que vivem em nosso país.

    O tema desta Conferência – a aplicação dasnormas de proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional – poderiaconsumir dias de debates, dada sua amplitude ecomplexidade. Em um esforço extremo de síntese,o abordarei no que mais diretamente possainteressar às conclusões e iniciativas que porventura emanem deste conclave. A questão dainterpelação entre o direito internacional e odireito interno na proteção dos direitos humanos,cujo exame me tem consumido tantos anos de pesquisa, reflexão, e atuação nos planos nacional einternacional, permeia todas as etapas de operaçãodos mecanismos de proteção, desde o acesso dosindivíduos às instâncias internacionais de proteçãoaté a execução de sentenças e decisões dos órgãosinternacionais de proteção no plano do direitointerno dos Estados.

    Assim sendo, proponho-me analisar o temasegundo o seguinte plano de exposição: em primeirolugar, examinarei a questão atinente ao acesso direto

    dos indivíduos aos tribunais internacionais dedireitos humanos existentes (ou seja, as CortesEuropéia e Interamericana de Direitos Humanos),causa esta à qual tenho pessoalmente me dedicado,não sem dificuldades, por mais de uma década; emsegundo lugar, abordarei a questão dos meios previstos pelos próprios tratados de direitoshumanos para a compatibilização entre as jurisdições internacional e nacional em matéria de

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    direitos humanos (prévio esgotamento dos recursosde direito interno, cláusulas de derrogações e dereservas, execução das sentenças internacionais nodireito interno); em terceiro lugar, examinarei oamplo alcance das obrigações convencionaisinternacionais de proteção no plano do direitointerno, identificando as obrigações executivas,legislativas e judiciais dos Estados Partes nostratados de direitos humanos; e, enfim, apresentareiminhas conclusões.

    A tese que sustento, como o venho fazendo já por mais de vinte anos em meus escritos2, é, emresumo, no sentido de que, – primeiro, os tratadosde direitos humanos3, que se inspiram em valorescomuns superiores (consubstanciados na proteçãodo ser humano) e são dotados de mecanismos próprios de supervisão que se aplicam consoante anoção de garantia coletiva, têm caráter especial, queos diferenciam dos demais tratados, que

    regulamentam interesses recíprocos entre os EstadosPartes e são por estes próprios aplicados, – comtodas as conseqüências jurídicas que daí advêm nos planos do direito internacional e do direito interno;segundo, o direito internacional e o direito internomostram-se em constante interação no presentecontexto de proteção, na realização do propósitoconvergente e comum da salvaguarda dos direitosdo ser humano; e terceiro, na solução de casosconcretos, a primazia é da norma que melhor protejaas vítimas de violações de direitos humanos, seja elade origem internacional ou interna.

    É esta, a meu ver, a tese que melhor reflete efomenta a evolução contemporânea convergentesobre a matéria tanto do direito internacional quantodo direito público interno, e a única que, logradesvencilhar-se e emancipar-se dos dogmas do passado, maximizando a proteção dos direitoshumanos. Os ordenamentos internacional e nacionalformam um todo harmônico, em benefício dos sereshumanos protegidos, das vítimas de violações dosdireitos humanos. Esta nova visão que venhosustentando há tantos anos, e cuja aplicação requeruma mudança fundamental de mentalidade,encontra expressão na jurisprudência internacional,começa a florescer de forma sistemática também na jurisprudência nacional de alguns países, – e esperosinceramente que venha a germinar de igual modoem terras brasileiras.

    Assim sendo, o  Leitmotiv  de minhaexposição é precisamente o da necessidade premente de uma mudança fundamental dementalidade no tocante à proteção dos direitoshumanos nos planos internacional e nacional, sem a

    qual pouco lograremos avançar em nosso país nestedomínio. Por esta razão, permito-me dar à minhaexposição o cunho de um memorial em prol de umanova mentalidade quanto à proteção dos direitoshumanos nos planos internacional e nacional. Passo, pois, ao exame de cada um dos pontos da exposição.

    II. O  Locus Standi  dosIndivíduos nos Procedimentosperante os TribunaisInternacionais de DireitosHumanos

    Uma das grandes prioridades da agendacontemporânea dos direitos humanos reside, a meumodo de ver, na garantia do acesso direto dassupostas vítimas aos tribunais internacionais de

    direitos humanos. Em entrevista que tive asatisfação de conceder à Associação Juízes para aDemocracia, em São Paulo em outubro de 19954,assinalei a importância desta questão5, que até então passava inteiramente despercebida em nosso país,inclusive dos que atuam no campo dos direitoshumanos. Como há muito venho me empenhando por tal acesso direto no plano internacional, permito-me retomar o tema nesta Conferência, dadaa importância da difusão, em nosso país, dosúltimos desenvolvimentos a respeito.

    Ao serem concebidos os sistemas de

     proteção das Convenções Européia e Americanasobre Direitos Humanos, os mecanismos enfimadotados não consagraram originalmente arepresentação direta dos indivíduos nos procedimentos perante os dois tribunaisinternacionais de direitos humanos criados pelasduas Convenções (as Cortes Européia eInteramericana de Direitos Humanos), – os únicostribunais do gênero existentes sob tratados dedireitos humanos até o presente. As resistências,então manifestadas, – próprias de outra época esob o espectro da soberania estatal, – aoestabelecimento de uma nova jurisdiçãointernacional para a salvaguarda dos direitoshumanos, fizeram com que, pela intermediaçãodas Comissões (Européia e Interamericana deDireitos Humanos), se buscasse evitar o acessodireto dos indivíduos aos dois tribunais regionaisde direitos humanos (as Cortes Européia eInteramericana de Direitos).

     Neste final de século, encontram-sedefinitivamente superadas as razões históricas que

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    levaram à denegação – a nosso ver injustificável,desde o inicio, – de tal locus standi  das supostasvítimas. Com efeito, nos sistemas europeu einteramericano de direitos humanos, como veremosa seguir, a própria prática cuidou de revelar asinsuficiências, deficiências e distorções domecanismo paternalista da intermediação dasComissões Européia e Interamericana entre osindivíduos e as respectivas Cortes – Européia eInteramericana – de Direitos Humanos.

    1. Desenvolvimentos noSistema Europeu de Proteção

    Já no exame de seus primeiros casoscontenciosos, tanto a Corte Européia como a CorteInteramericana de Direitos Humanos se insurgiramcontra a artificialidade do esquema daintermediação das respectivas Comissões (supra).Recorde-se que, bem cedo, já desde o caso  Lawlessversus Irlanda  (1960), a Corte Européia passou areceber, por meio dos delegados da ComissãoEuropéia, argumentos escritos dos própriosdemandantes, que freqüentemente se mostravam bastante críticos no tocante à própria Comissão.Encarou-se esta providência com certa naturalidade, pois os argumentos das supostas vítimas não tinhamque coincidir inteiramente com os dos delegados daComissão. Uma década depois, durante o procedimento nos casos Vagrancy, relativos àBélgica (1970), a Corte Européia aceitou asolicitação da Comissão de dar a palavra a um

    advogado dos três demandantes; ao tomar a palabra,este advogado criticou, em um determinado ponto, aopinião expressada pela Comissão em seu relatório.

    Os desenvolvimentos seguintes sãoconhecidos: a concessão de locus standi  aosrepresentantes legais dos indivíduos demandantes perante a Corte (por meio da reforma doRegulamento de 1982, em vigor a partir de01.01.1983) em casos a esta submetidos pelaComissão ou os Estados Partes, seguida da adoçãodo célebre Protocolo n. 9 (de 1990, já em vigor) àConvenção Européia. Como bem ressalta o

     Relatório Explicativo do Conselho da Europa sobrea matéria, o Protocolo n. 9 concedeu “um tipo delocus standi” aos indivíduos perante a Corte,indubitavelmente um avanço, mas que ainda nãolhes assegurava a “equality of arms/égalité desarmes” com os Estados demandados e o benefício pleno da utilização do mecanismo da ConvençãoEuropéia para a vindicação de seus direitos (cf.infra).

    De todo modo, as relações da Corte Européiacom os indivíduos demandantes passaram a ser, pois, diretas, sem contar necessariamente com aintermediação dos delegados da Comissão. Istoobedece a uma certa lógica, porquanto os papéis oufunções dos demandantes e da Comissão sãodistintos; como a Corte Européia assinalou já emseu primeiro caso (Lawless), a Comissão seconfigura antes como um órgão auxiliar da Corte.Têm sido freqüentes os casos de opiniõesdivergentes entre os delegados da Comissão e osrepresentantes das vítimas nas audiências perante aCorte, e tem-se considerado isto como normal e, atémesmo, inevitável. Os governos se acomodaram, por assim dizer, à prática dos delegados daComissão de recorrer quase sempre à assistência deum representante das vítimas, ou, pelo menos, a elanão objetaram.

     Não há que passar despercebido que toda

    esta evolução tem-se desencadeado, no sistemaeuropeu de proteção, gradualmente, mediante areforma do Regulamento da Corte e a adoção doProtocolo n. 9 à Convenção. A Corte Européia têmdeterminado o alcance de seus próprios poderesmediante a reforma de seu interna corporis,afetando inclusive a própria condição das partes no procedimento perante ela. Alguns casos já têm sidoresolvidos sob o Protocolo n. 9, com relação aosEstados Partes na Convenção Européia queratificaram também este último. Daí a atualcoexistência dos Regulamentos A e B da CorteEuropéia.6 

    É certo que, a partir de 01 de novembro de1998, dia da entrada em vigor do Protocolo n. 11(de 1994) à Convenção Européia (sobre a reformado mecanismo desta Convenção e oestabelecimento de uma nova Corte Européiacomo único órgão jurisdicional de supervisãoda Convenção), o Protocolo n. 9 tornar-se-áanacrônico, de interesse somente histórico noâmbito do sistema europeu de proteção. Aocontrário do que previam os céticos, emrelativamente pouco tempo todos os EstadosPartes na Convenção Européia de DireitosHumanos, em inequívoca demonstração dematuridade, se tornaram Partes também noProtocolo n. 11 à referida Convenção, possibilitando a entrada em vigor deste últimoainda em 1998.

    O início da vigência deste Protocolo, em 01de novembro de 1998, representa um passoaltamente gratificante para todos os que atuamos em prol do fortalecimento da proteção internacional dos

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    direitos humanos. O indivíduo passa assim a ter,finalmente, acesso direto a um tribunal internacional jus standi, como verdadeiro sujeito – e com plenacapacidade jurídica – do Direito Internacional dosDireitos Humanos. Isto só foi possível em razão deuma nova mentalidade quanto à proteção dosdireitos humanos nos planos internacional enacional.

    Superado, desse modo, o Protocolo n. 9 parao sistema europeu de proteção, não obstante retémsua grande utilidade para a atual consideração deeventuais aperfeiçoamentos do mecanismo de proteção do sistema interamericano de direitoshumanos (cf. infra). Os sistemas regionais –situados todos na universalidade dos direitoshumanos – vivem momentos históricos distintos. No sistema africano de proteção, por exemplo, sórecentemente (setembro de 1995) se concluiu aelaboração do Projeto de Protocolo à Carta Africana

    de Direitos Humanos e dos Povos sobre oEstabelecimento de uma Corte Africana de DireitosHumanos e dos Povos.7 E apenas um ano antes, emsetembro de 1994, o Conselho da Liga dos EstadosÁrabes, a seu turno, adotou a Carta Árabe deDireitos Humanos.8 

    2. Desenvolvimentos noSistema Interamericano deProteção

    Os desenvolvimentos que hoje têm lugar nosistema interamericano de proteção são semelhantesaos do sistema europeu de proteção na últimadécada, no tocante à matéria em exame. Na agendaatual de nosso sistema regional de proteção, ocupahoje posição central a questão da condição das partes em casos de direitos humanos sob aConvenção Americana, e, em particular, darepresentação legal ou locus standi in judicio  dasvítimas (ou seus representantes legais) diretamenteante a Corte Interamericana, em casos que a ela játenham sido enviados pela Comissão. Também aquise faz sentir a importância de uma interpretaçãoapropriada dos termos e do espírito da ConvençãoAmericana.

    É certo que a Convenção Americanadetermina que só os Estados Partes e a Comissãotêm direito a “submeter um caso” à decisão da Corte(art. 61(1)); mas a Convenção, por exemplo, aodispor sobre reparações, também se refere à “partelesada” (art. 63(1)), i.e., as vítimas e não aComissão. Com efeito, reconhecer o locus standi in

     judicio das vítimas (ou seus representantes) ante aCorte (em casos já submetidos a esta pelaComissão) contribui à “jurisdicionalização” domecanismo de proteção (na qual deve recair toda aênfase), pondo fim à ambiguidade da função daComissão, a qual não é rigorosamente “parte” no processo, mas antes guardiã da aplicação correta daConvenção.

     No procedimento perante a CorteInteramericana, por exemplo, os representanteslegais das vítimas são integrados à delegação daComissão com a designação eufemística de“assistentes” da mesma. Esta solução “pragmática”contou com o aval, com a melhor das intenções, dadecisão tomada em uma reunião conjunta daComissão e da Corte Interamericanas, realizada emMiami em janeiro de 1994. Em lugar de resolver o problema, criou, não obstante, ambigüidades quetêm persistido até hoje. O mesmo ocorria no sistema

    europeu de proteção até 1982, quando a ficção dos“assistentes” da Comissão Européia foi finalmentesuperada pela reforma naquele ano do Regulamentoda Corte Européia. É chegado o tempo de superartais ambigüidades também em nosso sistemainteramericano de proteção, dado que os papéis oufunções da Comissão (como guardiã da Convençãoassistindo à Corte) e dos indivíduos (comoverdadeira parte demandante) são claramentedistintos.

    A evolução no sentido da consagração finaldestas funções distintas deve dar-se pari passu com

    a gradual jurisdicionalização do mecanismo de proteção. Desta forma se afastam definitivamente astentações de politização da matéria, que passa a sertratada exclusivamente à luz de regras do direito. Não há como negar que a proteção jurisdicional é aforma mais evoluída de salvaguarda dos direitoshumanos, e a que melhor atende aos imperativos dodireito e da justiça.

    O Regulamento anterior da CorteInteramericana (de 1991) previa, em termosoblíquos, uma tímida participação das vítimas ouseus representantes no procedimento ante a Corte,sobretudo na etapa de reparações e quandoconvidados por esta.9 Bem cedo, nos casos GodínezCruz e Velásquez Rodríguez (reparações, 1989),relativos a Honduras, a Corte recebeu escritos dosfamiliares e advogados das vítimas, e tomou notados mesmos.10 

    Mas o passo realmente significativo foi dadomais recentemente, no caso El Amparo (reparações,1996), relativo à Venezuela, verdadeiro “divisor de

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    águas” nesta matéria. Na audiência pública sobreeste caso celebrada pela Corte Interamericana em 27de janeiro de 1996, um de seus magistrados, aomanifestar expressamente seu entendimento de queao menos naquela etapa do processo não podiahaver dúvida de que os representantes das vítimaseram “a verdadeira parte demandante ante a Corte”,em um determinado momento do interrogatório passou a dirigir perguntas a eles, aos representantesdas vítimas (e não aos delegados da Comissão ouaos agentes do governo), que apresentaram suasrespostas.11

    Pouco depois desta memorável audiência nocaso El Amparo, os representantes das vítimasapresentaram dois escritos à Corte (datados de13.05.1996 e 29.05.1996). Paralelamente, comrelação ao cumprimento da sentença deinterpretação de sentença prévia de indenizaçãocompensatória nos casos anteriores Godínez Cruz e

    Velásquez Rodríguez, os representantes das vítimasapresentaram igualmente dois escritos à Corte(datados de 29.03.1996 e 02.05.1996). A Corte, comsua composição de setembro de 1996, sódeterminou pôr término ao processo destes doiscasos depois de constatado o cumprimento, por parte de Honduras, das sentenças de indenizaçãocompensatória e de interpretação desta, e depois dehaver tomado nota dos pontos de vista não só daComissão e do Estado demandado, mas também dos peticionários e dos representantes legais das famíliasdas vítimas.12

     

    O campo estava aberto à modificação, neste particular, das disposições pertinentes doRegulamento da Corte, sobretudo a partir dosdesenvolvimentos no procedimento no caso ElAmparo. O próximo passo, decisivo, foi dado nonovo Regulamento da Corte13, adotado em16.09.1996 e vigente a partir de 01.01.1997, cujoart. 23 dispõe que “na etapa de reparações, osrepresentantes das vítimas ou de seus familiares poderão apresentar seus próprios argumentos e provas de forma autônoma”. Este passosignificativo abre o caminho para desenvolvimentossubseqüentes na mesma direção, ou seja, de modo aassegurar que no futuro previsível os indivíduostenham locus standi no procedimento ante a Cortenão só na etapa de reparações como também na domérito dos casos a ela submetidos pela Comissão.

    Seria irrealista e impraticável pretender queeste objetivo se logre por uma simples emenda auma disposição da Convenção Americana sobreDireitos Humanos, como o art. 61. A tarefa é bemmais complexa.14  Como tal disposição está

    inexoravelmente ligada a tantas outras daConvenção (como os arts. 44 a 51 da Convenção),há que ir muito mais além, e modificar toda aestrutura do mecanismo da Convenção, – como seacaba de lograr no sistema europeu de proteção. Éeste o caminho a ser seguido, o qual requer umanova mentalidade quanto à proteção dos direitoshumanos nos planos internacional e nacional.

    3. O Direito Individual deAcesso Direto ( Jus Standi) aosTribunais Internacionais deDireitos Humanos

    São sólidos os argumentos que, em meuentendimento, militam em favor do prontoreconhecimento do locus standi  das supostasvítimas no procedimento ante a CorteInteramericana em casos já enviados a esta pelaComissão. Tais argumentos encontram-sedesenvolvidos no curso que ministrei na SessãoExterna (para a América Central) da Academia deDireito Internacional da Haia, realizada na CostaRica em abril-maio de 199515, e que resumimos aseguir.

    Em primeiro lugar, ao reconhecimento dedireitos, nos planos tanto nacional comointernacional, corresponde a capacidade processualde vindicá-los ou exercê-los. A proteção de direitosdeve ser dotada do locus standi in judicio  das

    supostas vítimas (ou seus representantes legais), quecontribui para melhor instruir o processo, e sem oqual estará este último desprovido em parte doelemento do contraditório (essencial na busca daverdade e da justiça), ademais de irremediavelmentemitigado e em flagrante desequilíbrio processual.

    É da própria essência do contenciosointernacional dos direitos humanos o contraditórioentre as vítimas de violações e os Estadosdemandados. Tal locus standi  é a conseqüêncialógica, no plano processual, de um sistema de proteção que consagra direitos individuais no plano

    internacional, porquanto não é razoável conceberdireitos sem a capacidade processual de vindicá-los.Ademais, o direito de livre expressão das supostasvítimas é elemento integrante do próprio devido processo legal, nos planos tanto nacional comointernacional.

    Em segundo lugar, o direito de acesso à justiça internacional deve fazer-se acompanhar dagarantia da igualdade processual das partes (equality

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    of arms/égalité des armes), essencial em todosistema jurisdicional de proteção dos direitoshumanos. Em terceiro lugar, em casos decomprovadas violações de direitos humanos, são as próprias vítimas – a verdadeira parte demandanteante a Corte – que recebem as reparações eindenizações. Estando as vítimas presentes no inícioe no final do processo, não há sentido em negar-lhes presença durante o mesmo.

    A estas considerações de princípio seagregam outras, de ordem prática, igualmente emfavor da representação direta das vítimas ante aCorte, em casos já a ela submetidos pela Comissão.Os avanços neste sentido convêm não só às supostasvítimas, mas a todos: aos Estados demandados, namedida em que contribui a afastar definitivamenteas tentações de politização e a consolidar a jurisdicionalização do mecanismo de proteção16; àCorte, para ter melhor instruído o processo; e à

    Comissão, para por fim à ambigüidade de seu papel17, atendo-se à sua função própria de guardiãda aplicação correta e justa da Convenção (e nãomais com a função adicional de “intermediário”entre os indivíduos e a Corte). Os avanços nestadireção, na atual etapa de evolução do sistemainteramericano de proteção, são responsabilidadeconjunta da Corte e da Comissão.

     Nos círculos jurídicos especializados emnosso continente ainda se expressam dúvidas ou preocupações de ordem prática, como, e.g., a possibilidade de divergências entre os argumentos

    dos representantes das vítimas e os delegados daComissão no procedimento ante a Corte, e a falta deconhecimento especializado dos advogados emnossa região para assumir o papel e aresponsabilidade de representantes legais dasvítimas diretamente ante a Corte. O que me parecerealmente importante, para a operação futura domecanismo da Convenção Americana, é que tanto aComissão como os representantes das vítimasmanifestem seus pontos de vista, sejam elescoincidentes ou divergentes. A Comissão deve estar preparada para expressar sempre sua opinião ante aCorte, ainda que seja discordante da dosrepresentantes das vítimas. A Corte deve estar preparada para receber e avaliar os argumentos dosdelegados da Comissão e dos representantes dasvítimas, ainda que sejam divergentes. Tudo istoajudaria a Corte a melhor formular seu próprioentendimento e a formar sua convicção em relação acada caso concreto.

    Para gradualmente superar a outra preocupação, relativa à suposta falta de expertise

    dos advogados dos países de nosso continente nocontencioso internacional dos direitos humanos, poder-se-iam preparar guias para orientação aos que participam nas audiências públicas ante a CorteInteramericana, divulgadas com a devidaantecipação.  Ignorantia juris non curat ; como oDireito Internacional dos Direitos Humanos édotado de especificidade própria, e de crescentecomplexidade, este problema só será superadogradualmente, na medida em que se dê uma maisampla difusão aos procedimentos, e em que osadvogados tenham mais oportunidades defamiliarizar-se com os mecanismos de proteção. Oque não me parece razoável é tentar obstaculizartoda a evolução corrente rumo à representaçãodireta das vítimas em todo o procedimento perante aCorte Interamericana, com base em uma dificuldadeque me parece perfeitamente remediável ousuperável.

    A isto há que agregar que os avanços nestesentido (da representação direta dos indivíduos), jáconsolidados no sistema europeu de proteção, hãode se lograr em nossa região mediante critérios eregras prévia e claramente definidos, com asnecessárias adaptações às realidades da operação denosso sistema interamericano de proteção. Istorequereria, e.g., a previsão de assistência jurídica exofficio  por parte da Comissão Interamericana,sempre que os indivíduos demandantes nãoestivessem em condições de contar com os serviços profissionais de um representante legal.

    Enfim, e voltando às considerações de princípio, somente mediante o locus standi in judicio  das supostas vítimas ante os tribunaisinternacionais de direitos humanos se logrará aconsolidação da plena personalidade e capacidade jurídicas internacionais da pessoa humana (nossistemas regionais de proteção), para fazer valerseus direitos, quando as instâncias nacionais semostrarem incapazes de assegurar a realização da justiça. O aperfeiçoamento do mecanismo de nossosistema regional de proteção deve ser objeto deconsiderações de ordem essencialmente jurídico-humanitária, inclusive como garantia adicional às partes – tanto os indivíduos demandantes como osEstados demandados – em casos contenciosos dedireitos humanos. Como adverti já há uma décadaem curso ministrado na Academia de DireitoInternacional da Haia, na Holanda, todo jusinternacionalista, fiel às origens históricas de suadisciplina, saberá contribuir a resgatar a posição doser humano no direito das gentes (droit des gens), ea sustentar o reconhecimento e a cristalização de sua

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     personalidade e capacidade jurídicasinternacionais.18

    A mesma advertência voltei a formular,recentemente, em Explicações de Votos nos casosCastillo Páez e Loayza Tamayo (exceções preliminares, janeiro de 1996), relativos ao Peru, nosentido da necessidade de superar a capitisdiminutio  de que padecem os indivíduos peticionários no sistema interamericano de proteção,em razão de considerações dogmáticas próprias deoutra época histórica que buscavam evitar seuacesso direto ao órgão judicial internacional. Taisconsiderações, agreguei, mostram-se inteiramentesem sentido, ainda mais em se tratando de umtribunal internacional de direitos humanos.Propugnei, nestes meus Votos, pela superação daconcepção paternalista e anacrônica da totalintermediação da Comissão Interamericana deDireitos Humanos entre os indivíduos peticionários

    (a verdadeira parte demandante) e a Corte, de modoa conceder a estes últimos acesso direto à Corte.19 

    O necessário reconhecimento do locus standiin judicio  das supostas vítimas (ou seusrepresentantes legais) ante a Corte Interamericanaconstitui, nesta linha de pensamento, um avanço dosmais importantes, mas não necessariamente a etapafinal do aperfeiçoamento do sistema interamericanode proteção, pelo menos tal como concebemos talaperfeiçoamento. Na continuação desta evolução, a partir de tal locus standi, estamos empenhados todosos que, no sistema interamericano, comungamos do

    mesmo ideal, para lograr o reconhecimento futurodo direito de acesso direto dos indivíduos à Corte( jus standi), para submeter um caso concretodiretamente a ela, prescindindo totalmente daComissão para isto. O dia em que o logremos, quesinceramente espero seja o mais rápido possível, – aexemplo da entrada em vigor iminente, em 01 denovembro de 1998, do Protocolo n. 11 à ConvençãoEuropéia de Direitos Humanos (supra), – teremosalcançado o ponto culminante, também em nossosistema interamericano de proteção, de um grandemovimento de dimensão universal a lograr o resgatedo ser humano como sujeito do DireitoInternacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade jurídica internacional.

    III. Compatibilização entreas Jurisdições Internacional eNacional em Matéria deDireitos Humanos

    Os próprios tratados de direitos humanostêm sempre cuidado de prevenir ou evitar conflitosentre as jurisdições internacional e interna, e decompatibilizar os dispositivos convencionais e dedireito interno. No tocante à admissibilidade decomunicações ou denúncias de violações de direitoshumanos, prevêem o requisito do prévioesgotamento dos recursos de direito interno. Na prática, o critério básico, na aplicação desterequisito, tem sido o da eficácia dos recursosinternos. A jurisprudência internacional tem, assim,dispensado a regra do esgotamento em casos, e.g.,de prática estatal, ou de negligência ou tolerância do poder público, ante violações dos direitos humanos.

    O requisito em apreço reveste-se de umrationale  próprio no contexto da proteção dosdireitos humanos, em que o direito internacional e odireito interno se mostram em constante interação.Os recursos de direito interno integram, assim, a

     própria proteção internacional, e a ênfase recai nãoem seu esgotamento mecânico pelos peticionários,mas na prevenção de violações e na prontareparação dos danos. Ao dever dos peticionários deesgotar os recursos de direito interno corresponde odever dos Estados de prover recursos internoseficazes, como duas faces da mesma moeda.20  Acorreta aplicação deste requisito vincula-se àquestão básica do acesso direto dos indivíduos àsinstâncias legais internacionais para perante elasfazer valer os seus direitos, sempre que as instânciasnacionais se mostrarem incapazes de garantir arealização da justiça.

    Outra modalidade de prevenção deconflitos entre as jurisdições internacional enacional prevista pelos tratados de direitoshumanos reside nas chamadas cláusulas dederrogações. Os termos gerais com que foramestas redigidas têm requerido consideráveisesforços doutrinais, desenvolvidos nos últimosanos, no sentido de dar-lhes maior precisão,estabelecendo controles do poder público, demodo a assim evitar abusos (como, e.g., o prolongamento indefinido e patológico doschamados estados de exceção, ou a suspensãoindeterminada ou crônica do ejercício de direitos,entre outros). Os princípios afirmados na doutrinacontemporânea são, em resumo, os seguintes: o princípio da notificação (das derrogações) a todosos Estados Partes (nos tratados de direitoshumanos, o princípio da proporcionalidade àsexigências da situação, a consistência das medidastomadas com outras obrigações internacionais doEstado em questão, o princípio da não-discriminação, a não-derrogabilidade dos direitos

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    fundamentais em estados de emergência, o ônusda prova a recair no Estado que busca justificarum estado de exceção.

    Em quaisquer circunstâncias, subsiste aintangibilidade das garantias judiciais, tal comoafirmado pela Corte Interamericana de DireitosHumanos em seus oitavo e nono Pareceres, ambosde 1987. Estes princípios já têm tido aplicação na prática internacional nos últimos anos, o que éalentador. Desse modo, com base tanto na doutrinacomo na jurisprudência contemporâneas sobre aquestão, tem-se buscado um tratamento adequadoda matéria, de modo a evitar a repetição, no futuro,de violações de direitos humanos resultantes dainvocação indevida de cláusulas de derrogações,ocorridas na história recente de muitos países,inclusive de nossa região.

    Outra modalidade de prevenção de conflitos

    entre as jurisdições internacional e nacional residena possibilidade de recurso a reservas permitidas por alguns tratados de direitos humanos. Este é umdos pontos mais debatidos na doutrinacontemporânea. Há mais de dez anos venhoalertando para a inadequação21  do sistema dereservas consagrado nas duas Convenções de Vienasobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986) para aaplicação dos tratados de direitos humanos, dotadosde caráter especial e especificidade própria. Nosúltimos anos, os próprios órgãos convencionais de proteção têm dado mostras de sua disposição de proceder à determinação da compatibilidade ou não

    de certas reservas formuladas por Estados Partes adisposições dos respectivos tratados de direitoshumanos com o objeto e propósito dos mesmos.

    A matéria encontra-se atualmente em examena Comissão de Direitos Humanos das NaçõesUnidas. No meu entender, o presente sistemaindividualista, contratualista e fragmentador dereservas não se mostra em conformidade com anoção de garantia coletiva subjacente aos tratadosde direitos humanos, que incorporam obrigações decaráter objetivo transcendendo os compromissosrecíprocos entre as Partes, e se voltam ao interessecomum superior da salvaguarda dos direitos do serhumano e não dos direitos dos Estados. Impõe-seaqui, como sustentei em minhas Explicações deVoto no caso Blake versus Guatemala (Sentenças daCorte Interamericana de Direitos humanos sobreexceções preliminares, 1996, e sobre o mérito,1998), a humanização do direito dos tratados.

    Do exposto, vê-se que os próprios tratadosde direitos humanos têm cuidado de compatibilizar

    as jurisdições internacional e nacional para lograr arealização de seu objeto e propósito. Enfim, notocante às relações entre o direito internacional e odireito interno no presente contexto, uma questão degrande atualidade, mormente em nosso continente,diz respeito à execução de sentenças dos tribunaisinternacionais de direitos humanos. A questãoencontra-se diretamente relacionada à aplicaçãoeficaz das Convenções Européia e Americana sobreDireitos Humanos, – os dois únicos tratados dedireitos humanos dotados, até o presente (início de1998), de tribunais internacionais (as CortesEuropéia e Interamericana de Direitos Humanos), –no âmbito do direito interno dos Estados Partes.

    A Convenção Européia conta com oconcurso do Comitê de Ministros, que zela pelaexecução das sentenças da Corte Européia (art. 54).A Convenção Americana, – que não conta commecanismo semelhante, – dispõe que a parte das

    sentenças da Corte Interamericana atinente aindenizações pode ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução desentenças contra o Estado (art. 68(2)). Acrescenta aConvenção Americana que os Estados Partes secomprometem a cumprir a decisão da CorteInteramericana em todo caso contencioso em quesejam partes (art. 68(1) da Convenção). Porconseguinte, se um Estado Parte na ConvençãoEuropéia ou na Convenção Americana deixa deexecutar uma sentença da Corte Européia ou daCorte Interamericana, respectivamente, no âmbitode seu ordenamento jurídico interno, está incorrendo

    em uma violação adicional da Convenção regionalrespectiva. Acresce a obrigação geral (do art. 2 daConvenção Americana) de adequação do direitointerno à normativa de proteção da Convenção.

    A experiência da Corte Européia registranumerosos casos de execução de suas sentenças pelos Estados Partes na Convenção Européia, aolongo de muitos anos, para o que tem contadocom o concurso da supervisão do Comitê deMinistros (art. 54 da Convenção), um órgão decomposição política. A experiência da CorteInteramericana – que não conta com o concurso deórgão congênere – é ainda relativamente recente, etambém positiva, porquanto suas sentenças têm sidonormalmente cumpridas. As dificuldadestemporárias surgidas em quatro casos até o presente,que levaram à aplicação pela Corte, em seusRelatórios Anuais, da sanção prevista no art. 65 daConvenção Americana22, encontram-se já todasremediadas e superadas. Não obstante, urge que osEstados Partes na Convenção Americana seequipem devidamente, no âmbito de seu direito

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    interno, para dar fiel e pleno cumprimento àssentenças da Corte Interamericana à luz do art.68(1) da Convenção. Não creio que um órgão decomposição política – como o Comitê de Ministrosno sistema europeu de proteção – seja o maisadequado para zelar pela execução das sentenças daCorte Interamericana. Daí a importância crescente,em nosso sistema regional, das medidas que neste propósito venham a adotar os Estados Partes naConvenção Americana.

    Entre estes, há os que, como Colômbia ePeru, adotaram instrumentos legislativos naquele propósito. Assim, e.g., na Colômbia, a Lei 288 de1996 estabelece um mecanismo para asindenizações às vítimas de violações de direitoshumanos consoante o disposto por dois órgãos de proteção internacional, a Comissão Interamericanade Direitos Humanos e o Comitê de DireitosHumanos sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos.

    Inexplicavelmente, a referida lei colombiana serefere expressamente somente a estes dois órgãos(que, aliás, não proferem sentenças), e se omite emrelação às sentenças da Corte Interamericana deDireitos Humanos. A questão permanece, assim, emaberto. A mencionada lei cria um Comitê deMinistros23, encarregado de determinar ocumprimento das decisões dos órgãos supracitadosde proteção internacional.24

    O outro exemplo é fornecido pela Lei de Habeas Corpus  e  Amparo  do Peru, de 1982, queatribui ao órgão judiciário supremo do ordenamento

    interno (a Corte Suprema de Justiça) a faculdade dedispor sobre a execução e o cumprimento dasdecisões de órgãos de proteção internacional a cuja jurisdição se tiver submetido o Peru, “deconformidade com as normas e procedimentosinternos vigentes sobre execução de sentenças” (art.40). O art. 39 da referida Lei menciona algunsdestes órgãos, mas não se trata de uma cláusulafechada, pois agrega “outros que se constituam nofuturo”; a Corte Interamericana encontra-se, pois, aíincluída, ainda que não expressamentemencionada.25  O art. 40 acrescentasignificativamente que a Corte Suprema de Justiçarecepcionará as decisões dos órgãos de proteçãointernacional, sem que se requeira reconhecimento,revisão e tampouco exame prévio algum para suavalidade e eficácia.

    Recentemente, na Argentina, concluiu-se umProjeto de Lei, já submetido à consideração doCongresso Nacional, no propósito de “regulamentara Convenção Americana sobre Direitos Humanos”,como o indica a Exposição de Motivos.26 O Projeto

    de Lei argentino, que se inspira no modelocolombiano, também cria um Comitê de Ministros(art. 2º(b)), que determina sobre o cumprimento deuma recomendação da Comissão Interamericana deDireitos Humanos. Caso haja alguma divergência naconsideração da matéria, esta deve ser submetida àCorte Interamericana de Direitos Humanos, para a“decisão definitiva da mesma” (art. 4º).

    Estes são exemplos de passos legislativosiniciais, tomados por poucos Estados Partes naConvenção Americana até o presente, no propósitode assegurar o seu fiel cumprimento no plano dodireito interno. É de se esperar que todos os EstadosPartes busquem equipar-se para assegurar a fielexecução das sentenças da Corte Interamericana.Por enquanto, o alentador índice de cumprimento –caso por caso – de todas as sentenças da CorteInteramericana até o presente se deve sobretudo à boa fé e lealdade processual com que neste

     particular os Estados demandados têm acatado asreferidas sentenças, também contribuindo dessemodo à consolidação do sistema regional de proteção.

    Mas não se pode daí inferir que a execuçãode tais sentenças esteja legalmente assegurada, noâmbito de seu ordenamento jurídico interno. Excetoas raras iniciativas acima mencionadas, a grandemaioria dos Estados Partes na ConvençãoAmericana ainda não tomou qualquer providência,legislativa ou de outra natureza, nesse sentido. Porconseguinte, as vítimas de violações de direitos

    humanos, em cujo favor tenha a CorteInteramericana declarado um direito – quanto aomérito do caso, ou reparações lato sensu, – aindanão têm inteira e legalmente assegurada a execuçãodas sentenças respectivas no âmbito do direitointerno dos Estados demandados. Cumpre remediar prontamente esta situação.

    IV. O Amplo Alcance dasObrigações Convencionais deProteção: as Obrigações

    Executivas, Legislativas eJudiciais dos Estados

    Apesar de toda a atenção dispensada pelos próprios órgãos de supervisão internacional dedireitos humanos à questão central das relaçõesentre os ordenamentos jurídicos internacional einterno na proteção dos direitos humanos, persistemaqui curiosamente incertezas e uma falta de clareza

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    conceitual. Como neste final de século o que serequer mais que tudo é uma mudança dementalidade, cabe, neste propósito, ter sempre presente que as disposições dos tratados de direitoshumanos vinculam não só os governos (comoequivocada e comumente se supõe), mas, mais doque isto, os Estados (todos os seus poderes, órgãos eagentes); é chegado o tempo de precisar, porconseguinte, o alcance não só das obrigaçõesexecutivas, mas também das obrigações legislativase judiciais, dos Estados Partes nos tratados dedireitos humanos.

    Há muito venho chamando a atenção paraeste ponto básico, não só em minha atuação no plano internacional, como também em conferênciasrecentes que tenho proferido em nosso país (e.g., naUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)27,no Superior Tribunal de Justiça28, no ConselhoFederal da Ordem dos Advogados do Brasil

    (OAB)29, no Instituto Brasileiro de DireitosHumanos30, na Associação dos Juízes do RioGrande do Sul (AJURIS)  31, e nesta mesmaComissão de Direitos Humanos da Câmara dosDeputados32). Há que ter sempre presente que aoperação dos mecanismos internacionais de proteção não pode prescindir da adoção e doaperfeiçoamento das medidas nacionais deimplementação, porquanto destas últimas – estouconvencido – depende em grande parte a evoluçãofutura da própria proteção internacional dos direitoshumanos. A ênfase em tais medidas nacionais se dá,não obstante, sem prejuízo da preservação dos

     padrões internacionais de proteção.

    Seria incorreto, por exemplo, visualizar osórgãos convencionais internacionais de proteção dosdireitos humanos como instâncias de revisão, porexemplo, de decisões de tribunais nacionais; distonão se trata. No entanto, tais órgãos internacionais podem, e devem, no contexto de casos concretos deviolações de direitos humanos, determinar acompatibilidade ou não com os respectivos tratadosde direitos humanos, de qualquer ato ou omissão por parte de qualquer poder ou órgão ou agente doEstado, – inclusive leis nacionais e sentenças detribunais nacionais. Trata-se de um princípio básicodo direito da responsabilidade internacional doEstado, aplicado no presente domínio de proteçãodos direitos humanos.

    A questão se situa em um problema de maiordimensão, no qual me permito insistir: o da falta deuma clara compreensão, que a meu ver continua aexistir, neste final de século, na maioria dos países,quanto ao alcance das obrigações convencionais de

     proteção. O recurso a doutrinas ou fórmulas que narealidade não servem ao propósito de fortalecer a proteção dos direitos humanos, e que se mostramdesprovidas de conteúdo, tem contribuído à perpetuação de uma falta de clareza quanto aoamplo alcance dos deveres convencionais de proteção dos direitos humanos. Uma novamentalidade é o de que mais se necessita. Temosque proteger nosso labor de proteção dos efeitosnegativos do recurso a palavras ou conceitos vazios.

     No dia em que prevalecer uma claracompreensão do amplo alcance das obrigaçõesinternacionais de proteção, haverá uma mudança dementalidade, que, por sua vez, fomentará novosavanços neste domínio de proteção. Enquanto perdurar a atual mentalidade, conceitualmenteconfusa e portanto defensiva e insegura, persistirãoas deferências indevidas ao direito interno, cujasinsuficiências e deficiências ironicamente requerem

    a operação dos mecanismos de proteçãointernacional. A aplicação da normativainternacional tem o propósito de aperfeiçoar, e nãode desafiar, a normativa interna, em benefício dosseres humanos protegidos.

    1. As Obrigações Executivasdos Estados Partes nosTratados de DireitosHumanos

    Voltemos nossas reflexões, por algunsmomentos, às obrigações executivas, legislativas e judiciais dos Estados Partes nos tratados de direitoshumanos. De início, cabe ter presente que, a par dasobrigações específicas em relação a cada um dosdireitos protegidos, os Estados Partes contraem aobrigação geral de organizar o poder público paragarantir a todas as pessoas sob sua jurisdição o livree pleno exercício de tais direitos. A aceitação dostratados de proteção internacional pelos EstadosPartes implica o reconhecimento da premissa básica, subjacente a estes últimos, de que a tarefa de proteção dos direitos humanos não se esgota – não

     pode esgotar-se – na ação do Estado.

     No tocante a nosso país, no final da década passada o Brasil já se tornara Parte em diversostratados de proteção “setorial” ou particularizadados direitos humanos, mas persistia uma lacunaquanto a três tratados gerais de proteção, – os doisPactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e aConvenção Americana sobre Direitos Humanos, – adespeito da decisão de adesão a esses instrumentos

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    tomada já em 198533 (supra). Tal decisão veio a serconsumada, sete anos depois, em 1992.

    A demora em efetuar a adesão do Brasilàqueles três tratados gerais de proteção levou oentão Consultor Jurídico do Ministério das RelaçõesExteriores a emitir um extenso Parecer, de 18 deoutubro de 1989, sobre a forma ou modalidade detal adesão, no qual acrescentou outros dados, – quecontinuam a revestir-se de atualidade, – a título de providências adicionais que recomendava fossem prontamente tomadas pelo Brasil, relativas ainstrumentos e cláusulas facultativos, com vistas à plenitude do alinhamento à causa da proteçãointernacional dos direitos humanos.

    Suas recomendações, fundamentadas nocitado Parecer, foram as seguintes: além da adesãoaos três tratados gerais de proteção supracitados, aadesão ao [primeiro] Protocolo Facultativo do Pacto

    de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas(reconhecimento do Comitê de Direitos Humanos para receber e examinar petições ou comunicaçõesindividuais), aos dois Protocolos Adicionais de1977 às Convenções de Genebra de 1949 sobreDireito Internacional Humanitário, às duasConvenções da Nações Unidas contra o  Apartheid (de 1973 e l985), à Convenção (n. 87) da OIT sobrea Liberdade Sindical de 1948 (a Convenção básicada OIT de garantia de um dos direitos humanosfundamentais, pendente de aprovação parlamentardesde 1949), ao Protocolo Adicional à ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos em Matéria de

    Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988;além disso, as declarações de reconhecimento dascompetências do Comitê de Direitos Humanos parareceber e examinar petições ou comunicaçõesinterestatais (art. 41 do Pacto de Direitos Civis ePolíticos), do Comitê para a Eliminação daDiscriminação Racial (CERD) para receber eexaminar comunicações individuais (art. 14 daConvenção sobre a Eliminação de Todas as Formasde Discriminação Racial), da ComissãoInteramericana de Direitos Humanos para receber eexaminar petições ou comunicações interestatais(art. 45 da Convenção Americana sobre DireitosHumanos), da Corte Interamericana de DireitosHumanos (reconhecimento de sua competênciaobrigatória em matéria contenciosa, sob o art. 62 daConvenção Americana), do Comitê contra a Tortura para receber e examinar petições ou comunicaçõesindividuais (art. 22 da Convenção das NaçõesUnidas contra a Tortura) e interestatais (art. 21 damesma Convenção); e, enfim, o levantamento dasreservas a alguns arts. (15(4); 16(1)(a), (c), (g) e (h);e 29(1)) da Convenção da

     Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas asFormas de Discriminação contra a Mulher de 1979;e o levantamento das reserva geográfica sob o art.1º(B)(1) da Convenção de Genebra de 1951 relativaao Estatuto dos Refugiados34  (reiterando orecomendado em Parecer anterior, de 19.05.1986) .

    Como observou o Parecer supracitado de18.10.1989, a aceitação pelo Brasil de instrumentose cláusulas facultativos de tratados de direitoshumanos havia que se dar “necessariamente deforma integral”: as providências supracitadascorrespondiam ao “reconhecimento da anterioridadedos direitos humanos face ao direito estatal, e daconfluência e identidade de objetivos do direitointernacional e do direito público interno quanto à proteção da pessoa humana (...)”.35  À medida emque o Brasil tomasse estas providências, estariadando mostras de que continuava se orientando nosentido de buscar a plenitude da proteção

    internacional como garantia adicional dos direitoshumanos. Adviriam por certo obrigações que sesomariam às já contraídas, particularmente notocante à elaboração de relatórios periódicos e derespostas a eventuais denúncias sobre osinstrumentos internacionais de proteção. Haveriacertamente que voltar as atenções às medidasnacionais de implementação dos instrumentosinternacionais, – preocupação corrente também nosforos internacionais.

    Tais medidas passariam a requerer por vezesa adoção, ou a reforma, da legislação nacional, com

    vistas a compatibilizá-la ou harmonizá-la com asobrigações convencionais. Persistia, neste particular,uma diversidade de situações, ilustrada pelostratados de proteção recém-ratificados, uns járegulamentados em nível do direito interno (como aConvenção sobre os Direitos da Criança de 1989), eoutros que continuariam a aguardar regulamentaçãono país (como as duas Convenções – a das NaçõesUnidas e a Interamericana – contra a Tortura) até oano de 1997.

     Nos últimos oito anos, algumas dasrecomendações contidas no mencionado Parecerde 18.10.1989 foram acatadas, outras ainda não.Tivessem sido seguidas plenamente todas aquelasrecomendações, as adesões do Brasil a tratadosgerais de proteção como a Convenção Americanasobre Direitos Humanos e o Pacto de DireitosCivis e Políticos teriam abarcado igualmente aaceitação, pelo Brasil, respectivamente, dacompetência obrigatória em matéria contenciosada Corte Interamericana de Direitos Humanos (art.62 da Convenção Americana sobre Direitos

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    Humanos) assim como da competência do Comitêde Direitos Humanos das Nações Unidas parareceber e examinar petições ou comunicaçõesindividuais (sob o [primeiro] ProtocoloFacultativo ao Pacto de Direitos de Direitos Civise Políticos). Além disso, Estado Parte também naConvenção sobre a Eliminação de Todas asFormas de Discriminação Racial e na Convençãodas Nações Unidas contra a Tortura e OutrosTratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ouDegradantes, teria o Brasil já aceito, sob a primeira (art. 14) e a segunda (art. 22)Convenções, as competências do Comitê para aEliminação da Discriminação Racial (CERD) e doComitê contra a Tortura (CAT), respectivamente, para receber e examinar petições ou comunicaçõesindividuais.

    Surpreende que, decorrido todo este tempo,não tenha ainda o Brasil aceito tais cláusulas ou

    instrumentos facultativos. Isto significa que, notocante, por exemplo, aos quatro importantestratados de direitos humanos supracitados, nos planos global e regional, o Brasil aceita asobrigações convencionais substantivas contraídasem relação aos direitos protegidos, mas não sesubmete integralmente, até o presente, aosmecanismos de supervisão ou controle internacionaldo cumprimento de tais obrigações.

    Urge que o Brasil reconsidere sua atual posição acerca das competências dos órgãosinternacionais convencionais de proteção dos

    direitos humanos, aceitando-as integralmente, edando assim outro salto qualitativo, no sentido de proporcionar desse modo uma garantia adicional de proteção a todas as pessoas sob sua jurisdição. Nãohá forma mais concreta de o país demonstrar seucompromisso sincero com a causa da proteçãointernacional do que a aceitação das mencionadascompetências. Assim agindo, imbuído de novamentalidade, estará dando mostras do sentimento desolidariedade humana que a livre aceitação de taismecanismos de proteção requer, e sem o qual poucose poderá continuar a avançar na salvaguardainternacional dos direitos humanos.

    Apesar de todos os percalços, e sem prejuízode iniciativas como as acima propostas, que aindahá que tomar, têm-se registrado avanços na posturado Brasil nos últimos anos, sobretudo em relaçãoaos instrumentos internacionais de proteção particularizada.36 No plano regional, em 27.11.1995,o Brasil ratificou a Convenção Interamericana paraPrevenir, Punir e Erradicar a Violência contra aMulher (adotada na Assembléia Geral da OEA,

    realizada em Belém do Pará, em 1994).37 Em agostode 1996, tomou o Brasil a decisão positiva detornar-se Parte nos dois Protocolos à ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos, o primeiro (de1988) sobre Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, e o segundo (de 1990) referente àAbolição da Pena de Morte. E cabe ressaltar que oBrasil encontra-se hoje vinculado por todo o corpus juris  tanto do Direito Internacional Humanitáriocomo do Direito Internacional dos Refugiados, oque é alentador. Há igualmente que se fazerreferência, no plano interno, à ação de coordenação,sem precedentes, hoje empreendida pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e à mobilização econcerto, intensificados nos últimos anos, dasorganizações não-governamentais, muitas das quaishoje aqui presentes, nesta III Conferência Nacionalde Direitos Humanos.

    A grande lacuna a ser suprida refere-se, pois,

    à aceitação pelo Brasil das competências em matériacontenciosa dos órgãos convencionais de proteçãoestabelecidos pelos tratados de direitos humanos emque é Parte. No tocante à Corte Interamericana deDireitos Humanos, em particular, sua posiçãoreticente é ainda mais surpreendente, porquanto acriação da Corte foi originalmente proposta naConferência de Bogotá de 1948, precisamente pelaDelegação do Brasil. Permito-me, a seguir, resumiros argumentos que, em tantas outras ocasiões, tenhoavançado, em favor da aceitação incondicional peloBrasil da competência obrigatória da CorteInteramericana (sob o art. 62 da Convenção

    Americana sobre Direitos Humanos):

     primeiro, o reconhecimento da jurisdição emmatéria contenciosa da Corte Interamericana deDireitos Humanos constituiria uma garantiaadicional pelo Brasil, a todas as pessoas sujeitas asua jurisdição, da proteção de seus direitos, taiscomo consagrados na Convenção Americana sobreDireitos Humanos, quando as instâncias nacionaisnão se mostrarem capazes de garanti-los e deassegurar com isto a realização da justiça;

    segundo, tal reconhecimento projetaria no plano internacional o compromisso sincero doBrasil com a causa da salvaguarda dos direitoshumanos, e em muito fortaleceria a posiçãoda própria Corte Interamericana, ao passar acontar esta com o apoio de um país de dimensãocontinental e com uma vasta população,necessitada de maior proteção de seus direitos;

    terceiro, a Constituição Brasileira vigente, de1988, curiosamente propugna (art. 7º das

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    disposições transitórias finais) pela formação de umtribunal internacional dos direitos humanos, –tribunal este que, por sinal, já existe e operaregularmente há quase vinte anos: a própria CorteInteramericana de Direitos Humanos, – cuja criaçãofoi proposta na IX Conferência InternacionalAmericana (em Bogotá, 1948) precisamente pelaDelegação do Brasil;

    quarto, o Brasil participou efetivamente dostrabalhos preparatórios da Convenção Americanasobre Direitos Humanos e apoiou a sua adoção – naConferência de San José de 1969, – de formaintegral, inclusive quanto a seus instrumentos ecláusulas facultativos (como a do art. 62, sobre aaceitação pelos Estados Partes da jurisdiçãoobrigatória da Corte Interamericana em matériacontenciosa);

    quinto, o reconhecimento da jurisdição

    obrigatória da Corte Interamericana estaria deacordo com a mais lúcida doutrina publicista e jusinternacionalista brasileira;

    sexto, tal reconhecimento geraria uminteresse bem maior, em particular por parte dasnovas gerações, pelo estudo e difusão da jurisprudência da Corte Interamericana (e de outrosórgãos de proteção internacional dos direitoshumanos), que continua virtualmente desconhecidaem nosso país;

    sétimo, ao longo dos anos, o Brasil adquiriu

    experiência no diálogo com outros órgãos desupervisão internacional dos direitos humanos, de base tanto convencional como extra-convencional,que pode ser-lhe de valia no contencioso de direitoshumanos perante a Corte Interamericana;

    oitavo, os órgãos de base convencional,como a Corte Interamericana de Direitos Humanos,têm um mandato concreto, fundamentado no próprio tratado de direitos humanos em questão, e baseiam suas decisões em regras de direito(distintamente dos órgãos de composição política); avia jurisdicional representa a forma mais evoluídade proteção internacional dos direitos humanos;

    nono, não é razoável aceitar tão somente asnormas substantivas dos tratados de direitoshumanos, e deixar de aceitar os mecanismos processuais para a vindicação e proteção dosdireitos consagrados nestes mesmos tratados; e

    décimo, há uma interação entre o direitointernacional e o direito interno no presente

    contexto de proteção, e as jurisdições internacional enacional, motivadas pelo propósito convergente ecomum de proteção do ser humano, são aquico-partícipes na luta contra as manifestações do poder arbitrário e contra a impunidade.

    Sobre este último ponto me permitoacrescentar uma reflexão: pode perfeitamenteocorrer, como na prática tem efetivamente ocorrido,que as instâncias nacionais necessitem a cooperaçãodas instâncias internacionais para os problemas dedireitos humanos que não conseguem resolver.Ilustram-no dois importantes casos decididos pelaCorte Interamericana de Direitos Humanos no ano passado. Um mês depois da sentença desta (de17.09.1997) no caso Loayza Tamayo, o Peru acatoua ordem da Corte Interamericana de libertar a prisioneira María Elena Loayza Tamayo, detida soba legislação anti-terrorista; pouco depois, anunciousua decisão de extinguir os chamados “tribunais

    sem rosto” no país. Este é um caso sem precedentes,em que uma prisioneira com base na legislação anti-terrorista foi libertada por determinação de umtribunal internacional de direitos humanos.Igualmente, pouco mais de um mês após a sentençada Corte Interamericana (de 12.11.1997) no casoSuárez Rosero, a Corte Suprema do Equadordecidiu declarar a inconstitucionalidade de umadisposição da legislação penal anti-drogas, para talinvocando a referida sentença da CorteInteramericana. Este é outro caso sem precedentesna América Latina, em que a Corte Suprema de um país se respalda na sentença de um tribunal

    internacional de direitos humanos.

    Os julgamentos da Corte Interamericananos citados casos Loayza Tamayo versus Peru eSuárez Rosero versus Equador prenunciam achegada de novos tempos na América Latina, notocante à proteção dos direitos humanos nos planos a um tempo internacional e nacional; peloimediato impacto que tiveram no direito internodos respectivos países, já fazem parte da históriacontemporânea da proteção internacional dosdireitos humanos em nosso continente. Com baseem minha própria experiência, posso afirmar queas instâncias internacionais de proteção têm semostrado valiosas na luta contra a impunidade,verdadeira chaga que corrói a crença nasinstituições públicas e gera a anomia e apatiasociais. Muitos casos de direitos humanos, naverdade, só têm sido resolvidos graças aoconcurso das instâncias internacionais de proteção, e este é um argumento de particularimportância e grande peso, que vem ao encontro

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    da realização dos propósitos das própriasinstituições públicas de todos os países.

    Seria auspicioso se, por ocasião destecinqüentenário das Declarações Universal eAmericana de Direitos Humanos, e de suascomemorações que já se multiplicam em nosso país,assim como do cinqüentenário da proposta do Brasilna Conferência de Bogotá de 1948 de criação deuma Corte Interamericana de Direitos Humanos,viesse o Brasil, – como já há tempos vivamenteespero, – imbuído de nova mentalidade, a dar osalto qualitativo de reconhecer incondicionalmente a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana emmatéria contenciosa (art. 62 da ConvençãoAmericana). As gerações presentes e futuras de brasileiros hão de ficar reconhecidas por estadecisão.

    A par deste reconhecimento, é de se esperar

    que o Brasil, paralela e adicionalmente, faça o maisamplo uso da via consultiva, sob o art. 64 daConvenção Americana. A base jurisdicionalconsultiva da Corte Interamericana é particularmente ampla; sua amplitude, na verdade,não tem precedentes, bastando compará-la com ascorrespondentes de outros tribunais internacionais.A da Corte Interamericana se encontra aberta, comosempre esteve, a todos os Estados membros assimcomo aos órgãos principais da Organização dosEstados Americanos (OEA).

    Tentar mesclar ou confundir as funções

    contenciosa e consultiva da Corte Interamericanaseria revelar pouca familiaridade com a matéria:uma e outra repousam em bases jurisdicionaisinteiramente distintas. Tanto é assim que a viaconsultiva está aberta a todos os Estados membrosda OEA, sejam ou não Partes na ConvençãoAmericana, e aos órgãos da OEA enumerados nocapítulo X de sua Carta, – sendo pois dotada de umaamplitude sem paralelo. A Corte Interamericanavem de esclarecer a diferença básica entre suasfunções contenciosa e consultiva em seu décimo-quinto Parecer sobre os Relatórios da ComissãoInteramericana de Direitos Humanos, de14.11.1997, com o sólido respaldo de ampla jurisprudência internacional sobre a matéria, como odemonstrei em meu longo Voto Concordante nesterecente Parecer da Corte Interamericana.

    Pode perfeitamente o Brasil, portanto, aqualquer momento, paralela e adicionalmente àaceitação da jurisdição contenciosa da Corte,formular a esta pedidos de Pareceres sobre ainterpretação da Convenção Americana ou de outros

    tratados concernentes à proteção dos direitoshumanos nos Estados americanos. É o que, a meuver, deveria prontamente fazer, ou inclusive já terfeito, porquanto tais Pareceres podem inclusiveajudar o país nos esforços empreendidos em prol da proteção dos direitos humanos no âmbito de seuordenamento jurídico interno.

    2. As Obrigações Legislativasdos Estados Partes nosTratados de DireitosHumanos

    Ao ratificar os tratados de direitos humanos,os Estados Partes contraem, a par das obrigaçõesespecíficas relativas a cada um dos direitos protegidos, a obrigação geral de adequar seuordenamento jurídico interno às normasinternacionais de proteção. As duas Convenções deViena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986,respectivamente) proíbem (art. 27) que uma Parteinvoque disposições de seu direito interno paratentar justificar o descumprimento de um tratado. Éeste um preceito, mais do que do direito dostratados, do direito da responsabilidadeinternacional do Estado, firmemente cristalizado na jurisprudência internacional. Segundo esta, assupostas ou alegadas dificuldades de ordem internasão um simples fato, e não eximem os EstadosPartes em tratados de direitos humanos daresponsabilidade internacional pelo não-

    cumprimento das obrigações internacionaiscontraídas.

    A interpretação das leis nacionais de modoa que não entrem em conflito com a normativainternacional de proteção seria um meio de evitaro descumprimento daquelas obrigaçõesinternacionais. Os tratados, uma vez ratificados eincorporados ao direito interno, obrigam a todos,inclusive aos legisladores, podendo-se, pois, presumir o propósito de cumprimento de taisobrigações de proteção por parte do PoderLegislativo (da mesma forma que dos Poderes

    Executivo e Judiciário). Em matéria de direitoshumanos, isto implica o dever geral de adequaçãodo direito interno à normativa internacional de proteção (seja regulamentando os tratados paraassegurar-lhes eficácia no direito interno, sejaalterando as leis nacionais para harmonizá-lascom as disposições convencionaisinternacionais), – dever este que se encontraexpressamente consignado nos tratados de direitoshumanos (a exemplo do art. 2º da Convenção

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    Americana sobre Direitos Humanos). Em virtudedo caráter especial dos tratados de direitoshumanos, impõe-se, com ainda maior força, aadequação do ordenamento jurídico interno àsdisposições convencionais.

    Uma das formas mais concretas de mediçãoda eficácia de um tratado de direitos humanos resideem seu impacto no direito interno dos EstadosPartes, constatado através de reformas legislativasresultantes das decisões dos órgãos internacionaisde proteção, e conducentes à adequação das leisnacionais às obrigações convencionaisinternacionais relativas à salvaguarda dos direitoshumanos. A aplicação da Convenção Européia deDireitos Humanos pela Corte Européia de DireitosHumanos oferece uma pertinente ilustração a esserespeito.

     No tocante a leis nacionais, recorde-se, por

    exemplo, para citar alguns casos dentre muitosoutros, que, no caso Abdulaziz, Cabales eBalkandali (sentença de 28.05.1985), a CorteEuropéia concluiu que as três demandantes – quedenunciaram estar privadas ou ameaçadas de ver-se privadas da companhia de seus familiares no ReinoUnido, em virtude das normas de imigração (quevisavam a proteger o mercado nacional de trabalho), – eram efetivamente vítimas de discriminação com base no sexo e em violação do art. 14 emcombinação com o art. 8º da Convenção; ademais,como o Reino Unido não havia incorporado aConvenção Européia em seu direito interno, as

    demandantes não dispunham de um recurso internoeficaz ante uma autoridade nacional para remediar adiscriminação sexual de que eram vítimas, o que, noentender da Corte, configurava ademais umaviolação do art. 13 da Convenção. E, no casoDudgeon (sentença de 22.10.1981), a CorteEuropéia concluiu que a própria existência dalegislação penal na Irlanda do Norte (proibindo asrelações homossexuais masculinas) atentava contrao direito ao respeito da vida privada (quecompreende a vida sexual) consagrado no art. 8º daConvenção.

    Em decorrência da sentença da CorteEuropéia no caso Marckx (1979), uma nova lei belga (de 31.03.1987) modificou a legislaçãorelativa à filiação. Cerca de quatro anos após asentença da Corte Européia no caso Campbell eCosans (1982), uma lei britânica (de 07.11.1986)aboliu os castigos corporais nas escolas públicasdaquele país. E, no mesmo ano da decisão da CorteEuropéia no caso X e Y versus Holanda (1985), foiadotada uma lei holandesa (de 27.02.1985)

    emendando o Código Penal, de modo a permitir aum portador de deficiência mental interpor unaqueixa por meio de seu representante legal. Váriasoutras sentenças da Corte Européia tiveram igualimpacto no direito interno dos Estados Partes, nosentido de adequar as leis nacionais à normativa daConvenção Européia.

    Em nosso continente, tanto a Comissãocomo a Corte Interamericanas têm dado mostras desua disposição de embarcar decididamente nestarota. Nos últimos anos, a Comissão Interamericana,nos casos das leis de anistia (1992), relativos aoUruguai e à Argentina, por exemplo, concluiu queas referidas leis eram incompatíveis com os arts. 8º,25 e 1º(1) da Convenção Americana, poracarretarem uma denegação de justiça. No casoVerbitsky versus Argentina (1994), a Comissãoressaltou expressamente o alcance do dever geral doart. 2º da Convenção Americana para tornar efetivos

    os direitos por ela garantidos, e expressou suasatisfação pela culminação de um processo desolução amistosa, com a derrogação, pelo Estadodemandado, da figura do desacato da legislaçãonacional.

    A Corte Interamericana, por sua vez, em sua já citada sentença de 17.09.1997 no caso LoayzaTamayo versus Peru, determinou aincompatibilidade dos decretos-leis de tipificaçãodos delitos de “traição à pátria” e “terrorismo” –aplicados no caso – com o art. 8º(4) da ConvençãoAmericana (princípio do non bis in idem). E, na

    também citada sentença de 12.11.1997, no casoSuárez Rosero versus Equador , foi mais além, aodeclarar que o art. 114 bis  do Código Penalequatoriano, que privava a todas as pessoas detidassob a lei anti-drogas de certas garantias judiciais(quanto à duração da detenção), violava per se o art.2º, em combinação com o art. 7º(5), da Convenção,independentemente de sua aplicação no casoconcreto. Esta conclusão da Corte é, a meu ver, deextraordinária importância para a evolução futura damatéria.

    Pode inclusive ocorrer que, em umdeterminado caso, uma lei nacional constitua a baseou a origem de uma violação comprovada dedireitos humanos; assim sendo, não basta, a meu ver – como tenho assinalado em meus reiterados Votosem decisões da Corte Interamericana – que o Estadodemandado indenize as vítimas, porquanto tambémdeve fazer cessar a violação da obrigaçãoconvencional, e só pode lograr isto mediante arevogação daquela lei e a conseqüente adequação deseu direito interno à normativa internacional de

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     proteção. Para a fundamentação jurídica desta tese, permito-me referir-me a meus Votos Dissidentesnos casos El Amparo (1996-1997)  38, relativo àVenezuela, Caballero Delgado e Santana versusColômbia (1997)39, e Genie Lacayo versus Nicarágua (1997).40  No seio da CorteInteramericana, minha posição a respeito, –inicialmente solitária e minoritária, e a partir doscasos Loayza Tamayo e Suárez Rosero (supra),majoritária, – tem sido no sentido de que, tais comoinvocadas em casos concretos, as leis de exceção – aexemplo das que privilegiam foros militaresespeciais – são incompatíveis com as garantias dodevido processo legal consagradas na ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos.

    Entendo que a adequação do direito internoàs normas internacionais de proteção é, ademais, da própria essência do dever de prevenção, para evitara repetição de violações de direitos humanos

    derivadas de uma determinada lei nacional. Podetambém ocorrer que, em algum outro caso, seja a própria vacatio legis  a fonte de uma violaçãocomprovada de direitos humanos; nesta hipótese, odever do Estado demandado consiste na adoção deuma lei (e.g., estabelecendo garantias de proteção),de conformidade com os preceitos dos tratados dedireitos humanos que vinculam o Estado emquestão. O dever de prevenção é um componente básico das obrigações gerais, consagradas nostratados de direitos humanos (a exemplo dasconsignadas nos arts. 1º (1) e 2º da ConvençãoAmericana), de assegurar a todos o pleno exercício

    dos direitos consagrados e de adequar o direitointerno às normas internacionais de proteção.

    É de se lamentar que dificuldades práticastenham surgido no cumprimento pelos EstadosPartes de suas obrigações legislativas impostas pelos tratados de direitos humanos, sobretudo emrazão da falta de uma compreensão clara do alcancede tais obrigações, que infelizmente parece ainda prevalecer em muitos países, em particular em nossaregião. Não obstante, nem por isso deixam estasobrigações de impor-se, sem atrasos indevidos. Nãoé razoável, por exemplo, que se tenham consumidoquase oito anos, como ocorreu no Brasil, para supriruma lacuna, com a tipificação – em abril de 1997 –do crime da tortura, e ainda assim guardando um paralelismo apenas imperfeito com as duasConvenções sobre a matéria ratificadas pelo Brasilem 1989, – a Convenção das Nações Unidas contraa Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,Desumanos ou Degradantes, e a ConvençãoInteramericana para Prevenir e Punir a Tortura.

    O problema dos atrasos nas providênciaslegislativas – e.g., adoção ou modificação de umalei – para compatibilizar o ordenamento jurídicointerno com a normativa dos tratados de direitoshumanos não tem passado despercebido no sistemaeuropeu de proteção. Ao contrário, tem nele tidoconseqüências para os Estados Partes na ConvençãoEuropéia. No caso Vermeire versus Bélgica (1991), por exemplo, advertiu a Corte Européia que o atrasode oito anos do Estado belga em proceder àmodificação da legislação nacional sancionada porsua sentença no caso Marckx (supra) não estava emconformidade com suas obrigações convencionais(sob o art. 53 da Convenção Européia); porconseguinte, conclamou o Estado belga a efetuar aadequação legislativa sem maior atraso.

    Com efeito, durante os oito anos que seseguiram à sentença da Corte Européia no já citadocaso Marckx (supra), sem que a Bélgica modificasse

    a legislação impugnada, apresentaram-se duasoutras denúncias com base no mesmo motivo. ACorte, nestes dois casos, em lugar de ordenarnovamente a reforma da legislação (o que já haviafeito no caso Marckx), determinou ao Estadodemandado o pagamento de uma indenização pelosdanos ocasionados pela omissão do Estado emquestão de reformar a legislação impugnada nocontexto do caso concreto.

    Os Estados Partes nos tratados de direitoshumanos obrigam-se não só a não violar os direitos protegidos, mas também a tomar todas as medidas

     positivas para assegurar a todas as pessoas sob sua jurisdição o exercício livre e pleno de todos osdireitos protegidos, – o que implica a obrigaçãogeral de adequação de seu direito interno ànormativa internacional de proteção. Tais medidas positivas têm importância direta para a aplicaçãodevida dos tratados de direitos humanos emmúltiplos aspectos.

    Por exemplo, se um Estado cumpriuefetivamente com esta obrigação geral de adequaçãodo direito interno, muito dificilmente, por exemplo, poderia efetuar a denúncia de um tratado de direitoshumanos (a exemplo do que ocorreu no Brasil, emnovembro de 1996, com a Convenção n. 158 daOrganização Internacional do Trabalho (OIT) sobreo Término da Relação de Trabalho por Iniciativa doEmpregador, e em junho de 1971 com a Convençãon. 81 da OIT sobre a Inspeção do Trabalho naIndústria e no Comércio, – esta última re-ratificada pelo Executivo em dezembro de 1987)41, em razãode controles do próprio direito interno em umEstado democrático. Por que a ratificação de um

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    tratado de direitos humanos pelo Executivo – comode todos os tratados – está condicionada à préviaaprovação do mesmo pelo Legislativo e suadenúncia não? Não atentaria isto contra o equilíbriode poderes e a salvaguarda dos direitos humanos emum Estado de Direito?

    Quando não expressamente prevista emum tratado, para se efetuar tem a denúncia que poder inferir-se da natureza do tratado em questão(tendo presente o disposto no art. 56 das duasConvenções de Viena sobre Direito dos Tratados); oComitê de Direitos Humanos das Nações Unidasvem de advertir oportunamente – em outubro de1997 – que, em razão de sua própria natureza jurídica, o Pacto de Direitos Civis e Políticos, porexemplo, não admite a possibilidade de denúncia.Até mesmo em relação às condições em que umaviolação de um tratado pode acarretar suaterminação ou a suspensão de sua aplicação, as duas

    referidas Convenções de Viena excetuam expressa eespecificamente “as disposições relativas à proteçãoda pessoa humana contidas em tratados de caráterhumanitário” (art. 60(5), – em uma verdadeiracláusula de salvaguarda em defesa do ser humano.Os controles tanto do direito internacional como dodireito interno devem aqui operar conjuntamente em prol da preservação e continuidade das obrigaçõesconvencionais internacionais de proteção dosdireitos humanos.

    A adequação das leis nacionais à normativados tratados de direitos humanos constitui uma

    obrigação – de tomar medidas positivas – a ser prontamente cumprida pelos Estados Partes. O fatode ser às vezes considerada uma obrigação “deresultado” (para fazermos uso de uma expressãoreminescente do linguajar da Comissão de DireitoInternacional das Nações Unidas) não significa que possa ser seu cumprimento adiado indefinidamente.Toda a construção doutrinária e jurisprudencial das“obrigações positivas” dos Estados representa umareação contra as omissões legislativas – entre outras – e a inércia dos órgãos do poder público no presente domínio de proteção: contribui ela aexplicar e fundamentar as obrigações legislativasdos Estados Partes em tratados de direitos humanos.

    Estas últimas correspondem a um devergeral – paralelamente aos deveres específicosrelativos a cada um dos direitos protegidos, – decujo cumprimento cabal depende a cessação de umaviolação da Convenção (quando derivada de uma leinacional). A pronta adequação ou harmonização daslegislações nacionais à normativa dos tratados dedireitos humanos constitui uma obrigação geral que

    se impõe de modo uniforme a todos os EstadosPartes nos tratados de direitos humanos,complementando suas obrigações específicasatinentes a cada um dos direitos garantidos. O queurge, em nossos dias, mais do que tudo, é uma novamentalidade, um melhor entendimento dasobrigações convencionais de proteção, que abarcamtodo e qualquer ato ou omissão do Estado Parte, dequaisquer de seus órgãos ou agentes, seja do PoderExecutivo, seja do Legislativo, ou do Judiciário. Éeste princípio fundamental do direito daresponsabilidade do Estado que deve nos orientar.

    3. As Obrigações Judiciaisdos Estados Partes nosTratados de DireitosHumanos

      No tocante às relações entre os

    ordenamentos jurídicos internacional e nacional na proteção dos direitos humanos, um ponto recorrenteé o do status, no direito interno, da normativainternacional de proteção. Como a posiçãohierárquica dos tratados no ordenamento jurídicointerno obedece ao critério do direito constitucionalde cada país, as soluções variam de país a país.Como muitos Estados continuam – com variações –a equiparar os tratados – inclusive,equivocadamente, os de direitos humanos – àlegislação ordinária infraconstitucional, têm surgido problemas na prática.

    O mais grave deles configura-se em virtudeda aplicação do princípio lex posteriori derogat  priori: se aos tratados é dada a mesma hierarquiadas leis, poderiam teoricamente uns e outrasrevogar-se mutuamente (e.g., uma lei posterioralterando uma disposição convencional), por forçado simples critério cronológico. Trata-se de uma posição insustentável, e, sem sombra de dúvida,absurda, no campo da proteção internacional dosdireitos humanos. Como assinala a jurisprudênciainternacional, os tratados de direitos humanos,diferentemente dos tratados clássicos que

    regulamentam interesses recíprocos entre as Partes,consagram interesses comuns superiores,consubstanciados em última análise na proteção doser humano. Como tais, requerem interpretação eaplicação próprias, dotados que são, ademais, demecanismos de supervisão próprios.

    Assim sendo, como sustentar que a umEstado Parte seria dado “derrogar” ou “revogar” poruma lei um tratado de direitos humanos? Tal

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    entendimento se chocaria frontalmente com a própria noção de garantia coletiva, subjacente atodos os tratados de direitos humanos. Nestecontexto de proteção, já não mais se justifica que odireito internacional e o direito interno continuemsendo abordados de forma estanque oucompartimentalizada, como o foram no passado. Aocriarem obrigações para os Estados vis-à-vis  osseres humanos sob sua jurisdição, as normas dostratados de direitos humanos aplicam-se não só naação conjunta (exercício da garantia coletiva) dosEstados Partes na realização do propósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito doordenamento jurídico interno de cada um deles.

    O cumprimento das obrigaçõesinternacionais de proteção requer o concurso dosórgãos internos dos Estados, e estes são chamados aaplicar as normas internacionais. É este o traçodistintivo e talvez o mais marcante dos tratados de

    direitos humanos, dotados de especificidade própriae, permito-me insistir neste ponto, a requereremuma interpretação própria guiada pelos valorescomuns superiores que abrigam, diferentemente dostratados clássicos que se limitam a regulamentar osinteresses recíprocos entre as Partes. Com ainteração entre o direito internacional e o direitointerno no presente contexto, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. Resulta,assim, claríssimo que leis posteriores não podemrevogar normas convencionais que vinculam oEstado, sobretudo no presente domínio de proteção.

    As sentenças dos tribunais nacionais devemtomar em devida conta as disposições convencionaisdos tratados de direitos humanos que vinculam o país em questão. No sistema europeu de proteção, por exemplo, no tocante à determinação dacompatibilidade ou não de decisões de tribunaisnacionais com a normativa internacional dosderechos humanos, é histórica a sentença da CorteEuropéia de Direitos Humanos de 26.04.1979 nocaso Sunday Times versus Reino Unido, célebrelocus classicus  da liberdade de expressão e dodireito à informação sob a Convenção Européia; emdecisão até então sem precedentes, a Corte Européiade fato “reverteu”, por assim dizer, uma decisão emsentido contrário da  House of Lords britânica. Pararecordar outro exemplo, as sentenças da CorteEuropéia nos casos  Le Compte, Van Leuven e De Meyere versus Bélgica (1981) e Albert e Le Compteversus Bélgica  (1983), sobre procedimentodisciplinar da “Ordre des médecins” belga, tiveramo efeito de reverter inteiramente la  jurisprudenceconstante da Cour de Cassation belga.

    A persistência de lacunas ou obstáculos ouinsuficiências do direito interno implicadescumprimento das obrigações convencionais de proteção. Por exemplo, por força dos arts. 25, 1º(1)e 2º da Convenção Americana sobre DireitosHumanos, os Estados Partes estão obrigados aestabelecer um sistema de recursos simples erápidos, e a dar aplicação efetiva aos mesmos. Odireito a um recurso simples, rápido e efetivo anteos juízes ou tribunais nacionais competentes (art. 25da Convenção Americana) representa um dos pilares básicos do próprio Estado de Direito em umasociedade democrática (no sentido da Convenção), – como assinalado pela Corte Interamericana emcasos recentes.42 

    Esta garantia judicial – de origem latino-americana43 – não pode ser minimizada, porquantosua correta aplicação tem o sentido de aperfeiçoar aadministração da justiça em nível nacional. Tal

    garantia no âmbito da proteção judicial (arts. 25 e 8ºda Convenção Americana) é muito mais importantedo que parece haver-se imaginado até o presente, erequer considerável desenvolvimento jurisprudencial. Em matéria de proteção e garantias judiciais, o direito interno dos Estados seaperfeiçoará na medida em que incorporar os padrões de proteção requeridos pelos tratados dedireitos humanos. Para a realização deste propósito – a plena vigência dos direitos humanos – foramconcebidos os instrumentos internacionais de proteção. As jurisdições internacional e nacional sãoco-partícipes nesse labor, e, a fortiori, na construção

    de um meio social mais justo e melhor para todos. Aclara compreensão desta identidade fun